DOS DIAS O
DESENCONTRO
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um número aleatório entre 1078 e 1200 inclusive.
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o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
1078 – Dos dias o desencontro
Dos dias o desencontro
Canto em metro irregular
Com toda a rima do encontro,
A ver se me reencontro
Algures, nalgum lugar.
Canto o saber e o sabor
E a dúvida que restar
No calor
De cada dia que findar.
Canto as surpresas,
A pergunta presa ao beco
Do escuro das incertezas.
Canto, faminto e seco,
Quanto, inocente, peco.
1079 – Pérolas |
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Pérolas de sabedoria |
Da boca nos brotam automaticamente, |
Cada dia, |
Sem cuidarmos no que tal represente. |
|
Se paráramos para nos escutar |
A nós próprios na avenida, |
Acabaríamos por emendar |
Nossa vida. |
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1080 – Pensam |
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Ou pensamos |
Ou os outros pensam por nós. |
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E, mal nos precatamos, |
Atam-nos com mil cipós, |
Dominam-nos, |
Pervertem-nos e disciplinam-nos |
Os gostos naturais, |
Civilizam-nos |
Com mil pendores culturais… |
- Enfim, esterilizam-nos, esterilizam-nos! |
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1081 – Procura |
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Quem procura fé, filosofia, |
Quando corre bem o dia? |
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Com ventos de feição |
Não custa a navegação. |
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É para os ventos adversos |
Que teremos de andar tersos. |
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E quem dominar do mundo os arcanos |
Pode melhor do que os humanos? |
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1082 – Acostumamo-nos |
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Acostumamo-nos à paz, nós todos, |
Com tal facilidade e rapidez! |
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Tal como reagimos aos engodos |
Com que nos atinge, de viés, |
O momento da boa saúde: |
Como nos ilude, |
Aparentando a máscara mais vulgar |
Do mundo, da vida! |
Esquecemo-nos até, se calhar, |
De quando a morbidez |
Contra nós marcou a lida: |
Então, quando doentes, |
A saúde era tudo para nós. |
|
Com a paz, por igual, entrementes, |
Da guerra obliteramos quanto foi atroz. |
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1083 – Ilusão |
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A ilusão da proximidade |
Do desejado na manhã de nevoeiro |
Quantas vezes é meramente a mágoa |
Por um passado sem idade |
Que morreu, |
Que morreu por inteiro! |
A tristeza alimento-a e trago-a |
Sob o véu |
Tutelar |
De a vida não parar, |
Conformado. |
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Proximidade do fado, |
Não do amor compartilhado. |
|
No fundo, a mentira |
Duma ilusão que delira. |
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1084 – Vezes |
|
Podemos retornar |
Muitas vezes ao mesmo lugar. |
|
E a coisa mais estranha |
Quando cada qual |
Retorna muitas vezes |
Ao mesmo local |
É o que ele ganha: |
- Deixa de afligir-se com os conveses |
Do passado. |
|
Começa a ver |
Que este não existe em nenhum lado, |
Na vida real, |
Mas apenas na cabeça de quenquer. |
|
Acaba por pisá-lo e o esmagar, |
Primeiro como quem pisa a relva do jardim, |
Depois como quem lá vai passear, |
É um recanto do que restou de mim. |
|
O passado mora aqui no coração, |
Não ali, na poeirenta pegada do chão. |
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1085 – Atingir |
|
Muitas vezes hei cuidado |
Se alguma vez é viável |
Atingir a verdade. |
É o bocado |
Intragável |
Da maturidade. |
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Então, de entrada, |
Pressinto que tudo o que fizer |
Acaba, no fim, por não valer |
Nada. |
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1086 – Escolha |
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Quem não tem nada |
É que pode, neste mundo, escolher. |
Quem algo tiver, |
Tem a mão algemada |
Ao que houver possuído: |
- Não escolhe, é escolhido! |
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1087 – Discretos |
|
Discretos vaguearemos pela vida |
Tão de passagem |
Como o povo que há dez milénios, de fugida, |
Este vale habitou, esta miragem. |
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Apenas com mais algum ruído, |
Mais um punhado de pontes e de estradas, |
De diques a escorar o aluído, |
De viaturas tão afadigadas |
Nos enganos |
Que nem durarão uma vida, |
Quanto mais um milhão de anos! |
O mundo é por inteiro mudança e despedida, |
Todo teia transitória |
Que deixamos e nos deixa. |
|
A longo prazo, que bom, |
Nem se nos requer memória, |
Nem temos razões de queixa! |
|
Do mundo na praça, |
Como tudo o mais, somos mero vago som |
Que perpassa. E de vez passa… |
|
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1088 – Infantes |
|
Enquanto infantes inocentes |
No primeiro patamar da vida, |
Somos crentes: |
Acreditamos que tudo são festivais |
Na ermida |
Do tecto de nossos pais. |
|
Depois vem o dia do terramoto |
E eis-nos desgraçados, infelizes, |
De olho cego, de pé boto, |
Quebrados os dentes, rasgados os narizes. |
|
E, miseráveis e desamparados, |
Com rostos de fantasma macabro, |
Angustiados, |
Atravessamos o descalabro |
Famintos de amor, |
Pejados de apelo. |
A vida, porém, é pesadelo |
A estremecer de horror. |
|
Aí, então, somos o tolo |
Vergado pelo Mal |
No meio da refrega: |
De raiz perdido o controlo, |
Resta-nos o abandono radical, |
A entrega, a derradeira Entrega. |
|
|
1089 – Temporadas |
|
Quando vivo temporadas no deserto |
Até me esqueço de admirar a lua, |
Como um homem casado, para o mais desperto, |
Nem olha sequer |
Para o rosto da mulher |
Nem para a mulher nua. |
|
Pior |
Não é o pecado de omissão: |
Sinal de preocupação |
É esboroar o valor. |
|
|
1090 – Pior |
|
O pior da adultez |
É que do princípio partem os mais |
De que nossa personalidade já de vez |
Teve tempo para desenvolver |
Todos os potenciais. |
O problema da meia-idade |
É que quenquer |
Julga completada toda a formação, |
Fixa-nos a identidade. |
E qualquer rumo a maior maturidade |
É traição. |
|
Tudo camufladamente configura |
Uma nova escravatura. |
|
|
1091 – Apenas |
|
Apenas o rico não se pode dar ao luxo |
De ser esperto, |
Dos compromissos enfiou o capucho, |
Aferrolhado anos e anos no palácio deserto |
Aos privilégios. |
Tem de proteger os bens, |
Os bruxedos e os sortilégios. |
Não há gente mais mesquinha |
Do que o rico e sua gens. |
Tem de respeitar das regras a gavinha |
Que o ata ao mundo civilizado |
E crê-se livre assim atado. |
|
A guerra vai declarar, |
Da honra tem o sentido, |
Mas o pé não pode arredar, |
Que à soleira do portão o tem fundido. |
|
Nós outros somos livres, porém, |
Como qualquer desvalido |
Que nada tem. |
|
|
1092 – Vemos |
|
Quando jovens, não nos vemos ao espelho. |
Fá-lo quenquer quando velho, |
|
Preocupado com o nome, |
Com a lenda onde se atriga outra fome, |
|
Com o significado que a vida, já de escuro, |
Lhe terá para o futuro. |
|
Envaidecemo-nos do nome e apelido, |
Com pretensões ao domínio dos escolhos, |
De havermos sido |
Os primeiros olhos, |
O tiro mais impoluto, |
O mercador mais astuto… |
|
- É Narciso de pele engelhada |
Quem quer ver a própria imagem gravada. |
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|
1093 – Urbes |
|
Urbes que noutros tempos grandes foram |
Devieram hoje pequenas |
E as que de grandes hoje se namoram |
Pequenas foram noutras cenas. |
|
Dos homens a boa fortuna |
Nunca demora no mesmo lugar |
Sem, fatal, uma lacuna |
A acompanhar. |
|
|
1094 – Detestar |
|
Detestar conflitos |
Nunca impede quenquer |
Da actuar como entender |
Nem de à própria maneira atritos |
Tornear e resolver. |
|
Há um enorme território ignorado |
De quem leva uma vida silenciosa |
Ao lado |
E que ninguém goza. |
|
|
1095 – Mundo |
|
Anda o mundo fragmentado, |
Perdemos mais que o sentido |
Dos objectivos, dos fins primevos, |
Perdemos também linguagem, o traslado |
Que nos tem permitido |
Falar de tal, de tal ser coevos. |
|
É tudo de matriz espiritual, |
Indubitavelmente, |
Com o análogo, porém, do mundo material: |
O esmigalhar do presente. |
|
|
1096 – Operam |
|
Não operam obrigatoriamente |
As palavras: podem antes obscurecer |
Em qualquer mente |
O que tentam dizer. |
|
Dão sempre um menu surpresa |
A quem se sentar à mesa. |
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1097 – Recuso |
|
Recuso aceitar um mundo |
Em que o assassino duma criança |
Escapa, jucundo, |
E nenhum castigo o alcança. |
|
Mesmo que o bandido esteja morto, |
É preciso dispor-nos a sacrificar |
Vida e alegria a reparar |
Aquele pedaço de mundo torto. |
|
Não por qualquer interesse pessoal, |
(O de progenitor, parente…), |
Mas apenas por tal |
Ser tão indecente, |
Tão Mal. |
|
Recuso de sal |
Um ambiente |
Que nos mintam como ideal |
Comida de gente. |
|
|
1098 – Marcado |
|
Marcado pelo pasado, |
Um evento acontece |
E não poderei após fazer mais nada. |
Ocorre um dado |
E jamais perece, |
Continua ocorrido na infinda estrada. |
|
Ah, não poder |
Ser alterada |
A marca para trás abandonada, |
Não poder desacontecer! |
|
O limite foi de vez medido: |
Como não ser |
Após haver sido? |
|
|
1099 – Fundamental |
|
Por mais factos que hajam contado, |
Por mais pormenores que hajam fornecido, |
O fundamental resiste ao trato dado, |
A qualquer tentativa de o haver esgotado, |
Fatalmente para além desconhecido. |
|
Ignorá-lo alguém, triunfalista, |
É de ignorante dele duplicar a lista. |
|
|
1100 – Belo |
|
Um desapontamento |
Não te deve levar a desprezar |
Todo e qualquer belo evento |
Que a vida te ofertar. |
|
Em teu desgosto |
Podes não crer na utilidade de existir. |
Repara, porém, que meu rosto |
Não tem outro motivo senão de te servir. |
|
|
1101 – Contador |
|
O mau contador de histórias, |
Após falhar, diz à plateia: |
“Vocês tinham de lá estar!” |
O bom contador tem tais memórias |
Que nos faz crer, mal ameia, |
Que estávamos mesmo em tal lugar. |
Entra por nós dentro tanto |
Que o coração nos repica em cada canto. |
|
|
1102 – Carta |
|
Em geral, |
Muito melhor na carta que escreve |
É cada qual |
Do que na realidade. |
Ali a poesia o susteve, |
Nesta é a lama da rua que o invade. |
|
|
1103 – Preocupa |
|
Manter que o Pai Celestial |
Se preocupa até com a morte dum pardal |
Quando uma vida vale menos |
Que um maço de cigarros? |
Benévolos acenos |
A quem morre afogado nos escarros? |
|
Resta a verdade comedida, |
Por cada qual ser do Universo parceiro: |
- Quem salva uma única vida |
Salva o mundo inteiro. |
1104 – Inteligência |
|
A inteligência o valor inteiro |
Atinge-o quando visa um alvo além, |
No interior de alguém |
Ou no mundo exterior que lhe é parceiro, |
Quando, pragmática, |
Procura aplicar-se em vida prática. |
|
A inteligência |
É para vivificar o acto. |
Sem ela, ao acaso da demência, |
A actividade é inútil, de facto, |
Ineficaz. |
Sem agir, todavia, |
Como estéril a inteligência deviria, |
Incapaz! |
Luz a arder ao lado do farol, |
Vaga então se consome, de nada em prol. |
|
No conluio de ambos os vectores |
Do píncaro é que atinjo os esplendores. |
|
|
1105 – Origem |
|
Dos homens em toda e qualquer crença, |
Pressupondo-a embora de origem divina, |
Há uma ganga humana cuja presença, |
Tida em conta, elimina |
O integrismo, o dogmatismo, o totalitarismo, |
Por relativização histórica, |
O sectarismo, |
Por interpretação alegórica, |
O fundamentalismo, |
Por entre o sonho e a realização |
Se cavar, inelutável, o abismo |
Dum intransponível desvão. |
|
Tal é, permanentemente, |
A humana condição: |
- O divino tem um lado que nos mente. |
|
|
1106 – Fórmula |
|
É a fórmula que em nossa vida introduz |
O divino que se esvai. |
Tanto quanto, porém, o traduz, |
Assim o trai. |
|
Acolhamos a forma, |
No culto, fora ou contra ele, |
Conforme cada consciência dela se informa |
E como a interpele. |
|
E dela cada qual se sirva então |
Conforme em cada trilha a precisão. |
|
|
1107 – Sentimento |
|
Em cada sentimento religioso |
Há o germe que é o mesmo na mesma sementeira, |
Transporte mais ou menos vigoroso, |
Gemido de alma à beira |
Do Infinito, dos Céus: |
- Todos somos iguais perante Deus. |
|
|
1108 – Dogmas |
|
Os dogmas têm uma cara exterior, cultural, |
E um fundo por baixo da forma. |
A forma esconde o fundo, em norma, por sinal, |
E em lugar de sinal torna-se norma. |
Aprofundar do dogma o sentido, |
Aprofundar |
Até que a exigência da razão |
Com ele venha a conciliar, |
Eis o trilho por demais traído |
Que nos traz |
A solução: |
Pelo mundo inteiro há-de espalhar a paz. |
|
|
1109 – Muitímoda |
|
Como podemos acreditar |
Quando da históris das religiões, idade a idade, |
Anotámos a multímoda credulidade, |
Cada qual mais intransigente e lapidar? |
|
É o que mais liberta: |
Cada religião erroneamente |
Sempre se julgou certa, |
Tal e qual qualquer uma do presente! |
|
É a porta aberta: |
Nisto, pelo menos, qualquer de hoje mente. |
|
|
1110 – Laços |
|
É preciso ter rompido |
Os laços que a vida amarram |
Ao exterior e ao passado nela vivido, |
Por mais frágeis que pareçam quando agarram, |
|
Para neles verificar |
Tudo o que enguiça, |
A multiplicidade movediça, |
A tenacidade exemplar. |
|
E, o que é mais incrível, |
Como tudo é inapreensível. |
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1111 – Entregar |
|
A fé não é somente |
Inteligência, uma convicção, |
Mas sensibilidade, vontade permanente, |
Sentimento de confiança, disponível submissão… |
|
-É um modo |
De me entregar de todo. |
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|
1112 – Entre |
|
Entre os homens o que importa implantar |
É o espírito de tolerância. |
De ser o que somos todos temos o direito, |
Sem o vizinho do patamar |
Poder proibi-lo, com a ganância |
De tomar a peito |
Dele os modelos pessoais |
Como do mundo inteiro obrigatórios fanais. |
|
|
1113 – Continue |
|
Continue livre o erro |
Mas a verdade, porém, |
Continue livre também… |
E não liguemos ao efeito do despejado no aterro: |
Sempre a vitória coroar há-de a verdade |
Na hora própria, conforme o mundo invade. |
|
Pode ser além da morte que vence Galileu, |
Mas sempre ele, ao fim, é que venceu. |
|
|
1114 – Pública |
|
À ordem pública há-de sobrepor-se |
A honra nacional. |
Que a ilegalidade manifesta jamais force, |
Mesmo em nome da segurança do Estado, |
Por todos com acolhimento oficial, |
Aquela prioridade de efeito comprovado. |
|
Males mil vezes mais graves |
Engendra o inverso |
Que a perturbação transitória dum povo: |
Compromete, com os entraves, |
A aquisição única, perante o Universo, |
De que o homem sente o orgulho e o renovo, |
- A da Liberdade. |
|
Compromete o Direito e a Justiça, |
Do mundo civilizado maturidade, |
E tudo então de vez enguiça. |
|
1115 – Fórmulas |
|
Pouco importam as fórmulas, pouco, |
Pois nenhuma é bastante verdadeira |
Para conter toda a Perfeição, o Infinito, Deus… |
Louco |
É quem com o Todo emparceira |
Como parceiro único dos céus. |
|
As fórmulas são a maneira |
Multímoda, com mil rostos diferentes, |
De designar uma atracção |
Que é a mesma para todas as gentes, |
Acalentadas ao mesmo vulcão |
Nas múltiplas vertentes. |
|
|
1116 – Lei |
|
É uma lei histórica: |
O vencedor adopta de imediato |
Os vícios do vencido. |
Uma imoralidade pletórica |
Contagia, fatal, o acto |
Do poder assumido. |
|
Por isto é que a revolução |
Consumada |
É inelutavelmente a reprodução |
Pré-datada |
Da traição do Homem, da Traição. |
|
E apenas a reforma |
Insistente, persistente, consistente, |
Altera a norma, altera a norma |
Do presente |
E, gradualmente, |
A do Homem que o conforma. |
|
|
1117 – Crês |
|
Não crês em nada? |
Cremos todos, cremos, nalguma coisa: |
Em cada qual, |
No fundo da íntima gruta tresnoitada, |
O deus dele, escondido, repoisa, |
Irrecusável e fatal. |
É ali que cada qual volta, |
Piedoso, com alegria, |
E consagra-lhe a vida envolta |
Em cada dia. |
|
E tudo isto é tão seguro, tão seguro |
Que, mesmo quando ainda vagueia no escuro, |
Bem gostaria, bem gostaria… |
|
|
1118 – Autênticos |
|
Não existem autênticos ateus: |
Todos são crentes doutro qualquer deus. |
|
Nunca deixaste de ser crente: |
Confias no progresso, |
No futuro da ciência, |
Crês do ateísmo no triunfo prevalente, |
Na travagem de qualquer excesso, |
Na vitória final da liberdade e da decência… |
|
Ora, que é tudo isto, que é |
Senão um princípio de fé? |
|
Crês na finalidade da natureza, |
Na ordem eterna das leis |
Que a mente nos gerou que as preza. |
Crês na ideia de justiça |
A que devemos ser fiéis |
E que nos rege, do Universo nos coruchéus, |
Que a todos nos enliça… |
- Ora, esta ordem é Deus. |
|
Assim, porém, codificado |
Sem perfil nem sentença, |
É um deus indeterminado |
E tal é apenas a diferença. |
|
|
1119 – Algo |
|
Para além da cronologia e da virtude |
Algo haverá. |
Daí quanta tentativa nos ilude |
Para prever ou descortinar o futuro, |
A fé no médico ou na cigana |
Para erguerem o véu do lado de lá… |
E quanto mais o prefiguro |
Mais me engana. |
É o nosso esforço cretino |
Para domesticar |
Ou demonizar |
O divino. |
|
O mesmo ocorre no sentimento de beleza, |
A criada pelo homem |
Como a da natureza: |
Ante o infinito, |
Os olhos que nele se somem |
E o apreciam, são finito. |
|
E nenhuma modalidade |
Instaura a reciprocidade. |
|
|
1120 – Forjo |
|
Como o todo-poderoso, |
À minha imagem e semelhança |
Forjo tudo em que me entroso, |
Que modelo outro não me alcança. |
|
Então nossos artefactos |
Sobre nós bem mais dirão, |
Com todo o peso de factos, |
Do que qualquer confissão. |
|
|
1121 – Violador |
|
Nenhum violador quer |
Como tal ser considerado, |
Menos ainda apanhado. |
Daí uma mistura qualquer |
De metáforas e objectivos, |
Alta retórica, lírica de incentivos, |
A inflar os peitos inchados |
Dos deputados |
E doutros de quem pendemos: |
- De deus fazem e são demos. |
|
|
1122 – Disparos |
|
O sentido da vida se nos traduz |
Em vagos disparos na obscuridade, |
Cadeia de montanhas de relâmpagos à luz, |
Numa sombria noite de tempestade. |
|
Como não entregar a vida ao acaso |
Quando o sentido, nem a prazo? |
|
|
1123 – Livro |
|
Quando um livro leio, |
Apenas com os olhos |
Operá-lo creio, |
Mas, entre o mar aberto e os escolhos, |
Às vezes encontro uma passagem, |
Talvez uma frase única que vale a viagem, |
Que tem sentido para mim |
E devém parte de minha veste de cetim. |
|
Somos um botão de flor, |
A maior parte das leituras |
Por nós desliza, saraiveiro rorejador, |
E não produz o menor |
Efeito em nossas securas. |
Certa palavra, porém, dum evento o pendor, |
Adquirem para nós um sentido e força tais |
Que uma das pétalas nos abrem, por fim. |
E uma a uma desabrocham elas, |
Virginais, |
No carmim |
Do sol e das estrelas, |
E, em pleno alvor, |
Surge, enfim, inteira uma nova flor. |
|
|
1124 – Entusiasmo |
|
Quantos não manifestam constante |
Entusiasmo pelas ideias, |
Lume a aquentar qualquer viandante |
Com que topam do caminho nas teias, |
|
Quando na realidade tais ideias, |
Vazadoiro em que pontificam |
Revestidos por tão finas peles, |
Nada significam |
Para eles: |
Não produzem, do rio da vida no leito, |
Para eles qualquer efeito! |
|
Não são mais que belas porcelanas |
Numa quadra de leilão: |
Manuseiam-nas com prazer, |
A ruga do fundo, as abas planas, |
Tocam-lhes a forma, o brilho, o grão, |
Calculam quanto poderão valer, |
Para repô-las, por fim, nas prateleiras, |
Alheios ao engodo. |
- E viram-lhes as costas sobranceiras, |
Esquecendo-as de todo. |
|
|
1125 – Desprezo |
|
Falam com desprezo do dinheiro… |
Já experimentaram viver um dia sem ele? |
A falta de tão primário parceiro |
Torna mesquinho, vil, avarento |
O imbele |
Escravo do tormento, |
O carácter lhe deforma |
E leva-o a olhar |
O mundo com que se não conforma |
Por um prisma rasteiro, |
Vulgar. |
|
Quando temos de levar |
Em conta cada vintém, |
O dinheiro acaba por tomar |
Uma importância grotesca |
E o homem tem |
Postura simiesca. |
|
Só numa conjuntura desafogada, |
Afinal, |
Podemos atribuir-lhe, ponderada, |
A valia real. |
|
Negá-la, |
Como, |
Se ele é que me embala |
E nele é que me tomo? |
|
|
1126 – Contacto |
|
Viver no estrangeiro, |
Entrar em contacto com usos e costumes |
De povos de que me inteiro, |
A vantagem tem de atear outros lumes |
Em tudo o que partilho. |
|
Observado de fora, |
Tudo retém da novidade o brilho |
E agora |
Compreendo que nada deriva |
Duma fatalidade inescrutável, |
Ao invés do que julga quem lá viva |
Qualquer uso como inevitável. |
|
Não poderei deixar de descobrir |
Que a crença para mim indiscutível, |
O meu sacrário, |
É, para o estrangeiro que me vir, |
O absurdo mais incrível |
E arbitrário. |
|
|
1127 – Agimos |
|
Não agimos de certo modo |
Por pensarmos de certa maneira, |
Antes pensamos pelo engodo |
De como o agir se nos inteira, |
De como havemos sido feitos. |
|
A verdade nada tem a ver, |
Não existe, no fundo, por trás dos trejeitos. |
Cada homem filósofo há-de ser |
Dele próprio, não doutrem qualquer. |
O primoroso sistema |
De qualquer grande do passado |
Valeu apenas e foi lema |
Para aquele que o houver edificado. |
|
O importante, pois, é descobrir |
O que somos, |
Que o sistema há-de-se erigir |
Por ele próprio com todos os tomos. |
|
|
1128 – Brilhante |
|
A brilhante esperança da juventude |
Tem de ser paga ao custo amargo da desilusão. |
Entre o esforço e o resultado que já não ilude, |
Que desproporção! |
|
Como a dor, a doença e a desgraça |
Pesam na balança! |
Que significado alcança |
O que nos traça? |
|
Medito na vida, |
Nas expectativas ardentes com que nela entrei, |
Nos limites dum corpo à medida, |
Na solidão de amigos e de lei, |
|
Nos afectos ausentes |
Da infância, juventude e adultez… |
Sempre o melhor fiz, mesmo rangendo os dentes, |
E que revés! |
|
Outros, sem mais vantagem que eu, |
Triunfam e outros ainda, |
Com muito mais predicados de seu, |
Falham, a aposta finda. |
|
Pura questão de sorte, |
A chuva cai tanto sobre o ímpio como sobre o justo |
E para nada deste mundo há nenhum motivo forte |
Ou causa do custo. |
|
|
1129 – Vista |
|
Quando a vista nos abarca a lonjura |
Esquecemo-nos de olhar |
Para o que diante dos olhos se nos configura: |
Tão próximo há-de ficar, |
Tão íntimo após, |
Que chega a fazer parte de nós. |
|
Então, nem por anúncio nem aviso |
Os diviso. |
|
E perco a vida |
Na lonjura delida. |
|
|
1130 – Angústia |
|
Quando a angústia não é partilhada, |
A culpa corre de mão em mão, |
Batata quente atirada |
Dum para o outro, em convulsão, |
|
Acabando por se colar |
A quem mais dificuldade tiver |
Em se desenvencilhar |
Duma culpa qualquer. |
|
E quantas vezes, Deus meu, |
Afinal sou eu! |
|
|
1131 – Pedra |
|
Uma pedra, quieta no chão |
Desde o pincípio das eras |
E de repente apanhada, |
Ao acaso levada |
De mão em mão, |
Mil quimeras inaugura. |
|
Uma pedrinha dura, |
Mal cônscia de quanto a cerca, |
Nela própria concentrada, |
Em vida interior onde se perca, |
|
Corre pelos campos todos, |
Fábricas, institutos, hospitais |
E tudo o mais, |
De muitos modos, |
E medra, medra, |
Embora continue pedra. |
|
Ou não? |
Criatura estéril, por nascer, |
Agitada pela lava do vulcão, |
A terra inteira a percorer |
Colada ao chão |
Onde todas as pedras se consomem, |
Se comem |
Numa intérmina digestão, |
Não é pedra, não, |
- É o Homem, |
Homem em primeira mão! |
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1132 – Amante |
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Amante duma noite é a fortuna. |
Um dia após, na rua ao nos encontrar, |
Finge, se calhar, |
Nem nos reconhecer. |
Já não se nos coaduna: |
Um homem sorri-lhe ainda |
E já ela, a quem menos a soube merecer, |
Finda |
A acalentar e acolher, |
Já, ingrata, nos virou costas, |
Apostada, louca, noutras apostas. |
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1133 – Apazigua |
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Na vida, muita conjuntura, |
Muito evento |
Nos assegura, |
Nos apazigua e facilita cada intento, |
|
Corre para o lugar adequado, |
Aninha-se-nos na mão. |
Mas olhamos distraídos para o lado, |
Não reparamos na ocasião, |
Na intenção |
Nem no traslado. |
|
Atentamos e com zanga |
No trilho que nos contraria, |
Nos puxa pela manga, |
Nos complica o dia. |
|
Ignorando o bem |
Sem olhar a quê nem quem, |
|
Apontamos o mal |
Ao primeiro |
E mais ligeiro |
Sinal. |
|
E a vida, por mais amiga, |
Há sempre quem a maldiga. |
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1134 – Contidas |
|
Há mil representações |
Contidas nos dados |
E as correspondentes aptidões |
Para libertá-las em sugestivos traslados. |
|
Mas quando é matéria viva, |
Espíritos irrequietos aprisionados, |
Não basta a técnica esquiva |
Nem o engenho dos laureados. |
|
Importa o mágico gesto, |
Polir do génio a lanterna, |
Do casto beijo o apresto, |
A palavra superna. |
|
O termo exacto abre a caverna |
Do tesoiro, |
A palavra adequada |
Obriga o eunuco moiro |
A entregar-nos a moira encantada. |
|
Por que é que o termo com sortilégio |
Não há-de estar democratizado? |
A cada qual, o trono régio |
Com a huri ao lado? |
|
E, na vida, o sonho |
A crescer onde o ponho? |
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1135 – Enigmas |
|
Apenas encontramos enigmas, que tristeza! |
Árvore pujando ao sol, |
Pedra crestada ao temporal |
Na devesa, |
Um animal, |
Uma montanha coroada de arrebol |
- Todos retêm uma vida |
Escondida, |
Contam uma história |
Para memória, |
Sofrem, teimam, fruem, morrem, |
Em tudo quanto vemos |
Deleitados acorrem, |
|
- Mas nós nunca o compreendemos. |
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|
1136 – Demoníaca |
|
Demoníaca, a melancolia |
Torna cada qual doente, |
Míope e pretensioso, |
Arrogante, acaso, eventualmente, |
Atlas que solitário carregaria |
Aos ombros o ominoso |
Peso dos sofrimentos |
E dos enigmas do mundo. |
|
Como se mil outros não suportassem |
Os mesmos tormentos |
E, movidos por fundo |
Instinto, |
Não errassem |
Eternamente no mesmo labirinto. |
|
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1137 – Envergonha-te |
|
Envergonha-te de ver mais de guerras estrangeiras, |
Da moda, dos vivas, das artes e literatura, |
Que da Primavera a desdobrar a indómita verdura |
Perante tuas cidades sem ombreiras, |
Que da corrente fluindo |
Sob as pontes que andas erigindo, |
Que das mágicas florestas |
E das virentes campinas |
Por entre as quais a correr desembestas |
No comboio com que leino desatinas! |
|
Envergonha-te, sim, |
De não descobrir a correnteza de oiro e prata |
De blandícias inefáveis e sem fim |
Que este mundo inesgotavelmente desata, |
Para juvenil e renovada alegria |
De quem as descobrir um dia! |
|
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1138 – Terrível |
|
Quem nunca tenha sentido a tristeza |
Não pode entender a terrível solidão. |
Entre mim, os mais e da cidade o turbilhão, |
Nas casas, nas ruas, na praça, na devesa, |
Há um vasto fosso |
Que transpor nunca mais posso. |
|
Ocorre um enorme desastre, |
Eventos importantes no jornal, |
Uma crise, uma expectativa mundial, |
- Em mim não há canto onde os encastre. |
|
Celebram festividades, |
Enterram mortos nos covais, |
De feiras montam e desmontam estendais, |
Dão concertos em palácios, em herdades, |
- E que me importam |
Os fins a que tais gestos exortam? |
|
Vagueio por florestas, montes e valados |
E, em meu redor, os prados, |
As árvores, os campos calam o azedume. |
Numa dor sem queixume, |
Mudos olham-me e suplicantes, |
Desejando segredar-me por instantes, |
Vir-me ao encontro, saudar-me… |
|
Mas ali jazem, nada podem contar-me, |
E compreendo-lhes o sofrimento de anhos imbeles, |
Os inenarráveis abalos, |
E sofro com eles |
Por não poder libertá-los. |
|
|
1139 – Cultura |
|
A cultura é tentativa |
De algo, no limite, irrealizável, |
Por conseguinte, mais que esquiva, |
É inviável. |
A cultura por que tanto esforço envido, |
Na derradeira instância não tem sentido. |
|
|
1140 – Insignificância |
|
Repousa a vida |
Na insignificância absoluta, |
Única base à medida, |
Com solidez tão resoluta |
Que jamais se desmorona. |
|
Uma grande ideia |
Que aflore à tona |
Por outra grande ideia pode ser minada |
E, mal ameia, |
É volatilizada, |
Reduzida a nada. |
|
A insignificância, porém, |
Ei-la de vez inacessível, |
Imutável, |
Indestrutível. |
É, pois, como convém, |
Uma base durável. |
Por isso foi a escolhida |
Por plataforma que alicerça a vida. |
E cuidar |
Que o homem tanto raciocínio requer |
Só para o chegar |
A compreender! |
|
|
1141 – Fundo |
|
No fundo, os homens querem a guerra. |
Com ela, há uma simplificação |
Que os alivia |
Do que os aterra: |
Todos os homens julgarão |
A vida complicada em demasia. |
Decerto o é, |
Dado o modo como cada qual a vive dia a dia: |
À falsa –fé. |
|
Tomada em si, |
A vida não é complicada, |
Antes o que mais nela sempre distingui |
Foi a simpleza estruturada. |
|
Infelizmente, a guerra o chão junca |
De homens que o não compreendem nunca. |
|
Não compreendem que mais valia |
Deixarem-na tranquila |
Em vez de procurarem cada dia |
Usá-la para mil fins estranhos |
Onde o que, afinal, se perfila |
São sempre ilusórios ganhos. |
|
Eles sentem, todavia, |
O germinal gozo |
De como viver é já maravilhoso. |
Concluem mal, porém, o vaticínio |
E acabam, afinal, num morticínio. |
|
|
1142 – Castigo |
|
Dar ao pecador |
Aquilo por que ele anseia |
É o castigo pior |
Que lhe ameia. |
|
No inferno o que apenas vejo |
É do pecador |
A realização do desejo, |
Nada de nenhum outro teor. |
|
|
1143 – Riqueza |
|
A riqueza espúria, inútil |
É deveras para o morto, |
Tão fútil |
Como quando, adulto, me transporto |
Ao desejo de criança |
Por berlindes, cromos, bonecas ou brinquedos. |
Dantes, o valor que isto alcança |
Os sonhos me doira, ledos. |
Depois tudo relativizo, |
A sorrir da ingenuidade infantil. |
|
A preocupação é por igual pueril, |
Alheia à sensatez que viso, |
Quando, da morte na paz, |
Olho o que no mundo deixo atrás. |
|
|
1144 – Miséria |
|
Miséria, carências, injustiça |
Criam na Terra sofrimentos. |
A raiz aí se nos enliça |
E nos prende os movimentos. |
|
O erro a que fico atreito |
É o de absolutizar este efeito. |
|
É que quanto é passageiro |
Em última instância acaba: |
Como morrerei primeiro, |
Todo o valor lhe desaba. |
|
Mesmo na terra, porém, |
É sempre a atenção demais |
Ao transitório que advém |
Contra os lados perenais |
Que, afinal, |
Acaba criando o mal. |
|
Perpetuam a miséria |
Quantos não lograrem ver |
Para além da matéria |
Que tiver. |
|
Mesmo quando a atenção |
É bem intencionada |
E do sofrimento a lesão |
Busca ver eliminada. |
|
É sempre uma abertura para além |
Que, relativizando-lhe o peso, |
Lhe dá o peso que contém |
E então não me esmaga se o sopeso. |
Poderei em mãos tomá-lo |
E introduzir-lhe, eficaz, o meu abalo. |
|
|
1145 – Construtivo |
|
Quanto de construtivo e superior |
O homem preserva |
É tão vulnerável, de tanto pudor, |
Que qualquer distracção, |
Qualquer reserva, |
O reduz a poeira do chão. |
Daí o respeitoso amor |
Pelo derradeiro herói do esforço |
Para o homem superar a besta, |
Veneravelmente frágil neste escorço, |
E que de minha protecção |
Reclama a fresta, |
A ilusão |
Duma festa. |
|
No monumento, na biblioteca, no museu |
Respeito o melhor do que sou eu. |
|
|
1146 – Apenas |
|
Amar apenas o perfeito, o incomparável, |
Que mania mais cruel! |
Acredita que teu herói já morreu de vulnerável |
E teu amor fiel |
É atroz |
Porque amas o brilho feroz |
Da espada |
Que ele já não traz embainhada. |
|
Não o forces a sentir-se desprezível |
Exigindo-lhe o que não te pode dar. |
Nada mais enternecedor |
E credível |
Que o desastrado Prometeu |
A queimar |
Os dedos no fogo do céu |
Que sacrificado roubou |
E a teus pés te jogou. |
|
Ao fazer-lhe o curativo, quenquer |
É absolutamente mulher. |
|
É neste humano relativo |
Que deveras vivo. |
|
|
1147 – Prisioneiros |
|
Nós, os humanos, |
Somos de algum modo um aquário. |
Vivemos numa perpétua armadilha, |
Prisioneiros de enganos, |
Enclausurados de modo vário, |
Com olhos de maravilha, |
Acorrentados em avenidas |
Donde as fugas são proibidas. |
|
Fatalmente assim |
Do princípio até ao fim, |
|
É perpetuamente ilusão |
Crer que temos outro chão. |
|
|
1148 – Nuvens |
|
Em minha cabeça |
Tudo anda organizado e claro. |
Mas quando o pensamento apura o faro |
Tudo são nuvens onde tropeça. |
|
Quando chego a qualquer lugar |
Há um fosso a meio |
Através do qual posso constatar |
Uma amplidão imensa, indefinida, |
De que anda cheio. |
|
A matemática oferta guarida, |
Que deve estar certa. |
Mas que há com minha cabeça alerta |
E com tudo o mais que me escapa de fugida? |
|
|
1149 – Entre |
|
Entre viver e compreender |
Impera a incomparabilidade. |
Tudo quanto indivisível e inquestionado |
Viver, |
Incompreensível devém e confuso |
Quando amarrado |
Às cadeias da verdade |
De meu pensamento obtuso, |
Quando ele, fatal, |
Pretende disso o domínio total. |
|
E aquilo que parecia estranho e grandioso |
Enquanto de longe a palavra por ele anseia |
Devém simples e sem gozo, |
Perde o que tem de inquietante, |
Mal ameia |
Adiante |
E, de forma sumária, |
Entra na rotina da vida diária. |
|
|
1150 – Estranha |
|
Coisa estranha é o pensamento: |
Muitas vezes é um acaso, |
Brilha um momento |
E sem deixar rasto mergulha no ocaso. |
Tem épocas de viver e épocas de morrer. |
|
Uma ideia genial |
Poderei ter |
E todavia, como uma flor, |
Ela murchará, lenta e letal, |
Entre as mãos onde houver |
De a depor. |
|
Permanece a forma na redoma, |
Faltam-lhe as cores e o aroma. |
|
Embora posteriormente |
Me lembre bem de tal ideia, |
Palavra a palavra, gradiente a gradiente, |
E permaneça inalterado |
O valor lógico da frase na teia, |
Ele apenas flutua desnorteado |
Na epiderme de meu interior, |
Já me não vejo enriquecido |
Nem melhor |
Por havê-lo possuído. |
|
Até que, de repente, |
Anos depois acaso, |
Eis o instante em que se sente |
Que, durante aquele prazo, |
Nada sabíamos sobre aquilo e, contudo, |
Do ponto de vista lógico, sabíamos tudo. |
|
O que aqui se produz |
É que inesperadamente se fez luz. |
|
|
1151 – Prolongue |
|
Um pensamento |
Vive apenas no instante |
Em que algum outro elemento |
Que já não é o pensar |
O prolongue para diante, |
Em que o que já não é lógica nem representação |
A ele se acrescentar, |
De modo que lhe sintamos a verdade |
Para além de qualquer justificação, |
Como uma âncora que dilacera a opacidade |
De carne viva e sangrenta |
Em que afundar-se tenta. |
|
Uma compreensão |
Apenas se realiza pela metade |
No estreito círculo de luz |
De nossa mente; |
A outra metade traduz |
O solo escuro do mais íntimo de nós |
E é principalmente |
Um estado de alma em que após, |
Na ponta extrema, ao vento, |
Como uma flor, pousa e baloiça o pensamento. |
|
|
1152 – Irrompem |
|
Vivemos dum a outro pensamento, |
Duma a outra sensação: |
Eles não correm tranquilos como rio ao vento, |
Irrompem de supetão, |
Caem dentro de nós como pedras |
Em que por saltos medras. |
|
O imo não troca de cor |
Em gradações paulatinas, |
Os pensamentos saltam dele com vigor, |
Surpreendem às esquinas, |
Borbotam à luz em que me integro |
Como explosões para fora dum buraco negro. |
|
Vem agora um pensamento |
E logo uma sensação |
E, quase ao mesmo tempo, |
Outros diferentes brotarão, |
Doravante, à frente da bancada |
Como se germinassem do nada. |
|
Se prestarmos atenção, |
Entre dois pensamentos, porém, |
Há o instante de absoluta escuridão, |
Vazio de nada e de ninguém: |
Dita-nos daí a sorte, |
- É o instante da morte. |
|
Perdemos a vida a colocar marcos |
E a pular dum a outro diariamente, |
Saltando por cima dos mil segundos parcos |
Da morte ali jacente, |
Intermitentemente. |
|
Apenas ouso |
Viver nos pontos de repouso. |
|
Daí o medo ridículo da morte definitiva |
Pois sem marcos é o lugar, |
O imensurável abismo em que esta aflitiva |
Vida há-de findar. |
|
É a negação inteira do que nem sequer, |
Afinal, é maneira ainda de viver. |
|
|
1153 – Momentos |
|
De ninguém a vida |
Com pequenos momentos perfeitos |
Alguma vez é preenchida. |
Se o fora, pelos jeitos, |
Já não seriam tais momentos |
Momentos perfeitos: |
Seriam apenas normais, |
Como da vida quaisquer elementos |
Rotineiros que tais. |
|
Como é que alguém alguma vez |
Poderia descortinar a felicidade |
Se não aguentara de viés |
O revés |
Da atrocidade? |
|
|
1154 – Dádiva |
|
Temos uma dádiva esplendorosa, |
A vida. |
Nem a todos é dada. |
Cedo demais perdida, |
Às vezes é-nos retirada |
Quando mais gostosa. |
|
O que importa, porém, |
É o que, pura, |
Depura |
Por ela além |
E não quanto tempo dura. |
|
|
1155 – Mudança |
|
Uma mudança aqui |
Desencadeia logo outra além: |
Ninguém mora só, ninguém, |
E ninguém tem alibi. |
|
E nada é sólido, nada: |
Sempre a mudança se transfigura |
Em instantes de fixidez, |
Cuja fachada |
Configura, |
De vez, |
Que são meros acordos momentâneos |
Em nada com a realidade consentâneos. |
|
Toda a mudança é procura |
De perene imutabilidade: |
É da inércia nostalgia, |
Preguiça que nos invade |
Com inatingíveis paraísos de fantasia. |
|
E assim nos dana |
Com quanto nos engana. |
|
|
1156 – Arvoredo |
|
É o arvoredo uma escrita, |
Caligrafia, a vegetação |
E o caminho que me incita |
É da leitura a lição. |
|
Caminhar por um carreiro |
É ler |
Um pedaço de terreno, |
Decifrar, ligeiro, |
Uma parcela qualquer |
Do mundo que aspiro pleno. |
|
Toda a leitura é um caminho, |
Qualquer caminho, leitura |
Onde interpreto, adivinho, |
O natural que se me afigura. |
|
É nos pés uma viagem |
O que na mente é linguagem |
|
E vice-versa, |
Quando tudo se conversa. |
|
|
1157 – Planta |
|
A planta que digo não é uma planta que vejo, |
A planta não diz planta, |
Vive para além do nome onde a bosquejo, |
É o real, com tronco e folhas, que se implanta. |
|
Impenetrável, |
Realidade para além dos signos, |
Intocável |
Aos dedos da mente, dela indignos, |
Vive nela mesma mergulhada, |
No próprio ser implantada: |
Poderei tocá-la |
Mas não dizê-la, |
Poderei incendiá-la |
Mas, se a digo, acabo por perdê-la. |
|
A planta que entre plantas ameia |
Não é a planta que digo, |
É, para além dos nomes, realidade cheia, |
Que para além do nome a realidade tem abrigo: |
É o real |
Tal e qual, |
Sem diferenças |
Nem semelhanças |
Nas contradanças |
Das sentenças. |
|
A planta que digo não é a planta |
E a outra que vive além |
No canteiro que me espanta |
Não é a planta também, |
É a realidade inatingível, a lonjura inalcançada |
Em que respira plantada. |
|
Entre uma e outra mora a percepção |
Que me equipa, |
Da planta apreensão |
Que, na medida em que a apreende, a dissipa. |
|
Mas quem percepciona, quem sente, |
Quem se esboroa |
Neste outro mundo que fatal invente |
Ao esboroar-se a percepção à toa? |
|
|
1158 – Signos |
|
Os signos não são presenças |
Mas outras presenças configuram |
Nas próprias sentenças. |
Umas atrás doutras as frases se inauguram, |
Na página alinhadas, |
E, ao desdobrarem a teia, |
Desdobram um caminho de rotas ignoradas |
Rumo a um fim que de longe ameia |
Provisoriamente definitivo. |
|
A frase configura uma presença, visitante esquivo, |
Que se dilui: |
As frases são |
A figura da abolição |
Duma presença onde fui. |
|
|
1159 – Abolimos |
|
Pela escrita abolimos os dados, |
Transmudamo-los em sentido; |
Pela leitura abolimos os signos revelados, |
Apuramos o sentido e, denodados, |
Dissolvemo-lo, mal é vivido. |
|
Retorna o sentido, no final, |
À argamassa primordial: |
Pelos degraus caminhados |
Retornamos aos dados. |
|
|
1160 – Vazio |
|
O vazio dos nomes as coisas nos revelam |
Sem nada revelarem, |
Simplesmente por estarem |
Aí perante nós como fadas que tutelam. |
|
Do mundo revelam a falta de medida, |
O mutismo visceral, |
A falha radical |
Que fende nossa vida. |
|
|
1161 – Espera |
|
A espera o tempo imobiliza, |
Não a angústia, porém. |
A espera é eterna: na baliza |
Anula o tempo que retém. |
|
É instantânea, contudo, |
De sujeita ao iminente, |
Ao que vai ocorrer, mudo, |
Num momento, de repente. |
|
E assim, a espera |
O tempo acelera. |
|
Nesta íntima contradição |
Tecemos a malha do tempo no chão. |
|
|
1162 – Desencarna |
|
A palavra desencarna o mundo |
Na busca do seu sentido |
E encarna-o, retorna ao corpo fecundo, |
Uma vez o sentido abolido. |
|
A poesia é corporal, |
Reverso dos nomes, o outro lado do sinal. |
|
|
1163 – Ricos |
|
Os ricos não são como os mais, |
Esquecem que o resto não é rico, |
Chegam mesmo a esquecer, aliás, |
A fortuna que neles verifico. |
|
Por isso, do montante da conta que acode |
Pedem sempre metade a quem não pode. |
|
|
1164 – Equilíbrio |
|
Equilíbrio tem de haver |
Entre rigor e paixão. |
Muitas vezes uma falha qualquer |
O educador deixa ali se intrometer: |
Deixa apagar o morrão |
Da paixão. |
|
Quando não vibra com o que faz, |
As crianças também não vibrarão |
E em breve ninguém de tal será capaz, |
Então. |
|
Morto qualquer entusiasmo, |
Do insucesso porque pasmo? |
|
|
1165 – Problema |
|
Não carregueis nunca mais |
Que um problema de cada vez. |
Vede bem que carregais, |
Por norma, três: |
|
Todos os que tivestes outrora, |
Todos os que tendes hoje em dia |
Mais todos os que, a qualquer hora, |
Podeis vir a ter, em fantasia. |
|
Com tal carrego em cima |
Qual pode ser em tua vida o clima? |
|
|
1166 – Ânsia |
|
Ânsia de ter, ter, ter, |
Quando tudo vem, tudo vai… |
- Quenquer |
Se distrai, muito se distrai! |
|
Para tantos somos o que temos, |
Não somos o que somos, |
- Apenas julgam que seremos |
A casca dos pomos. |
|
Tudo é tão ridículo, tão fugaz! |
A vida é um instante e é já passada… |
De nosso o que resta deveras capaz |
É o que aos outros damos, mais nada. |
|
|
1167 – Persegue-nos |
|
Ao muito racionalizar |
Persegue-nos o desejo |
De então tudo controlar |
Ao menor ensejo. |
|
Quando se racionaliza, |
Tudo fica engavetado, |
Finaliza |
Domado. |
|
A insanidade dos afectos, |
Agora domesticada, |
Fica, sob nossos tectos, |
Controlada. |
|
À fera que o jamais suporta é o meio |
De pôr algum freio. |
|
|
1168 – Fascínio |
|
O fascínio da decadência, |
Do que foi, que já não é, |
Quando houve grandeza |
Na luminescência |
Duma fé |
E depois deixou de haver! |
Quando as pessoas mantêm a nobreza |
De antanho, |
Apesar de já não cobrarem nenhum ganho |
Do lusco-fusco do anoitecer! |
|
O fascínio |
Do brilho embaciado |
Que ainda pode ser saboreado |
Nas cinzas do declínio! |
|
O derradeiro respeito das raízes, |
Das nossas matrizes. |
|
1169 – Ouvir-nos |
|
Ouvir-nos uns aos outros pacientemente |
Vale a pena, decerto: |
Afinal, cada qual tem presente |
O que quer dizer, desperto, |
Mas não pode presumir sequer |
O que outrem lhe propuser, |
Nem de longe nem de perto. |
Deste dentro de casa |
Não pode haver nunca daquele um bater de asa. |
|
|
1170 – Opinião |
|
Sobre outrem opinião fundada |
É de todo inexistente. |
A vida, em cada jornada, |
É de sombras procissão impenitente. |
|
Por que as abraçamos com tanta avidez, |
Com tanta angústia as perdemos? |
Por que à janela nos surpreendemos |
Do repentino entremez, |
|
Quando na rua perpassa, |
Ligeira e vibrátil, da juventude a graça? |
|
O tique-taque do tacão |
No lajedo do passeio |
É uma súbita visão |
Do mais real e mais sólido entremeio |
|
Entre o nada que deveio |
Ser |
E este ser que, após breve floreio, |
Ao nada irá novamente reverter. |
|
E cremos, deveras cremos |
Que este é o real que melhor conhecemos. |
|
No instante seguinte, cada qual, imbele, |
Descobre que, afinal, nada sabe sobre ele. |
|
|
1171 – Tropeia |
|
Quer o louve ou critique, |
Tropeia em mim o cavalo selvagem, |
Galopa destemperado, salta a pique, |
Cai na areia esgotado da viagem, |
|
Sente a terra girar, |
Sofre uma explosão de amizade |
Pelas pedras e campinas, pelo pomar, |
Como se a humanidade |
|
Houvera teminado… |
- Quanto ao homem e à mulher, |
Quero lá saber! |
Vão bater a outro lado. |
|
|
1172 – Dentro |
|
Dentro de nós |
Vivemos |
Com variado número de assoalhadas. |
Aberta à família e aos amigos que temos |
É a melhor de que quenquer dispôs |
E, na sombra e contra-luz delicadas, |
Revelamos, rara, |
Aí nossa melhor cara. |
|
Outra mais privada divisão |
É o quarto: |
Muito poucos autorizados lá irão, |
Que íntimo e privado é da vida todo o parto. |
|
Noutra por onde não entra ninguém, |
Nem cônjuge nem filho, |
Guardo o pensamento mais íntimo refém, |
Aquele que jamais compartilho. |
|
Mas tão escondida há uma restante |
Que nem nós lá entramos: |
À chave dentro dela fechamos |
Todos os mistérios que, para trás, para diante, |
Ninguém logra decifrar, |
E toda a dor, todo o desgosto |
Que eu pretender de vez obliterar, |
Excomungando-os, definitivo, para lá do sol-posto, |
Para além, para além, |
Para onde ainda nem nós somos ninguém. |
|
|
1173 – Poder |
|
Nenhum poder ditatorial, |
Totalitário, |
Por mais que o revistam de imperial, |
Pode opor nada a um único homem |
Solitário |
Que recuse ser submetido: |
Contra tudo e todos os que o consomem, |
Este é o vencedor, mesmo vencido. |
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1174 – Científica |
|
O sentimento religioso |
Da mente científica mais profunda |
É um espanto esplendoroso |
Ante a harmonia da lei natural que o inunda, |
|
Que revela um inteligência |
De tal superioridade |
Que o pensamento ante ela é uma indigência |
E a humana actividade, |
Um irritante |
Arrepio irrelevante. |
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É uma alegria arrebatada, |
Um êxtase perante a beleza, |
Ante deste mundo a inefável infinidade, |
Mundo acerca do qual, frustrada, |
A humanidade, |
Afinal, |
Apenas entretece e reza |
Uma vaga noção superficial. |
|
Uma alegria tal |
É o sentimento |
A partir do qual |
A vera científica investigação |
Encontra e mantém o alimento |
Espiritual |
Que lhe impele o coração. |
|
E, se bem reparais, |
É a mesma alegria |
Com que os trilos dos pardais |
Inauguram o dia. |
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1175 – Heréticos |
|
Entre os heréticos de todas as eras |
Topamos com os homens pejados |
Do mais elevado sentimento religioso, |
Pelos contemporâneos inelutavelmente olhados |
Como escravos de quimeras, |
O joio venenoso. |
|
Uns poucos, porém, |
Dos anátemas entre os prantos, |
Viram mais além: |
Julgaram-nos santos. |
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1176 – Crer |
|
Podem crer que bela vida |
Levaria |
A operar quanto queria, |
Correndo o mundo na lida… |
|
A felicidade vera, |
Porém, |
É no íntimo que se gera, |
Daí parte para além. |
|
Em espiritual falência |
Quantos daqueles não caem! |
É-lhes um cancro a imanência |
E nele lentos se esvaem. |
|
Por dentro os irá roendo |
E, se não fizerem nada |
Para lhe travar a alçada, |
Vai-os comendo |
Da medula até às peles, |
Dará por fim cabo deles. |
|
Entre a espada e a parede, |
Ou traçam na areia um intransponível risco |
Ou em breve a sede |
Os reduz a cisco. |
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1177 – Águas |
|
O principiante nadador |
Qualquer água espanca |
Com assustado furor. |
O bom nadador arranca, |
Elegante, |
E flui através dela. |
O principiante |
Enfrenta um inimigo mortal, |
Tem de vencer a procela |
Na frágil caravela |
Ou corre um risco letal. |
|
O bom nadador, ao invés, |
Fluindo a esmo, |
Vê que tudo quase é nele água da cabeça aos pés, |
Mergulha nela como nele mesmo. |
|
O que nele o não é |
Será na vida o atrito: |
Viver é fluir, fluir até |
Que alguns gramas lhe diminua, contrito, |
Cada dia que corre |
E assim é que mais vive quão mais morre. |
|
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1178 – Medicinal |
|
Que bem sabe |
Uma boa gargalhada! |
E quão medicinal nos cabe |
Calcorrear-lhe a estrada! |
|
O bom humor alivia |
Os sintomas de alergia, |
Vai aumentar o pendor |
Da tolerância à dor, |
O imunitário sistema avença |
De defesas contra a doença, |
Faz que menos risco acartes |
De tromboses e de enfartes |
E acaba por ajudar |
O diabético langue |
A controlar |
O açúcar no sangue… |
|
- Quem diria |
Quanta farmácia aviada, |
Enquanto me ria, |
A saúde me arrecada! |
|
|
1179 – Inserido |
|
Um homem que morre |
A mim me diminui, |
Já que na Humanidade que por todos corre |
Inserido fui. |
|
Assim sendo, |
Ao morrer um, nele vou morrendo. |
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|
1180 – Preocupação |
|
De tua cabeça retira |
A preocupação, seja com o que for. |
Deixarás emanar energia de mentira, |
Preocupada, bloqueada, com temor, |
E tudo flui então para tua vida |
Com muito mais serenidade, de seguida. |
|
Em lugar de viver em ânsia |
Viverás na abundância. |
|
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1181 – Aguardar |
|
Vem apenas a frustração |
De mais aguardar do que me é dado, |
Da ambição: |
Se nada espero, aceito o fado |
E então, |
|
Ao aceitar, não espero, |
Ao não esperar, não me frustro. |
Toda a base é aceitação: |
Do que não quero |
Jamais me deslustro. |
|
|
1182 – Serve |
|
No céu |
Não há certo nem errado, |
Tudo serve, erguido o véu, |
Sempre para alguma coisa: |
Naquilo fatal repoisa |
Para que andar predestinado. |
E o cósmico equilíbrio |
Na matéria como no imo |
Mantém-se eternamente sem ludíbrio |
Da raiz até ao cimo. |
|
|
1183 – Exijas |
|
Não exijas de ti tanto, |
Deixa penetrar no coração |
A parte doce da vida. |
A amargura do pranto |
Já lá mora sem remissão, |
Jamais revolvida. |
Compreende |
Que tem muitos obstáculos a vida, |
Todavia aprende |
Que abundante é para ser vivida |
E desfruta-a |
Para além de toda a luta. |
|
|
1184 – Detrimento |
|
Buscar o Ter em detrimento do Ser |
Atingiu tal proporção |
Que nem logramos manter |
Os critérios que distinguem a função. |
|
Ser |
É o que, quando sai tudo, vazia a loisa, |
Depois de nada de material se ver, |
Ainda sobra alguma coisa. |
|
Ser é o insignificante resto |
Em que sou tudo o que presto. |
|
|
1185 – Brindados |
|
No Natal, |
Todos os desprotegidos, |
Da comunidade excluídos, |
São brindados com perus, |
Champanhe e bonecos velhos. |
Todos tratados por igual. |
Depois continuam nus, |
Perdidos aí pelos quelhos. |
|
Fora com hipocrisias: |
Ou cuidamos deles o ano inteiro, |
Todos os dias, |
Ou não cuidamos de todo! |
Do abismo sempre me abeiro, |
Com ou sem aquele engodo. |
|
A solidariedade não engana, |
Quando deveras presente: |
Ou é autêntica e tem gana |
Ou então é inexistente. |
|
|
1186 – Autómato |
|
O autómato não respeita |
Nada nem ninguém, |
Que a si respeito não tem, |
Tanto à ordem se ajeita. |
|
Opera no posto |
Onde o avisto |
Tudo aquilo que é suposto |
E previsto. |
|
Polícia dos mais, |
Vigia comportamentos e atitudes, |
A ver se são submissos, tais quais |
Nele. E nunca o iludes. |
|
Os outros não respeita |
Porque a obediência cega, |
Contra o diálogo que se ajeita, |
Perturbadora me nega. |
|
Quem obedece cegamente |
Não respeita, obedece somente. |
|
O autómato não vem à terra |
Abrir um trilho espiritual |
Mas pôr à prova aqueles a que se aferra |
Exigindo, fatal, |
A sumária |
Ordem estabelecida e arbitrária. |
|
Quem acata obedecer |
Sem perguntas nem entendimento |
Reproduz o comportamento |
Automático mero |
E vai encolher |
A evolução dele a zero. |
|
Quem contra se rebela |
Provoca a evolução |
Guiado pela estrela |
Da livre opção. |
|
A própria evolução não promovendo, |
O autómato ajuda os mais a evoluir, |
O contraponto lhe fazendo. |
Um serviço cria então |
E vai gerir, |
Ajudando ao fim sua própria evolução. |
|
|
1187 – Técnicas |
|
Não é por umas quantas técnicas conhecer, |
Uns tantos exercícios operar, |
Que alguém espiritual há-de ser |
E iluminar. |
|
Nenhuma técnica dá iluminação, |
Quando muito, elevação. |
|
Quão mais alguém à técnica, porém, se agarra, |
Menos se eleva, |
Mais o irá prender a garra |
Da treva. |
|
|
1188 – Poder |
|
Todo o ego quer fortemente |
Mais poder que o dos demais. |
Na tentativa, destrói |
Tudo à volta que o desmente, |
Só para mostrar sinais |
De que é o mais forte e que mói. |
|
Afirma-se destruindo, |
Se autonomiza matando, |
Mostra-se diminuindo |
Tudo o que o for rodeando. |
|
Vive fora dele mesmo |
A se tentar encontrar. |
Destrói no tentame, a esmo, |
O mais forte a se mostrar. |
|
Se algo deveras há dentro de mim, |
De mostrar não preciso então que o sou. |
Sou e pronto: fim! |
A vantagem de Ser é que não vou |
Precisar de exteriorizá-lo: |
Continuo sendo e calo. |
|
Quão mais alguém É |
Mais age como tal |
E mais o exterior pressente, com fé, |
O sinal. |
|
|
1189 – Energia |
|
A energia de qualquer árvore é poderosa, |
Que a apanha dos céus, directa e frondosa, |
|
Por troncos e folhas |
E a devolve à terra-mãe das escolhas |
|
Através das raízes, |
Alimentando as matrizes. |
|
Verdadeiras intermediárias |
As árvores são |
Entre as energias várias |
Do céu e do chão. |
|
Actuam no terreno |
O que humanos deveriam em pleno: |
|
Circulam a energia, retirado o véu, |
Do céu para a terra, da terra para o céu. |
|
|
1190 – Poder |
|
O poder dá-se, não pode ser tomado. |
Entregam-no as gentes, |
Dado, |
Porque cuidam não ter poder. |
A ironia, entrementes, |
É que o não irão ter |
Porque o entregaram. |
|
A verdade é que têm todo o poder que quiserem |
E que alienaram, |
Só que o não querem. |
|
E assim é que duplamente se enganaram. |
|
Onde as gentes gritaram: |
“A partir de agora, chega!”, |
A tirania parou. |
Onde ainda nem vontades nem força congregaram |
Com que tal adrega, |
Aí o ditador se fincou |
E continua. |
|
O mesmo ocorre em tua casa, |
Em tua rua |
Desvalida, |
O mesmo ocorre e se apraza |
Em tua vida. |
|
|
1191 – Destroem |
|
Muitos destroem ou não valorizam |
O que têm |
E não divisam |
Que isto lhes não convém. |
|
É o que ao fim lhes não permite viver |
O que afirmam querer. |
|
|
1192 – Traição |
|
Traíres-te a ti |
Para outrem não traíres |
Ainda é, se bem o vires, |
Uma traição em si. |
|
Será mesmo, pelas sequelas, |
A maior delas. |
|
|
1193 – Pressão |
|
A pressão útil intensifica |
Teu próprio desejo |
De ser, fazer e ter algo que escolheste. |
É a que te implica |
No ensejo |
Que quiseste. |
|
Pressão inútil é ansiedade |
Que resulta, à toa, |
De tua necessidade |
De ser aprovado por qualquer outra pessoa. |
|
|
1194 – Operar |
|
A função |
Que nós lhe dermos |
Tem sempre a religião. |
Poderá ser em que termos |
Se há-de operar a união |
Duns com os outros: com Deus. |
A maior parte das vezes |
Religião e crentes seus |
Fizeram o contrário, soezes. |
|
Para uns dos outros nos separar |
Nada contribuiu tanto, nada, |
Em nenhum tempo e lugar, |
Como a religião organizada. |
|
|
1195 – Mesmo |
|
Tu e a vida e Deus |
Não andam desencontrados, |
Do mesmo cerro são lados, |
Da mesma dança três véus. |
|
São todos a mesma coisa; |
Tu és o que a vida é, |
A vida é o que Deus é, |
Deus é o que tu és. |
O círculo fechado repoisa, |
Sem revés. |
|
Não procures amuletos |
A te dar alguma sorte. |
A vida te dará tectos, |
Amuleto contra a morte. |
|
Ao fazê-lo funcionar |
Sabe que funcionar vai, |
Diz que vai, termo de passe, |
E age tal se funcionasse. |
Então, ao tal operar, |
Tende fé mesmo e olhai: |
- A vida vai funcionar! |
|
1196 – Encontro |
|
O rosto das estrelas, |
A história que compartilham, |
O mistério que andar a envolvê-las, |
Tudo isto as escolas perfilham |
E, mesmo ao aluno mais alvar, |
O logram explicar. |
|
A poesia das estrelas, porém, |
É o mudo encontro de alma a alma, |
A de cada um com a do mundo, infindo além, |
Confluência (que secreta nos acalma) |
Da claridade com a escuridão, |
Onde o infinito beija a fronte do finito, |
Onde ouvimos a música da criação, |
De coração contrito, |
A desdobrar-se por inúmeras melodias |
Em intérminas renovadas harmonias. |
|
Disto aqui nenhuma escola |
O mistério desenrola. |
|
|
1197 – Trapos |
|
Um pouco de tinta, |
Uns trapos carnavalescos, |
E basta para devir palhaço, |
A mentir o que desminta, |
Meus gestos truanescos |
A apurarem o traço, |
A transformar, quando convém, |
Um indivíduo em ninguém. |
|
Ora, ninguém é o que nós somos, |
Evidentemente, |
E assim nos pomos |
Na pele de toda a gente. |
|
Quando nos aplaudem, então, |
A nós, não, mas a si próprios aplaudirão. |
|
Sermos nós mesmos, nós, unicamente, |
É o mais extraordinário, o mais raro. |
Mas como atingir o cume eminente, |
Como alcançá-lo, luminoso e claro? |
|
É o truque mais difícil de todos |
Porque não requer esforço. |
Tento não ser isto nem aquilo, |
Nem grande nem pequeno, em meu escorço, |
Nem hábil nem inábil, mas com modos, |
Num desempenho tranquilo |
Do que me vier à mão, |
De boa vontade e com coração. |
|
Não há nada cuja irrelevância |
Não tenha, afinal, alguma importância, |
Nada. |
Mas então, em troca de aplausos e risos, |
Recebo sorrisos, |
Meros sorrisos, ao longo da jornada. |
|
Pequenos sorrisos de satisfação |
E é tudo. |
|
Só que reparo, em contramão, |
Que é neste milho miúdo |
Que recolho a melhor colheita: |
Naquele nada |
É que me espreita |
O milho-rei da desfolhada. |
|
Nos cardos |
Do trabalho sujo |
Aos mais alivio dos fardos. |
Porque não fujo, |
Torno-os felizes, |
O que me torna a mim ainda mais feliz. |
|
Não o digo, porém, não o dizes |
Ninguém o diz. |
Com discrição, |
Jamais revelo a alegria que dá. |
Então, sem ostentação, |
Ninguém o descobrirá. |
|
É que, se descobrem o segredo, |
Estarei perdido: |
Serei egoísta, deles no credo, |
Nem que por eles haja morrido. |
|
Poderei por
eles fazer tudo
|
Enquanto não suspeitarem |
De que me dão esta secreta alegria |
A que me grudo |
Porque, a não ma darem, |
Jamais dela fruiria, |
Que dá-la a mim próprio não podia. |
|
E eis como, do milho miúdo, |
Recolho, afinal, o cesto mais graúdo. |
|
|
1198 – Palhaço |
|
O palhaço bem-amado |
Terá sempre o privilégio |
De reviver o gorado |
Erro nosso mais egrégio, |
A loucura, a idiotice, |
Incompreensão, sandice |
Que afligem a raça humana. |
|
A inépcia ser |
É o que o mais imbecil |
Poderá sempre entender, |
Nunca engana |
Tal perfil. |
Quando tudo é claro como a luz |
Não compreender nada do que traduz, |
|
Não dar pelo truque sabido, |
Apesar de mil vezes repetido, |
|
Tactear como um cego, |
Com os sinais a indicar dos pés o bom emprego, |
|
Franquear a porta errada, |
Apesar do aviso à entrada, |
|
Para dentro do espelho correr |
E nem cuidar de o tornear sequer, |
|
Espreitar pelo cano carregado da carabina |
Quando o dedo distraído o gatilho inclina, |
|
- Jamais alguém |
Destes absurdos se irá cansar: |
Há milénios também |
Os humanos se andam a enganar |
No caminho, |
Há milénios que as buscas, |
As perguntas de adivinho, |
Terminam, trágicas e patuscas, |
Depois de toda a corrida, |
Num beco sem saída. |
|
O inepto domina, com a insanidade, |
O tempo inteiro. |
Apenas será, de tão useiro e vezeiro, |
Vencido pela eternidade. |
|
|
1199 – Alma |
|
O texto é a singular alma dum livro. |
Homens há que seduzem pelo esplendor da capa, |
A elegância da tipografia, |
E depois com o texto não vibro, |
A paisagem não condiz com o mapa, |
São maus romances encadernados com fantasia. |
|
Outros tiveram pouca sorte |
Com a editora, |
Neles mal reparamos, condenados à morte, |
E depois a qualidade do texto revigora, |
A originalidade do enredo, |
Das metáforas o vigor… |
Tarde ou cedo, |
Rendo-me deles ao esplendor. |
São o alfarrábio mal encapado |
Que, afinal, a cada alvor, |
Abre um sol endomingado. |
|
|
1200 – Alinho |
|
“Alguém que decida!” – gritam. |
“Eu alinho, alguém me diga |
Certo, errado…” – solicitam. |
A religião que obriga |
|
É por isto popular, |
Quase não importa a crença, |
É sólida, militar, |
Rígida e clara na avença |
|
Que requer aos seguidores. |
Há quem acredite em tudo, |
O mais cruel dos horrores, |
O dogma mais façanhudo |
|
Foi atribuído a Deus, |
É da divina vontade, |
De Deus palavra dos céus |
- Gritam em impunidade. |
|
E há quem acredite nisto |
Mui feliz porque elimina |
De pensar o eterno quisto |
E assim dormirão à esquina. |
|
Como é que se realizam |
Se nunca a si se divisam? |
|
Nem sequer |
No jardim |
Uma planta própria a colher |
Restará por fim. |