SEGUNDO  VERSO

 

 

 

                                    Que donde vem ninguém adivinhou

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha um número aleatório entre 142 e 286 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

142 – Que donde vem ninguém adivinhou

 

Que donde vem ninguém adivinhou

Sabemos.

De asas tão extensas

Que lhe não vês os extremos

É o que pensas.

Porém, quem sou?

- Por mais alta que seja a aposta

Tudo findará como sempre findou

- Sem resposta!

 

 

143 – Conversa

 

Quem anima uma conversa

Não pensa, que o dispersa.

O conhecimento profundo

É a derradeira

Coisa do mundo

Que emparceira,

Enganada,

Numa conversa animada!

 

 

144 – Pesadelo

 

Tive um pesadelo:

A verdade fora atingida

- E era o fim da vida!

Dos pesadelos o pesadelo,

Porém,

É quando alguém

Se convenceu

De que quebrou o selo,

De que a verdade atingiu:

Dele às mãos

Nossos pensamentos tortos

À força ficarão sãos

- E nós, todos mortos!

 

 

145 – Fim

 

Age como se a vida

Não tivera fim,

Mas de mala pronta à partida,

Se, de repente, te exigir que sim.

 

 

146 – Cariz

 

Da felicidade o cariz

É ninguém sequer parar

A pensar

Se é feliz.

 

 

147 – Insulto

 

De todo o desforço

Contra um insulto,

O mais hábil e de menor esforço

(Pense-o

Embora inulto)

- É o silêncio!

 

 

148 – Triste

 

Cuida do que em ti resiste,

Não vás ter umas mancheias

De ilusões a vagar.

Mudar de ideias não é triste:

- Triste é não ter ideias

Que mudar!

 

 

149 – Mão

 

A mão em que tu mais deves

Confiar para vencer

É aquela que anda nos breves

Teus braços a empreender.

 

 

150 – Incapacidade

 

Da incapacidade o tamanho

É aquele que tu lhe deres.

Maior ganho

Traz a teus bens

Concentrares-te no que tiveres

Que no que não tens.

 

 

151 – Calar

 

Calar o povo é mais perigoso

Que opor ao rio a barragem.

O silêncio acumulado

Devirá tão volumoso

Que já não terá paragem

Quando abrir por todo o lado,

Quando violento explodir,

Arrasar tudo à passagem.

Quem nos poderá remir?

Deixem os rios fluir,

Deixem ir a liberdade,

Deixem falar à vontade

O povo, que é o mundo a ir!

 

 

152 – Terno

 

O mais terno momento,

Estranho e absurdo,

Dum casamento

Não é o que propositadamente urdo.

Não se escreve num cartão

Mas baterá qualquer poema,

Qualquer carta de amor:

- É quando te dou a mão,

Aflito, perdido o lema,

Sem ver

Como livrar-te da dor,

Esta dor antecipada

De não haver nada, nada

Que evite já te perder!

 

Eu sei que é louco,

Que ainda estão selados os cofres,

Mas sinto, quando sofres,

Que já te estou perdendo um pouco.

 

 

153 - Organizar

 

Organizar é o que se faz

Antes de fazer,

De modo que, quando se fizer,

Nada faça vir atrás.

 

 

154 – Subtileza

 

Com certeza,

Tem de haver subtileza.

…Tratemos somente

De a tornar evidente,

Se, definitivo, um juízo

For preciso.

 

 

155 – Oxalá

 

Oxalá vejas teu passado

Com tanto enleio

Quanto pelo futuro é grado

Teu anseio!

 

 

156 – Aprende

 

Aprende a ser teu amigo,

Já que sempre te ensarilhas

Nas armadilhas

De teu pior inimigo:

- Por mais que o não creias,

És tu próprio e às mancheias!

 

 

157 – Vorazes

 

Os ventos e as ondas

Não são vorazes.

Não te escondas,

Ignorado,

Que eles estão sempre do lado

Dos navegantes mais audazes.

 

 

158 – Vencedor

 

Um vencedor é quem sabe

Que pode mudar

E que antes que o dia acabe

Já reajustou seu lugar.

 

 

159 – Humano

 

Divorcia-te, é humano,

Humana é a fuga aos impostos.

Se copias, qual é o dano

Do exame aos demais propostos?

 

E, afinal,

É um engano:

O que apelidas de humano

Não passa em ti de animal.

 

É que é humana a inteligência

Que em ti procura a verdade,

A vontade

De sobrevivência,

De ultrapassar a derrota

Em busca de teu melhor,

A rota

Da esperança,

Mesmo contra tudo quanto for

O que afinal nada alcança.

 

De ti depende a escolha

De ser ou não humano,

De abrires ou não todo o pano

Aos ventos onde a vida se recolha.

 

 

160 – Prioridades

 

Quem não tem prioridades

Trabalha a jornada inteira

Para no fim das idades

Verificar que emparceira

Não com a meta buscada,

- Com vida desperdiçada.

 

Paga os ossos deste ofício

Por não mais sair

Do início

E mais longe ficar,

Ao não sair do lugar,

De vir a ter qualquer porvir.

 

 

161 – Super-homem

 

O super-homem de origem

Não é banda desenhada

Nem o cinema onde vigem

Superforças de empreitada.

 

É a vertigem

Do que somos:

- Fruteiras que exigem

Dar por fim melhores pomos.

 

 

162 – Desagravo

 

A fraqueza disfarçada

Em rasgos de desagravo

Breve tomba pela estrada

Nas tramas do desconchavo.

 

O interesse

É que pontua o lugar:

Quanto agravo se esquece

E reajusta

Quando uma fortuna custa

A alguém se o lembrar!

 

 

163 – Turista

 

Turista dos lugares

E das culturas,

Tu já viste os lupanares

Das já sabidas formosuras.

O mundo é a pequena aldeia

Onde resta a descobrir

Do pitoresco a mancheia

Dum folclórico devir.

E navegas de fastio

A imensidão

Misteriosa

Do rio,

Sem saboreares a brumosa

Imperfeição

Arcaica

Que pontua

Quotidiana e prosaica

A vida de qualquer homem da rua.

 

Este, sim, terá porvir.

Tu já deixaste de existir!

 

 

164 – Geometria

 

Contra toda a geometria

A menor distância

Do ponto donde partia

Àquele onde chegaria

Um homem talvez alcance-a,

Não por uma linha recta

Fulgurante, directa,

Mas por uma que desvia,

Permanentemente vadia.

 

Seu fim, todavia, adquire-o

Tão louco, louco delírio?

- É sempre outra a dimensão,

Vão os pés por onde vão…

 

 

165 – Caridade

 

Quando a caridade

Se organiza e consolida

Em instituições,

Por presidente um abade

E, por vida,

Regulamentos, sessões,

Relatórios, comissões

E uma campainha,

A compaixão natural,

Desprendida da gavinha,

Devém função social,

Não há mais uvas na vinha.

 

Quando o homem já não

Conta com o coração,

Publicamente se obriga

Às prescrições duma liga.

 

De amor quando já não sobres,

Com os mais não formas ditongos

E, com invernos tão longos,

Que sorte vão ter os pobres?

 

 

166 – Pobre

 

Corpo de pobre

O que tem

Não mente:

Cabe sempre bem

Na roupa que sobre

De toda a gente.

 

 

167 – Religiões

 

As religiões consistem

Em desvairadas liturgias

A quantos deuses existem

Perdidos nos dias.

 

Nelas procura

O homem alcançar

Saúde, paz, força, lisura,

- Procura na terra um lar.

 

Mesmo quando mais crente

No fruto que de si vem,

Ainda assim a Deus consente

A ajuda que não contém.

 

Tanto custa descobrir

Na solidão sofrida

Que em tudo, na vida,

Deus somos nós-a-ir.

 

No clarear da madrugada

Não há de facto mais nada, mais nada.

 

 

168 – Rito

 

Pelo rito

E não dele por meu cumprimento

Acredito que acredito,

Mas torno Deus meu instrumento.

 

É por isso, desconfio,

Que ao fim de milhões de anos, ao fim,

Estamos neste vazio

Assim…

 

 

169 – Vasilha

 

A igreja é a vasilha

Do perfume que é Deus:

Se se parte a bilha,

Ao perfume, adeus!

 

A questão

Que tudo resume

É se, qualquer que seja o perfume,

Não é todo em vão.

 

 

170 – Materializa

 

Quanto mais se materializa

Uma religião,

Mais se populariza.

E nisto, então,

Mais se diviniza,

Pelo menos na extensão.

Tal é a contradição

Que a dúvida eterniza:

Vale a pena ou não

Apostar num divisa?

Se sim, em qual,

Se em todas o declive é igual?

 

 

171 - Morto

 

Longe de ti

Não encontro porto.

Já morri

Com tudo o que em torno vi.

Um morto

Jazendo aqui

No meio dum mundo morto.

 

 

172 – Ligeireza

 

Do génio o lar

Nosso mundo não é, de certeza,

Mesmo quando em obras é gritante:

É que a condenar

Sempre nossa ligeireza

É fulminante:

Ao génio nem dará nem para o ver

Sequer,

Quanto mais para lhe confiar

O mérito do lugar!

Génio?

- Lá para o próximo milénio…

Até lá, continuaremos, então,

A arrastá-lo pelo chão.

 

 

173 – Intolerância

 

Um jornal como um partido

Destilam a intolerância

Como um álcool que, bebido,

Envenena de raiz,

Dia a dia, desde a infância,

As almas de meu país.

O fanatismo

É da vida a miopia

Que joga em qualquer abismo

Qualquer nobre galhardia.

Duma pátria o bom tamanho

Advém-lhe da tolerância

Com que eu dum e doutro apanho,

Gradual, seu maior ganho:

Das alturas a distância.

É só por esta grandeza

Que ao fim um país se preza.

 

 

174 – Porta

 

Ao pobre o que mais importa

É o estudo:

- É sua travessa porta

Para tudo.

 

 

175 – Marginal

 

Quando um emprego

Me traz ganho marginal

Ao que aufiro, em meu sossego,

Do seguro social,

Qual a motivação

Para tal trabalho em vão?

 

 

176 – Mesa

 

Razão

Que muito pesa

Da família na desagregação

É a refeição

Em conjunto, em redor da mesa,

Ter caído e caído e caído

Em extinção.

Onde é que o encontro em comum

Pode ser tido

Se para ele não nos resta agora

Nem lugar nenhum

Nem nenhuma hora?

 

 

177 – Convidados

 

Convidados são família,

Família são convidados.

A vida com tal perfile-a,

Que lhe doira os resultados.

 

Um convidado

É aceite:

Se entorna o leite,

Jamais é um desmazelado,

 

Ninguém lhe ri na cara

Se confunde um deputado

Com qualquer espécie rara

De cogumelo envenenado.

 

À mesa

Não há sermões:

Se dum comportamento houver despesa,

É a rir que se dão os beliscões.

 

No meio duma risada

Nunca mudar custa nada.

 

É a receita

Para os de dentro e de fora

De quem gosto à vida deita

Onde mora.

 

 

178 – Idade

 

No sexo

A idade,

Quanto mais rimar amplexo

Mais rima com qualidade.

 

 

179 – Avião

 

Quão

Mais veloz o avião,

Mais demora o desconforto

Da bicha para o aeroporto.

Assim é que progredir

Me acaba, ao fim, por ferir.

Progresso,

Só, descontraído,

Quando regresso…

Ou terei antes ouvido

Retrocesso?

 

 

180 – Paixão

 

É a paixão aquele abismo

Onde as pessoas se lançam

Para o vórtice do sismo

Donde nunca mais se alcançam.

 

Cada uma convencida

Que bem pior

Que perder a vida

É doutrem perder o amor.

 

E depois o coração

Bate mais

Com a paixão,

Torna-nos tão animais

Que nos tornamos divinos,

Com sentimentos humanos

E com sentidos tão finos

Que férteis nos irmananos

Aos corajosos, aos fortes.

Pela euforia encantados,

Preferimos tais mil mortes

Que do amor outros cuidados.

 

Pelo meio, perdida atrás,

Ficou a paz,

- Quando a paz era o esplendor

Mais duradoiro do amor!

 

 

 

181 – Bebé

 

Tal como o bebé

Se crê centro do Univaerso,

Em tempos tivemos fé

De ao centro termos o berço.

 

Quinhentos anos em queda

Do antigo e seguro apoio,

Em troca, a moeda

Separa o trigo do joio.

 

Não importa invocar Deus,

Perdido além do remoto.

Crescer é abandonar céus

E aceitar-se pobre e roto.

 

Já deixei de ser menino,

Entrei já na adolescência.

Meu destino

É o destino da ciência:

 

- É perder a segurança

 Mais e mais de dia em dia,

A ver se um dia me alcança

O que anuncia.

 

 

182 – Ameaça

 

Sem um deus e uma ameaça

Não irão os homens ser

Libertinos como bichos?

Não é o reino da trapaça

Que acaba por embeber

Em sangue da Terra os nichos?

 

Porém, de sangue o derrame

Pela civilização

Não há terra onde se acame

Em nome do deus que se ame

E a bem da religião.

 

Não ter Deus não é desgraça,

Nem são graças prometidas;

Tê-lo levou-nos à praça

E ambos dão e tiram vidas.

 

 

183 – Milénios

 

O mundo e tudo o que existe

Nele para nós foi feito

Como nós a prestar preito

Ao que a tudo pré-existe.

 

Milhares e milhares

De anos

Assim enquadrámos nossos lares

E nossos danos.

Da ilusão

Colhemos a segurança

Que, mesmo em vão,

Os milénios nos descansa.

 

Até que me descobri

Primo coevo dos macacos

E que atrás de mim e ti

Olhei vivos quantos cacos

O tronco são do que sou.

O herdeiro sou duma amiba

E vou

No repasto ser conviva,

Já que somos descendentes

De iguais de antanho parentes,

Do corvo ou do crocodilo,

Do leão ou da pantera.

E não importa o sigilo,

Nós somos a besta-fera

Produto de quantas mais

Nos fizeram nossos pais.

 

É nesta sina insegura,

Por muito que nos humilhe,

Que levantamos cabeça.

Quanto mais pura

A verdade brilhe,

Mais o passo nos tropeça.

 

Onde encontrar segurança

Quando isto é que nos entrança?

 

 

184 – Animais

 

Os animais

Não sabem que sabem,

Nem de si sabem ao sabê-lo:

Sinais

De que não são racionais…

Dentro de nós, contudo, cabem,

Pois lhes trazemos o selo

No que sou e no que és

Desde a ponta do cabelo

Até à ponta dos pés.

 

Caber em nós, caberão,

Mas nós neles é que não!

 

 

185 – Cópias

 

A vida evolui

Explorando perfeições

Das cópias que distribui

Aos milhões e milhões.

 

Assim não vai ser

Decerto o que faria

Um Deus qualquer,

Ou dele o poder

Seria pobre ninharia.

 

Não têm as mutações

Um plano sequer,

Nem, por trás, orientações

Que recolher.

 

Aleatório,

Arrepiante,

O progresso não é notório

De tão lento, tacteante,

Agonizante…

 

A evolução sacrifica

Os inaptos à tarefa

Que à vida se identifica,

Com que inteira se atarefa.

Sobreviventes

São os que tiverem azo

De resistir aos dentes

Do acaso.

 

 

186 – Gerações

 

Impossível realizar

Num cento de gerações,

A evolução, se calhar,

Acaba por se implantar

É num cento de milhões.

 

O que ilude é a lentidão

Conforme

À máscara desta duração,

Tão enorme

Que nos faz perder o chão.

 

Na verdade,

Perante

Esta enormidade

Que somos nós, vago instante?

 

 

187 – Física

 

A física realidade

Tem aquela fixidez

Estável, regularidade

Contra a história que nos fez

Flutuante, imprevisível,

Cheia de acasos de sorte

Flexível.

O que à marcha impõe o corte

Ou a ordem de avançar

É pouco menos

Que o azar.

Tais são os nossos terrenos.

Nestes falíveis arquivos

É que somos vivos

E plenos.

 

 

188 – Densidade

 

A elevada densidade

Populacional

Encadeia reacções

Contra os gestos da amizade

Jovial:

É o sinal

Das agressões.

Quanto mais nascemos aos milhões,

Mais a guerra e a carestia

Nos matarão dia a dia.

 

 

189 – Crise

 

Ninguém nos fez

Por medida,

Somos deste jaez

Por vantagem merecida:

Uma crise nos pinta a tez,

Outra esta cabeça erguida.

A sorte de ser o que és

É a da ocasião devida,

Que uma crise de cada vez

É o lema da vida.

Que importam as fés,

Se esta é a única saída?

 

 

190 – Etnocentrismo

 

A primeira ideologia

Que propugna etnocentrismo

Com feroz xenofobia

Vem do primeiro organismo:

 

Quatro mil milhões de anos

E no confronto mútuo o balanço

Das vitórias e dos danos

É o que em mim alcanço.

 

- Eles ou nós,

Nós ou eles,

É mais do que ser justo ou ser atroz:

É, deveras,

A marca das eras

Impressa em nossas peles.

 

 

191 – Presas

 

Por nobre que seja a intenção,

Benévolas as tendências vividas,

As presas potenciais são

Obrigadas a contramedidas.

 

Ou então,

Para o bem e para o mal,

Actua a selecção

Natural.

 

Tal é a marca dos avós

Em tudo,

No mundo e entre nós:

- E entre nós mais amiúdo.

 

 

192 – Código

 

É a vida a replicação

Preferencial

Dum código e não

Dum seu rival.

 

É a vida um conflito

De genéticas receitas:

Antes do primeiro grito

Já nossas bocas eram de guerra feitas.

 

 

193 – Relento

 

Dormes profundamente

A noite inteira

E teus filhos, no presente,

Da morte à beira,

Cada qual o mais doente,

Ao relento da orvalheira…

 

Quarenta mil crianças

Mortas pela fome,

Negligência ou doença

É o que por dia no mundo alcanças.

Quem com tal se consome?

Basta que se tome

Contra a indiferença

Uma medida,

Por mais vulgar

E distraída,

E todo o horror daria lugar

À vida.

 

Uns cêntimos por dia

E o milagre acontecia…

 

Estão longe, não são nossos

Os filhos deste grotesco…

- E então vão roendo os ossos

Da selecção de parentesco.

 

 

194 – Mar

 

Água do mar é a mais pura

E a mais poluída:

Tão pura que a vida aos peixes assegura,

Tão poluída que nos mata a vida.

 

 

195 – Fóssil

 

No fóssil registo

Encontro meu antepassado,

É o modo como insisto

Em tê-lo a meu lado.

Definitivo, porém, resiste:

- Já não existe!

 

 

196 – Tapeçaria

 

Os seres que a Terra habitam

Interdependem:

Sós, os fios se debilitam.

A vida é tapeçaria

Em que os nós defendem

A cadeia.

Complexamente tecida,

A vida

É uma teia.

Puxemos um fio

Aqui, além:

Ignoramos se é estrago ou desafio,

Se dali o que advém

É na peça estreita mancha

- Ou de todo o tecido se desmancha!

 

 

197 – Sexo

 

O sexo nos dota

Do movimento poderoso

Que a um ente amado adopta

Como da vida o signo e o gozo,

 

Transmuda a escolha e conquista

Do par

Na mais grata pista

A desvendar,

 

Ajunta à posse a festa do prazer,

À rivalidade, a raiva

E a uma solidão qualquer,

A dor maior que em nós caiba.

 

Que mais se preza

Para inundar o mundo

Do significado da beleza

Mais profundo?

 

 

198 – Sorte

 

Organismos assexuados

Morrem apenas por engano

Em acidentes descuidados.

Os sexuados têm o ano

Pré-programado da morte.

É a fraqueza

De nossa sorte

Que pagamos em troca

Da grandeza

Que nos toca.

 

 

199 – Maioria

 

A maioria

Prefere viver a morrer.

Mas por que é que o quereria?

- Ninguém sabe responder.

 

 

200 – Resultados

 

Programas, circuitos,

Reportórios comportamentais

São simples e nunca muitos,

Se não houver sinais

De que haverá bons resultados

Por devirem complicados.

Os nexos

Que nos envolvem

Apenas nos catapultam:

Mecanismos complexos

Só se desenvolvem

Quando os simples não resultam.

 

 

201 – Reportório

 

Vasto reportório comportamental

Pré-programado

Mais aprendizagem com a experiência

Convencem um observador ocasional

De que há uma consciência

A comandar um acto desejado.

 

Mas um robô de hoje faria

Tudo o que ali se enuncia.

 

De fora é tudo igual,

Independentemente do que esteja a acontecer

Dentro da cabeça neuronal

E da viência que disto alguém tiver.

 

Se for um bicho,

Como é que da vivência saberei

Qual o nicho

E a lei?

 

 

202 – Submissão

 

A evitar mal-entendidos

A agressão criou seus gestos

E a submissão, os sentidos

Em paralelos aprestos.

 

Desviar o olhar

Do adversário,

De modo a tudo fitar

Menos tal salafrário,

Imobilidade absoluta,

Vénia sobre as patas dianteiras,

Fim de luta

Ofertando a jugular

A dentadas certeiras,

Como quem diz,

Vergando a cerviz:

“Ferra neste lugar”…

 

Combate sangrento

Transformado em ritual,

Eis a vitória do invento

Do sinal.

 

Apenas o Homem, pretensamente

Dos animais

O mais inteligente,

Compreende devagar demais.

 

 

203 – Espectáculo

 

Dentro da espécie a agressão

É quase toda espectáculo:

Intimidação, coacção,

De encenações um pináculo.

 

Mui raro acabam os animais

Em combates mortais.

 

Entre espécies é diferente,

É luta a sério.

A presa que o tente

Pode escapar ao império

Do predador.

Ele, porém, é um matador.

 

Há espécies que confundem

Os dois modos de agresão.

Para os homens não é confusão:

As duas numa só fundem,

Sem acolher divisão.

Depois a esperança

Que temos à mão

Nunca mais se alcança.

 

 

204 – Estratégia

 

De sobrevivência a estratégia

Pequenos grupos requer,

Com etnocentrismo e xenofobia

A condizer.

Depois vem a paga régia,

Num ou noutro dia,

De sucumbir às ocasionais

Tentações sexuais

Dos filhos e filhas malsãs

Dos inimigos clãs.

 

Criemos nossa cultura

Como os outros criarão,

Que assim a espécie se apura

Dos dois lados do portão.

 

E depois o isolamento

Que nunca seja total:

Um certo distanciamento

Mais à-vontade sexual.

 

Gera-se a diversidade

Que será a matéria-prima

Sobre a qual sempre se arrima

Da selecção a acuidade.

 

Estratégia natural

Que as espécies seguirão,

Como qualquer animal

Segue-a o Homem, queira ou não.

 

Se amanhã sobrevivermos

É que seguimos tais termos

 

 

205 – Belicosas

 

Um alfa impõe autoridade,

Um beta a desafia,

Mas não em nome da verdade:

O egoísmo é que o impelia.

 

Ambas as tendências belicosas

Dentro em nós andam formadas

E o equilíbrio de que gozas

Vem-te bem mais das topadas

Que da força de vontade

Ou de qualquer liberdade.

 

A raiz da tirania

Vem de épocas mais distantes,

Como a da democracia:

Não há histórico registo

Para o que os genes bem antes

De nós teceram com isto.

 

 

206 – Opressão

 

No estado selvagem,

Opressão sexual

Sobre a fêmea chimpanzé.

Como é

Que se inverte tal

Imagem

Pelo mero facto

De ficarem confinados

A um estreito contacto

Quando a prisão condenados?

É que nestas condições

Se fará sentir a acção

Da fêmea a impor contenções,

A fazer coligação,

A implementar a paz.

 

- O que o feminino traz

A uma sociedade

Em que desfruta a igualdade

É do prazer o saboroso destino

Que é feminino.

 

 

207 – Desastre

 

Uma comunidade

Bem sucedida

Há-de

Ser erigida

De acordo com a natureza

E o carácter de cada ser

Que nela houver de viver.

Quem o despreza,

Quem o ignora,

Quem no sentimentalismo demora,

De incompetente

O resultado

Logo sente:

- O desastre mora ao lado!

 

 

208 – Chimpanzés-anões

 

Para os chimpanzés-anões

A partilha sexual

Entre múltiplos parceiros

Não são as depravações

Que o senso do bem e mal

Vê com os nossos argueiros.

 

Por um motivo acontece:

É uma socialização,

- É o grupo que ali se tece,

Cria a identificação.

 

A ordem entre os primatas

É duma vida gregária

Que em comunidade acatas

Numa cultura tão vária

Que do símio corre o pano

Até cada lar humano.

Na vida comunitária,

Com os motivos conexo,

Pontifica a luminária

Que para todos é o sexo.

 

 

209 – Invento

 

Um génio dos primatas

Inventa

E o invento pelas matas

Lento se divulga:

Ciumenta,

A sociedade que o julga

Rejeita-o, conservadora.

O macho adulto demora,

Obstinado.

Quem a novidade acolhe

Em todo o lado

São as fêmeas com a prole,

Cuja educação recolhe

Confiante

Quanto sirva de farol

Para diante.

Ficam os machos para trás,

Ciosos da hierarquia,

Ferozmente competitivos.

 

- É o que ainda hoje entre nós traz

Iniquidade e melancolia

A quantos nos renovam os arquivos.

 

 

210 – Selvagens

 

Matar um predador um inimigo

À dentada ou à mão

Mais gasta e tem mais perigo

Que carregar num botão.

 

As armas e ferramentas

Criam civilização

Mas desorganizarão

Quanto intentas.

 

Só temos de nos culpar

Por nossa actuação

Em vez dum ancestral avatar

Da humana condição.

 

Não são os bichos selvagens

Nem remotos antepassados:

Nós é que talhamos as imagens

De que fugimos aterrados!

 

 

211 – Lição

 

Superior inteligência,

Se é de marca a nossa imagem,

Requer da espécie a eficiência

Com que as mais gerem a própria vantagem.

 

Quem não aprender a lição

Cairá no olvido

Algum dia, de vez perdido

Nas ignotas curvas da evolução.

 

 

212 – Morte

 

A morte é um tigre escondido,

Emboscado,

Que em breve terá abocanhado

O distraído.

 

 

213 – Milhões

 

Há três mil milhões de anos,

A vida mudou a cor

De qualquer mar interior.

 

Há dois mil milhões de anos,

A composição total

Da atmosfera mundial.

 

Há mil milhões de anos,

O que se estima

É que mudou tempo e clima.

 

Há trezentos milhões de anos

O que a vida mudaria

É do solo a geologia.

 

De então para cá

Foi a aparência completa

Da face mais visível do planeta

Que mudará.

 

Estas vidas primitivas,

Por processos naturais

Foram tão, tão criativas

Que nos rimos dos actuais

Apocalípticos profetas

Que nos gritam nos jornais

E da beira das valetas

Que hoje o nosso frenesim

Vai levar a vida ao fim.

 

Espécies à extinção

E nós mesmos atrás delas

Podemos levar, que em vão

Se nos fecham as janelas:

Na Terra em que se consuma

Não é novidade alguma.

 

Seremos a derradeira

Da longa série de raças

Que, uma vez à cabeceira

Presunçosa da ribalta,

Após mudanças escassas,

Parte do elenco eliminam

E depois não fazem falta:

- A si próprias vão dar alta,

De vez  na morte se finam!

 

 

214 – Adora

 

Agora

Como sempre enquanto viver,

O Homem adora

O que não pode compreender.

 

 

215 – Anos-luz

 

Plutão,

O planeta quase mais distante,

De quilómetros orbita a um bilião

E meio do Sol que temos diante.

 

A Próxima Ceutauro, a estrela

De nós mais perto,

A seis mil vezes aquela lonjura revela

Os confins do espaço deserto.

 

A luz que dela chega

Hoje manifesta os arcanos

Do que da estrela se desprega

Há mais de quatro anos,

Apesar de trezentos mil

Quilómetros por segundo

Correr pelo céu de anil

Até atingir aqui o mundo.

 

Há trinta mil anos foi o momento

Em que escapou às estrelas,

Da Via Láctea no centro turbulento,

A luz que hoje nos permite vê-las.

 

A mais próxima Galáxia mora

Da nossa a duzentos mil anos-luz.

Os mais longínquos astros até agora

Observados,

A cinco biliões a lonjura os reconduz.

 

- Que é da nossa pretensão

Des sermos os príncipes encantados?

Que desilusão!

 

 

216 – Anão

 

O Homem, efectivamente,

Diante da imensidão,

É mais que pequenamente

Um anão!

 

 

217 – Tormento

 

A morte é um tormento:

Como vou imaginar

O momento

Em que deixo de imaginar?

Que será o pensamento

Dum lugar sem lugar?

Dum vento

Sem ar?

 

 

218 – Colapso

 

Nosso destino derradeiro

É o colapso universal.

Para além, o Infinito inteiro

E nem sinal!

 

 

219 – Desatino

 

Há um tempo em que desatino

E acordo do sono:

Quanto mais lá raciocino,

Pior funciono.

 

Sinto-me então isolado

De tudo em redor:

Existo apenas ao lado

De mim e é melhor.

 

Vivo só pelos meus dedos

E os dedos, por fim,

Dão-me o maior dos segredos:

- Actuam sem mim!

 

 

220 – Maioria

 

A maioria

Vive e é tudo.

E a vida não principia:

É um desespero mudo.

 

Foi contra este destino

Que os aventureiros

Lutaram em desatino.

E foram sempre os primeiros

A ter tino

E a ser menos prisioneiros.

 

 

221 – Friagem

 

É verdade que é preciso coragem

Para suportar

O tédio, a rotina e a friagem

Que deixam no ar.

 

Para arcar

Com a responsabilidade

Das próprias acções

E da felicidade

De milhões.

 

Porém, o mundo convencional,

Sem pioneiros,

Seria o fracasso universal

Dos sonhos derradeiros.

 

 

222 – Selvagem

 

Um dia o fogo dentro explodirá,

Jogarei o labor pela janela

E acordarei o selvagem que em mim há.

Habituei-me à sequela

De correr em vez de andar.

Cada manhã me grita, a par

Da vontade mais avessa

Ao que me farte:

- Mais depressa, mais depressa,

Parte!

 

Um dia,

Pela porta travessa

Ainda começa

A fantasia!

 

 

223 – Fraco

 

Porque és mais forte do que eu

Sei-o

E te odeio.

Quem dera amar o que é teu!

Mas ataco,

Por ser fraco.

Não é por fraqueza, agora,

Que o confesso:

Teço

A grandeza que demora, demora,

Pois sei

Do forte a lei.

Por maior que seja o zelo,

Porém,

Vejo bem

Que jamais aprendo a sê-lo:

É a maldição desta via

Que do rumo me desvia.

 

 

224 – Êxito

 

Um êxito é abominável

Quando é falsa parecença

Com o mérito fiável,

Dum homem sério pertença.

 

O vulgo se ilude:

O sucesso tem magia

De virtude,

Vê nele a supremacia.

 

O que o logro vitima

É toda a História:

- Alheia a qualquer obra-prima,

Tomba de vanglória em vanglória!

 

 

225 – Irritação

 

Um homem, quando se irrita

E se irrita sem razão,

É que sente a irritação

Com a razão que algo lhe quita.

 

Só me indigno quando sinto

Razão,

Que eu não

Me minto!

 

 

226 – Urtiga

 

De trabalho um pouco mais

E devém útil a urtiga.

Porém, porque a desprezais,

Torna-se planta nociva.

 

Não há homens maus:

Das ervas os humores

Não os domam varapaus

Mas os bons cultivadores.

 

 

227 – Ignorância

 

Quando triunfa a ignorância,

Apenas a lástima convém

A um rosto cuja ânsia

É a da maldade do bem.

 

 

228 – Boneca

 

O primeiro filho

Da mulher

Continua o trilho

Da última boneca que tiver.

 

 

229 – Lagartas

 

Catar a superstição

De que enfermam os céus

É da maçã da religião

Mondar as lagartas de Deus.

 

 

230 – Cegueira

 

Há muita filosofia

Que nega o infinito

E bole.

É a patologia

Da cegueira cujo fito

Nega o Sol.

 

Ter por fonte de verdade

Um sentido que nos falta

É mera vaidade

Em alta.

 

Aquela fala altaneira,

Aquele ar de compaixão

Pela turba que tacteia

São da toupeira

O pretensioso chavão:

“Com tal Sol, que gente feia!”

 

 

231 – Tino

 

Há quem, ante as portas do destino

Entreabertas,

Hesite sem tino,

Com risco das vindoiras descobertas.

 

Entre os batentes ficará sempre entalado.

…Quando o destino enclausura

Do outro lado

Os caminhos da aventura!

 

 

232 – Dentes

 

Vivemos mostrando os dentes:

Quando não de riso,

De furor.

Se o frio no lar consentes,

O frio nos corações

É o preciso

Horror

De que dispões.

 

 

233 – Asneira

 

Um homem que come e cala

Não é um homem, é uma asneira:

Se não concordo,

Não parto,

Ninguém me arranca um acordo.

Um gato é um tigre de sala

E um lagarto,

Um crocodilo de algibeira:

Isto é o que deles fizemos.

E, se ainda os não comemos,

É que deles preferimos a brincadeira.

 

 

234 – Escarnecer

 

Achincalhar homens e factos,

Escarnecer do rumo

E do mundo,

É o mais pérfido dos pactos:

Dispensa de compreender, no fundo,

Os sinais de fumo.

 

 

235 – Torrente

 

A torrente das ideias

Destrói e sepulta

Debaixo das ameias

Tudo quanto não indulta.

 

A das águas

Decerto que provoca

Tragédias e mágoas

Mas não nos fura dentro uma toca

De vazio e tormento

Que só pode encher o pensamento.

 

 

236 – Perto

 

Se o Homem é o preferido,

É que o não tratam de perto:

A lonjura traz sentido

Ao deserto.

 

Não viver perto dá-nos azo

A supor nos aleijões,

Por inaudito acaso,

A maior das perfeições.

 

 

237 – Relógio

 

Do relógio o ponteiro

Que avança no mostrador,

Avança nos corpos e nas almas:

O passo dianteiro

Cada qual vai antepor

Do porvir aos folguedos e às palmas.

Sem dar por isso

Foi da fogueira o chamiço.

 

 

238 – Sabedoria

 

Por um chefe combatemos,

Caminhamos com um guia…

- Porém, a sabedoria que conquistemos

É que nos ajusta dia a dia.

Por um chefe combatemos,

Caminhamos com um guia…

Quando seremos

Nós a via?

 

 

239 – Claridade

 

Entre duas claridades,

De incêndio, de iluminação,

De qual mais te persuades?

O incêndio faz um aurora,

Mas para quê tanta pressa,

Em vez de esperar a hora

Em que amanheça?

Um vulcão alumia,

Iridescente,

Porém, o sol nascente

É que traz o dia.

Uma claridade a espaços

Velada por fumo,

Itinerário cujos traços

Rasgam de violência o rumo,

Não satisfaz

A luz de que um homem é capaz.

 

 

240 – Gratuito

 

Gratuito nada haverá

Do avesso quando se vira:

A par da mão que dá,

A garra que tira.

Atrás da máscara o que há

É a verdade da mentira.

 

 

241 – Miséria

 

Provação

De que o fraco sai infame

E o forte, sublime,

É a miséria o crisol em que se dão

Ao homem no arame,

Conforme as arestas que lime,

Do marginal os laços incréus

Ou o tamanho dum semideus.

 

 

242 – Credor

 

Um senhor

Do escravo dele

É dono só da pessoa.

Ao credor

Não basta a pele.

Do devedor quando se não condoa,

É dele à dignidade

Que ameia,

É o coração que invade

E esbofeteia.

 

 

243 – Descoberto

 

A pobreza a descoberto

Põe a vida material,

A lonjura ali tão perto

Que de bem se torna mal.

 

A intransponível distância,

Não os roubos,

É que irá gerar a ânsia

Dos arroubos

Por uma vida ideal.

- Por não ter nada de seu

Vive do céu.

 

 

244 – Dente

 

Na boca nem um dente,

Olha que espanto!

Há tanto quem, há tanto!…

Nem um dente, porém, na mente,

Que risco de quebranto!

E quantos, entretanto,

Não medem quanto!

Que indecente!

 

 

245 – Isca

 

Quando está montada a mina

E pronto o detonador,

Um olhar é uma faísca

Que as explosões determina:

- Não é precisa outra isca

Para o amor.

 

 

246 – Barro

 

A Humanidade

É um mesmo ser:

Quer dizer

Identidade.

Somos todos de igual barro

E, ao nascer,

A viagem a fazer

Escolha não tem de carro.

 

Da mesma sombra viemos,

A mesma carne somos,

A mesma cinza seremos.

Como diversos nos pomos?

 

- A ignorância amalgamada

À massa humana impoluta

Enegrece tanto a estrada

Que do mal só nos dá fruta.

 

 

247 - Misérias

 

Quem só viu misérias de homem

Nada viu,

Até que as da mulher se somem

Negras ao rio.

Quem só viu as da mulher

Não viu nada,

Que as da criança é mister

Entrever

Para calcular o custo da alvorada.

 

 

248 – Charruas

 

Na miséria os perfis se esvaem,

Não há charruas que os arem:

- Raros são aqueles que caem

Sem se degradarem.

 

 

249 – Ramo

 

Na hora de tudo nos fugir

Que importa a mão que apanho ou o lugar?

Quem se vê a cair

Não escolhe o ramo em que agarrar.

 

 

250 – Bondade

 

Na história

A bondade é jóia rara.

Quem for bom merece a glória:

É maior que o maior que o encara.

 

 

251 – Choque

 

Como um choque de elementos

De princípios tal é o choque,

Ao ar o enraivam os ventos,

De águas ouve o mar remoque.

 

A tirania mata

A democracia

Mas a fé sempre colmata

A razia

E de novo tudo ata.

 

252 – Revolução

 

É filha a revolução,

Não do acaso, mas da necessidade:

Em realidade muda a ficção

Quando se mudou em ficção a realidade.

 

 

253 – Bárbaros

 

Se a escolha tivera à mão

Entre os civilizados da barbaria

E os bárbaros da civilização,

Os veros bárbaros preferiria.

É que têm mais magia

Ainda sem perversão.

Preferia…

- Ou não?

 

 

254 – Adorável

 

Nada mais adorável

Do que a formosa inocente

Caminhando, indiferente,

Com a chave do paraíso na mão

Sem, amorável,

Nem sequer

A suspeição

De o saber.

 

 

255 – Desempregados

 

Estirados a granel

Ao sol, desempregados, sem féria,

Um pouco de homens dentro da pele,

São mais sacos cheios de miséria.

 

 

256 – Caverna

 

A Primavera às trevas de alma aclara e guia

Como aos recantos escuros da caverna,

Onde nossa fera descuidada hiberna,

Ilumina o meio-dia.

 

 

257 – Trabalho

 

O trabalho é como a lei,

Ninguém lhe escapa ao bulício:

Se por aborrecido o recusei,

Tê-lo-ei por suplício.

Quem não quer ser operário

Larga o trabalho de lado,

Fica escravo sem salário,

Por outro lado é agarrado.

Quem do trabalho não é amigo

Da servidão corre o perigo.

 

 

258 – Parasita

 

O que o destino dita

Por trás da aparência da epiderme:

Quem quiser ser parasita

Acaba verme.

 

 

259 – Quimera

 

Os amantes separados

Iludem a distância por quimeras

Que o peso tomam de dados.

Trocam mutuamente primaveras,

Das aves o canto,

Das flores o perfume.

Tudo retém do amor o encanto

E lhe alimenta magicamente o lume.

Embora quanto ali deponho

Seja apenas uma troca de sonho.

E quanto mais a lonjura aparta

Mais cada erva é dum para o outro uma carta.

 

 

260 – Asfixia

 

A morte é certa mas acalma

A dor.

Porém, a morte por falta de amor

É uma asfixia de alma.

 

 

261 – Subterrâneos

 

Os subterrâneos da civilização,

Por serem os mais sombrios,

Menos porventura importarão

Que os tectos mais luzidios?

 

A ignorância se apanha

Nesta vacuidade interna:

Pretender desvendar a montanha

Sem lhe descobrir a caverna.

 

 

262 – Prisioneiro

 

Prisioneiro de correntes nos pés,

Aquilo que o sonho alcança,

Não é que os pés sirvam para andar alguma vez,

É que com os pés se dança.

 

E só quando a dança já cansou

É que em seu lugar,

Baixando o voo,

Descobrimos que os pés servem para andar.

 

 

263 – Vento

 

A ameaça do vento,

Ao soprar de cada vez,

É que cada seu tormento

São dois ou três.

 

Quais bens que se consomem,

Riqueza que se perdeu:

Leva mais sonhos do homem

Do que nuvens há no céu!

 

 

264 – Namorados

 

Oa namorados

Já disseram tudo, tudo

Em todos os lados,

Excepto tudo, sobretudo:

É que tudo, numa alma enamorada,

É nada.

E qualquer nada nela é tudo,

Que tudo saboreia no miúdo:

O nada lhe basta – está enlevada!

 

 

265 – Apaixonados

 

Os apaixonados,

Embora sempre em partida,

Consideram-se recém-chegados.

A pretensão iludida

Que por tantos se reparte

É a de supor

Que o amor

Conduza a alguma parte.

O amor é jóia que se engasta:

É amor e basta!

 

 

266 – Bomba

 

O ditador

Advém no mundo, a toda a hora,

Pese-lhe embora,

O pensador.

 

A palavra retardada

É uma bomba acorrentada.

 

O escritor

Duplica e triplica estilo e modo

Quando silêncio ao povo impõe todo

E qualquer casco de senhor.

 

Deste vazio salta,

Cruento,

De bronze o pensamento

Que falta.

 

 

267 – Amotinados

 

Os amotinados atropelam-se em volta,

Fogem, resistem agora, correm logo…

- A cólera ateia a revolta

E o vendaval sopra o fogo!

 

 

268 – Brutos

 

A desanimada paciência dos brutos

Entende tanto dos actos do homem

Como o homem entende os produtos

Da Providência nos actos que o domem.

 

 

269 – Degraus

 

Há degraus em minha féria

Que trepo com o braço laboral:

Primeiro domino a matéria,

Depois, o ideal.

 

 

270 – Abrigo

 

Uma barricada

É o caos antes do perigo

E perante ele é a disciplina incarnada.

Sempre o perigo foi da ordem o abrigo,

Do conservador no momento dos apertos,

Do revolucionário na hora dos desertos.

 

 

271 – Sufrágio

 

Acolher ou driblar a morte

Em meio ao naufrágio

É um sufrágio

Da sorte:

Quantas vezes a tampa do caixão

É tábua de salvação!

 

 

272 – Donzela

 

Uma donzela

Não é uma estátua ainda,

É o clarão dum sonho que vela.

A alcova dela

Finda

Oculta no pudor da penumbra, fanal

Onde ignoto se esconde o ideal.

 

 

273 – Ameias

 

Das nebulosas ameias

Do porvir para onde emanas

Vemo-nos rodeados de ideias

Combatendo sob formas humanas.

 

Por todo o lado

O que auguro

Vive inundado

De futuro.

 

Tornam-se os vivos cadáveres no chão

E, mal a fé

Nos estende a mão,

Caminham os fantasmas de pé.

 

 

274 – Momentânea

 

Uma vida momentânea

À vida eterna resiste

Do género humano.

A atracção contemporânea

Tem verdade que lhe assiste

Sobre que não mora engano:

É o que é!

O que é tem o direito

De não se votar à fé

Dum porvir tomado a peito

Que pode nem tomar pé.

Uma geração à pressa

Não tem de andar ao porvir.

E a que lhe há-de sobrevir

É um talhão da mesma peça.

Desprovida de horizonte,

Além não há nem há fonte.

Vale mais, vale melhor

De agora o sumo valor.

…Pelo menos até que, de visão turva,

Se esbarre de vez na curva!

 

 

275 – Dedicam

 

Quando aqueles que se dedicam

Se dedicam por ideal

E só pelo ideal se aplicam,

O entusiasmo é o sinal

Muitas vezes precursor

Dum fanático furor:

O arrebatamento pouco dista

Dum movimento armado em vista.

 

 

276 – Respeitáveis

 

Respeitáveis interesses,

Pouco afectos ao ideal,

Ao estômago benesses

Trarão

Que, no final,

Paralisam o coração.

 

 

277 – Montada

 

As artes, primeiro,

Conquistam o horizonte.

A ciência, o caminheiro,

É a montada que trespassa a ponte.

O sonho deve calcular a passada:

O que mais importa é a segurança da montada.

 

 

278 – Barriga

 

Há corpo e há momento,

Há interesses e barriga,

Mas a sabedoria obriga

A ter em conta outro elemento:

A vida passageira

Tem direitos.

Só a permanente, porém, é que emparceira

Grande tempo e grandes feitos.

 

 

279 – Lama

 

Quando o tempo se passou

A sofrer os ares superiores

Das razões de Estado,

Do juramento que nas costas se mudou,

Da sabedoria política sem valores,

Da justiça que dos homens passa ao lado,

Consola e convém,

Ao ver como todos andam rotos

Entrar na marginalidade dos esgotos

E jogar-lhes à cara a lama que na cara têm.

 

 

280 – Mocho

 

Pela treva iludido,

Não grite à luz: “afague-a!”,

Que deslumbra

Ao explodir na penumbra.

Um mocho não pode ser constrangido

A olhares de águia.

Devagar, mui devagar,

Aprenderemos talvez um dia a olhar…

 

 

281 – Réu

 

Se ao réu de morte poupo a vida

Cumpro o dever?

Não, cumpro mais.

E, se a uma culpa arrependida,

O perdão lhe der?

Não é dever, é demais.

O dever não é maior,

Maior é ser ao dever superior.

 

 

282 – Subordinado

 

Um subordinado

É obrigado a se curvar,

A obedecer sem censura,

A não discutir posto nem lado,

Nem o lugar,

Nem a figura.

 

Quando ao invés ficar perante

Um superior com tal marca de porvir

Que o espante,

- Só se poderá demitir.

 

 

283 – Bugigangas

 

É o amor sempre excelente,

Porém, sem as bugigangas,

Não presta aquilo que sente.

Limitado ao indispensável,

Vêm as zangas,

Murcha a ventura,

O supérfluo é a desejável

Cura,

Porventura sempre à mão:

Uma flor,

Uma palavra de amor

- E tem um palácio o coração!

 

 

284 – Conforme

 

Alguns países prosperam,

Outros continuam pobres,

Conforme

O uniforme:

Se cidadãos livres imperam

Ou se à prepotência os dobres.

 

 

285 – Preconcebidas

 

Famílias bem sucedidas

Não seguem filosofias

Porque são preconcebidas,

Apontem elas as vias

Que querem benevolência

Ou, ao invés, outro abismo,

Com muito mais frequência,

O do autoritarismo.

 

A táctica de vitória

Da família em construção

Desafiou a memória

Do saber de convenção.

 

O que a engrandece

É isto

A que obedece:

- Tirar proveito do imprevisto,

Seguindo cada um

O itinerário

Comum

Num passo solidário.

 

 

286 – Cofre

 

Ninguém deve consentir

Que lhe entre no coração,

A furto, quenquer.

Se o bom senso lhe fugir,

O silêncio é o timão

Cauto e prudente

Que lhe guia na corrente

O escaler.

Neste cofre a sensatez,

Por sua vez,

Pode vencer.