DÉCIMO  PRIMEIRO  TROVÁRIO

 

 

 

DOS  DIAS  O  DESENCONTRO

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha um número aleatório entre 1078 e 1200 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1078 – Dos dias o desencontro

 

Dos dias o desencontro

Canto em metro irregular

Com toda a rima do encontro,

A ver se me reencontro

Algures, nalgum lugar.

 

Canto o saber e o sabor

E a dúvida que restar

No calor

De cada dia que findar.

 

Canto as surpresas,

A pergunta presa ao beco

Do escuro das incertezas.

 

Canto, faminto e seco,

Quanto, inocente, peco.

 

 

1079 – Pérolas

 

Pérolas de sabedoria

Da boca nos brotam automaticamente,

Cada dia,

Sem cuidarmos no que tal represente.

 

Se paráramos para nos escutar

A nós próprios na avenida,

Acabaríamos por emendar

Nossa vida.

 

 

1080 – Pensam

 

Ou pensamos

Ou os outros pensam por nós.

 

E, mal nos precatamos,

Atam-nos com mil cipós,

Dominam-nos,

Pervertem-nos e disciplinam-nos

Os gostos naturais,

Civilizam-nos

Com mil pendores culturais…

- Enfim, esterilizam-nos, esterilizam-nos!

 

 

1081 – Procura

 

Quem procura fé, filosofia,

Quando corre bem o dia?

 

Com ventos de feição

Não custa a navegação.

 

É para os ventos adversos

Que teremos de andar tersos.

 

E quem dominar do mundo os arcanos

Pode melhor do que os humanos?

 

 

1082 – Acostumamo-nos

 

Acostumamo-nos à paz, nós todos,

Com tal facilidade e rapidez!

 

Tal como reagimos aos engodos

Com que nos atinge, de viés,

O momento da boa saúde:

Como nos ilude,

Aparentando a máscara mais vulgar

Do mundo, da vida!

Esquecemo-nos até, se calhar,

De quando a morbidez

Contra nós marcou a lida:

Então, quando doentes,

A saúde era tudo para nós.

 

Com a paz, por igual, entrementes,

Da guerra obliteramos quanto foi atroz.

 

 

1083 – Ilusão

 

A ilusão da proximidade

Do desejado na manhã de nevoeiro

Quantas vezes é meramente a mágoa

Por um passado sem idade

Que morreu,

Que morreu por inteiro!

A tristeza alimento-a e trago-a

Sob o véu

Tutelar

De a vida não parar,

Conformado.

 

Proximidade do fado,

Não do amor compartilhado.

 

No fundo, a mentira

Duma ilusão que delira.

 

 

1084 – Vezes

 

Podemos retornar

Muitas vezes ao mesmo lugar.

 

E a coisa mais estranha

Quando cada qual

Retorna muitas vezes

Ao mesmo local

É o que ele ganha:

- Deixa de afligir-se com os conveses

Do passado.

 

Começa a ver

Que este não existe em nenhum lado,

Na vida real,

Mas apenas na cabeça de quenquer.

 

Acaba por pisá-lo e o esmagar,

Primeiro como quem pisa a relva do jardim,

Depois como quem lá vai passear,

É um recanto do que restou de mim.

 

O passado mora aqui no coração,

Não ali, na poeirenta pegada do chão.

 

 

1085 – Atingir

 

Muitas vezes hei cuidado

Se alguma vez é viável

Atingir a verdade.

É o bocado

Intragável

Da maturidade.

 

Então, de entrada,

Pressinto que tudo o que fizer

Acaba, no fim, por não valer

Nada.

 

 

1086 – Escolha

 

Quem não tem nada

É que pode, neste mundo, escolher.

Quem algo tiver,

Tem a mão algemada

Ao que houver possuído:

- Não escolhe, é escolhido!

 

 

1087 – Discretos

 

Discretos vaguearemos pela vida

Tão de passagem

Como o povo que há dez milénios, de fugida,

Este vale habitou, esta miragem.

 

Apenas com mais algum ruído,

Mais um punhado de pontes e de estradas,

De diques a escorar o aluído,

De viaturas tão afadigadas

Nos enganos

Que nem durarão uma vida,

Quanto mais um milhão de anos!

O mundo é por inteiro mudança e despedida,

Todo teia transitória

Que deixamos e nos deixa.

 

A longo prazo, que bom,

Nem se nos requer memória,

Nem temos razões de queixa!

 

Do mundo na praça,

Como tudo o mais, somos mero vago som

Que perpassa. E de vez passa…

 

 

1088 – Infantes

 

Enquanto infantes inocentes

No primeiro patamar da vida,

Somos crentes:

Acreditamos que tudo são festivais

Na ermida

Do tecto de nossos pais.

 

Depois vem o dia do terramoto

E eis-nos desgraçados, infelizes,

De olho cego, de pé boto,

Quebrados os dentes, rasgados os narizes.

 

E, miseráveis e desamparados,

Com rostos de fantasma macabro,

Angustiados,

Atravessamos o descalabro

Famintos de amor,

Pejados de apelo.

A vida, porém, é pesadelo

A estremecer de horror.

 

Aí, então, somos o tolo

Vergado pelo Mal

No meio da refrega:

De raiz perdido o controlo,

Resta-nos o abandono radical,

A entrega, a derradeira Entrega.

 

 

1089 – Temporadas

 

Quando vivo temporadas no deserto

Até me esqueço de admirar a lua,

Como um homem casado, para o mais desperto,

Nem olha sequer

Para o rosto da mulher

Nem para a mulher nua.

 

Pior

Não é o pecado de omissão:

Sinal de preocupação

É esboroar o valor.

 

 

1090 – Pior

 

O pior da adultez

É que do princípio partem os mais

De que nossa personalidade  já de vez

Teve tempo para desenvolver

Todos os potenciais.

O problema da meia-idade

É que quenquer

Julga completada toda a formação,

Fixa-nos a identidade.

E qualquer rumo a maior maturidade

É traição.

 

Tudo camufladamente configura

Uma nova escravatura.

 

 

1091 – Apenas

 

Apenas o rico não se pode dar ao luxo

De ser esperto,

Dos compromissos enfiou o capucho,

Aferrolhado anos e anos no palácio deserto

Aos privilégios.

Tem de proteger os bens,

Os bruxedos e os sortilégios.

Não há gente mais mesquinha

Do que o rico e sua gens.

Tem de respeitar das regras a gavinha

Que o ata ao mundo civilizado

E crê-se livre assim atado.

 

A guerra vai declarar,

Da honra tem o sentido,

Mas o pé não pode arredar,

Que à soleira do portão o tem fundido.

 

Nós outros somos livres, porém,

Como qualquer desvalido

Que nada tem.

 

 

1092 – Vemos

 

Quando jovens, não nos vemos ao espelho.

Fá-lo quenquer quando velho,

 

Preocupado com o nome,

Com a lenda onde se atriga outra fome,

 

Com o significado que a vida, já de escuro,

Lhe terá para o futuro.

 

Envaidecemo-nos do nome e apelido,

Com pretensões ao domínio dos escolhos,

De havermos sido

Os primeiros olhos,

O tiro mais impoluto,

O mercador mais astuto…

 

- É Narciso de pele engelhada

Quem quer ver a própria imagem gravada.

 

 

1093 – Urbes

 

Urbes que noutros tempos grandes foram

Devieram hoje pequenas

E as que de grandes hoje se namoram

Pequenas foram noutras cenas.

 

Dos homens a boa fortuna

Nunca demora no mesmo lugar

Sem, fatal, uma lacuna

A acompanhar.

 

 

1094 – Detestar

 

Detestar conflitos

Nunca impede quenquer

Da actuar como entender

Nem de à própria maneira atritos

Tornear e resolver.

 

Há um enorme território ignorado

De quem leva uma vida silenciosa

Ao lado

E que ninguém goza.

 

 

1095 – Mundo

 

Anda o mundo fragmentado,

Perdemos mais que o sentido

Dos objectivos, dos fins primevos,

Perdemos também linguagem, o traslado

Que nos tem permitido

Falar de tal, de tal ser coevos.

 

É tudo de matriz espiritual,

Indubitavelmente,

Com o análogo, porém, do mundo material:

O esmigalhar do presente.

 

 

1096 – Operam

 

Não operam obrigatoriamente

As palavras: podem antes obscurecer

Em qualquer mente

O que tentam dizer.

 

Dão sempre um menu surpresa

A quem se sentar à mesa.

 

 

1097 – Recuso

 

Recuso aceitar um mundo

Em que o assassino duma criança

Escapa, jucundo,

E nenhum castigo o alcança.

 

Mesmo que o bandido esteja morto,

É preciso dispor-nos a sacrificar

Vida e alegria a reparar

Aquele pedaço de mundo torto.

 

Não por qualquer interesse pessoal,

(O de progenitor, parente…),

Mas apenas por tal

Ser tão indecente,

Tão Mal.

 

Recuso de sal

Um ambiente

Que nos mintam como ideal

Comida de gente.

 

 

1098 – Marcado

 

Marcado pelo pasado,

Um evento acontece

E não poderei após fazer mais nada.

Ocorre um dado

E jamais perece,

Continua ocorrido na infinda estrada.

 

Ah, não poder

Ser alterada

A marca para trás abandonada,

Não poder desacontecer!

 

O limite foi de vez medido:

Como não ser

Após haver sido?

 

 

1099 – Fundamental

 

Por mais factos que hajam contado,

Por mais pormenores que hajam fornecido,

O fundamental resiste ao trato dado,

A qualquer tentativa de o haver esgotado,

Fatalmente para além desconhecido.

 

Ignorá-lo alguém, triunfalista,

É de ignorante dele duplicar a lista.

 

 

1100 – Belo

 

Um desapontamento

Não te deve levar a desprezar

Todo e qualquer belo evento

Que a vida te ofertar.

 

Em teu desgosto

Podes não crer na utilidade de existir.

Repara, porém, que meu rosto

Não tem outro motivo senão de te servir.

 

 

1101 – Contador

 

O mau contador de histórias,

Após falhar, diz à plateia:

“Vocês tinham de lá estar!”

O bom contador tem tais memórias

Que nos faz crer, mal ameia,

Que estávamos mesmo em tal lugar.

Entra por nós dentro tanto

Que o coração nos repica em cada canto.

 

 

1102 – Carta

 

Em geral,

Muito melhor na carta que escreve

É cada qual

Do que na realidade.

Ali a poesia o susteve,

Nesta é a lama da rua que o invade.

 

 

1103 – Preocupa

 

Manter que o Pai Celestial

Se preocupa até com a morte dum pardal

Quando uma vida vale menos

Que um maço de cigarros?

Benévolos acenos

A quem morre afogado nos escarros?

 

Resta a verdade comedida,

Por cada qual ser do Universo parceiro:

- Quem salva uma única vida

Salva o mundo inteiro.

 

 

1104 – Inteligência

 

A inteligência o valor inteiro

Atinge-o quando visa um alvo além,

No interior de alguém

Ou no mundo exterior que lhe é parceiro,

Quando, pragmática,

Procura aplicar-se em vida prática.

 

A inteligência

É para vivificar o acto.

Sem ela, ao acaso da demência,

A actividade é inútil, de facto,

Ineficaz.

Sem agir, todavia,

Como estéril a inteligência deviria,

Incapaz!

Luz a arder ao lado do farol,

Vaga então se consome, de nada em prol.

 

No conluio de ambos os vectores

Do píncaro é que atinjo os esplendores.

 

 

1105 – Origem

 

Dos homens em toda e qualquer crença,

Pressupondo-a embora de origem divina,

Há uma ganga humana cuja presença,

Tida em conta, elimina

O integrismo, o dogmatismo, o totalitarismo,

Por relativização histórica,

O sectarismo,

Por interpretação alegórica,

O fundamentalismo,

Por entre o sonho e a realização

Se cavar, inelutável, o abismo

Dum intransponível desvão.

 

Tal é, permanentemente,

A humana condição:

- O divino tem um lado que nos mente.

 

 

1106 – Fórmula

 

É a fórmula que em nossa vida introduz

O divino que se esvai.

Tanto quanto, porém, o traduz,

Assim o trai.

 

Acolhamos a forma,

No culto, fora ou contra ele,

Conforme cada consciência dela se informa

E como a interpele.

 

E dela cada qual se sirva então

Conforme em cada trilha a precisão.

 

 

1107 – Sentimento

 

Em cada sentimento religioso

Há o germe que é o mesmo na mesma sementeira,

Transporte mais ou menos vigoroso,

Gemido de alma à beira

Do Infinito, dos Céus:

- Todos somos iguais perante Deus.

 

 

1108 – Dogmas

 

Os dogmas têm uma cara exterior, cultural,

E um fundo por baixo da forma.

A forma esconde o fundo, em norma, por sinal,

E em lugar de sinal torna-se norma.

Aprofundar do dogma o sentido,

Aprofundar

Até que a exigência da razão

Com ele venha a conciliar,

Eis o trilho por demais traído

Que nos traz

A solução:

Pelo mundo inteiro há-de espalhar a paz.

 

 

1109 – Muitímoda

 

Como podemos acreditar

Quando da históris das religiões, idade a idade,

Anotámos a multímoda credulidade,

Cada qual mais intransigente e lapidar?

 

É o que mais liberta:

Cada religião erroneamente

Sempre se julgou certa,

Tal e qual qualquer uma do presente!

 

É a porta aberta:

Nisto, pelo menos, qualquer de hoje mente.

 

 

1110 – Laços

 

É preciso ter rompido

Os laços que a vida amarram

Ao exterior e ao passado nela vivido,

Por mais frágeis que pareçam quando agarram,

 

Para neles verificar

Tudo o que enguiça,

A multiplicidade movediça,

A tenacidade exemplar.

 

E, o que é mais incrível,

Como tudo é inapreensível.

 

 

1111 – Entregar

 

A fé não é somente

Inteligência, uma convicção,

Mas sensibilidade, vontade permanente,

Sentimento de confiança, disponível submissão…

 

-É um modo

De me entregar de todo.

 

 

1112 – Entre

 

Entre os homens o que importa implantar

É o espírito de tolerância.

De ser o que somos todos temos o direito,

Sem o vizinho do patamar

Poder proibi-lo, com a ganância

De tomar a peito

Dele os modelos pessoais

Como do mundo inteiro obrigatórios fanais.

 

 

1113 – Continue

 

Continue livre o erro

Mas a verdade, porém,

Continue livre também…

E não liguemos ao efeito do despejado no aterro:

Sempre a vitória coroar há-de a verdade

Na hora própria, conforme o mundo invade.

 

Pode ser além da morte que vence Galileu,

Mas sempre ele, ao fim, é que venceu.

 

 

1114 – Pública

 

À ordem pública há-de sobrepor-se

A honra nacional.

Que a ilegalidade manifesta jamais force,

Mesmo em nome da segurança do Estado,

Por todos com acolhimento oficial,

Aquela prioridade de efeito comprovado.

 

Males mil vezes mais graves

Engendra o inverso

Que a perturbação transitória dum povo:

Compromete, com os entraves,

A aquisição única, perante o Universo,

De que o homem sente o orgulho e o renovo,

- A da Liberdade.

 

Compromete o Direito e a Justiça,

Do mundo civilizado maturidade,

E tudo então de vez enguiça.

 

1115 – Fórmulas

 

Pouco importam as fórmulas, pouco,

Pois nenhuma é bastante verdadeira

Para conter toda a Perfeição, o Infinito, Deus…

Louco

É quem com o Todo emparceira

Como parceiro único dos céus.

 

As fórmulas são a maneira

Multímoda, com mil rostos diferentes,

De designar uma atracção

Que é a mesma para todas as gentes,

Acalentadas ao mesmo vulcão

Nas múltiplas vertentes.

 

 

1116 – Lei

 

É uma lei histórica:

O vencedor adopta de imediato

Os vícios do vencido.

Uma imoralidade pletórica

Contagia, fatal, o acto

Do poder assumido.

 

Por isto é que a revolução

Consumada

É inelutavelmente a reprodução

Pré-datada

Da traição do Homem, da Traição.

 

E apenas a reforma

Insistente, persistente, consistente,

Altera a norma, altera a norma

Do presente

E, gradualmente,

A do Homem que o conforma.

 

 

1117 – Crês

 

Não crês em nada?

Cremos todos, cremos, nalguma coisa:

Em cada qual,

No fundo da íntima gruta tresnoitada,

O deus dele, escondido, repoisa,

Irrecusável e fatal.

É ali que cada qual volta,

Piedoso, com alegria,

E consagra-lhe a vida envolta

Em cada dia.

 

E tudo isto é tão seguro, tão seguro

Que, mesmo quando ainda vagueia no escuro,

Bem gostaria, bem gostaria…

 

 

1118 – Autênticos

 

Não existem autênticos ateus:

Todos são crentes doutro qualquer deus.

 

Nunca deixaste de ser crente:

Confias no progresso,

No futuro da ciência,

Crês do ateísmo no triunfo prevalente,

Na travagem de qualquer excesso,

Na vitória final da liberdade e da decência…

 

Ora, que é tudo isto, que é

Senão um princípio de fé?

 

Crês na finalidade da natureza,

Na ordem eterna das leis

Que a mente nos gerou que as preza.

Crês na ideia de justiça

A que devemos ser fiéis

E que nos rege, do Universo nos coruchéus,

Que a todos nos enliça…

- Ora, esta ordem é Deus.

 

Assim, porém, codificado

Sem perfil nem sentença,

É um deus indeterminado

E tal é apenas a diferença.

 

 

1119 – Algo

 

Para além da cronologia e da virtude

Algo haverá.

Daí quanta tentativa nos ilude

Para prever ou descortinar o futuro,

A fé no médico ou na cigana

Para erguerem o véu do lado de lá…

E quanto mais o prefiguro

Mais me engana.

É o nosso esforço cretino

Para domesticar

Ou demonizar

O divino.

 

O mesmo ocorre no sentimento de beleza,

A criada pelo homem

Como a da natureza:

Ante o infinito,

Os olhos que nele se somem

E o apreciam, são finito.

 

E nenhuma modalidade

Instaura a reciprocidade.

 

 

1120 – Forjo

 

Como o todo-poderoso,

À minha imagem e semelhança

Forjo tudo em que me entroso,

Que modelo outro não me alcança.

 

Então nossos artefactos

Sobre nós bem mais dirão,

Com todo o peso de factos,

Do que qualquer confissão.

 

 

1121 – Violador

 

Nenhum violador quer

Como tal ser considerado,

Menos ainda apanhado.

Daí uma mistura qualquer

De metáforas e objectivos,

Alta retórica, lírica de incentivos,

A inflar os peitos inchados

Dos deputados

E doutros de quem pendemos:

- De deus fazem e são demos.

 

 

1122 – Disparos

 

O sentido da vida se nos traduz

Em vagos disparos na obscuridade,

Cadeia de montanhas de relâmpagos à luz,

Numa sombria noite de tempestade.

 

Como não entregar a vida ao acaso

Quando o sentido, nem a prazo?

 

 

1123 – Livro

 

Quando um livro leio,

Apenas com os olhos

Operá-lo creio,

Mas, entre o mar aberto e os escolhos,

Às vezes encontro uma passagem,

Talvez uma frase única que vale a viagem,

Que tem sentido para mim

E devém parte de minha veste de cetim.

 

Somos um botão de flor,

A maior parte das leituras

Por nós desliza, saraiveiro rorejador,

E não produz o menor

Efeito em nossas securas.

Certa palavra, porém, dum evento o pendor,

Adquirem para nós um sentido e força tais

Que uma das pétalas nos abrem, por fim.

E uma a uma desabrocham elas,

Virginais,

No carmim

Do sol e das estrelas,

E, em pleno alvor,

Surge, enfim, inteira uma nova flor.

 

 

1124 – Entusiasmo

 

Quantos não manifestam constante

Entusiasmo pelas ideias,

Lume a aquentar qualquer viandante

Com que topam do caminho nas teias,

 

Quando na realidade tais ideias,

Vazadoiro em que pontificam

Revestidos por tão finas peles,

Nada significam

Para eles:

Não produzem, do rio da vida no leito,

Para eles qualquer efeito!

 

Não são mais que belas porcelanas

Numa quadra de leilão:

Manuseiam-nas com prazer,

A ruga do fundo, as abas planas,

Tocam-lhes a forma, o brilho, o grão,

Calculam quanto poderão valer,

Para repô-las, por fim, nas prateleiras,

Alheios ao engodo.

- E viram-lhes as costas sobranceiras,

Esquecendo-as de todo.

 

 

1125 – Desprezo

 

Falam com desprezo do dinheiro…

Já experimentaram viver um dia sem ele?

A falta de tão primário parceiro

Torna mesquinho, vil, avarento

O imbele

Escravo do tormento,

O carácter lhe deforma

E leva-o a olhar

O mundo com que se não conforma

Por um prisma rasteiro,

Vulgar.

 

Quando temos de levar

Em conta cada vintém,

O dinheiro acaba por tomar

Uma importância grotesca

E o homem tem

Postura simiesca.

 

Só numa conjuntura desafogada,

Afinal,

Podemos atribuir-lhe, ponderada,

A valia real.

 

Negá-la,

Como,

Se ele é que me embala

E nele é que me tomo?

 

 

1126 – Contacto

 

Viver no estrangeiro,

Entrar em contacto com usos e costumes

De povos de que me inteiro,

A vantagem tem de atear outros lumes

Em tudo o que partilho.

 

Observado de fora,

Tudo retém da novidade o brilho

E agora

Compreendo que nada deriva

Duma fatalidade inescrutável,

Ao invés do que julga quem lá viva

Qualquer uso como inevitável.

 

Não poderei deixar de descobrir

Que a crença para mim indiscutível,

O meu sacrário,

É, para o estrangeiro que me vir,

O absurdo mais incrível

E arbitrário.

 

 

1127 – Agimos

 

Não agimos de certo modo

Por pensarmos de certa maneira,

Antes pensamos pelo engodo

De como o agir se nos inteira,

De como havemos sido feitos.

 

A verdade nada tem a ver,

Não existe, no fundo, por trás dos trejeitos.

Cada homem filósofo há-de ser

Dele próprio, não doutrem qualquer.

O primoroso sistema

De qualquer grande do passado

Valeu apenas e foi lema

Para aquele que o houver edificado.

 

O importante, pois, é descobrir

O que somos,

Que o sistema há-de-se erigir

Por ele próprio com todos os tomos.

 

 

1128 – Brilhante

 

A brilhante esperança da juventude

Tem de ser paga ao custo amargo da desilusão.

Entre o esforço e o resultado que já não ilude,

Que desproporção!

 

Como a dor, a doença e a desgraça

Pesam na balança!

Que significado alcança

O que nos traça?

 

Medito na vida,

Nas expectativas ardentes com que nela entrei,

Nos limites dum corpo à medida,

Na solidão de amigos e de lei,

 

Nos afectos ausentes

Da infância, juventude e adultez…

Sempre o melhor fiz, mesmo rangendo os dentes,

E que revés!

 

Outros, sem mais vantagem que eu,

Triunfam e outros ainda,

Com muito mais predicados de seu,

Falham, a aposta finda.

 

Pura questão de sorte,

A chuva cai tanto sobre o ímpio como sobre o justo

E para nada deste mundo há nenhum motivo forte

Ou causa do custo.

 

 

1129 – Vista

 

Quando a vista nos abarca a lonjura

Esquecemo-nos de olhar

Para o que diante dos olhos se nos configura:

Tão próximo há-de ficar,

Tão íntimo após,

Que chega a fazer parte de nós.

 

Então, nem por anúncio nem aviso

Os diviso.

 

E perco a vida

Na lonjura delida.

 

 

1130 – Angústia

 

Quando a angústia não é partilhada,

A culpa corre de mão em mão,

Batata quente atirada

Dum para o outro, em convulsão,

 

Acabando por se colar

A quem mais dificuldade tiver

Em se desenvencilhar

Duma culpa qualquer.

 

E quantas vezes, Deus meu,

Afinal sou eu!

 

 

1131 – Pedra

 

Uma pedra, quieta no chão

Desde o pincípio das eras

E de repente apanhada,

Ao acaso levada

De mão em mão,

Mil quimeras inaugura.

 

Uma pedrinha dura,

Mal cônscia de quanto a cerca,

Nela própria concentrada,

Em vida interior onde se perca,

 

Corre pelos campos todos,

Fábricas, institutos, hospitais

E tudo o mais,

De muitos modos,

E medra, medra,

Embora continue pedra.

 

Ou não?

Criatura estéril, por nascer,

Agitada pela lava do vulcão,

A terra inteira a percorer

Colada ao chão

Onde todas as pedras se consomem,

Se comem

Numa intérmina digestão,

Não é pedra, não,

- É o Homem,

Homem em primeira mão!

 

 

1132 – Amante

 

Amante duma noite é a fortuna.

Um dia após, na rua ao nos encontrar,

Finge, se calhar,

Nem nos reconhecer.

Já não se nos coaduna:

Um homem sorri-lhe ainda

E já ela, a quem menos a soube merecer,

Finda

A acalentar e acolher,

Já, ingrata, nos virou costas,

Apostada, louca, noutras apostas.

 

 

1133 – Apazigua

 

Na vida, muita conjuntura,

Muito evento

Nos assegura,

Nos apazigua e facilita cada intento,

 

Corre para o lugar adequado,

Aninha-se-nos na mão.

Mas olhamos distraídos para o lado,

Não reparamos na ocasião,

Na intenção

Nem no traslado.

 

Atentamos e com zanga

No trilho que nos contraria,

Nos puxa pela manga,

Nos complica o dia.

 

Ignorando o bem

Sem olhar a quê nem quem,

 

Apontamos o mal

Ao primeiro

E mais ligeiro

Sinal.

 

E a vida, por mais amiga,

Há sempre quem a maldiga.

 

 

1134 – Contidas

 

Há mil representações

Contidas nos dados

E as correspondentes aptidões

Para libertá-las em sugestivos traslados.

 

Mas quando é matéria viva,

Espíritos irrequietos aprisionados,

Não basta a técnica esquiva

Nem o engenho dos laureados.

 

Importa o mágico gesto,

Polir do génio a lanterna,

Do casto beijo o apresto,

A palavra superna.

 

O termo exacto abre a caverna

Do tesoiro,

A palavra adequada

Obriga o eunuco moiro

A entregar-nos a moira encantada.

 

Por que é que o termo com sortilégio

Não há-de estar democratizado?

A cada qual, o trono régio

Com a huri ao lado?

 

E, na vida, o sonho

A crescer onde o ponho?

 

 

1135 – Enigmas

 

Apenas encontramos enigmas, que tristeza!

Árvore pujando ao sol,

Pedra crestada ao temporal

Na devesa,

Um animal,

Uma montanha coroada de arrebol

- Todos retêm uma vida

Escondida,

Contam uma história

Para memória,

Sofrem, teimam, fruem, morrem,

Em tudo quanto vemos

Deleitados acorrem,

 

- Mas nós nunca o compreendemos.

 

 

1136 – Demoníaca

 

Demoníaca, a melancolia

Torna cada qual doente,

Míope e pretensioso,

Arrogante, acaso, eventualmente,

Atlas que solitário carregaria

Aos ombros o ominoso

Peso dos sofrimentos

E dos enigmas do mundo.

 

Como se mil outros não suportassem

Os mesmos tormentos

E, movidos por fundo

Instinto,

Não errassem

Eternamente no mesmo labirinto.

 

 

1137 – Envergonha-te

 

Envergonha-te de ver mais de guerras estrangeiras,

Da moda, dos vivas, das artes e literatura,

Que da Primavera a desdobrar a indómita verdura

Perante tuas cidades sem ombreiras,

Que da corrente fluindo

Sob as pontes que andas erigindo,

Que das mágicas florestas

E das virentes campinas

Por entre as quais a correr desembestas

No comboio com que leino desatinas!

 

Envergonha-te, sim,

De não descobrir a correnteza de oiro e prata

De blandícias inefáveis e sem fim

Que este mundo inesgotavelmente desata,

Para juvenil e renovada alegria

De quem as descobrir um dia!

 

 

1138 – Terrível

 

Quem nunca tenha sentido a tristeza

Não pode entender a terrível solidão.

Entre mim, os mais e da cidade o turbilhão,

Nas casas, nas ruas, na praça, na devesa,

Há um vasto fosso

Que transpor nunca mais posso.

 

Ocorre um enorme desastre,

Eventos importantes no jornal,

Uma crise, uma expectativa mundial,

- Em mim não há canto onde os encastre.

 

Celebram festividades,

Enterram mortos nos covais,

De feiras montam e desmontam estendais,

Dão concertos em palácios, em herdades,

- E que me importam

Os fins a que tais gestos exortam?

 

Vagueio por florestas, montes e valados

E, em meu redor, os prados,

As árvores, os campos calam o azedume.

Numa dor sem queixume,

Mudos olham-me e suplicantes,

Desejando segredar-me por instantes,

Vir-me ao encontro, saudar-me…

 

Mas ali jazem, nada podem contar-me,

E compreendo-lhes o sofrimento de anhos imbeles,

Os inenarráveis abalos,

E sofro com eles

Por não poder libertá-los.

 

 

1139 – Cultura

 

A cultura é tentativa

De algo, no limite, irrealizável,

Por conseguinte, mais que esquiva,

É inviável.

A cultura por que tanto esforço envido,

Na derradeira instância não tem sentido.

 

 

1140 – Insignificância

 

Repousa a vida

Na insignificância absoluta,

Única base à medida,

Com solidez tão resoluta

Que jamais se desmorona.

 

Uma grande ideia

Que aflore à tona

Por outra grande ideia pode ser minada

E, mal ameia,

É volatilizada,

Reduzida a nada.

 

A insignificância, porém,

Ei-la de vez inacessível,

Imutável,

Indestrutível.

É, pois, como convém,

Uma base durável.

Por isso foi a escolhida

Por plataforma que alicerça a vida.

E cuidar

Que o homem tanto raciocínio requer

Só para o chegar

A compreender!

 

 

1141 – Fundo

 

No fundo, os homens querem a guerra.

Com ela, há uma simplificação

Que os alivia

Do que os aterra:

Todos os homens julgarão

A vida complicada em demasia.

Decerto o é,

Dado o modo como cada qual a vive dia a dia:

À falsa –fé.

 

Tomada em si,

A vida não é complicada,

Antes o que mais nela sempre distingui

Foi a simpleza estruturada.

 

Infelizmente, a guerra o chão junca

De homens que o não compreendem nunca.

 

Não compreendem que mais valia

Deixarem-na tranquila

Em vez de procurarem cada dia

Usá-la para mil fins estranhos

Onde o que, afinal, se perfila

São sempre ilusórios ganhos.

 

Eles sentem, todavia,

O germinal gozo

De como viver é já maravilhoso.

Concluem mal, porém, o vaticínio

E acabam, afinal, num morticínio.

 

 

1142 – Castigo

 

Dar ao pecador

Aquilo por que ele anseia

É o castigo pior

Que lhe ameia.

 

No inferno o que apenas vejo

É do pecador

A realização do desejo,

Nada de nenhum outro teor.

 

 

1143 – Riqueza

 

A riqueza espúria, inútil

É deveras para o morto,

Tão fútil

Como quando, adulto, me transporto

Ao desejo de criança

Por berlindes, cromos, bonecas ou brinquedos.

Dantes, o valor que isto alcança

Os sonhos me doira, ledos.

Depois tudo relativizo,

A sorrir da ingenuidade infantil.

 

A preocupação é por igual pueril,

Alheia à sensatez que viso,

Quando, da morte na paz,

Olho o que no mundo deixo atrás.

 

 

1144 – Miséria

 

Miséria, carências, injustiça

Criam na Terra sofrimentos.

A raiz aí se nos enliça

E nos prende os movimentos.

 

O erro a que fico atreito

É o de absolutizar este efeito.

 

É que quanto é passageiro

Em última instância acaba:

Como morrerei primeiro,

Todo o valor lhe desaba.

 

Mesmo na terra, porém,

É sempre a atenção demais

Ao transitório que advém

Contra os lados perenais

Que, afinal,

Acaba criando o mal.

 

Perpetuam a miséria

Quantos não lograrem ver

Para além da matéria

Que tiver.

 

Mesmo quando a atenção

É bem intencionada

E do sofrimento a lesão

Busca ver eliminada.

 

É sempre uma abertura para além

Que, relativizando-lhe o peso,

Lhe dá o peso que contém

E então não me esmaga se o sopeso.

Poderei em mãos tomá-lo

E introduzir-lhe, eficaz, o meu abalo.

 

 

1145 – Construtivo

 

Quanto de construtivo e superior

O homem preserva

É tão vulnerável, de tanto pudor,

Que qualquer distracção,

Qualquer reserva,

O reduz a poeira do chão.

Daí o respeitoso amor

Pelo derradeiro herói do esforço

Para o homem superar a besta,

Veneravelmente frágil neste escorço,

E que de minha protecção

Reclama a fresta,

A ilusão

Duma festa.

 

No monumento, na biblioteca, no museu

Respeito o melhor do que sou eu.

 

 

1146 – Apenas

 

Amar apenas o perfeito, o incomparável,

Que mania mais cruel!

Acredita que teu herói já morreu de vulnerável

E teu amor fiel

É atroz

Porque amas o brilho feroz

Da espada

Que ele já não traz embainhada.

 

Não o forces a sentir-se desprezível

Exigindo-lhe o que não te pode dar.

Nada mais enternecedor

E credível

Que o desastrado Prometeu

A queimar

Os dedos no fogo do céu

Que sacrificado roubou

E a teus pés te jogou.

 

Ao fazer-lhe o curativo, quenquer

É absolutamente mulher.

 

É neste humano relativo

Que deveras vivo.

 

 

1147 – Prisioneiros

 

Nós, os humanos,

Somos de algum modo um aquário.

Vivemos numa perpétua armadilha,

Prisioneiros de enganos,

Enclausurados de modo vário,

Com olhos de maravilha,

Acorrentados em avenidas

Donde as fugas são proibidas.

 

Fatalmente assim

Do princípio até ao fim,

 

É perpetuamente ilusão

Crer que temos outro chão.

 

 

1148 – Nuvens

 

Em minha cabeça

Tudo anda organizado e claro.

Mas quando o pensamento apura o faro

Tudo são nuvens onde tropeça.

 

Quando chego a qualquer lugar

Há um fosso a meio

Através do qual posso constatar

Uma amplidão imensa, indefinida,

De que anda cheio.

 

A matemática oferta guarida,

Que deve estar certa.

Mas que há com minha cabeça alerta

E com tudo o mais que me escapa de fugida?

 

 

1149 – Entre

 

Entre viver e compreender

Impera a incomparabilidade.

Tudo quanto indivisível e inquestionado

Viver,

Incompreensível devém e confuso

Quando amarrado

Às cadeias da verdade

De meu pensamento obtuso,

Quando ele, fatal,

Pretende disso o domínio total.

 

E aquilo que parecia estranho e grandioso

Enquanto de longe a palavra por ele anseia

Devém simples e sem gozo,

Perde o que tem de inquietante,

Mal ameia

Adiante

E, de forma sumária,

Entra na rotina da vida diária.

 

 

1150 – Estranha

 

Coisa estranha é o pensamento:

Muitas vezes é um acaso,

Brilha um momento

E sem deixar rasto mergulha no ocaso.

Tem épocas de viver e épocas de morrer.

 

Uma ideia genial

Poderei ter

E todavia, como uma flor,

Ela murchará, lenta e letal,

Entre as mãos onde houver

De a depor.

 

Permanece a forma na redoma,

Faltam-lhe as cores e o aroma.

 

Embora posteriormente

Me lembre bem de tal ideia,

Palavra a palavra, gradiente a gradiente,

E permaneça inalterado

O valor lógico da frase na teia,

Ele apenas flutua desnorteado

Na epiderme de meu interior,

Já me não vejo enriquecido

Nem melhor

Por havê-lo possuído.

 

Até que, de repente,

Anos depois acaso,

Eis o instante em que se sente

Que, durante aquele prazo,

Nada sabíamos sobre aquilo e, contudo,

Do ponto de vista lógico, sabíamos tudo.

 

O que aqui se produz

É que inesperadamente se fez luz.

 

 

1151 – Prolongue

 

Um pensamento

Vive apenas no instante

Em que algum outro elemento

Que já não é o pensar

O prolongue para diante,

Em que o que já não é lógica nem representação

A ele se acrescentar,

De modo que lhe sintamos a verdade

Para além de qualquer justificação,

Como uma âncora que dilacera a opacidade

De carne viva e sangrenta

Em que afundar-se tenta.

 

Uma compreensão

Apenas se realiza pela metade

No estreito círculo de luz

De nossa mente;

A outra metade traduz

O solo escuro do mais íntimo de nós

E é principalmente

Um estado de alma em que após,

Na ponta extrema, ao vento,

Como uma flor, pousa e baloiça o pensamento.

 

 

1152 – Irrompem

 

Vivemos dum a outro pensamento,

Duma a outra sensação:

Eles não correm tranquilos como rio ao vento,

Irrompem de supetão,

Caem dentro de nós como pedras

Em que por saltos medras.

 

O imo não troca de cor

Em gradações paulatinas,

Os pensamentos saltam dele com vigor,

Surpreendem às esquinas,

Borbotam à luz em que me integro

Como explosões para fora dum buraco negro.

 

Vem agora um pensamento

E logo uma sensação

E, quase ao mesmo tempo,

Outros diferentes brotarão,

Doravante, à frente da bancada

Como se germinassem do nada.

 

Se prestarmos atenção,

Entre dois pensamentos, porém,

Há o instante de absoluta escuridão,

Vazio de nada e de ninguém:

Dita-nos daí a sorte,

- É o instante da morte.

 

Perdemos a vida a colocar marcos

E a pular dum a outro diariamente,

Saltando por cima dos mil segundos parcos

Da morte ali jacente,

Intermitentemente.

 

Apenas ouso

Viver nos pontos de repouso.

 

Daí o medo ridículo da morte definitiva

Pois sem marcos é o lugar,

O imensurável abismo em que esta aflitiva

Vida há-de findar.

 

É a negação inteira do que nem sequer,

Afinal, é maneira ainda de viver.

 

 

1153 – Momentos

 

De ninguém a vida

Com pequenos momentos perfeitos

Alguma vez é preenchida.

Se o fora, pelos jeitos,

Já não seriam tais momentos

Momentos perfeitos:

Seriam apenas normais,

Como da vida quaisquer elementos

Rotineiros que tais.

 

Como é que alguém alguma vez

Poderia descortinar a felicidade

Se não aguentara de viés

O revés

Da atrocidade?

 

 

1154 – Dádiva

 

Temos uma dádiva esplendorosa,

A vida.

Nem a todos é dada.

Cedo demais perdida,

Às vezes é-nos retirada

Quando mais gostosa.

 

O que importa, porém,

É o que, pura,

Depura

Por ela além

E não quanto tempo dura.

 

 

1155 – Mudança

 

Uma mudança aqui

Desencadeia logo outra além:

Ninguém mora só, ninguém,

E ninguém tem alibi.

 

E nada é sólido, nada:

Sempre a mudança se transfigura

Em instantes de fixidez,

Cuja fachada

Configura,

De vez,

Que são meros acordos momentâneos

Em nada com a realidade consentâneos.

 

Toda a mudança é procura

De perene imutabilidade:

É da inércia nostalgia,

Preguiça que nos invade

Com inatingíveis paraísos de fantasia.

 

E assim nos dana

Com quanto nos engana.

 

 

1156 – Arvoredo

 

É o arvoredo uma escrita,

Caligrafia, a vegetação

E o caminho que me incita

É da leitura a lição.

 

Caminhar por um carreiro

É ler

Um pedaço de terreno,

Decifrar, ligeiro,

Uma parcela qualquer

Do mundo que aspiro pleno.

 

Toda a leitura é um caminho,

Qualquer caminho, leitura

Onde interpreto, adivinho,

O natural que se me afigura.

 

É nos pés uma viagem

O que na mente é linguagem

 

E vice-versa,

Quando tudo se conversa.

 

 

1157 – Planta

 

A planta que digo não é uma planta que vejo,

A planta não diz planta,

Vive para além do nome onde a bosquejo,

É o real, com tronco e folhas, que se implanta.

 

Impenetrável,

Realidade para além dos signos,

Intocável

Aos dedos da mente, dela indignos,

Vive nela mesma mergulhada,

No próprio ser implantada:

Poderei tocá-la

Mas não dizê-la,

Poderei incendiá-la

Mas, se a digo, acabo por perdê-la.

 

A planta que entre plantas ameia

Não é a planta que digo,

É, para além dos nomes, realidade cheia,

Que para além do nome a realidade tem abrigo:

É o real

Tal e qual,

Sem diferenças

Nem semelhanças

Nas contradanças

Das sentenças.

 

A planta que digo não é a planta

E a outra que vive além

No canteiro que me espanta

Não é a planta também,

É a realidade inatingível, a lonjura inalcançada

Em que respira plantada.

 

Entre uma e outra mora a percepção

Que me equipa,

Da planta apreensão

Que, na medida em que a apreende, a dissipa.

 

Mas quem percepciona, quem sente,

Quem se esboroa

Neste outro mundo que fatal invente

Ao esboroar-se a percepção à toa?

 

 

1158 – Signos

 

Os signos não são presenças

Mas outras presenças configuram

Nas próprias sentenças.

Umas atrás doutras as frases se inauguram,

Na página alinhadas,

E, ao desdobrarem a teia,

Desdobram um caminho de rotas ignoradas

Rumo a um fim que de longe ameia

Provisoriamente definitivo.

 

A frase configura uma presença, visitante esquivo,

Que se dilui:

As frases são

A figura da abolição

Duma presença onde fui.

 

 

1159 – Abolimos

 

Pela escrita abolimos os dados,

Transmudamo-los em sentido;

Pela leitura abolimos os signos revelados,

Apuramos o sentido e, denodados,

Dissolvemo-lo, mal é vivido.

 

Retorna o sentido, no final,

À argamassa primordial:

Pelos degraus caminhados

Retornamos aos dados.

 

 

1160 – Vazio

 

O vazio dos nomes as coisas nos revelam

Sem nada revelarem,

Simplesmente por estarem

Aí perante nós como fadas que tutelam.

 

Do mundo revelam a falta de medida,

O mutismo visceral,

A falha radical

Que fende nossa vida.

 

 

1161 – Espera

 

A espera o tempo imobiliza,

Não a angústia, porém.

A espera é eterna: na baliza

Anula o tempo que retém.

 

É instantânea, contudo,

De sujeita ao iminente,

Ao que vai ocorrer, mudo,

Num momento, de repente.

 

E assim, a espera

O tempo acelera.

 

Nesta íntima contradição

Tecemos a malha do tempo no chão.

 

 

1162 – Desencarna

 

A palavra desencarna o mundo

Na busca do seu sentido

E encarna-o, retorna ao corpo fecundo,

Uma vez o sentido abolido.

 

A poesia é corporal,

Reverso dos nomes, o outro lado do sinal.

 

 

1163 – Ricos

 

Os ricos não são como os mais,

Esquecem que o resto não é rico,

Chegam mesmo a esquecer, aliás,

A fortuna que neles verifico.

 

Por isso, do montante da conta que acode

Pedem sempre metade a quem não pode.

 

 

1164 – Equilíbrio

 

Equilíbrio tem de haver

Entre rigor e paixão.

Muitas vezes uma falha qualquer

O educador deixa ali se intrometer:

Deixa apagar o morrão

Da paixão.

 

Quando não vibra com o que faz,

As crianças também não vibrarão

E em breve ninguém de tal será capaz,

Então.

 

Morto qualquer entusiasmo,

Do insucesso porque pasmo?

 

 

1165 – Problema

 

Não carregueis nunca mais

Que um problema de cada vez.

Vede bem que carregais,

Por norma, três:

 

Todos os que tivestes outrora,

Todos os que tendes hoje em dia

Mais todos os que, a qualquer hora,

Podeis vir a ter, em fantasia.

 

Com tal carrego em cima

Qual pode ser em tua vida o clima?

 

 

1166 – Ânsia

 

Ânsia de ter, ter, ter,

Quando tudo vem, tudo vai…

- Quenquer

Se distrai, muito se distrai!

 

Para tantos somos o que temos,

Não somos o que somos,

- Apenas julgam que seremos

A casca dos pomos.

 

Tudo é tão ridículo, tão fugaz!

A vida é um instante e é já passada…

De nosso o que resta deveras capaz

É o que aos outros damos, mais nada.

 

 

1167 – Persegue-nos

 

Ao muito racionalizar

Persegue-nos o desejo

De então tudo controlar

Ao menor ensejo.

 

Quando se racionaliza,

Tudo fica engavetado,

Finaliza

Domado.

 

A insanidade dos afectos,

Agora domesticada,

Fica, sob nossos tectos,

Controlada.

 

À fera que o jamais suporta é o meio

De pôr algum freio.

 

 

1168 – Fascínio

 

O fascínio da decadência,

Do que foi, que já não é,

Quando houve grandeza

Na luminescência

Duma fé

E depois deixou de haver!

Quando as pessoas mantêm a nobreza

De antanho,

Apesar de já não cobrarem nenhum ganho

Do lusco-fusco do anoitecer!

 

O fascínio

Do brilho embaciado

Que ainda pode ser saboreado

Nas cinzas do declínio!

 

O derradeiro respeito das raízes,

Das nossas matrizes.

 

 

1169 – Ouvir-nos

 

Ouvir-nos uns aos outros pacientemente

Vale a pena, decerto:

Afinal, cada qual tem presente

O que quer dizer, desperto,

Mas não pode presumir sequer

O que outrem lhe propuser,

Nem de longe nem de perto.

Deste dentro de casa

Não pode haver nunca daquele um bater de asa.

 

 

1170 – Opinião

 

Sobre outrem opinião fundada

É de todo inexistente.

A vida, em cada jornada,

É de sombras procissão impenitente.

 

Por que as abraçamos com tanta avidez,

Com tanta angústia as perdemos?

Por que à janela nos surpreendemos

Do repentino entremez,

 

Quando na rua perpassa,

Ligeira e vibrátil, da juventude a graça?

 

O tique-taque do tacão

No lajedo do passeio

É uma súbita visão

Do mais real e mais sólido entremeio

 

Entre o nada que deveio

Ser

E este ser que, após breve floreio,

Ao nada irá novamente reverter.

 

E cremos, deveras cremos

Que este é o real que melhor conhecemos.

 

No instante seguinte, cada qual, imbele,

Descobre que, afinal, nada sabe sobre ele.

 

 

1171 – Tropeia

 

Quer o louve ou critique,

Tropeia em mim o cavalo selvagem,

Galopa destemperado, salta a pique,

Cai na areia esgotado da viagem,

 

Sente a terra girar,

Sofre uma explosão de amizade

Pelas pedras e campinas, pelo pomar,

Como se a humanidade

 

Houvera teminado…

- Quanto ao homem e à mulher,

Quero lá saber!

Vão bater a outro lado.

 

 

1172 – Dentro

 

Dentro de nós

Vivemos

Com variado número de assoalhadas.

Aberta à família e aos amigos que temos

É a melhor de que quenquer dispôs

E, na sombra e contra-luz delicadas,

Revelamos, rara,

Aí nossa melhor cara.

 

Outra mais privada divisão

É o quarto:

Muito poucos autorizados lá irão,

Que íntimo e privado é da vida todo o parto.

 

Noutra por onde não entra ninguém,

Nem cônjuge nem filho,

Guardo o pensamento mais íntimo refém,

Aquele que jamais compartilho.

 

Mas tão escondida há uma restante

Que nem nós lá entramos:

À chave dentro dela fechamos

Todos os mistérios que, para trás, para diante,

Ninguém logra decifrar,

E toda a dor, todo o desgosto

Que eu pretender de vez obliterar,

Excomungando-os, definitivo, para lá do sol-posto,

Para além, para além,

Para onde ainda nem nós somos ninguém.

 

 

1173 – Poder

 

Nenhum poder ditatorial,

Totalitário,

Por mais que o revistam de imperial,

Pode opor nada a um único homem

Solitário

Que recuse ser submetido:

Contra tudo e todos os que o consomem,

Este é o vencedor, mesmo vencido.

 

 

1174 – Científica

 

O sentimento religioso

Da mente científica mais profunda

É um espanto esplendoroso

Ante a harmonia da lei natural que o inunda,

 

Que revela um inteligência

De tal superioridade

Que o pensamento ante ela é uma indigência

E a humana actividade,

Um irritante

Arrepio irrelevante.

 

É uma alegria arrebatada,

Um êxtase perante a beleza,

Ante deste mundo a inefável infinidade,

Mundo acerca do qual, frustrada,

A humanidade,

Afinal,

Apenas entretece e reza

Uma vaga noção superficial.

 

Uma alegria tal

É o sentimento

A partir do qual

A vera científica investigação

Encontra e mantém o alimento

Espiritual

Que lhe impele o coração.

 

E, se bem reparais,

É a mesma alegria

Com que os trilos dos pardais

Inauguram o dia.

 

 

1175 – Heréticos

 

Entre os heréticos de todas as eras

Topamos com os homens pejados

Do mais elevado sentimento religioso,

Pelos contemporâneos inelutavelmente olhados

Como escravos de quimeras,

O joio venenoso.

 

Uns poucos, porém,

Dos anátemas entre os prantos,

Viram mais além:

Julgaram-nos santos.

 

 

1176 – Crer

 

Podem crer que bela vida

Levaria

A operar quanto queria,

Correndo o mundo na lida…

 

A felicidade vera,

Porém,

É no íntimo que se gera,

Daí parte para além.

 

Em espiritual falência

Quantos daqueles não caem!

É-lhes um cancro a imanência

E nele lentos se esvaem.

 

Por dentro os irá roendo

E, se não fizerem nada

Para lhe travar a alçada,

Vai-os comendo

Da medula até às peles,

Dará por fim cabo deles.

 

Entre a espada e a parede,

Ou traçam na areia um intransponível risco

Ou em breve a sede

Os reduz a cisco.

 

 

1177 – Águas

 

O principiante nadador

Qualquer água espanca

Com assustado furor.

O bom nadador arranca,

Elegante,

E flui através dela.

O principiante

Enfrenta um inimigo mortal,

Tem de vencer a procela

Na frágil caravela

Ou corre um risco letal.

 

O bom nadador, ao invés,

Fluindo a esmo,

Vê que tudo quase é nele água da cabeça aos pés,

Mergulha nela como nele mesmo.

 

O que nele o não é

Será na vida o atrito:

Viver é fluir, fluir até

Que alguns gramas lhe diminua, contrito,

Cada dia que corre

E assim é que mais vive quão mais morre.

 

 

1178 – Medicinal

 

Que bem sabe

Uma boa gargalhada!

E quão medicinal nos cabe

Calcorrear-lhe a estrada!

 

O bom humor alivia

Os sintomas de alergia,

Vai aumentar o pendor

Da tolerância à dor,

O imunitário sistema avença

De defesas contra a doença,

Faz que menos risco acartes

De tromboses e de enfartes

E acaba por ajudar

O diabético langue

A controlar

O açúcar no sangue…

 

- Quem diria

Quanta farmácia aviada,

Enquanto me ria,

A saúde me arrecada!

 

 

1179 – Inserido

 

Um homem que morre

A mim me diminui,

Já que na Humanidade que por todos corre

Inserido fui.

 

Assim sendo,

Ao morrer um, nele vou morrendo.

 

 

1180 – Preocupação

 

De tua cabeça retira

A preocupação, seja com o que for.

Deixarás emanar energia de mentira,

Preocupada, bloqueada, com temor,

E tudo flui então para tua vida

Com muito mais serenidade, de seguida.

 

Em lugar de viver em ânsia

Viverás na abundância.

 

 

1181 – Aguardar

 

Vem apenas a frustração

De mais aguardar do que me é dado,

Da ambição:

Se nada espero, aceito o fado

E então,

 

Ao aceitar, não espero,

Ao não esperar, não me frustro.

Toda a base é aceitação:

Do que não quero

Jamais me deslustro.

 

 

1182 – Serve

 

No céu

Não há certo nem errado,

Tudo serve, erguido o véu,

Sempre para alguma coisa:

Naquilo fatal repoisa

Para que andar predestinado.

E o cósmico equilíbrio

Na matéria como no imo

Mantém-se eternamente sem ludíbrio

Da raiz até ao cimo.

 

 

1183 – Exijas

 

Não exijas de ti tanto,

Deixa penetrar no coração

A parte doce da vida.

A amargura do pranto

Já lá mora sem remissão,

Jamais revolvida.

Compreende

Que tem muitos obstáculos a vida,

Todavia aprende

Que abundante é para ser vivida

E desfruta-a

Para além de toda a luta.

 

 

1184 – Detrimento

 

Buscar o Ter em detrimento do Ser

Atingiu tal proporção

Que nem logramos manter

Os critérios que distinguem a função.

 

Ser

É o que, quando sai tudo, vazia a loisa,

Depois de nada de material se ver,

Ainda sobra alguma coisa.

 

Ser é o insignificante resto

Em que sou tudo o que presto.

 

 

1185 – Brindados

 

No Natal,

Todos os desprotegidos,

Da comunidade excluídos,

São brindados com perus,

Champanhe e bonecos velhos.

Todos tratados por igual.

Depois continuam nus,

Perdidos aí pelos quelhos.

 

Fora com hipocrisias:

Ou cuidamos deles o ano inteiro,

Todos os dias,

Ou não cuidamos de todo!

Do abismo sempre me abeiro,

Com ou sem aquele engodo.

 

A solidariedade não engana,

Quando deveras presente:

Ou é autêntica e tem gana

Ou então é inexistente.

 

 

1186 – Autómato

 

O autómato não respeita

Nada nem ninguém,

Que a si respeito não tem,

Tanto à ordem se ajeita.

 

Opera no posto

Onde o avisto

Tudo aquilo que é suposto

E previsto.

 

Polícia dos mais,

Vigia comportamentos e atitudes,

A ver se são submissos, tais quais

Nele. E nunca o iludes.

 

Os outros não respeita

Porque a obediência cega,

Contra o diálogo que se ajeita,

Perturbadora me nega.

 

Quem obedece cegamente

Não respeita, obedece somente.

 

O autómato não vem à terra

Abrir um trilho espiritual

Mas pôr à prova aqueles a que se aferra

Exigindo, fatal,

A sumária

Ordem estabelecida e arbitrária.

 

Quem acata obedecer

Sem perguntas nem entendimento

Reproduz o comportamento

Automático mero

E vai encolher

A evolução dele a zero.

 

Quem contra se rebela

Provoca a evolução

Guiado pela estrela

Da livre opção.

 

A própria evolução não promovendo,

O autómato ajuda os mais a evoluir,

O contraponto lhe fazendo.

Um serviço cria então

E vai gerir,

Ajudando ao fim sua própria evolução.

 

 

1187 – Técnicas

 

Não é por umas quantas técnicas conhecer,

Uns tantos exercícios operar,

Que alguém espiritual há-de ser

E iluminar.

 

Nenhuma técnica dá iluminação,

Quando muito, elevação.

 

Quão mais alguém à técnica, porém, se agarra,

Menos se eleva,

Mais o irá prender a garra

Da treva.

 

 

1188 – Poder

 

Todo o ego quer fortemente

Mais poder que o dos demais.

Na tentativa, destrói

Tudo à volta que o desmente,

Só para mostrar sinais

De que é o mais forte e que mói.

 

Afirma-se destruindo,

Se autonomiza matando,

Mostra-se diminuindo

Tudo o que o for rodeando.

 

Vive fora dele mesmo

A se tentar encontrar.

Destrói no tentame, a esmo,

O mais forte a se mostrar.

 

Se algo deveras há dentro de mim,

De mostrar não preciso então que o sou.

Sou e pronto: fim!

A vantagem de Ser é que não vou

Precisar de exteriorizá-lo:

Continuo sendo e calo.

 

Quão mais alguém É

Mais age como tal

E mais o exterior pressente, com fé,

O sinal.

 

 

1189 – Energia

 

A energia de qualquer árvore é poderosa,

Que a apanha dos céus, directa e frondosa,

 

Por troncos e folhas

E a devolve à terra-mãe das escolhas

 

Através das raízes,

Alimentando as matrizes.

 

Verdadeiras intermediárias

As árvores são

Entre as energias várias

Do céu e do chão.

 

Actuam no terreno

O que humanos deveriam em pleno:

 

Circulam a energia, retirado o véu,

Do céu para a terra, da terra para o céu.

 

 

1190 – Poder

 

O poder dá-se, não pode ser tomado.

Entregam-no as gentes,

Dado,

Porque cuidam não ter poder.

A ironia, entrementes,

É que o não irão ter

Porque o entregaram.

 

A verdade é que têm todo o poder que quiserem

E que alienaram,

Só que o não querem.

 

E assim é que duplamente se enganaram.

 

Onde as gentes gritaram:

“A partir de agora, chega!”,

A tirania parou.

Onde ainda nem vontades nem força congregaram

Com que tal adrega,

Aí o ditador se fincou

E continua.

 

O mesmo ocorre em tua casa,

Em tua rua

Desvalida,

O mesmo ocorre e se apraza

Em tua vida.

 

 

1191 – Destroem

 

Muitos destroem ou não valorizam

O que têm

E não divisam

Que isto lhes não convém.

 

É o que ao fim lhes não permite viver

O que afirmam querer.

 

 

1192 – Traição

 

Traíres-te a ti

Para outrem não traíres

Ainda é, se bem o vires,

Uma traição em si.

 

Será mesmo, pelas sequelas,

A maior delas.

 

 

1193 – Pressão

 

A pressão útil intensifica

Teu próprio desejo

De ser, fazer e ter algo que escolheste.

É a que te implica

No ensejo

Que quiseste.

 

Pressão inútil é ansiedade

Que resulta, à toa,

De tua necessidade

De ser aprovado por qualquer outra pessoa.

 

 

1194 – Operar

 

A função

Que nós lhe dermos

Tem sempre a religião.

Poderá ser em que termos

Se há-de operar a união

Duns com os outros: com Deus.

A maior parte das vezes

Religião e crentes seus

Fizeram o contrário, soezes.

 

Para uns dos outros nos separar

Nada contribuiu tanto, nada,

Em nenhum tempo e lugar,

Como a religião organizada.

 

 

1195 – Mesmo

 

Tu e a vida e Deus

Não andam desencontrados,

Do mesmo cerro são lados,

Da mesma dança três véus.

 

São todos a mesma coisa;

Tu és o que a vida é,

A vida é o que Deus é,

Deus é o que tu és.

O círculo fechado repoisa,

Sem revés.

 

Não procures amuletos

A te dar alguma sorte.

A vida te dará tectos,

Amuleto contra a morte.

 

Ao fazê-lo funcionar

Sabe que funcionar vai,

Diz que vai, termo de passe,

E age tal se funcionasse.

Então, ao tal operar,

Tende fé mesmo e olhai:

- A vida vai funcionar!

 

 

1196 – Encontro

 

O rosto das estrelas,

A história que compartilham,

O mistério que andar a envolvê-las,

Tudo isto as escolas perfilham

E, mesmo ao aluno mais alvar,

O logram explicar.

 

A poesia das estrelas, porém,

É o mudo encontro de alma a alma,

A de cada um com a do mundo, infindo além,

Confluência (que secreta nos acalma)

Da claridade com a escuridão,

Onde o infinito beija a fronte do finito,

Onde ouvimos a música da criação,

De coração contrito,

A desdobrar-se por inúmeras melodias

Em intérminas renovadas harmonias.

 

Disto aqui nenhuma escola

O mistério desenrola.

 

 

1197 – Trapos

 

Um pouco de tinta,

Uns trapos carnavalescos,

E basta para devir palhaço,

A mentir o que desminta,

Meus gestos truanescos

A apurarem o traço,

A transformar, quando convém,

Um indivíduo em ninguém.

 

Ora, ninguém é o que nós somos,

Evidentemente,

E assim nos pomos

Na pele de toda a gente.

 

Quando nos aplaudem, então,

A nós, não, mas a si próprios aplaudirão.

 

Sermos nós mesmos, nós, unicamente,

É o mais extraordinário, o mais raro.

Mas como atingir o cume eminente,

Como alcançá-lo, luminoso e claro?

 

É o truque mais difícil de todos

Porque não requer esforço.

Tento não ser isto nem aquilo,

Nem grande nem pequeno, em meu escorço,

Nem hábil nem inábil, mas com modos,

Num desempenho tranquilo

Do que me vier à mão,

De boa vontade e com coração.

 

Não há nada cuja irrelevância

Não tenha, afinal, alguma importância,

Nada.

Mas então, em troca de aplausos e risos,

Recebo sorrisos,

Meros sorrisos, ao longo da jornada.

 

Pequenos sorrisos de satisfação

E é tudo.

 

Só que reparo, em contramão,

Que é neste milho miúdo

Que recolho a melhor colheita:

Naquele nada

É que me espreita

O milho-rei da desfolhada.

 

Nos cardos

Do trabalho sujo

Aos mais alivio dos fardos.

Porque não fujo,

Torno-os felizes,

O que me torna a mim ainda mais feliz.

 

Não o digo, porém, não o dizes

Ninguém o diz.

Com discrição,

Jamais revelo a alegria que dá.

Então, sem ostentação,

Ninguém o descobrirá.

 

É que, se descobrem o segredo,

Estarei perdido:

Serei egoísta, deles no credo,

Nem que por eles haja morrido.

 

Poderei por eles fazer tudo

Enquanto não suspeitarem

De que me dão esta secreta alegria

A que me grudo

Porque, a não ma darem,

Jamais dela fruiria,

Que dá-la a mim próprio não podia.

 

E eis como, do milho miúdo,

Recolho, afinal, o cesto mais graúdo.

 

 

1198 – Palhaço

 

O palhaço bem-amado

Terá sempre o privilégio

De reviver o gorado

Erro nosso mais egrégio,

A loucura, a idiotice,

Incompreensão, sandice

Que afligem a raça humana.

 

A inépcia ser

É o que o mais imbecil

Poderá sempre entender,

Nunca engana

Tal perfil.

Quando tudo é claro como a luz

Não compreender nada do que traduz,

 

Não dar pelo truque sabido,

Apesar de mil vezes repetido,

 

Tactear como um cego,

Com os sinais a indicar dos pés o bom emprego,

 

Franquear a porta errada,

Apesar do aviso à entrada,

 

Para dentro do espelho correr

E nem cuidar de o tornear sequer,

 

Espreitar pelo cano carregado da carabina

Quando o dedo distraído o gatilho inclina,

 

- Jamais alguém

Destes absurdos se irá cansar:

Há milénios também

Os humanos se andam a enganar

No caminho,

Há milénios que as buscas,

As perguntas de adivinho,

Terminam, trágicas e patuscas,

Depois de toda a corrida,

Num beco sem saída.

 

O inepto domina, com a insanidade,

O tempo inteiro.

Apenas será, de tão useiro e vezeiro,

Vencido pela eternidade.

 

 

1199 – Alma

 

O texto é a singular alma dum livro.

Homens há que seduzem pelo esplendor da capa,

A elegância da tipografia,

E depois com o texto não vibro,

A paisagem não condiz com o mapa,

São maus romances encadernados com fantasia.

 

Outros tiveram pouca sorte

Com a editora,

Neles mal reparamos, condenados à morte,

E depois a qualidade do texto revigora,

A originalidade do enredo,

Das metáforas o vigor…

Tarde ou cedo,

Rendo-me deles ao esplendor.

São o alfarrábio mal encapado

Que, afinal, a cada alvor,

Abre um sol endomingado.

 

 

1200 – Alinho

 

“Alguém que decida!” – gritam.

“Eu alinho, alguém me diga

Certo, errado…” – solicitam.

A religião que obriga

 

É por isto popular,

Quase não importa a crença,

É sólida, militar,

Rígida e clara na avença

 

Que requer aos seguidores.

Há quem acredite em tudo,

O mais cruel dos horrores,

O dogma mais façanhudo

 

Foi atribuído a Deus,

É da divina vontade,

De Deus palavra dos céus

- Gritam em impunidade.

 

E há quem acredite nisto

Mui feliz porque elimina

De pensar o eterno quisto

E assim dormirão à esquina.

 

Como é que se realizam

Se nunca a si se divisam?

 

Nem sequer

No jardim

Uma planta própria a colher

Restará por fim.