TERCEIRO  VERSO

 

 

                                         Porém, mal incarnada a fantasia

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha aleatoriamente um número entre 287 e 390 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

287 – Porém, mal incarnada, a fantasia

 

Porém, mal incarnada, a fantasia,

Sentindo da vertigem o pavor,

Logo de asas se onera, com suor

De quem na queda quer ter garantia.

 

Tanto o estupor

Principia,

Em nós próprios, cada dia,

A se nos contrapor.

 

Será por esta inata covardia

Que nunca atinjo de vez o oriente

À minha frente?

 

Tanto sol, tanto sol,

E eu eternamente preso apenas

Às melenas

Do arrebol!

 

 

288 – Acuso

 

A felicidade acuso,

Mas não pende do que falta:

Com as faltas não crescemos.

A cotação baixa ou alta

Vem do bom ou do mau uso

Que fizemos do que temos.

 

 

289 – Chuva

 

Como a chuva abre buracos

Nas pedras por persistência,

Não por força dos impactos,

Usa a tua paciência

A bater, aldraba a aldraba,

Até que uma porta se abra.

 

O preço teu de vencer

É o de o Homem vir a ser!

 

 

290 – Pensar

 

Não te ponhas a pensar

No trabalho que vais ter,

Que lhe encontras no lugar

Uma montanha qualquer

E nem mesmo um alpinista

Logrará vencer-lhe a crista.

 

É preciso olhar em frente,

Se pretendes atingir

As fronteiras do porvir,

Ter a meta em ti presente.

 

Sorte de principiante

Raro te trará vitória,

Só o persistir te garante

O piso firme da glória.

 

Um obstáculo de lado

É um a menos no caminho

Que trepo pelo traçado

Donde ao sonho me avizinho.

 

 

291 – Tristezas

 

Há tantas tristezas tristes

E afinal não o são tanto:

Nas tristezas não existes,

São químicas reacções

O que produz o teu pranto,

Jamais são tuas razões.

 

Por mais que perca em beleza

É só química a tristeza!

 

 

292 – Perdão

 

O perdão é curativo

Do lado de quem perdoa:

De novo tornará vivo

Um cadáver que anda à toa.

 

Porém, não muda o sentido

Se o perdão ao perdoado

O não muda, arrependido

Do mal que houvera tramado.

 

O castigo é o contrapeso

Que, nos pratos da justiça,

Ao perverso não repeso,

Pelo mal pagando, enguiça.

 

 

293 - Rudes

 

Os falhados serão rudes

Porque nas falhas tropeçam?

Quando tal crês, bem te iludes

Nos porquês que as falhas meçam.

 

É que a rudeza é que talha,

Quando aparece atrasado,

Quando é mal agradecido,

Os tombos de toda a falha

Em que tropeça o falhado

De si nunca arrependido.

 

Quem jamais pede desculpa

Por um erro cometido

Tem dos fracassos a culpa,

Não será reconvertido.

 

Não, não aplaudas a peça,

Não lances para os falhanços

A culpa em que ele tropeça,

- Que tropeça em seus maus lanços.

 

 

294 – Convidado

 

Quando é que o meu convidado

Se vai queixar da comida?

Queixa-se quando é um falhado:

Falha é mal agradecida.

 

Quando à mesa um vencedor

Sentar, fica satisfeito,

Em tudo verá calor,

Agradece-me a preceito.

 

Foi neste estar diferente

Que, de bichos, demos gente.

 

 

295 – Jogador

 

Quando um jogador afasta

Com sua má criação

Toda a gente, quem agasta

É o jogo a que perde a mão:

Não tarda, não vai poder

Mais em jogo aparecer.

E tal é a conta devida

A quem dá conta da vida

 

 

296 – Vestir

 

Podes julgar que te afirmas

Na maneira de vestir

Quando, ao fim, o que confirmas

É não pertencer ao grupo

Onde vieste cair

E a que assim dás teu apupo.

 

Desprezas seus elementos.

Que espanta se, depois disto,

Homiziado, em tormentos,

Te vejo tornado um quisto

Que todos em tal lugar

Só tratam é de extirpar?

 

 

297 – Visão

 

O falhado tem visão

Pessimista, amargurada:

Todo o seu trabalho é vão

E todos mais, na empreitada,

 

Estúpidos, desonestos.

Ele estenderá, por regra,

A sombra sobre os mais lestos,

Contagiando os aprestos

Da perspectiva mais negra.

 

Desconfiando de si,

Sente que não fará nada

Ou nada bem.

O alibi

É que clama em frenesi

Do mais alto da bancada.

 

Proclamando a toda a gente,

Gritando a todos os lados,

Afinal cobre, indecente,

Com a marca dos falhados

A eficaz publicidade:

- Multiplica-lhe a verdade!

 

 

298 – Algarismos

 

Um tanto para a viagem,

Um tanto para aluguer,

São contas que hão-de sofrer

Os pais ao prever a imagem

Do que ao sonho custa a andar.

Para os filhos são prazeres

Que espreitam entre algarismos.

Entre as gerações o algar

Não o saltam os haveres,

Outro é o teor dos abismos.

 

 

299 – Perigoso

 

É o homem mais perigoso

O que dá sempre à mulher

A ilusão clara, tangível

De que nela mora o gozo,

Basta-lhe os olhos mover

Que devém irresistível.

 

Para ser dona do espelho

Que nele tem encantado

Dispõe-se ela a que pecado,

Despreza quanto conselho!

 

Corre a vida desvalida,

O sonho desiludido,

Quando ao fim é seduzida

Por quem creu ter seduzido!

 

 

300 - Lugar

 

Não é força nem riqueza

Que bastam para provar

Que uma nação tem beleza,

Que merece seu lugar.

 

Corpo de músculo rijo,

Ouro farto na carteira

Não bastam de esconderijo

À besta que os emparceira.

 

Tais predicados não bastam

A que um país de verdade

Honre as jóias que se engastam

No nome da Humanidade.

 

 

301 – Matéria

 

É o bocado de matéria

Que há num homem que à mulher

Imprevistamente fere-a

E que a resigna a qualquer

Incorrigível ideal

Que nele haverá também,

Para bem e para mal,

Que a terra a tremer mantém.

É o homem que agita o mundo

Que a mulher torna fecundo.

 

 

302 – Resistência

 

Cada impulso da vontade

Esbarra com resistência,

Sobre o mundo uma acção há-de

Malhar no muro da ausência.

 

Cabeça sempre a bater

Contra a grossura das portas,

São as convenções que houver,

Convictas leis que suportas,

 

Contradições de direitos,

De princípios, de interesses,

Indemonstrados preceitos

Que involuntário estremeces.

 

Um artigo de jornal

Vai-te fazer estacar

Hesitante no fanal

A que te importa apontar.

 

Um legista a tua garra

Irá fazer encolher,

Contra um professor esbarra

O que nisto acontecer.

 

Nunca podes avançar

Numa arrancada segura,

Terás sempre de ondear

Procurando a fechadura.

 

Porém, assim as correntes

Das ideias, sentimentos,

São aquilo que tu sentes,

Respondem a teus intentos.

 

Parecendo dirigi-los,

Já que esbracejas tão forte,

Afinal vais tu segui-los

Nas contracurvas da sorte.

 

Um ganho, porém, terás,

Contrariando o engano deste

Muro que deixas atrás:

- É que, sem querer, cresceste!

 

 

303 – Línguas

 

As línguas serão apenas

Instrumentos de saber

Como da lavoura as penas

Só buscam, no fim, comer.

 

Ai de quem for hortelão

E perca o tempo a lavrar,

Em vez de lavrar o chão,

As enxadas que levar.

 

Fica de língua bonita

Para expandir na parada

E depois esta é a desdita:

Não sabe nem come nada!

 

 

304 – Educadora

 

Querida minha, mulher,

Quando tanto em mim te adora,

Mais que mulher, sem saber

És a minha educadora.

 

Fechado na minha cela,

Hoje aspiro à santidade

Que em ti vejo tão singela,

Santa que és sem ter idade.

 

Com inquietação peneiro

Se meu pensar da pureza

É condigno do cimeiro

Pensar que de ti se preza.

 

Se em meu gosto não havia

Desconcertoque pudesse

Ferir a lei que em ti guia

Quanto em ti teu gosto tece.

 

Se a minha ideia da vida

Seria tão alta e séria

Quanto a tua me convida

A pressentir que é sidérea.

 

Será que me o coração

Não fraquejara demais

Para a altura da função

Daquele com que me atrais?

 

E tem sido em mim agora

Este esforço de subir

À perfeição que em ti mora

Sem jamais o conseguir.

 

De modo que escravamente

Tudo quanto em ti adoro

Me atrai à montanha ingente

Donde me chama teu coro

 

De música dos espaços.

A ele me juntaria

Imolando-te meus traços

Se deus puder ser um dia,

 

Se eu fora o raio de luz

Que disparas de teus olhos,

Que eterno em ti me seduz

A eterno saltar escolhos.

 

Deusa minha, saberás,

Como divina tu sabes,

Que será que fica atrás

No infinito onde me acabes.

 

Eu deixo-me conduzir,

Pequeno demais talvez

Para doméstico vir

Ser tua submissa rês.

 

Tenho, porém, fé na luz

Dos astros que me ilumina,

Vejo o céu a que conduz…

- Graças, amor, por tal sina!

 

 

305 – Opinião

 

Não existe uma obra humana,

Não há personalidade

Sobre que se não dimana

 

A opinião da verdade

Que no fundo nós ditamos

Da razão que nos invade.

 

E o que sabemos são ramos

Que em nós, escorregadios,

Perpassaram como gamos

 

A escaparem, fugidios.

E de tal nada se ditam

Com segurança os feitios,

 

As ideias se meditam,

Com a crença na inerrância

Em que em si sempre acreditam

 

Os que vivem da ignorância.

Mal é que a tal nos concitam

Tudo e todos, desde a infância.

 

 

306 – Satisfazer

 

Satisfazer um desejo

Não é meta indesejável.

Porém, a festa que ensejo

É no caminho que a vejo,

No que nele for viável

E não no ver satisfeito

O sonho a que presto preito.

…Na meta, a felicidade

Longe de novo se evade.

 

 

307 – Riqueza

 

Uma riqueza vulgar

Pode ser toda roubada.

A verdadeira, sem par,

Mora em alma encastoada:

Além de ser preciosa,

Tão nos íntimos se goza

Que se não pode roubar.

 

 

308 – Medida

 

Censurar ou resmungar

É a medida que não custa:

Se um pouco não resultar,

Dobramos, a ver se ajusta.

 

Quando é mudar de atitude

Que ao fim pudera atingir

Com uma nova virtude

O que se quer conseguir.

 

 

309 – Emprego

 

Leis de proteger emprego,

Quando o protegem demais,

Mais criam desassossego

Que de emprego dão sinais.

 

Ninguém quer correr o risco

Inerente à criação

De trabalho quando o visco

O prende àquela prisão.

 

Os ímpetos de arriscar

Ou são livres ou ninguém

Aos ímpetos dá lugar,

- Morre o mundo sem vintém.

 

 

310 – Causas

 

Causas da guerra segunda

Claras moram na primeira,

No Estado-nação que abunda

Em quantas guerras peneira.

 

E, de exórdios em exórdios,

O nosso recuo invade

Os mais ancestrais primórdios

Donde brota a Humanidade.

 

O Estado, da agricultura,

Da criação de animais

Pelos milénios se apura,

Destes ruma aonde vais.

 

A agricultura deveio

Do caçador, colector,

Eras e eras sem permeio,

Até o Homem ser senhor.

 

Sem rupturas nem desvios,

Nem medos que de vez tema,

- Onde avisto os atavios

Raiz do nosso problema?

 

 

311 – Parte

 

Vista uma pequena parte

Da vida pronta a morrer,

Cada qual dali se parte

Convencido de saber.

 

No efémero limitado

A um tempo fugaz e a um modo,

Quem pode ser creditado

De haver descoberto o todo?

 

Entretanto, eis a ilusão

Que nos enterra iludidos

Mais fundo e fundo no chão

Dos sonhos mais fementidos.

 

 

312 – Capaz

 

Será que serei capaz,

Se for urgente mudar,

De fazer o que se faz

Para não voltar atrás

Do antigo rumo ao lugar?

 

Ou antes as mãos sem vida

De antigos antepassados

Nos empurram na avenida

Para rumos sem saída

Por nós jamais controlados?

 

 

313 – Invento

 

Como Deus é invento humano

(Por isso é que há tantos deuses),

Seu mistério é parco arcano.

Bem profunda e com reveses

É a questão da natureza

Dum Homem que preso ao fio

De infundamentada reza

Se suspende no vazio

E, no vácuo, eternamente

Assim suspenso se mente:

- Como é que do escuro aposta

Que há-de um dia ter resposta?

 

 

314 – Ancestrais

 

Para nós não há registos

Que preservem a memória

Dos ancestrais que, sem vistos,

Fugaz viveram a glória.

 

Duma ou duas gerações

Para trás não ficou nada:

- A Humanidade, aos milhões,

Vive no tempo isolada.

 

 

315 – Humanos

 

Nós somos, nós, os humanos,

Um bebé recém-nascido,

Sem bilhete nem pedido,

Na soleira dos arcanos

 

Abandonado de vez.

Nada explica quem ele é,

Donde veio, quem lhe fez

Na vida perder o pé.

 

Órfãos somos, sem morada.

Bilhete de identidade

Onde encontrá-lo, se nada

Nos desvenda a Humanidade?

 

 

316 – Universo

 

Universo indiferente,

Universo sem sentido…

- Quem nos mente, quem nos mente

Neste medo, neste enfado,

Por detrás deste vagido

De quem se sente enganado,

De quem se sente traído?

 

O saber é-nos hostil:

Desamparados e sós

Ficamos por entre mil

Dos mais estranhos avós.

 

Nós que do rei do Universo

Nos quisemos descendentes,

Nosso pai vemos disperso

Das poeiras nas sementes,

Em nadas que foram dantes

Seres insignificantes

Tão minúsculos que tu

Nem os vês a olho nu.

 

Arvorámo-nos tão alto

Que mais de alto nos apanha

O abismo do imenso salto

Do nada que ao fim nos ganha.

 

 

317 – Planeta

 

Muito humildes pela origem,

Tornámo-nos dominantes

No planeta onde se exigem

Espertezas de gigantes.

 

Criança bem protegida

Mas criada em vida obscura,

Sou, pois, herói da aventura

Com que trepei a subida.

 

O perigo dos perigos

É confundir a vitória

(Escarmentando inimigos)

Da nação com final glória.

 

Ou dum povo, dum país,

Ou da minha geração,

Ou que o êxito feliz

Já me encubra a situação

 

A ponto de até nem ver

Quanto, em qualquer destas vias,

Definitivas colher

Só da morte as tropelias!

 

A escuridão do passado

Torna míope a visão

E é fácil perder o lado

Para onde os trilhos vão.

 

 

318 – Palco

 

Piso o palco mundial,

Sou de pronto eliminado,

Não resta nenhum sinal

Do raio um nada alumbrado.

 

Ontem de sémen a gota,

Amanhã sopro de pó,

Tão fugaz é minha nota

Que o que sou sê-lo-ei só.

 

Sou efémero zumbido,

Morto de mim mesmo à beira,

Floco de neve caído

No borralho da lareira.

 

À tempestade fugido

Pardal que cruza o salão,

Do lado inverso saído,

Por mim nem comensais dão.

 

E do que já se passou

E do que está para vir

Tão ignorante ao fim sou

Como se nem existir.

 

 

319 – Leme

 

Lembra-nos a evolução

Que Deus, se de facto existe,

Há muito largou de mão

O mundo que hoje subsiste.

 

Universo a funcionar

Com as leis da natureza,

Logo Deus cede o lugar

Da máquina à singeleza.

Com o poder delegado,

Não irá Deus intervir

Quer lhe implore ou não que, ao lado,

Me salve quando eu cair.

 

A mim próprio abandonado,

Muito longe deve estar

Esse Deus desperdiçado

Sabe Deus em que lugar!

 

Angústia e perturbação

A evolução activou.

O que pede o coração,

A evitar o que mais teme,

É que eu creia que aqui vou

Com alguém seguro ao leme.

 

Quando, no fundo, a verdade

É que nada, nada, nada

Nos substitui na jogada

Desta fatal soledade.

 

 

320 – Travão

 

Pedimos à evolução

Que chegue onde quer chegar,

Que de vez ponha travão

À crueldade sem par.

 

Porém, a vida não sabe

O que é que quer atingir,

Não tem um plano e não cabe

Do tempo em nenhum porvir.

 

Não visa ao fim nenhum fim,

Não tem mente onde manter

A meta a que diga sim

Nem justiça que fazer.

 

Esbanjadora, alheada

E cega pelo caminho

Desperdiça para nada

Tudo em total desalinho.

 

 

321 – Macacos

 

Prefiro que meus avós

Tenham vindo dos macacos

Que ser homem cuja voz

Teme a verdade e que após

A vende por dois patacos

Sob a máscara fingida

De que um monturo de cacos

É que é verdadeira vida.

 

 

322 – Parentes

 

Que todos somos parentes

Por comum ponto de origem

De nós fez os descendentes

De ancestrais que já não vigem.

 

Nenhuma forma de vida

Das que hoje aqui permanecem

Nos pode dar a medida

Dos avós que nos esquecem.

 

De antepassados remotos,

Por mais que primos nos façam,

Em nós não vemos, ignotos,

Os herdados comuns traços.

 

Vago parente ignorado,

Sem tal reconhecimento

Da vida caminho ao lado:

De meu lar qual o momento?

 

 

323 – Insecto

 

Jóia vistosa, este insecto

Com um desenho elegante,

A voltear indiscreto

Do sol na poalha impante,

 

Tem alguma consciência?

Ou, delicado robô,

Matéria orgânica só,

Autómato da ciência,

 

Rico em carbomo, equipado

Com sensores e programas,

Activadores, tablado

De rotinas, tudo em tramas

 

Pelo AND fabricadas,

Toda a maravilha apenas

São figuras enredadas

De reflexos às centenas?

 

 

324 – Principesco

 

Quando vejo o parentesco

De toda a vida na Terra,

Terei o dom principesco,

Alma que só a mim se aferra?

 

Tem uma alma o ser humano,

Os outros não a terão.

- De facto, a todos me irmano

Mas por trás digo que não.

 

 

325 – Mosca

 

Muitos acabam nervosos

Se os interrogamos acerca

Da consciência da mosca.

No entanto, falaciosos

São os juízos da perca

Nos quais a razão se enrosca.

 

Fica-nos a sensação

De que é parca a divisória

Genética-consciência:

Perde a razão toda a glória,

Que lhe é porosa a eminência,

 

Pois dacolá para aqui

E daqui para acolá

Corre quanto a mosca em si

De capaz fazer será.

 

 

326 – Milionésimo

 

Um milionésimo tem

Do cérebro que detenho.

Será que tal nada nem

De consciência tem de ganho?

 

Só por ser insecto vago

Lhe recuso a fantasia

Do cacho que, bago a bago,

À razão nos chegaria.

 

Se, depois da reflexão,

Insistir que ele é apenas

Um robô de mente em vão,

Como é que comigo as cenas

 

Seriam doutro jaez?

- A razão perco de vez!

 

 

327 – Dominância

 

Poucos são os que dominam

E muitos os dominados.

Como é que estes se eliminam

Tanto de nossos cuidados

 

Que apenas a dominância

Nos atrai e preocupa?

Ou é ânsia ou é ganância…

- Com pouco a vida se ocupa!

 

 

328 – Erva

 

Flor do campo, assim florescem

Meus dias, tal como a erva:

Perpassa o vento e fenecem,

Seu lugar jamais conhecem…

- E nada mais se conserva!

 

 

329 – Heroísmo

 

O acto de heroísmo humano,

Rotina pré-programada,

Ocorre sem qualquer plano,

Não é uma acção ponderada.

 

Para o herói é natural,

Não é escolha nem ciência:

Tem da genética o aval,

Nem passa na consciência.

 

 

330 – Especialização

 

Mal da especialização

É que, quando tudo muda,

O indivíduo, já não

E já não há quem lhe acuda.

 

Quem estiver adaptado

Ao seu habitat actual

Pode já não ter de lado

Com que ao porvir dê um aval.

 

Mas se gasta o tempo inteiro

A prevenir contingências

Pode já nem ser parceiro

Do presente nas urgências.

 

A natureza coloca

Sempre este dilema à vida:

No meio se encontra a soca

Que, regada, enflora a toca

Da entrada que nos convida.

 

Tudo, porém, se complica:

Nem genes nem organismos

Sabem lá que é que se aplica

Àquela ignota rubrica

Do futuro nos abismos!

 

 

331 – Pretensão

 

A pretensão de que apenas

Nós temos o dom mental

É de mentes tão pequenas

Que nem mentam o animal.

 

Se uma economia é de uso

Ao descobrir o encoberto,

Lermo-nos sós é um abuso

De quem crê mas não é esperto.

 

Muitíssimo mais provável

É que as vivências mentais

Sejam campo trabalhável,

Como em nós, nos animais.

 

Se houver grandes diferenças

Serão só na natureza

Ou nas complexas mantenças

De que a espécie em nós se preza.

 

O repúdio radical

Que reduz vivência a nada

Em qualquer vida animal

É ignorância condenada.

 

 

332 – Rodapés

 

A vida social dos chimpanzés

Tem faces claramente assustadoras

E, no entanto, são nossos rodapés

Que encontramos naqueles seus emboras:

Muitas associações e rapapés

Instintivos se criam a desoras

Que giram em redor da hierarquia,

De tudo quanto um homem aprecia,

 

Competitividade e jogos duros

Que chegam sangue humano a derramar,

Sexo de criminosos e de impuros…

Combinações de macho a dominar

Fêmeas submissas, súbditos seguros

Mas ardilosos, de jamais fiar,

Ávidas buscam o respeito hierárquico

Que a segurança induz contra o anárquico.

 

A troca de favores no presente

Com vista à lealdade no futuro,

Pactos de protecção, força latente,

Sexual exploração, sem mais apuro,

De qualquer fêmea adulta um uso assente,

Quanta similitude acentuada

Dum absoluto rei com tal parada,

 

Com ditadores ou patrões gigantes,

Burocratas de todas as nações,

Com os bandos, quadrilhas de hoje e de antes,

Porventura com grandes figurões

E até mesmo com vidas mais gritantes

De históricas figuras consagradas

Que por nossos maiores são tomadas!

 

Tais benesses e horrores quotidianos,

Por muito que os creiamos nossos traços,

Nos chimpanzés há vários milhões de anos

Marcaram igualmente animais laços.

Da vileza e grandeza os desenganos

Na genética ocupam mais espaços

Que quantos a soberba persuade

Que em nós ocupa, exígua, a liberdade.

 

 

333 – Altaneiros

 

Como é tão conveniente,

Como tanto reconforta

Que a vida na Terra assente

Na mais clara hierarquia

Em que a dominância exorta

A termos nós dela a guia!

 

Grande cadeia do ser

- E os alfas seremos nós!

Se parentesco há-de haver,

No cume, altaneiros, sós,

Eis os homens. E a ideia

De formar esta cadeia

Nem sequer nos pertenceu:

Há o Alfa maior do que eu

Que ma impôs, imperativa,

- Nem terei alternativa…

 

Só de espécies de primatas

Sabemos dumas duzentas

E talvez, lá pelas matas,

Se escondam as mais cinzentas.

 

Espécies são quase tantas

Como na Terra há nações,

Cada qual com suas plantas,

Costumes e tradições,

 

Tudo tal qual como nós

E também tão diferente

Como umas doutras após

Várias são quando se atente.

Eis porque um tremor de terra

Não será tão temeroso

Como isto que mais aterra:

- Ser vão o cume que gozo.

 

 

334 – Diferença

 

A diferença absoluta

Em lugar das relativas

Entre nós e os animais

Não a encontra quem perscruta.

Todas as espécies vivas

Somos nós, menos ou mais.

 

A diferença específica

Simplesmente não existe,

Nenhuma criação típica

Que aos homens só pertencera

A uma análise resiste,

Doutra espécie está na esfera.

 

Resta apenas admitir

Que temos a propensão

Dum grau maior ou menor

De nas heranças fruir

Que comuns a todos são:

Entendo-me então melhor.

 

Poder-me-ei orgulhar,

Ante uma aptidão primata,

Do intenso desabrochar

Com que em mim se ela remata.

 

Não posso ir mais adiante

Sem de mim ficar distante.

 

 

335 – Luxo

 

Talvez não sejamos mais

Do que modelos de luxo

De símios que os ancestrais

Desviaram, num repuxo,

 

Do imenso lago da vida.

Só diferenças de grau,

Género igual que se olvida

No enfeite do mesmo pau.

 

É fundo o constrangimento

Em que a evolução humana

Amordaça o sentimento,

Tão de rastos nos aplana!

 

 

336 – Criminoso

 

“Sabem, eu sou mesmo assim”,

- Alegará o criminoso –

“Há o animal dentro em mim

E então só me dará gozo

(Quando melhor agir tento,

Cumprir a lei, cidadão)

O crime que inulto invento,

Praticar a transgressão.

 

É da natureza humana,

Não sou dono de meus actos,

A testosterona emana,

Obriga até os mais pacatos.”

 

Vemos que estas teorias,

Se amplamente divulgadas,

Esfiaparão os dias,

De sociais vestes rasgadas.

 

O melhor é reprimir

Estes nossos animais,

Pensa quem não quiser ir

Se atascar nos lodaçais.

 

Os que acolhem e discutem

Com tais transviados são

Os que, surdos, nos escutem

O incêndio que atearão:

 

Quando o que todos tememos

É o mal que, lá bem no fundo,

Todos por trás escondemos

De a ferros pôr todo o mundo.

 

Se calhar seremos todos

Crocodilos insensíveis:

Por trás de nossos bons modos,

Monstros de matar horríveis.

 

Quando o nosso poder chega

À destruição global,

Nada anima se o carrega

Aquele rosto do mal.

 

 

337 – Evoluído

 

Os nossos antepassados,

Ancestrais da evolução,

Da violência nos pecados

Sempre lograram ter mão.

É o Homem que, evoluído,

Tem vindo a perder sentido.

 

 

338 – Extinção

 

Das espécies um milhão

Nas décadas derradeiras

Nós levámos à extinção.

Genéticas bem certeiras

Que resistem milhões de anos

Não resistem aos humanos.

 

Somos desleais herdeiros

A desbaratar a herança

Da família em que, parceiros,

O espólio comum nos lança.

- Quão parcas contemplações

Com vindoiras gerações!

 

 

339 – Alheio

 

O Universo vive alheio

Às ambições e destino

De que o Homem vive cheio.

A ciência tem o tino

 

De nos vir a despertar

Para a nossa condição.

Teremos de dar lugar

À natural selecção,

 

Quer dizer, tomar a cargo

A própria preservação,

Sem de tal nos pôr ao largo,

Sob pena duma extinção.

 

 

340 – Maturidade

 

Mostramos maturidade

Quando olhamos nossos pais

Como foram na verdade,

Sem euforias nem ais,

Sem mitos nem passar culpas

Daquilo que, injustamente,

Não passa de más desculpas

Das falhas que a gente sente.

 

 

341 – Fadas

 

“As fadas devem ter vindo!”

- E o menino não dormia

A sonhar com a magia.

Depois a idade foi vindo…

 

“Pai,não consigo dormir:

Que é que quer dizer aquilo?”

- Começa aqui o porvir:

Revelo breve o sigilo.

 

Sorridente e descansado

Finalmente adormecia.

- Então é que eu, encantado,

Acredito na magia.

 

 

342 – Inexplicável

 

Desde sempre o inexplicável

Tem explicação em nós:

Terrestres, sabemos tudo!

Cada dogmático amável

Ata ao já sabido os nós

E não vê que isto é um entrudo.

 

Não hesita em recorrer

Ao saber já conhecido

Para, absurdo, então obter

Que o novo seja abolido.

 

 

343 – Liberdade

 

Liberdade, liberdade

É viver sem sujeições?

Então quem é que me invade

De vez a privacidade

Violando-me os serões?

 

A liberdade consiste

Em fazer tudo o que não

Prejudique outrem que existe

E que de igual modo insiste

Em ser como os demais são.

 

É que frequentemente

Liberdade significa

A luta de certa gente

Contra quem lhe não consente

Quanto a nós nos sacrifica.

 

 

344 – Muralhas

 

Com setas de chuva o vento

Se arremessa das muralhas

De nuvens sobre o elemento

Das medievas batalhas.

 

Hoje em dia não seria

Tal o moderno sinal:

A tormenta enxamearia

Mil abelhas de cristal

 

Que a chuva cinzenta inscreve,

De atómica teia armada,

Sobre a poeirada leve,

Na terra ao raio abrasada.

 

 

345 – Cinquenta

 

Com anos mais de cinquenta,

Desagradado e agradado,

Ganho e perco o que se inventa,

Efeitos de todo o lado:

A repressão do fascismo,

Um ar de revolução,

Os desastres deste abismo

Da nacionalização…

 

Racionei-me com medida,

Esbanjei com contenção,

Sofri calotes na vida,

Paguei o devido e o não.

 

Falam bem e mal de mim,

Fui maltratado, enganado,

E nem sei como aqui vim,

De tão traído e burlado…

 

Se continuo a correr

Sem já de vez desistir

É só mesmo a tentar ver

O que acontece a seguir.

 

 

346 – Grácil

 

A ciência se encadeia

Sem fim nos elos causais.

A fé, crente, foge à teia,

Põe logo os pontos finais.

 

A ciência, aos bocadinhos

Rasga brechas para a luz.

A fé, crendo, em seus cadinhos

À crença o todo reduz.

 

Daqui deriva mais fácil

Acreditar que saber.

O problema é que é só grácil

A vida enquanto a souber.

 

Um acto de fé dum homem

Protege o resto da vida,

Na ciência se nos somem

Anos e anos de seguida.

 

Eis porque tantos são crentes,

Apostando na ignorância,

Sem alcançarem, dementes,

Sonho algum de nossa infância.

 

 

347 – Calor

 

Do cientista ao olhar frio

Escapa o calor do amor,

Por isso na fé confio

Para encontrar-lhe o sabor.

 

Quando, no tempo perdido,

Do amor só nos resta um acto,

Perco ao que vivo o sentido

Se o reduzo externo ao facto.

É que uma experiência humana

Tem sempre um lado de dentro

Donde cada qual emana

E ali somente eu é que entro.

 

Não há nenhuma ciência

Que ultrapasse esta fronteira:

Não existe experiência

Que passe um sonho à peneira.

 

 

348 – Rituais

 

Os rituais do passado

Nunca a civilização

Salvam da destruição.

Não pode ser aguardado

 

Que o retorno, em nossa idade,

A um modelo passadista

Fará que o mundo resista,

Salve agora a Humanidade.

 

 

349 – Corrente

 

Nascemos para morrer,

Nesta corrente incessante.

Ninguém capaz de a deter,

Seguimos sempre adiante:

 

Todos temos a viver

Uns anos de vida plena

E abandona-se a correr

Esta experiência terrena.

 

Porém, ninguém sabe ao certo

(Vejo apenas o visível)

O que além nos fica perto,

Nem que fronteira é credível.

 

 

350 – Traumatizados

 

Traumatizados na infância

Ao descobrir que não somos

Nós o centro do Universo,

Satisfazemos com ânsia

Dos pais o mundo de gnomos,

Fica o nosso ali disperso.

 

Podemos recuperar

Um pouco o que foi perdido

Coroando a Terra-mãe:

E o Homem, ao escapar,

Esforçado, assim, do olvido,

O cume do ser mantém.

 

É uma atitude atraente

Em meio às religiões

Que consideram o Homem

Nado particularmente

Com cuidados e atenções

Que a Deus o tempo consomem.

 

Séculos foram precisos

E brutais carnificinas

E prisões em demasia,

Até do acerto os avisos

Das sangrentas oficinas

Saltarem à luz do dia.

 

Sabemos hoje que somos

Estes frágeis habitantes

Dum medíocre planeta

Que, sem mais porquês nem comos,

Corre em órbitas distantes

Dum Sol mesmo de opereta,

 

Do centro a enorme distância

Duma Galáxia que é média,

Ela mesma incorporada

Noutraas médias, sem mais ânsia

Do que andar todas à rédea

A girar no infindo nada.

 

O nosso local ambíguo

De habitação no Universo

Não tem absolutamente

Nada de incomum: exíguo,

Não há orgulho no reverso

Deste pó que nos consente.

 

Os solitários confins

Do espaço em que nós vivemos

Apenas podem terror

Provocar a quem seus fins

Vê perdidos nos extremos

Do Universo no negror.

 

Afinal somos poeira

Num Cosmos que nunca sente

Nem planifica, nem pensa.

O assombro é a nossa maneira

De o tamanho olhar demente

Desta frigidez imensa.

 

 

351 – Contracção

 

No Universo em contracção

O tempo se inverteria,

Filme correndo ao contrário,

E dos sepulcros então

Cada morto se ergueria

Até se acabar no ovário.

 

Se esta imagem dos humanos

Nos é já perturbadora,

O que mais vai perturbar

Os que vivam em tais anos

É o que vivemos agora:

Viver é um jogo de azar!

 

 

352 – Magnetismo

 

Qual a força ou energia,

O magnetismo que leva

Repentinamente, um dia,

A paixão a abrir a treva?

Todos nós somos os filhos

Da força paranormal

Que ao coração abre os trilhos

E, depois, nem um sinal!

 

E a seguir, envergonhados,

Recusamos-lhe a existência:

Factos psi são os estrados

De charlatões em falência

 

E a parapsicologia

É a corrente que à vontade

Só se liga por magia…

- E ninguém nos persuade!

 

 

353 – Preconceito

 

O problema da teoria

É prender ao preconceito

Com que a si própria se urdia

Os factos todos a eito:

- E quanto ali não couber

Nunca existiu, não tem ser!

 

 

354 – Cérebro

 

O cérebro é um porteiro

Que só admite ao consciente

Um interesse primeiro,

Tudo o mais mantém ausente.

 

Multidões de percepções

Preparadas para entrar

Entram nas ocasiões

Em que ele sai do lugar.

 

São actos de contrabando

Quando ele mal funciona:

A sonhar, em transe, é quando

Tudo o mais nos vem à tona.

 

Ninguém sabe decidir

Se isto é passado ou porvir.

 

 

355 – Oculta

 

Por que é que a ciência oculta

Se oculta tão cuidadosa?

É que ao vidente, insepulta,

Dá uma força temerosa

Que pode usar por igual

Para o bem e para o mal.

Importa ter garantia

De que às trevas vence o dia.

Enquanto ela não houver,

Convém de nada saber.

 

 

356 – Invisível

 

Visível revelação

Duma razão invisível

- É o traço da divisão

Da ciência perecível

Que teremos hoje à mão,

Perante a crença falível,

De outrora em ocultação.

Hoje creio no exequível

Que o for em cada estação.

- Mas a fé mora, imortal,

Sempre além deste sinal.

 

 

357 – Frustrados

 

Os indivíduos frustrados

Gostarão de destruir

Na vida todos os dados

Que não podem possuir.

 

Os felizes, ao contrário,

Preferem ver em redor

Um mundo feliz e vário

A rir de luz e calor.

 

 

358 – Rol

 

Nenhuma divina graça

Nos leva a acrescer o rol:

Nada de novo se passa

Por sob a rosa do sol.

 

E o que à vida nos aferra

É, porém, este contraste:

Muito mais coisas na terra

Há do que jamais sonhaste.

 

 

359 – Adiante

 

Um homem com um passado

Obscuro, insignificante,

Como vai ser adorado

Pelos milénios adiante?

 

Como diz a profecia

Quando se reporta a ele,

Nem ele mesmo sabia

Qual seria o seu papel.

 

E então o que lhe fizeram

Depois que a morte o tomou,

As guerras que aconteceram,

Riqueza que se gerou?

 

Como é que ao fim destes anos

Ainda impõe sua marca

Da cultura nos arcanos

Sem se ver o fundo à arca?

 

 

360 – Mentiras

 

As mentiras são iguais

E se alguém engolir uma

Seguem-se logo outras mais,

Engasga a vida na ruma.

 

E se a mentira engrandece

Quem pequeno atrás se esconde,

Do que é bom não se entretece,

Perde ali seu lugar onde.

 

Se alguém, sendo um sapateiro,

Num raio mentir voar,

Mente já que o céu é herdeiro…

- Quem o vai recuperar?

 

 

361 – Fantasmas

 

Os fantasmas são as fracas

Sombras da realidade?

O que aqui vive e que atacas

Mais que nós é de verdade.

 

Que vivemos e que pomos

Por dentro de nossas peles?

Fantasmas nós é que somos

Da realidade deles!

 

Pense lá quanto pensar,

Não é por pensar quenquer

Fantasmas, deuses a par,

Que vivem ou vão morrer!

 

 

362 – Ocasiões

 

Em certas ocasiões,

Pessoas, terras e montes

São o mesmo, onde dispões

Do amor pelos horizontes.

 

E o amor disso é tão forte,

Reveste tanta certeza

Que dói fundo como a morte,

Magoa como a tristeza.

 

 

363 – Fala

 

Muito mal é mal da fala:

Fala tanto que ao falar

No fogão a lenha estala,

Só cinza fica em lugar.

 

O que nisto é deprimente

É que isto é cinza de gente.

 

 

364 – Metralha

 

Um povo é sempre maior

Que a ventura da metralha,

Não se lhe esgota o fulgor

Na espingarda que lhe calha.

 

A majestade que tem

É de instância menos densa

Que o eleva mais além:

- É a grandeza do que pensa.

 

 

365 – Caduco

 

A teima do que é caduco

Em querer perpetuar-se

É o canto esconso do cuco,

Porém, da vista a esgueirar-se.

 

Obstinação dum perfume

Rançoso a prender cabelos,

São peixes podres no lume

A exigir quem vá comê-los.

 

Como se a roupa infantil

Quisera vestir um homem,

É um cadáver que o perfil

Na tumba enterra aos que o tomem.

 

 

366 – Rosas

 

Há uma quadra em que as donzelas

Desabrocham repentinas

E de improviso são rosas.

Ontem só crianças belas,

Hoje lêem-nos a sina:

- Tornaram-se perigosas!

 

 

367 – Grito

 

Quem procura o absoluto

Tem o céu todo nos olhos.

Mesmo no fim e de luto

Tem por baixo dos sobrolhos,

Na forma ao menos dum grito,

Ainda um clarão do infinito!

 
 
368 – Cair

 

Quem chamar usurpação

Ao que é o nosso direito

Vai julgar que é concessão

O que for nossa conquista.

Não lhe vai prestar mais preito,

Com tanta falta de vista:

Por muito que nos resista

Vai cair do trono ao chão!

 

 

369 – Erro

 

Os que um erro fascinou

Erram mas de boa fé.

Um cego ninguém culpou

De não ver que tem ao pé.

 

Nas colisões temerosas

A culpa da tempestade

Deve-se à fatalidade,

Que são por demais brumosas

As vistas da Humanidade.

 

 

370 – Acontecimentos

 

Deus mostra sua vontade

Na voz do acontecimento,

Texto obscuro em que a verdade

Se esconde atrás do tormento

 

Duma língua misteriosa.

Bem a tentam traduzir,

Mas fica pejada a prosa

De lacunas sem porvir.

 

Ao fim, quando alguém consegue,

Após infinda labuta,

O véu do pomar erguer,

Tanto partido o persegue

Em controversa disputa

Que nem talhada sequer

Provou da escondida fruta.

 

 

371 – Desiguais

 

Casamentos desiguais

Mui raro merecem palmas.

Todavia, os que o são mais

São os desiguais nas almas.

 

Quantas vezes na pobreza

Mora um mancebo sublime

E a alma gémea, na riqueza

Que, afinal, justa, o redime!

 

E quantas mais, ao invés,

Uniões ricas se ajustam

E a máscara cai aos pés:

- São pés de bode o que custam!

 

 

372 – Ideia

 

Nós, que cremos numa ideia,

Que podemos recear?

Como o rio o sonho ondeia

E não pode recuar.

 

Quem gritar não ao progresso

O futuro não condena,

Mas condena-se ao regresso,

Contamina-se em gangrena.

 

No contágio do passado,

O amanhã jamais prover

É um caminho caminhado

Como um modo de morrer.

 

 

373 – Miséria

 

A miséria traz consigo

Atrás dela, por arrasto,

A solidão como abrigo

E seu derradeiro pasto.

 

A miséria da criança,

Apesar dela, também

Ao menos ainda alcança

A ternura duma mãe.

 

A miséria dum mancebo

Tem por mais comum sequela

Atrair como um placebo

Um amor duma donzela.

 

Mas a miséria do velho

Não interessa a ninguém:

Do outro lado do espelho

É só parede o que tem.

 

 

374 – Montão

 

Uma barricada é feita

De pedras, de madeirais,

De ferros, coisas menores…

Muito maior é a colheita

Do montão que é de ideais

E do montão que é de dores.

 

 

375 – Depressa

 

Ir o povo de surpresa

Mais depressa do que quer,

Ninguém logra tal empresa:

Não cede se não quiser.

 

A si próprios abandona

Insurrectos, insurgentes:

São empestados à tona

De desvairadas correntes.

 

A casa é um despenhadeiro,

Toda a porta, uma repulsa,

A fachada, um muro inteiro

E a todos eles expulsa.

 

 

376 – Utopia

 

A utopia presa aos factos

Vai devir insurreição:

Da filosofia os pactos

Traem-se de armas na mão.

 

Utopia impaciente

E que então devém revolta

É cedo demais presente,

É uma catástrofe à solta.

 

Renunciar ao triunfo,

Sem queixas e a desculpar-se,

Dela é o magnânimo trunfo

Mas também final disfarce.

 

 

377 – Abismo

 

Quem viver habituado

Ao caos das profunduras,

Aos crimes, às imposturas,

Todo um mundo negregado,

Vai recuar assustado

Ante o abismo das alturas:

A assombrosa aparição,

Em troca de dar-lhe um lar,

Revela-lhe o que é a prisão.

 

 

378 – Lareira

 

Um homem tem o seu deus

E a religião que tiver.

Porém, a melhor maneira

De adorar o que há nos céus

É olhar bem para a lareira:

- É adorar sua mulher!

 

 

379 – Pelourinho

 

Por que não me calo eu

Quando ninguém me persegue,

Me denunciou nem prendeu?

Donde a luz vem que me cegue,

 

Por que mão, se é de ninguiém?

Sou eu mesmo que embaraço

A via que me retém,

Me arrasto e me prendo ao laço.

 

Por dentro me agarro a mim,

No pelourinho executo

O réu que me torno assim.

Se preso sou meu produto,

 

Escusarei de tentar

Fugir do que me persegue,

Procurar outro lugar:

Ninguém, ninguém o consegue!

 

 

380 – Caraça

 

Para o fugido à justiça

A caraça não mascara

Nem as teias desenliça

A quem antes enredara.

 

A máscara ao perigo

Oferece um abrigo.

 

Um nome falso é um engano,

Não tanto da falsidade

Que ao olhar estende o pano

Que esconde uma identidade,

 

O nome falso alcança

Na fuga a segurança.

 

Condenado que o rejeita

Ou é falho de ciência

Ou é já doutra colheita:

- Pôs a mão na consciência.

 

 

381 – Terrível

 

Terrível felicidade

A aprisionar-nos no gozo!

Alcançado o falso fim

Da vida que nos invade,

A ventura, o venturoso

Logo esquece, no confim,

O verdadeiro a atender,

De que abandona a procura:

O de cumprir o dever

Para garantir ventura.

 

 

382 – Contrários

 

Não logramos caminhar

Em dois sentidos contrários,

Mas da vida andar a par

É ter seus itinerários.

 

O que ela tem de agradável

É levar-nos ao destino

Por qualquer rumo viável

Com que ao calhar eu atino.

 

Arte e ciência conduzem,

Por caminhos diferentes,

Às verdades que seduzem

Os caminheiros ausentes.

 

O que mais nos interessa

Vai ser, por fim, a viagem:

O caminho é que atravessa

Os dias numa romagem.

 

Torna-os entretenimento

E as noites são de prazer

Ao relembrar o momento

Da luz sempre a alvorecer.

 

Toda a meta é sempre um sonho

Sempre além, irremediável

E aquilo que me proponho

É só meta aproximável.

 

 

383 – Limite

 

Uma família feliz

Não é uma democracia

Em que toda a gente diz

E após vence a maioria,

Nem dispõem as crianças

De liberdade total,

Sem que o limite das franças

Se avalie do que vale.

Têm os pais autoridade

Que exercem benignamente,

Conta o filho a identidade

De tudo aquilo que sente

E, no fim, a decisão

Serão sempre os pais que a dão.

Sente-se bem a criança

Por entre os baldões em que anda,

Ao sentir a segurança

De saber quem é que manda.

 

 

384 – Escolhas

 

Todos fizemos escolhas,

Mesmo escolhas infelizes.

Os pais são tanto aprendizes

Que os filhos às vezes olhas

Transformados em juízes.

Mas revê-se a decisão,

Vai-se em via diferente,

Fica encerrada a questão.

 

Esgotou-se na família

O motivo da quezília,

- Eis como é um lar coerente.

 

 

385 – Regras

 

Quando um casal muito triste

Confessa seguir as regras

E o sucesso não existe,

Diz-lhe como a regra integras.

 

É que um mapa jamais é

O chão a inventariar,

Muro que faz fincapé,

Curva fora do lugar…

 

As surpresas, os buracos,

Os desvios que há na estrada,

Os tufões porão em cacos

Qualquer regra enunciada.

 

Forte é aquele que souber

Que as curvas que houver na rua

Não se podem antever:

Só quem voar sobe à Lua!

 

 

386 – Melodia

 

Quem me dera a melodia

Da mulher como convém

E aquela aurora do dia

Que faz dela minha mãe!

 

Parabéns em dia de anos

Poucos são e são de menos,

Pois cada dia, em teus planos,

Grandes fez de nós, pequenos.

 

Tamanhos marido e filhos

Tanto nos engrandeceste

Que nos atas em atilhos

Com malhas de azul celeste.

 

Música de anos a fio,

Eis a paz que comemora

O que o lar tem de atavio:

O quanto a gente te adora!

 

 

387 – Alvor

 

Há melodias heróicas,

Outras tristes como o fado.

Não cantam gestas estóicas

De quem vive lado a lado.

 

Parabéns pela alegria

Que, no esforço repartido,

Nos repartes cada dia

Em tanto gesto sumido.

 

Herói nenhum é um herói,

Pois um herói de verdade

É quem hoje e sempre foi

Chave de felicidade.

 

A festa de anos é, pois,

Quando o alvor foi cada dia,

A festa de muitos sóis:

- Hoje e aqui tu tens magia!

 

 

388 – Acumulas

 

Simulas o que não és

Se te gabas e não fazes.

Dissimulas, ao invés,

Se do que és não te comprazes.

 

Se a virtude dissimulas,

Tal virtude não ilude,

Com a modéstia a acumulas,

Das virtudes é a virtude.

 

 

389 – Demora

 

É o amor meu inimigo,

Desejo o que não desejo,

Temo o que nele prossigo,

Que ao fim não veja o que vejo.

E, assim lhe adiando a hora,

É meu gozo o da demora.

 

 

390 – Mentado

 

É um amor amor mentado

Quando o corpo deseja

E o desejo é desprezado.

Sem corpo que se veja,

Incapaz de desejar,

Um amor não tem lugar.