SEGUNDO VERSO
Escolha um
número aleatório entre 142 e 286 inclusive.
Descubra o poema correspondente
como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
142 – Que donde vem ninguém adivinhou
Que donde vem ninguém adivinhou
Sabemos.
De asas tão extensas
Que lhe não vês os extremos
É o que pensas.
Porém, quem sou?
- Por mais alta que seja a aposta
Tudo findará como sempre findou
- Sem resposta!
143 – Conversa |
|
Quem anima uma conversa |
Não pensa, que o dispersa. |
O conhecimento profundo |
É a derradeira |
Coisa do mundo |
Que emparceira, |
Enganada, |
Numa conversa animada! |
|
|
144 – Pesadelo |
|
Tive um pesadelo: |
A verdade fora atingida |
- E era o fim da vida! |
Dos pesadelos o pesadelo, |
Porém, |
É quando alguém |
Se convenceu |
De que quebrou o selo, |
De que a verdade atingiu: |
Dele às mãos |
Nossos pensamentos tortos |
À força ficarão sãos |
- E nós, todos mortos! |
|
|
145 – Fim |
|
Age como se a vida |
Não tivera fim, |
Mas de mala pronta à partida, |
Se, de repente, te exigir que sim. |
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146 – Cariz |
|
Da felicidade o cariz |
É ninguém sequer parar |
A pensar |
Se é feliz. |
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147 – Insulto |
|
De todo o desforço |
Contra um insulto, |
O mais hábil e de menor esforço |
(Pense-o |
Embora inulto) |
- É o silêncio! |
|
|
148 – Triste |
|
Cuida do que em ti resiste, |
Não vás ter umas mancheias |
De ilusões a vagar. |
Mudar de ideias não é triste: |
- Triste é não ter ideias |
Que mudar! |
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|
149 – Mão |
|
A mão em que tu mais deves |
Confiar para vencer |
É aquela que anda nos breves |
Teus braços a empreender. |
|
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150 – Incapacidade |
|
Da incapacidade o tamanho |
É aquele que tu lhe deres. |
Maior ganho |
Traz a teus bens |
Concentrares-te no que tiveres |
Que no que não tens. |
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|
151 – Calar |
|
Calar o povo é mais perigoso |
Que opor ao rio a barragem. |
O silêncio acumulado |
Devirá tão volumoso |
Que já não terá paragem |
Quando abrir por todo o lado, |
Quando violento explodir, |
Arrasar tudo à passagem. |
Quem nos poderá remir? |
Deixem os rios fluir, |
Deixem ir a liberdade, |
Deixem falar à vontade |
O povo, que é o mundo a ir! |
|
|
152 – Terno |
|
O mais terno momento, |
Estranho e absurdo, |
Dum casamento |
Não é o que propositadamente urdo. |
Não se escreve num cartão |
Mas baterá qualquer poema, |
Qualquer carta de amor: |
- É quando te dou a mão, |
Aflito, perdido o lema, |
Sem ver |
Como livrar-te da dor, |
Esta dor antecipada |
De não haver nada, nada |
Que evite já te perder! |
|
Eu sei que é louco, |
Que ainda estão selados os cofres, |
Mas sinto, quando sofres, |
Que já te estou perdendo um pouco. |
|
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153 - Organizar |
|
Organizar é o que se faz |
Antes de fazer, |
De modo que, quando se fizer, |
Nada faça vir atrás. |
|
|
154 – Subtileza |
|
Com certeza, |
Tem de haver subtileza. |
…Tratemos somente |
De a tornar evidente, |
Se, definitivo, um juízo |
For preciso. |
|
|
155 – Oxalá |
|
Oxalá vejas teu passado |
Com tanto enleio |
Quanto pelo futuro é grado |
Teu anseio! |
|
|
156 – Aprende |
|
Aprende a ser teu amigo, |
Já que sempre te ensarilhas |
Nas armadilhas |
De teu pior inimigo: |
- Por mais que o não creias, |
És tu próprio e às mancheias! |
|
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157 – Vorazes |
|
Os ventos e as ondas |
Não são vorazes. |
Não te escondas, |
Ignorado, |
Que eles estão sempre do lado |
Dos navegantes mais audazes. |
|
|
158 – Vencedor |
|
Um vencedor é quem sabe |
Que pode mudar |
E que antes que o dia acabe |
Já reajustou seu lugar. |
|
|
159 – Humano |
|
Divorcia-te, é humano, |
Humana é a fuga aos impostos. |
Se copias, qual é o dano |
Do exame aos demais propostos? |
|
E, afinal, |
É um engano: |
O que apelidas de humano |
Não passa em ti de animal. |
|
É que é humana a inteligência |
Que em ti procura a verdade, |
A vontade |
De sobrevivência, |
De ultrapassar a derrota |
Em busca de teu melhor, |
A rota |
Da esperança, |
Mesmo contra tudo quanto for |
O que afinal nada alcança. |
|
De ti depende a escolha |
De ser ou não humano, |
De abrires ou não todo o pano |
Aos ventos onde a vida se recolha. |
|
|
160 – Prioridades |
|
Quem não tem prioridades |
Trabalha a jornada inteira |
Para no fim das idades |
Verificar que emparceira |
Não com a meta buscada, |
- Com vida desperdiçada. |
|
Paga os ossos deste ofício |
Por não mais sair |
Do início |
E mais longe ficar, |
Ao não sair do lugar, |
De vir a ter qualquer porvir. |
|
|
161 – Super-homem |
|
O super-homem de origem |
Não é banda desenhada |
Nem o cinema onde vigem |
Superforças de empreitada. |
|
É a vertigem |
Do que somos: |
- Fruteiras que exigem |
Dar por fim melhores pomos. |
|
|
162 – Desagravo |
|
A fraqueza disfarçada |
Em rasgos de desagravo |
Breve tomba pela estrada |
Nas tramas do desconchavo. |
|
O interesse |
É que pontua o lugar: |
Quanto agravo se esquece |
E reajusta |
Quando uma fortuna custa |
A alguém se o lembrar! |
|
|
163 – Turista |
|
Turista dos lugares |
E das culturas, |
Tu já viste os lupanares |
Das já sabidas formosuras. |
O mundo é a pequena aldeia |
Onde resta a descobrir |
Do pitoresco a mancheia |
Dum folclórico devir. |
E navegas de fastio |
A imensidão |
Misteriosa |
Do rio, |
Sem saboreares a brumosa |
Imperfeição |
Arcaica |
Que pontua |
Quotidiana e prosaica |
A vida de qualquer homem da rua. |
|
Este, sim, terá porvir. |
Tu já deixaste de existir! |
|
|
164 – Geometria |
|
Contra toda a geometria |
A menor distância |
Do ponto donde partia |
Àquele onde chegaria |
Um homem talvez alcance-a, |
Não por uma linha recta |
Fulgurante, directa, |
Mas por uma que desvia, |
Permanentemente vadia. |
|
Seu fim, todavia, adquire-o |
Tão louco, louco delírio? |
- É sempre outra a dimensão, |
Vão os pés por onde vão… |
|
|
165 – Caridade |
|
Quando a caridade |
Se organiza e consolida |
Em instituições, |
Por presidente um abade |
E, por vida, |
Regulamentos, sessões, |
Relatórios, comissões |
E uma campainha, |
A compaixão natural, |
Desprendida da gavinha, |
Devém função social, |
Não há mais uvas na vinha. |
|
Quando o homem já não |
Conta com o coração, |
Publicamente se obriga |
Às prescrições duma liga. |
|
De amor quando já não sobres, |
Com os mais não formas ditongos |
E, com invernos tão longos, |
Que sorte vão ter os pobres? |
|
|
166 – Pobre |
|
Corpo de pobre |
O que tem |
Não mente: |
Cabe sempre bem |
Na roupa que sobre |
De toda a gente. |
|
|
167 – Religiões |
|
As religiões consistem |
Em desvairadas liturgias |
A quantos deuses existem |
Perdidos nos dias. |
|
Nelas procura |
O homem alcançar |
Saúde, paz, força, lisura, |
- Procura na terra um lar. |
|
Mesmo quando mais crente |
No fruto que de si vem, |
Ainda assim a Deus consente |
A ajuda que não contém. |
|
Tanto custa descobrir |
Na solidão sofrida |
Que em tudo, na vida, |
Deus somos nós-a-ir. |
|
No clarear da madrugada |
Não há de facto mais nada, mais nada. |
|
|
168 – Rito |
|
Pelo rito |
E não dele por meu cumprimento |
Acredito que acredito, |
Mas torno Deus meu instrumento. |
|
É por isso, desconfio, |
Que ao fim de milhões de anos, ao fim, |
Estamos neste vazio |
Assim… |
|
|
169 – Vasilha |
|
A igreja é a vasilha |
Do perfume que é Deus: |
Se se parte a bilha, |
Ao perfume, adeus! |
|
A questão |
Que tudo resume |
É se, qualquer que seja o perfume, |
Não é todo em vão. |
|
|
170 – Materializa |
|
Quanto mais se materializa |
Uma religião, |
Mais se populariza. |
E nisto, então, |
Mais se diviniza, |
Pelo menos na extensão. |
Tal é a contradição |
Que a dúvida eterniza: |
Vale a pena ou não |
Apostar num divisa? |
Se sim, em qual, |
Se em todas o declive é igual? |
|
|
171 - Morto |
|
Longe de ti |
Não encontro porto. |
Já morri |
Com tudo o que em torno vi. |
Um morto |
Jazendo aqui |
No meio dum mundo morto. |
|
|
172 – Ligeireza |
|
Do génio o lar |
Nosso mundo não é, de certeza, |
Mesmo quando em obras é gritante: |
É que a condenar |
Sempre nossa ligeireza |
É fulminante: |
Ao génio nem dará nem para o ver |
Sequer, |
Quanto mais para lhe confiar |
O mérito do lugar! |
Génio? |
- Lá para o próximo milénio… |
Até lá, continuaremos, então, |
A arrastá-lo pelo chão. |
|
|
173 – Intolerância |
|
Um jornal como um partido |
Destilam a intolerância |
Como um álcool que, bebido, |
Envenena de raiz, |
Dia a dia, desde a infância, |
As almas de meu país. |
O fanatismo |
É da vida a miopia |
Que joga em qualquer abismo |
Qualquer nobre galhardia. |
Duma pátria o bom tamanho |
Advém-lhe da tolerância |
Com que eu dum e doutro apanho, |
Gradual, seu maior ganho: |
Das alturas a distância. |
É só por esta grandeza |
Que ao fim um país se preza. |
174 – Porta |
|
Ao pobre o que mais importa |
É o estudo: |
- É sua travessa porta |
Para tudo. |
|
|
175 – Marginal |
|
Quando um emprego |
Me traz ganho marginal |
Ao que aufiro, em meu sossego, |
Do seguro social, |
Qual a motivação |
Para tal trabalho em vão? |
|
|
176 – Mesa |
|
Razão |
Que muito pesa |
Da família na desagregação |
É a refeição |
Em conjunto, em redor da mesa, |
Ter caído e caído e caído |
Em extinção. |
Onde é que o encontro em comum |
Pode ser tido |
Se para ele não nos resta agora |
Nem lugar nenhum |
Nem nenhuma hora? |
|
|
177 – Convidados |
|
Convidados são família, |
Família são convidados. |
A vida com tal perfile-a, |
Que lhe doira os resultados. |
|
Um convidado |
É aceite: |
Se entorna o leite, |
Jamais é um desmazelado, |
|
Ninguém lhe ri na cara |
Se confunde um deputado |
Com qualquer espécie rara |
De cogumelo envenenado. |
|
À mesa |
Não há sermões: |
Se dum comportamento houver despesa, |
É a rir que se dão os beliscões. |
|
No meio duma risada |
Nunca mudar custa nada. |
|
É a receita |
Para os de dentro e de fora |
De quem gosto à vida deita |
Onde mora. |
|
|
178 – Idade |
|
No sexo |
A idade, |
Quanto mais rimar amplexo |
Mais rima com qualidade. |
|
|
179 – Avião |
|
Quão |
Mais veloz o avião, |
Mais demora o desconforto |
Da bicha para o aeroporto. |
Assim é que progredir |
Me acaba, ao fim, por ferir. |
Progresso, |
Só, descontraído, |
Quando regresso… |
Ou terei antes ouvido |
Retrocesso? |
|
|
180 – Paixão |
|
É a paixão aquele abismo |
Onde as pessoas se lançam |
Para o vórtice do sismo |
Donde nunca mais se alcançam. |
|
Cada uma convencida |
Que bem pior |
Que perder a vida |
É doutrem perder o amor. |
|
E depois o coração |
Bate mais |
Com a paixão, |
Torna-nos tão animais |
Que nos tornamos divinos, |
Com sentimentos humanos |
E com sentidos tão finos |
Que férteis nos irmananos |
Aos corajosos, aos fortes. |
Pela euforia encantados, |
Preferimos tais mil mortes |
Que do amor outros cuidados. |
|
Pelo meio, perdida atrás, |
Ficou a paz, |
- Quando a paz era o esplendor |
Mais duradoiro do amor! |
|
|
|
181 – Bebé |
|
Tal como o bebé |
Se crê centro do Univaerso, |
Em tempos tivemos fé |
De ao centro termos o berço. |
|
Quinhentos anos em queda |
Do antigo e seguro apoio, |
Em troca, a moeda |
Separa o trigo do joio. |
|
Não importa invocar Deus, |
Perdido além do remoto. |
Crescer é abandonar céus |
E aceitar-se pobre e roto. |
|
Já deixei de ser menino, |
Entrei já na adolescência. |
Meu destino |
É o destino da ciência: |
|
- É perder a segurança |
Mais e mais de dia em dia, |
A ver se um dia me alcança |
O que anuncia. |
|
|
182 – Ameaça |
|
Sem um deus e uma ameaça |
Não irão os homens ser |
Libertinos como bichos? |
Não é o reino da trapaça |
Que acaba por embeber |
Em sangue da Terra os nichos? |
|
Porém, de sangue o derrame |
Pela civilização |
Não há terra onde se acame |
Em nome do deus que se ame |
E a bem da religião. |
|
Não ter Deus não é desgraça, |
Nem são graças prometidas; |
Tê-lo levou-nos à praça |
E ambos dão e tiram vidas. |
|
|
183 – Milénios |
|
O mundo e tudo o que existe |
Nele para nós foi feito |
Como nós a prestar preito |
Ao que a tudo pré-existe. |
|
Milhares e milhares |
De anos |
Assim enquadrámos nossos lares |
E nossos danos. |
Da ilusão |
Colhemos a segurança |
Que, mesmo em vão, |
Os milénios nos descansa. |
|
Até que me descobri |
Primo coevo dos macacos |
E que atrás de mim e ti |
Olhei vivos quantos cacos |
O tronco são do que sou. |
O herdeiro sou duma amiba |
E vou |
No repasto ser conviva, |
Já que somos descendentes |
De iguais de antanho parentes, |
Do corvo ou do crocodilo, |
Do leão ou da pantera. |
E não importa o sigilo, |
Nós somos a besta-fera |
Produto de quantas mais |
Nos fizeram nossos pais. |
|
É nesta sina insegura, |
Por muito que nos humilhe, |
Que levantamos cabeça. |
Quanto mais pura |
A verdade brilhe, |
Mais o passo nos tropeça. |
|
Onde encontrar segurança |
Quando isto é que nos entrança? |
|
|
184 – Animais |
|
Os animais |
Não sabem que sabem, |
Nem de si sabem ao sabê-lo: |
Sinais |
De que não são racionais… |
Dentro de nós, contudo, cabem, |
Pois lhes trazemos o selo |
No que sou e no que és |
Desde a ponta do cabelo |
Até à ponta dos pés. |
|
Caber em nós, caberão, |
Mas nós neles é que não! |
|
|
185 – Cópias |
|
A vida evolui |
Explorando perfeições |
Das cópias que distribui |
Aos milhões e milhões. |
|
Assim não vai ser |
Decerto o que faria |
Um Deus qualquer, |
Ou dele o poder |
Seria pobre ninharia. |
|
Não têm as mutações |
Um plano sequer, |
Nem, por trás, orientações |
Que recolher. |
|
Aleatório, |
Arrepiante, |
O progresso não é notório |
De tão lento, tacteante, |
Agonizante… |
|
A evolução sacrifica |
Os inaptos à tarefa |
Que à vida se identifica, |
Com que inteira se atarefa. |
Sobreviventes |
São os que tiverem azo |
De resistir aos dentes |
Do acaso. |
|
|
186 – Gerações |
|
Impossível realizar |
Num cento de gerações, |
A evolução, se calhar, |
Acaba por se implantar |
É num cento de milhões. |
|
O que ilude é a lentidão |
Conforme |
À máscara desta duração, |
Tão enorme |
Que nos faz perder o chão. |
|
Na verdade, |
Perante |
Esta enormidade |
Que somos nós, vago instante? |
|
|
187 – Física |
|
A física realidade |
Tem aquela fixidez |
Estável, regularidade |
Contra a história que nos fez |
Flutuante, imprevisível, |
Cheia de acasos de sorte |
Flexível. |
O que à marcha impõe o corte |
Ou a ordem de avançar |
É pouco menos |
Que o azar. |
Tais são os nossos terrenos. |
Nestes falíveis arquivos |
É que somos vivos |
E plenos. |
|
|
188 – Densidade |
|
A elevada densidade |
Populacional |
Encadeia reacções |
Contra os gestos da amizade |
Jovial: |
É o sinal |
Das agressões. |
Quanto mais nascemos aos milhões, |
Mais a guerra e a carestia |
Nos matarão dia a dia. |
|
|
189 – Crise |
|
Ninguém nos fez |
Por medida, |
Somos deste jaez |
Por vantagem merecida: |
Uma crise nos pinta a tez, |
Outra esta cabeça erguida. |
A sorte de ser o que és |
É a da ocasião devida, |
Que uma crise de cada vez |
É o lema da vida. |
Que importam as fés, |
Se esta é a única saída? |
|
|
190 – Etnocentrismo |
|
A primeira ideologia |
Que propugna etnocentrismo |
Com feroz xenofobia |
Vem do primeiro organismo: |
|
Quatro mil milhões de anos |
E no confronto mútuo o balanço |
Das vitórias e dos danos |
É o que em mim alcanço. |
|
- Eles ou nós, |
Nós ou eles, |
É mais do que ser justo ou ser atroz: |
É, deveras, |
A marca das eras |
Impressa em nossas peles. |
|
|
191 – Presas |
|
Por nobre que seja a intenção, |
Benévolas as tendências vividas, |
As presas potenciais são |
Obrigadas a contramedidas. |
|
Ou então, |
Para o bem e para o mal, |
Actua a selecção |
Natural. |
|
Tal é a marca dos avós |
Em tudo, |
No mundo e entre nós: |
- E entre nós mais amiúdo. |
|
|
192 – Código |
|
É a vida a replicação |
Preferencial |
Dum código e não |
Dum seu rival. |
|
É a vida um conflito |
De genéticas receitas: |
Antes do primeiro grito |
Já nossas bocas eram de guerra feitas. |
|
|
193 – Relento |
|
Dormes profundamente |
A noite inteira |
E teus filhos, no presente, |
Da morte à beira, |
Cada qual o mais doente, |
Ao relento da orvalheira… |
|
Quarenta mil crianças |
Mortas pela fome, |
Negligência ou doença |
É o que por dia no mundo alcanças. |
Quem com tal
se consome? |
Basta que se tome |
Contra a indiferença |
Uma medida, |
Por mais vulgar |
E distraída, |
E todo o horror daria lugar |
À vida. |
|
Uns cêntimos por dia |
E o milagre acontecia… |
|
Estão longe, não são nossos |
Os filhos deste grotesco… |
- E então vão roendo os ossos |
Da selecção de parentesco. |
|
|
194 – Mar |
|
Água do mar é a mais pura |
E a mais poluída: |
Tão pura que a vida aos peixes assegura, |
Tão poluída que nos mata a vida. |
|
|
195 – Fóssil |
|
No fóssil registo |
Encontro meu antepassado, |
É o modo como insisto |
Em tê-lo a meu lado. |
Definitivo, porém, resiste: |
- Já não existe! |
|
|
196 – Tapeçaria |
|
Os seres que a Terra habitam |
Interdependem: |
Sós, os fios se debilitam. |
A vida é tapeçaria |
Em que os nós defendem |
A cadeia. |
Complexamente tecida, |
A vida |
É uma teia. |
Puxemos um fio |
Aqui, além: |
Ignoramos se é estrago ou desafio, |
Se dali o que advém |
É na peça estreita mancha |
- Ou de todo o tecido se desmancha! |
|
|
197 – Sexo |
|
O sexo nos dota |
Do movimento poderoso |
Que a um ente amado adopta |
Como da vida o signo e o gozo, |
|
Transmuda a escolha e conquista |
Do par |
Na mais grata pista |
A desvendar, |
|
Ajunta à posse a festa do prazer, |
À rivalidade, a raiva |
E a uma solidão qualquer, |
A dor maior que em nós caiba. |
|
Que mais se preza |
Para inundar o mundo |
Do significado da beleza |
Mais profundo? |
|
|
198 – Sorte |
|
Organismos assexuados |
Morrem apenas por engano |
Em acidentes descuidados. |
Os sexuados têm o ano |
Pré-programado da morte. |
É a fraqueza |
De nossa sorte |
Que pagamos em troca |
Da grandeza |
Que nos toca. |
|
|
199 – Maioria |
|
A maioria |
Prefere viver a morrer. |
Mas por que é que o quereria? |
- Ninguém sabe responder. |
|
|
200 – Resultados |
|
Programas, circuitos, |
Reportórios comportamentais |
São simples e nunca muitos, |
Se não houver sinais |
De que haverá bons resultados |
Por devirem complicados. |
Os nexos |
Que nos envolvem |
Apenas nos catapultam: |
Mecanismos complexos |
Só se desenvolvem |
Quando os
simples não resultam. |
|
|
201 – Reportório |
|
Vasto reportório comportamental |
Pré-programado |
Mais aprendizagem com a experiência |
Convencem um observador ocasional |
De que há uma consciência |
A comandar um acto desejado. |
|
Mas um robô de hoje faria |
Tudo o que ali se enuncia. |
|
De fora é tudo igual, |
Independentemente do que esteja a acontecer |
Dentro da cabeça neuronal |
E da viência que disto alguém tiver. |
|
Se for um bicho, |
Como é que da vivência saberei |
Qual o nicho |
E a lei? |
|
202 – Submissão |
|
A evitar mal-entendidos |
A agressão criou seus gestos |
E a submissão, os sentidos |
Em paralelos aprestos. |
|
Desviar o olhar |
Do adversário, |
De modo a tudo fitar |
Menos tal salafrário, |
Imobilidade absoluta, |
Vénia sobre as patas dianteiras, |
Fim de luta |
Ofertando a jugular |
A dentadas certeiras, |
Como quem diz, |
Vergando a cerviz: |
“Ferra neste lugar”… |
|
Combate sangrento |
Transformado em ritual, |
Eis a vitória do invento |
Do sinal. |
|
Apenas o Homem, pretensamente |
Dos animais |
O mais inteligente, |
Compreende devagar demais. |
|
|
203 – Espectáculo |
|
Dentro da espécie a agressão |
É quase toda espectáculo: |
Intimidação, coacção, |
De encenações um pináculo. |
|
Mui raro acabam os animais |
Em combates mortais. |
|
Entre espécies é diferente, |
É luta a sério. |
A presa que o tente |
Pode escapar ao império |
Do predador. |
Ele, porém, é um matador. |
|
Há espécies que confundem |
Os dois modos de agresão. |
Para os homens não é confusão: |
As duas numa só fundem, |
Sem acolher divisão. |
Depois a esperança |
Que temos à mão |
Nunca mais se alcança. |
|
|
204 – Estratégia |
|
De sobrevivência a estratégia |
Pequenos grupos requer, |
Com etnocentrismo e xenofobia |
A condizer. |
Depois vem a paga régia, |
Num ou noutro dia, |
De sucumbir às ocasionais |
Tentações sexuais |
Dos filhos e filhas malsãs |
Dos inimigos clãs. |
|
Criemos nossa cultura |
Como os outros criarão, |
Que assim a espécie se apura |
Dos dois lados do portão. |
|
E depois o isolamento |
Que nunca seja total: |
Um certo distanciamento |
Mais à-vontade sexual. |
|
Gera-se a diversidade |
Que será a matéria-prima |
Sobre a qual sempre se arrima |
Da selecção a acuidade. |
|
Estratégia natural |
Que as espécies seguirão, |
Como qualquer animal |
Segue-a o Homem, queira ou não. |
|
Se amanhã sobrevivermos |
É que seguimos tais termos |
|
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205 – Belicosas |
|
Um alfa impõe autoridade, |
Um beta a desafia, |
Mas não em nome da verdade: |
O egoísmo é que o impelia. |
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Ambas as tendências belicosas |
Dentro em nós andam formadas |
E o equilíbrio de que gozas |
Vem-te bem mais das topadas |
Que da força de vontade |
Ou de qualquer liberdade. |
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A raiz da tirania |
Vem de épocas mais distantes, |
Como a da democracia: |
Não há histórico registo |
Para o que os genes bem antes |
De nós teceram com isto. |
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206 – Opressão |
|
No estado selvagem, |
Opressão sexual |
Sobre a fêmea chimpanzé. |
Como é |
Que se inverte tal |
Imagem |
Pelo mero facto |
De ficarem confinados |
A um estreito contacto |
Quando a prisão condenados? |
É que nestas condições |
Se fará sentir a acção |
Da fêmea a impor contenções, |
A fazer coligação, |
A implementar a paz. |
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- O que o feminino traz |
A uma sociedade |
Em que desfruta a igualdade |
É do prazer o saboroso destino |
Que é feminino. |
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207 – Desastre |
|
Uma comunidade |
Bem sucedida |
Há-de |
Ser erigida |
De acordo com a natureza |
E o carácter de cada ser |
Que nela houver de viver. |
Quem o despreza, |
Quem o ignora, |
Quem no sentimentalismo demora, |
De incompetente |
O resultado |
Logo sente: |
- O desastre mora ao lado! |
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208 – Chimpanzés-anões |
|
Para os chimpanzés-anões |
A partilha sexual |
Entre múltiplos parceiros |
Não são as depravações |
Que o senso do bem e mal |
Vê com os nossos argueiros. |
|
Por um motivo acontece: |
É uma socialização, |
- É o grupo que ali se tece, |
Cria a identificação. |
|
A ordem entre os primatas |
É duma vida gregária |
Que em comunidade acatas |
Numa cultura tão vária |
Que do símio corre o pano |
Até cada lar humano. |
Na vida comunitária, |
Com os motivos conexo, |
Pontifica a luminária |
Que para todos é o sexo. |
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209 – Invento |
|
Um génio dos primatas |
Inventa |
E o invento pelas matas |
Lento se divulga: |
Ciumenta, |
A sociedade que o julga |
Rejeita-o, conservadora. |
O macho adulto demora, |
Obstinado. |
Quem a novidade acolhe |
Em todo o lado |
São as fêmeas com a prole, |
Cuja educação recolhe |
Confiante |
Quanto sirva de farol |
Para diante. |
Ficam os machos para trás, |
Ciosos da hierarquia, |
Ferozmente competitivos. |
|
- É o que ainda hoje entre nós traz |
Iniquidade e melancolia |
A quantos nos renovam os arquivos. |
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210 – Selvagens |
|
Matar um predador um inimigo |
À dentada ou à mão |
Mais gasta e tem mais perigo |
Que carregar num botão. |
|
As armas e ferramentas |
Criam civilização |
Mas desorganizarão |
Quanto intentas. |
|
Só temos de nos culpar |
Por nossa actuação |
Em vez dum ancestral avatar |
Da humana condição. |
|
Não são os bichos selvagens |
Nem remotos antepassados: |
Nós é que talhamos as imagens |
De que fugimos aterrados! |
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211 – Lição |
|
Superior inteligência, |
Se é de marca a nossa imagem, |
Requer da espécie a eficiência |
Com que as mais gerem a própria vantagem. |
|
Quem não aprender a lição |
Cairá no olvido |
Algum dia, de vez perdido |
Nas ignotas curvas da evolução. |
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212 – Morte |
|
A morte é um tigre escondido, |
Emboscado, |
Que em breve terá abocanhado |
O distraído. |
|
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213 – Milhões |
|
Há três mil milhões de anos, |
A vida mudou a cor |
De qualquer mar interior. |
|
Há dois mil milhões de anos, |
A composição total |
Da atmosfera mundial. |
|
Há mil milhões de anos, |
O que se estima |
É que mudou tempo e clima. |
|
Há trezentos milhões de anos |
O que a vida mudaria |
É do solo a geologia. |
|
De então para cá |
Foi a aparência completa |
Da face mais visível do planeta |
Que mudará. |
|
Estas vidas primitivas, |
Por processos naturais |
Foram tão, tão criativas |
Que nos rimos dos actuais |
Apocalípticos profetas |
Que nos gritam nos jornais |
E da beira das valetas |
Que hoje o nosso frenesim |
Vai levar a vida ao fim. |
|
Espécies à extinção |
E nós mesmos atrás delas |
Podemos levar, que em vão |
Se nos fecham as janelas: |
Na Terra em que se consuma |
Não é novidade alguma. |
|
Seremos a derradeira |
Da longa série de raças |
Que, uma vez à cabeceira |
Presunçosa da ribalta, |
Após mudanças escassas, |
Parte do elenco eliminam |
E depois não fazem falta: |
- A si próprias vão dar alta, |
De vez na morte se finam! |
|
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214 – Adora |
|
Agora |
Como sempre enquanto viver, |
O Homem adora |
O que não pode compreender. |
|
|
215 – Anos-luz |
|
Plutão, |
O planeta quase mais distante, |
De quilómetros orbita a um bilião |
E meio do Sol que temos diante. |
|
A Próxima Ceutauro, a estrela |
De nós mais perto, |
A seis mil vezes aquela lonjura revela |
Os confins do espaço deserto. |
|
A luz que dela chega |
Hoje manifesta os arcanos |
Do que da estrela se desprega |
Há mais de quatro anos, |
Apesar de trezentos mil |
Quilómetros por segundo |
Correr pelo céu de anil |
Até atingir aqui o mundo. |
|
Há trinta mil anos foi o momento |
Em que escapou às estrelas, |
Da Via Láctea no centro turbulento, |
A luz que hoje nos permite vê-las. |
|
A mais próxima Galáxia mora |
Da nossa a duzentos mil anos-luz. |
Os mais longínquos astros até agora |
Observados, |
A cinco biliões a lonjura os reconduz. |
|
- Que é da nossa pretensão |
Des sermos os príncipes encantados? |
Que desilusão! |
|
|
216 – Anão |
|
O Homem, efectivamente, |
Diante da imensidão, |
É mais que pequenamente |
Um anão! |
|
|
217 – Tormento |
|
A morte é um tormento: |
Como vou imaginar |
O momento |
Em que deixo de imaginar? |
Que será o pensamento |
Dum lugar sem lugar? |
Dum vento |
Sem ar? |
|
|
218 – Colapso |
|
Nosso destino derradeiro |
É o colapso universal. |
Para além, o Infinito inteiro |
E nem sinal! |
|
|
219 – Desatino |
|
Há um tempo em que desatino |
E acordo do sono: |
Quanto mais lá raciocino, |
Pior funciono. |
|
Sinto-me então isolado |
De tudo em redor: |
Existo apenas ao lado |
De mim e é melhor. |
|
Vivo só pelos meus dedos |
E os dedos, por fim, |
Dão-me o maior dos segredos: |
- Actuam sem mim! |
|
|
220 – Maioria |
|
A maioria |
Vive e é tudo. |
E a vida não principia: |
É um desespero mudo. |
|
Foi contra este destino |
Que os aventureiros |
Lutaram em desatino. |
E foram sempre os primeiros |
A ter tino |
E a ser menos prisioneiros. |
|
|
221 – Friagem |
|
É verdade que é preciso coragem |
Para suportar |
O tédio, a rotina e a friagem |
Que deixam no ar. |
|
Para arcar |
Com a responsabilidade |
Das próprias acções |
E da felicidade |
De milhões. |
|
Porém, o mundo convencional, |
Sem pioneiros, |
Seria o fracasso universal |
Dos sonhos derradeiros. |
|
|
222 – Selvagem |
|
Um dia o fogo dentro explodirá, |
Jogarei o labor pela janela |
E acordarei o selvagem que em mim há. |
Habituei-me à sequela |
De correr em vez de andar. |
Cada manhã me grita, a par |
Da vontade mais avessa |
Ao que me farte: |
- Mais depressa, mais depressa, |
Parte! |
|
Um dia, |
Pela porta travessa |
Ainda começa |
A fantasia! |
|
|
223 – Fraco |
|
Porque és mais forte do que eu |
Sei-o |
E te odeio. |
Quem dera amar o que é teu! |
Mas ataco, |
Por ser fraco. |
Não é por fraqueza, agora, |
Que o confesso: |
Teço |
A grandeza que demora, demora, |
Pois sei |
Do forte a lei. |
Por maior que seja o zelo, |
Porém, |
Vejo bem |
Que jamais aprendo a sê-lo: |
É a maldição desta via |
Que do rumo me desvia. |
|
|
224 – Êxito |
|
Um êxito é abominável |
Quando é falsa parecença |
Com o mérito fiável, |
Dum homem sério pertença. |
|
O vulgo se ilude: |
O sucesso tem magia |
De virtude, |
Vê nele a supremacia. |
|
O que o logro vitima |
É toda a História: |
- Alheia a qualquer obra-prima, |
Tomba de vanglória em vanglória! |
|
|
225 – Irritação |
|
Um homem, quando se irrita |
E se irrita sem razão, |
É que sente a irritação |
Com a razão que algo lhe quita. |
|
Só me indigno quando sinto |
Razão, |
Que eu não |
Me minto! |
|
|
226 – Urtiga |
|
De trabalho um pouco mais |
E devém útil a urtiga. |
Porém, porque a desprezais, |
Torna-se planta nociva. |
|
Não há homens maus: |
Das ervas os humores |
Não os domam varapaus |
Mas os bons cultivadores. |
|
|
227 – Ignorância |
|
Quando triunfa a ignorância, |
Apenas a lástima convém |
A um rosto cuja ânsia |
É a da maldade do bem. |
|
|
228 – Boneca |
|
O primeiro filho |
Da mulher |
Continua o trilho |
Da última boneca que tiver. |
|
|
229 – Lagartas |
|
Catar a superstição |
De que enfermam os céus |
É da maçã da religião |
Mondar as lagartas de Deus. |
|
230 – Cegueira |
|
Há muita filosofia |
Que nega o infinito |
E bole. |
É a patologia |
Da cegueira cujo fito |
Nega o Sol. |
|
Ter por fonte de verdade |
Um sentido que nos falta |
É mera vaidade |
Em alta. |
|
Aquela fala altaneira, |
Aquele ar de compaixão |
Pela turba que tacteia |
São da toupeira |
O pretensioso chavão: |
“Com tal Sol, que gente feia!” |
|
|
231 – Tino |
|
Há quem, ante as portas do destino |
Entreabertas, |
Hesite sem tino, |
Com risco das vindoiras descobertas. |
|
Entre os batentes ficará sempre entalado. |
…Quando o destino enclausura |
Do outro lado |
Os caminhos da aventura! |
|
|
232 – Dentes |
|
Vivemos mostrando os dentes: |
Quando não de riso, |
De furor. |
Se o frio no lar consentes, |
O frio nos corações |
É o preciso |
Horror |
De que dispões. |
|
|
233 – Asneira |
|
Um homem que come e cala |
Não é um homem, é uma asneira: |
Se não concordo, |
Não parto, |
Ninguém me arranca um acordo. |
Um gato é um tigre de sala |
E um lagarto, |
Um crocodilo de algibeira: |
Isto é o que deles fizemos. |
E, se ainda os não comemos, |
É que deles
preferimos a brincadeira. |
|
|
234 – Escarnecer |
|
Achincalhar homens e factos, |
Escarnecer do rumo |
E do mundo, |
É o mais pérfido dos pactos: |
Dispensa de compreender, no fundo, |
Os sinais de fumo. |
|
|
235 – Torrente |
|
A torrente das ideias |
Destrói e sepulta |
Debaixo das ameias |
Tudo quanto não indulta. |
|
A das águas |
Decerto que provoca |
Tragédias e mágoas |
Mas não nos fura dentro uma toca |
De vazio e tormento |
Que só pode encher o pensamento. |
|
|
236 – Perto |
|
Se o Homem é o preferido, |
É que o não tratam de perto: |
A lonjura traz sentido |
Ao deserto. |
|
Não viver perto dá-nos azo |
A supor nos aleijões, |
Por inaudito acaso, |
A maior das perfeições. |
|
|
237 – Relógio |
|
Do relógio o ponteiro |
Que avança no mostrador, |
Avança nos corpos e nas almas: |
O passo dianteiro |
Cada qual vai antepor |
Do porvir aos folguedos e às palmas. |
Sem dar por isso |
Foi da fogueira o chamiço. |
|
|
238 – Sabedoria |
|
Por um chefe combatemos, |
Caminhamos com um guia… |
- Porém, a sabedoria que conquistemos |
É que nos ajusta dia a dia. |
Por um chefe combatemos, |
Caminhamos com um guia… |
Quando seremos |
Nós a via? |
|
|
239 – Claridade |
|
Entre duas claridades, |
De incêndio, de iluminação, |
De qual mais te persuades? |
O incêndio faz um aurora, |
Mas para quê tanta pressa, |
Em vez de esperar a hora |
Em que amanheça? |
Um vulcão alumia, |
Iridescente, |
Porém, o sol nascente |
É que traz o dia. |
Uma claridade a espaços |
Velada por fumo, |
Itinerário cujos traços |
Rasgam de violência o rumo, |
Não satisfaz |
A luz de que um homem é capaz. |
|
|
240 – Gratuito |
|
Gratuito nada haverá |
Do avesso quando se vira: |
A par da mão que dá, |
A garra que tira. |
Atrás da máscara o que há |
É a verdade da mentira. |
|
|
241 – Miséria |
|
Provação |
De que o fraco sai infame |
E o forte, sublime, |
É a miséria o crisol em que se dão |
Ao homem no arame, |
Conforme as arestas que lime, |
Do marginal os laços incréus |
Ou o tamanho dum semideus. |
|
|
242 – Credor |
|
Um senhor |
Do escravo dele |
É dono só da pessoa. |
Ao credor |
Não basta a pele. |
Do devedor quando se não condoa, |
É dele à dignidade |
Que ameia, |
É o coração que invade |
E esbofeteia. |
|
|
243 – Descoberto |
|
A pobreza a descoberto |
Põe a vida material, |
A lonjura ali tão perto |
Que de bem se torna mal. |
|
A intransponível distância, |
Não os roubos, |
É que irá gerar a ânsia |
Dos arroubos |
Por uma vida ideal. |
- Por não ter nada de seu |
Vive do céu. |
|
|
244 – Dente |
|
Na boca nem um dente, |
Olha que espanto! |
Há tanto quem, há tanto!… |
Nem um dente, porém, na mente, |
Que risco de quebranto! |
E quantos, entretanto, |
Não medem quanto! |
Que indecente! |
|
|
245 – Isca |
|
Quando está montada a mina |
E pronto o detonador, |
Um olhar é uma faísca |
Que as explosões determina: |
- Não é precisa outra isca |
Para o amor. |
|
|
246 – Barro |
|
A Humanidade |
É um mesmo ser: |
Quer dizer |
Identidade. |
Somos todos de igual barro |
E, ao nascer, |
A viagem a fazer |
Escolha não tem de carro. |
|
Da mesma sombra viemos, |
A mesma carne somos, |
A mesma cinza seremos. |
Como diversos nos pomos? |
|
- A ignorância amalgamada |
À massa humana impoluta |
Enegrece tanto a estrada |
Que do mal só nos dá fruta. |
|
|
247 - Misérias |
|
Quem só viu misérias de homem |
Nada viu, |
Até que as da mulher se somem |
Negras ao rio. |
Quem só viu as da mulher |
Não viu nada, |
Que as da criança é mister |
Entrever |
Para calcular o custo da alvorada. |
|
|
248 – Charruas |
|
Na miséria os perfis se esvaem, |
Não há charruas que os arem: |
- Raros são aqueles que caem |
Sem se degradarem. |
|
|
249 – Ramo |
|
Na hora de tudo nos fugir |
Que importa a mão que apanho ou o lugar? |
Quem se vê a cair |
Não escolhe o ramo em que agarrar. |
|
|
250 – Bondade |
|
Na história |
A bondade é jóia rara. |
Quem for bom merece a glória: |
É maior que o maior que o encara. |
|
|
251 – Choque |
|
Como um choque de elementos |
De princípios tal é o choque, |
Ao ar o enraivam os ventos, |
De águas ouve o mar remoque. |
|
A tirania mata |
A democracia |
Mas a fé sempre colmata |
A razia |
E de novo tudo ata. |
|
252 – Revolução |
|
É filha a revolução, |
Não do acaso, mas da necessidade: |
Em realidade muda a ficção |
Quando se mudou em ficção a realidade. |
|
|
253 – Bárbaros |
|
Se a escolha tivera à mão |
Entre os civilizados da barbaria |
E os bárbaros da civilização, |
Os veros bárbaros preferiria. |
É que têm mais magia |
Ainda sem perversão. |
Preferia… |
- Ou não? |
|
|
254 – Adorável |
|
Nada mais adorável |
Do que a formosa inocente |
Caminhando, indiferente, |
Com a chave do paraíso na mão |
Sem, amorável, |
Nem sequer |
A suspeição |
De o saber. |
|
|
255 – Desempregados |
|
Estirados a granel |
Ao sol, desempregados, sem féria, |
Um pouco de homens dentro da pele, |
São mais sacos cheios de miséria. |
|
|
256 – Caverna |
|
A Primavera às trevas de alma aclara e guia |
Como aos recantos escuros da caverna, |
Onde nossa fera descuidada hiberna, |
Ilumina o meio-dia. |
|
|
257 – Trabalho |
|
O trabalho é como a lei, |
Ninguém lhe escapa ao bulício: |
Se por aborrecido o recusei, |
Tê-lo-ei por suplício. |
Quem não quer ser operário |
Larga o trabalho de lado, |
Fica escravo sem salário, |
Por outro lado é agarrado. |
Quem do trabalho não é amigo |
Da servidão corre o perigo. |
258 – Parasita |
|
O que o destino dita |
Por trás da aparência da epiderme: |
Quem quiser ser parasita |
Acaba verme. |
|
|
259 – Quimera |
|
Os amantes separados |
Iludem a distância por quimeras |
Que o peso tomam de dados. |
Trocam mutuamente primaveras, |
Das aves o canto, |
Das flores o perfume. |
Tudo retém do amor o encanto |
E lhe alimenta magicamente o lume. |
Embora quanto ali deponho |
Seja apenas uma troca de sonho. |
E quanto mais a lonjura aparta |
Mais cada erva é dum para o outro uma carta. |
|
|
260 – Asfixia |
|
A morte é certa mas acalma |
A dor. |
Porém, a morte por falta de amor |
É uma asfixia de alma. |
|
|
261 – Subterrâneos |
|
Os subterrâneos da civilização, |
Por serem os mais sombrios, |
Menos porventura importarão |
Que os tectos mais luzidios? |
|
A ignorância se apanha |
Nesta vacuidade interna: |
Pretender desvendar a montanha |
Sem lhe descobrir a caverna. |
|
|
262 – Prisioneiro |
|
Prisioneiro de correntes nos pés, |
Aquilo que o sonho alcança, |
Não é que os pés sirvam para andar alguma vez, |
É que com os pés se dança. |
|
E só quando a dança já cansou |
É que em seu lugar, |
Baixando o voo, |
Descobrimos que os pés servem para andar. |
|
|
263 – Vento |
|
A ameaça do vento, |
Ao soprar de cada vez, |
É que cada seu tormento |
São dois ou três. |
|
Quais bens que se consomem, |
Riqueza que se perdeu: |
Leva mais sonhos do homem |
Do que nuvens há no céu! |
|
|
264 – Namorados |
|
Oa namorados |
Já disseram tudo, tudo |
Em todos os lados, |
Excepto tudo, sobretudo: |
É que tudo, numa alma enamorada, |
É nada. |
E qualquer nada nela é tudo, |
Que tudo saboreia no miúdo: |
O nada lhe basta – está enlevada! |
|
|
265 – Apaixonados |
|
Os apaixonados, |
Embora sempre em partida, |
Consideram-se recém-chegados. |
A pretensão iludida |
Que por tantos se reparte |
É a de supor |
Que o amor |
Conduza a alguma parte. |
O amor é jóia que se engasta: |
É amor e basta! |
|
|
266 – Bomba |
|
O ditador |
Advém no mundo, a toda a hora, |
Pese-lhe embora, |
O pensador. |
|
A palavra retardada |
É uma bomba acorrentada. |
|
O escritor |
Duplica e triplica estilo e modo |
Quando silêncio ao povo impõe todo |
E qualquer casco de senhor. |
|
Deste vazio salta, |
Cruento, |
De bronze o pensamento |
Que falta. |
|
267 – Amotinados |
|
Os amotinados atropelam-se em volta, |
Fogem, resistem agora, correm logo… |
- A cólera ateia a revolta |
E o vendaval sopra o fogo! |
|
|
268 – Brutos |
|
A desanimada paciência dos brutos |
Entende tanto dos actos do homem |
Como o homem entende os produtos |
Da Providência nos actos que o domem. |
|
|
269 – Degraus |
|
Há degraus em minha féria |
Que trepo com o braço laboral: |
Primeiro domino a matéria, |
Depois, o ideal. |
|
|
270 – Abrigo |
|
Uma barricada |
É o caos antes do perigo |
E perante ele é a disciplina incarnada. |
Sempre o perigo foi da ordem o abrigo, |
Do conservador no momento dos apertos, |
Do revolucionário na hora dos desertos. |
|
|
271 – Sufrágio |
|
Acolher ou driblar a morte |
Em meio ao naufrágio |
É um sufrágio |
Da sorte: |
Quantas vezes a tampa do caixão |
É tábua de salvação! |
|
|
272 – Donzela |
|
Uma donzela |
Não é uma estátua ainda, |
É o clarão dum sonho que vela. |
A alcova dela |
Finda |
Oculta no pudor da penumbra, fanal |
Onde ignoto se esconde o ideal. |
|
|
273 – Ameias |
|
Das nebulosas ameias |
Do porvir para onde emanas |
Vemo-nos rodeados de ideias |
Combatendo sob formas humanas. |
|
Por todo o lado |
O que auguro |
Vive inundado |
De futuro. |
|
Tornam-se os vivos cadáveres no chão |
E, mal a fé |
Nos estende a mão, |
Caminham os fantasmas de pé. |
|
|
274 – Momentânea |
|
Uma vida momentânea |
À vida eterna resiste |
Do género humano. |
A atracção contemporânea |
Tem verdade que lhe assiste |
Sobre que não mora engano: |
É o que é! |
O que é tem o direito |
De não se votar à fé |
Dum porvir tomado a peito |
Que pode nem tomar pé. |
Uma geração à pressa |
Não tem de andar ao porvir. |
E a que lhe há-de sobrevir |
É um talhão da mesma peça. |
Desprovida de horizonte, |
Além não há nem há fonte. |
Vale mais, vale melhor |
De agora o sumo valor. |
…Pelo menos até que, de visão turva, |
Se esbarre de vez na curva! |
|
|
275 – Dedicam |
|
Quando aqueles que se dedicam |
Se dedicam por ideal |
E só pelo ideal se aplicam, |
O entusiasmo é o sinal |
Muitas vezes precursor |
Dum fanático furor: |
O arrebatamento pouco dista |
Dum movimento armado em vista. |
|
|
276 – Respeitáveis |
|
Respeitáveis interesses, |
Pouco afectos ao ideal, |
Ao estômago benesses |
Trarão |
Que, no final, |
Paralisam o coração. |
|
|
277 – Montada |
|
As artes, primeiro, |
Conquistam o horizonte. |
A ciência, o caminheiro, |
É a montada que trespassa a ponte. |
O sonho deve calcular a passada: |
O que mais importa é a segurança da montada. |
|
|
278 – Barriga |
|
Há corpo e há momento, |
Há interesses e barriga, |
Mas a sabedoria obriga |
A ter em conta outro elemento: |
A vida passageira |
Tem direitos. |
Só a permanente, porém, é que emparceira |
Grande tempo e grandes feitos. |
|
|
279 – Lama |
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Quando o tempo se passou |
A sofrer os ares superiores |
Das razões de Estado, |
Do juramento que nas costas se mudou, |
Da sabedoria política sem valores, |
Da justiça que dos homens passa ao lado, |
Consola e convém, |
Ao ver como todos andam rotos |
Entrar na marginalidade dos esgotos |
E jogar-lhes à cara a lama que na cara têm. |
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280 – Mocho |
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Pela treva iludido, |
Não grite à luz: “afague-a!”, |
Que deslumbra |
Ao explodir na penumbra. |
Um mocho não pode ser constrangido |
A olhares de águia. |
Devagar, mui devagar, |
Aprenderemos talvez um dia a olhar… |
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281 – Réu |
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Se ao réu de morte poupo a vida |
Cumpro o dever? |
Não, cumpro mais. |
E, se a uma culpa arrependida, |
O perdão lhe der? |
Não é dever, é demais. |
O dever não é maior, |
Maior é ser ao dever superior. |
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282 – Subordinado |
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Um subordinado |
É obrigado a se curvar, |
A obedecer sem censura, |
A não discutir posto nem lado, |
Nem o lugar, |
Nem a figura. |
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Quando ao invés ficar perante |
Um superior com tal marca de porvir |
Que o espante, |
- Só se poderá demitir. |
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283 – Bugigangas |
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É o amor sempre excelente, |
Porém, sem as bugigangas, |
Não presta aquilo que sente. |
Limitado ao indispensável, |
Vêm as zangas, |
Murcha a ventura, |
O supérfluo é a desejável |
Cura, |
Porventura sempre à mão: |
Uma flor, |
Uma palavra de amor |
- E tem um palácio o coração! |
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284 – Conforme |
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Alguns países prosperam, |
Outros continuam pobres, |
Conforme |
O uniforme: |
Se cidadãos livres imperam |
Ou se à prepotência os dobres. |
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285 – Preconcebidas |
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Famílias bem sucedidas |
Não seguem filosofias |
Porque são preconcebidas, |
Apontem elas as vias |
Que querem benevolência |
Ou, ao invés, outro abismo, |
Com muito mais frequência, |
O do autoritarismo. |
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A táctica de vitória |
Da família em construção |
Desafiou a memória |
Do saber de convenção. |
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O que a engrandece |
É isto |
A que obedece: |
- Tirar proveito do imprevisto, |
Seguindo cada um |
O itinerário |
Comum |
Num passo solidário. |
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286 – Cofre |
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Ninguém deve consentir |
Que lhe entre no coração, |
A furto, quenquer. |
Se o bom senso lhe fugir, |
O silêncio é o timão |
Cauto e prudente |
Que lhe guia na corrente |
O escaler. |
Neste cofre a sensatez, |
Por sua vez, |
Pode vencer. |
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