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o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
287 – Porém, mal incarnada, a fantasia
Porém, mal incarnada, a fantasia,
Sentindo da vertigem o pavor,
Logo de asas se onera, com suor
De quem na queda quer ter garantia.
Tanto o estupor
Principia,
Em nós próprios, cada dia,
A se nos contrapor.
Será por esta inata covardia
Que nunca atinjo de vez o oriente
À minha frente?
Tanto sol, tanto sol,
E eu eternamente preso apenas
Às melenas
Do arrebol!
288 – Acuso |
|
A felicidade acuso, |
Mas não pende do que falta: |
Com as faltas não crescemos. |
A cotação baixa ou alta |
Vem do bom ou do mau uso |
Que fizemos do que temos. |
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289 – Chuva |
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Como a chuva abre buracos |
Nas pedras por persistência, |
Não por força dos impactos, |
Usa a tua paciência |
A bater, aldraba a aldraba, |
Até que uma porta se abra. |
|
O preço teu de vencer |
É o de o Homem vir a ser! |
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290 – Pensar |
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Não te ponhas a pensar |
No trabalho que vais ter, |
Que lhe encontras no lugar |
Uma montanha qualquer |
E nem mesmo um alpinista |
Logrará vencer-lhe a crista. |
|
É preciso olhar em frente, |
Se pretendes atingir |
As fronteiras do porvir, |
Ter a meta em ti presente. |
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Sorte de principiante |
Raro te trará vitória, |
Só o persistir te garante |
O piso firme da glória. |
|
Um obstáculo de lado |
É um a menos no caminho |
Que trepo pelo traçado |
Donde ao sonho me avizinho. |
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291 – Tristezas |
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Há tantas tristezas tristes |
E afinal não o são tanto: |
Nas tristezas não existes, |
São químicas reacções |
O que produz o teu pranto, |
Jamais são tuas razões. |
|
Por mais que perca em beleza |
É só química a tristeza! |
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292 – Perdão |
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O perdão é curativo |
Do lado de quem perdoa: |
De novo tornará vivo |
Um cadáver que anda à toa. |
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Porém, não muda o sentido |
Se o perdão ao perdoado |
O não muda, arrependido |
Do mal que houvera tramado. |
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O castigo é o contrapeso |
Que, nos pratos da justiça, |
Ao perverso não repeso, |
Pelo mal pagando, enguiça. |
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293 - Rudes |
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Os falhados serão rudes |
Porque nas falhas tropeçam? |
Quando tal crês, bem te iludes |
Nos porquês que as falhas meçam. |
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É que a rudeza é que talha, |
Quando aparece atrasado, |
Quando é mal agradecido, |
Os tombos de toda a falha |
Em que tropeça o falhado |
De si nunca arrependido. |
|
Quem jamais pede desculpa |
Por um erro cometido |
Tem dos fracassos a culpa, |
Não será reconvertido. |
|
Não, não aplaudas a peça, |
Não lances para os falhanços |
A culpa em que ele tropeça, |
- Que tropeça em seus maus lanços. |
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294 – Convidado |
|
Quando é que o meu convidado |
Se vai queixar da comida? |
Queixa-se quando é um falhado: |
Falha é mal agradecida. |
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Quando à mesa um vencedor |
Sentar, fica satisfeito, |
Em tudo verá calor, |
Agradece-me a preceito. |
|
Foi neste estar diferente |
Que, de bichos, demos gente. |
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295 – Jogador |
|
Quando um jogador afasta |
Com sua má criação |
Toda a gente, quem agasta |
É o jogo a que perde a mão: |
Não tarda, não vai poder |
Mais em jogo aparecer. |
E tal é a conta devida |
A quem dá conta da vida |
|
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296 – Vestir |
|
Podes julgar que te afirmas |
Na maneira de vestir |
Quando, ao fim, o que confirmas |
É não pertencer ao grupo |
Onde vieste cair |
E a que assim dás teu apupo. |
|
Desprezas seus elementos. |
Que espanta se, depois disto, |
Homiziado, em tormentos, |
Te vejo tornado um quisto |
Que todos em tal lugar |
Só tratam é de extirpar? |
|
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297 – Visão |
|
O falhado tem visão |
Pessimista, amargurada: |
Todo o seu trabalho é vão |
E todos mais, na empreitada, |
|
Estúpidos, desonestos. |
Ele estenderá, por regra, |
A sombra sobre os mais lestos, |
Contagiando os aprestos |
Da perspectiva mais negra. |
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Desconfiando de si, |
Sente que não fará nada |
Ou nada bem. |
O alibi |
É que clama em frenesi |
Do mais alto da bancada. |
|
Proclamando a toda a gente, |
Gritando a todos os lados, |
Afinal cobre, indecente, |
Com a marca dos falhados |
A eficaz publicidade: |
- Multiplica-lhe a verdade! |
|
|
298 – Algarismos |
|
Um tanto para a viagem, |
Um tanto para aluguer, |
São contas que hão-de sofrer |
Os pais ao prever a imagem |
Do que ao sonho custa a andar. |
Para os filhos são prazeres |
Que espreitam entre algarismos. |
Entre as gerações o algar |
Não o saltam os haveres, |
Outro é o teor dos abismos. |
|
|
299 – Perigoso |
|
É o homem mais perigoso |
O que dá sempre à mulher |
A ilusão clara, tangível |
De que nela mora o gozo, |
Basta-lhe os olhos mover |
Que devém irresistível. |
|
Para ser dona do espelho |
Que nele tem encantado |
Dispõe-se ela a que pecado, |
Despreza quanto conselho! |
|
Corre a vida desvalida, |
O sonho desiludido, |
Quando ao fim é seduzida |
Por quem creu ter seduzido! |
|
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300 - Lugar |
|
Não é força nem riqueza |
Que bastam para provar |
Que uma nação tem beleza, |
Que merece seu lugar. |
|
Corpo de músculo rijo, |
Ouro farto na carteira |
Não bastam de esconderijo |
À besta que os emparceira. |
|
Tais predicados não bastam |
A que um país de verdade |
Honre as jóias que se engastam |
No nome da Humanidade. |
|
|
301 – Matéria |
|
É o bocado de matéria |
Que há num homem que à mulher |
Imprevistamente fere-a |
E que a resigna a qualquer |
Incorrigível ideal |
Que nele haverá também, |
Para bem e para mal, |
Que a terra a tremer mantém. |
É o homem que agita o mundo |
Que a mulher torna fecundo. |
|
|
302 – Resistência |
|
Cada impulso da vontade |
Esbarra com resistência, |
Sobre o mundo uma acção há-de |
Malhar no muro da ausência. |
|
Cabeça sempre a bater |
Contra a grossura das portas, |
São as convenções que houver, |
Convictas leis que suportas, |
|
Contradições de direitos, |
De princípios, de interesses, |
Indemonstrados preceitos |
Que involuntário estremeces. |
|
Um artigo de jornal |
Vai-te fazer estacar |
Hesitante no fanal |
A que te importa apontar. |
|
Um legista a tua garra |
Irá fazer encolher, |
Contra um professor esbarra |
O que nisto acontecer. |
|
Nunca podes avançar |
Numa arrancada segura, |
Terás sempre de ondear |
Procurando a fechadura. |
|
Porém, assim as correntes |
Das ideias, sentimentos, |
São aquilo que tu sentes, |
Respondem a teus intentos. |
|
Parecendo dirigi-los, |
Já que esbracejas tão forte, |
Afinal vais tu segui-los |
Nas contracurvas da sorte. |
|
Um ganho, porém, terás, |
Contrariando o engano deste |
Muro que deixas atrás: |
- É que, sem querer, cresceste! |
|
|
303 – Línguas |
|
As línguas serão apenas |
Instrumentos de saber |
Como da lavoura as penas |
Só buscam, no fim, comer. |
|
Ai de quem for hortelão |
E perca o tempo a lavrar, |
Em vez de lavrar o chão, |
As enxadas que levar. |
|
Fica de língua bonita |
Para expandir na parada |
E depois esta é a desdita: |
Não sabe nem come nada! |
|
|
304 – Educadora |
|
Querida minha, mulher, |
Quando tanto em mim te adora, |
Mais que mulher, sem saber |
És a minha educadora. |
|
Fechado na minha cela, |
Hoje aspiro à santidade |
Que em ti vejo tão singela, |
Santa que és sem ter idade. |
|
Com inquietação peneiro |
Se meu pensar da pureza |
É condigno do cimeiro |
Pensar que de ti se preza. |
|
Se em meu gosto não havia |
Desconcertoque pudesse |
Ferir a lei que em ti guia |
Quanto em ti teu gosto tece. |
|
Se a minha ideia da vida |
Seria tão alta e séria |
Quanto a tua me convida |
A pressentir que é sidérea. |
|
Será que me o coração |
Não fraquejara demais |
Para a altura da função |
Daquele com que me atrais? |
|
E tem sido em mim agora |
Este esforço de subir |
À perfeição que em ti mora |
Sem jamais o conseguir. |
|
De modo que escravamente |
Tudo quanto em ti adoro |
Me atrai à montanha ingente |
Donde me chama teu coro |
|
De música dos espaços. |
A ele me juntaria |
Imolando-te meus traços |
Se deus puder ser um dia, |
|
Se eu fora o raio de luz |
Que disparas de teus olhos, |
Que eterno em ti me seduz |
A eterno saltar escolhos. |
|
Deusa minha, saberás, |
Como divina tu sabes, |
Que será que fica atrás |
No infinito onde me acabes. |
|
Eu deixo-me conduzir, |
Pequeno demais talvez |
Para doméstico vir |
Ser tua submissa rês. |
|
Tenho, porém, fé na luz |
Dos astros que me ilumina, |
Vejo o céu a que conduz… |
- Graças, amor, por tal sina! |
|
|
305 – Opinião |
|
Não existe uma obra humana, |
Não há personalidade |
Sobre que se não dimana |
|
A opinião da verdade |
Que no fundo nós ditamos |
Da razão que nos invade. |
|
E o que sabemos são ramos |
Que em nós, escorregadios, |
Perpassaram como gamos |
|
A escaparem, fugidios. |
E de tal nada se ditam |
Com segurança os feitios, |
|
As ideias se meditam, |
Com a crença na inerrância |
Em que em si sempre acreditam |
|
Os que vivem da ignorância. |
Mal é que a tal nos concitam |
Tudo e todos, desde a infância. |
|
|
306 – Satisfazer |
|
Satisfazer um desejo |
Não é meta indesejável. |
Porém, a festa que ensejo |
É no caminho que a vejo, |
No que nele for viável |
E não no ver satisfeito |
O sonho a que presto preito. |
…Na meta, a felicidade |
Longe de novo se evade. |
|
|
307 – Riqueza |
|
Uma riqueza vulgar |
Pode ser toda roubada. |
A verdadeira, sem par, |
Mora em alma encastoada: |
Além de ser preciosa, |
Tão nos íntimos se goza |
Que se não pode roubar. |
|
|
308 – Medida |
|
Censurar ou resmungar |
É a medida que não custa: |
Se um pouco não resultar, |
Dobramos, a ver se ajusta. |
|
Quando é mudar de atitude |
Que ao fim pudera atingir |
Com uma nova virtude |
O que se quer conseguir. |
|
|
309 – Emprego |
|
Leis de proteger emprego, |
Quando o protegem demais, |
Mais criam desassossego |
Que de emprego dão sinais. |
|
Ninguém quer correr o risco |
Inerente à criação |
De trabalho quando o visco |
O prende àquela prisão. |
|
Os ímpetos de arriscar |
Ou são livres ou ninguém |
Aos ímpetos dá lugar, |
- Morre o mundo sem vintém. |
|
|
310 – Causas |
|
Causas da guerra segunda |
Claras moram na primeira, |
No Estado-nação que abunda |
Em quantas guerras peneira. |
|
E, de exórdios em exórdios, |
O nosso recuo invade |
Os mais ancestrais primórdios |
Donde brota a Humanidade. |
|
O Estado, da agricultura, |
Da criação de animais |
Pelos milénios se apura, |
Destes ruma aonde vais. |
|
A agricultura deveio |
Do caçador, colector, |
Eras e eras sem permeio, |
Até o Homem ser senhor. |
|
Sem rupturas nem desvios, |
Nem medos que de vez tema, |
- Onde avisto os atavios |
Raiz do nosso problema? |
|
|
311 – Parte |
|
Vista uma pequena parte |
Da vida pronta a morrer, |
Cada qual dali se parte |
Convencido de saber. |
|
No efémero limitado |
A um tempo fugaz e a um modo, |
Quem pode ser creditado |
De haver descoberto o todo? |
|
Entretanto, eis a ilusão |
Que nos enterra iludidos |
Mais fundo e fundo no chão |
Dos sonhos mais fementidos. |
|
|
312 – Capaz |
|
Será que serei capaz, |
Se for urgente mudar, |
De fazer o que se faz |
Para não voltar atrás |
Do antigo rumo ao lugar? |
|
Ou antes as mãos sem vida |
De antigos antepassados |
Nos empurram na avenida |
Para rumos sem saída |
Por nós jamais controlados? |
|
|
313 – Invento |
|
Como Deus é invento humano |
(Por isso é que há tantos deuses), |
Seu mistério é parco arcano. |
Bem profunda e com reveses |
É a questão da natureza |
Dum Homem que preso ao fio |
De infundamentada reza |
Se suspende no vazio |
E, no vácuo, eternamente |
Assim suspenso se mente: |
- Como é que do escuro aposta |
Que há-de um dia ter resposta? |
|
|
314 – Ancestrais |
|
Para nós não há registos |
Que preservem a memória |
Dos ancestrais que, sem vistos, |
Fugaz viveram a glória. |
|
Duma ou duas gerações |
Para trás não ficou nada: |
- A Humanidade, aos milhões, |
Vive no tempo isolada. |
|
|
315 – Humanos |
|
Nós somos, nós, os humanos, |
Um bebé recém-nascido, |
Sem bilhete nem pedido, |
Na soleira dos arcanos |
|
Abandonado de vez. |
Nada explica quem ele é, |
Donde veio, quem lhe fez |
Na vida perder o pé. |
|
Órfãos somos, sem morada. |
Bilhete de identidade |
Onde encontrá-lo, se nada |
Nos desvenda a Humanidade? |
|
|
316 – Universo |
|
Universo indiferente, |
Universo sem sentido… |
- Quem nos mente, quem nos mente |
Neste medo, neste enfado, |
Por detrás deste vagido |
De quem se sente enganado, |
De quem se sente traído? |
|
O saber é-nos hostil: |
Desamparados e sós |
Ficamos por entre mil |
Dos mais estranhos avós. |
|
Nós que do rei do Universo |
Nos quisemos descendentes, |
Nosso pai vemos disperso |
Das poeiras nas sementes, |
Em nadas que foram dantes |
Seres insignificantes |
Tão minúsculos que tu |
Nem os vês a olho nu. |
|
Arvorámo-nos tão alto |
Que mais de alto nos apanha |
O abismo do imenso salto |
Do nada que ao fim nos ganha. |
|
317 – Planeta |
|
Muito humildes pela origem, |
Tornámo-nos dominantes |
No planeta onde se exigem |
Espertezas de gigantes. |
|
Criança bem protegida |
Mas criada em vida obscura, |
Sou, pois, herói da aventura |
Com que trepei a subida. |
|
O perigo dos perigos |
É confundir a vitória |
(Escarmentando inimigos) |
Da nação com final glória. |
|
Ou dum povo, dum país, |
Ou da minha geração, |
Ou que o êxito feliz |
Já me encubra a situação |
|
A ponto de até nem ver |
Quanto, em qualquer destas vias, |
Definitivas colher |
Só da morte as tropelias! |
|
A escuridão do passado |
Torna míope a visão |
E é fácil perder o lado |
Para onde os trilhos vão. |
|
|
318 – Palco |
|
Piso o palco mundial, |
Sou de pronto eliminado, |
Não resta nenhum sinal |
Do raio um nada alumbrado. |
|
Ontem de sémen a gota, |
Amanhã sopro de pó, |
Tão fugaz é minha nota |
Que o que sou sê-lo-ei só. |
|
Sou efémero zumbido, |
Morto de mim mesmo à beira, |
Floco de neve caído |
No borralho da lareira. |
|
À tempestade fugido |
Pardal que cruza o salão, |
Do lado inverso saído, |
Por mim nem comensais dão. |
|
E do que já se passou |
E do que está para vir |
Tão ignorante ao fim sou |
Como se nem existir. |
|
319 – Leme |
|
Lembra-nos a evolução |
Que Deus, se de facto existe, |
Há muito largou de mão |
O mundo que hoje subsiste. |
|
Universo a funcionar |
Com as leis da natureza, |
Logo Deus cede o lugar |
Da máquina à singeleza. |
Com o poder delegado, |
Não irá Deus intervir |
Quer lhe implore ou não que, ao lado, |
Me salve quando eu cair. |
|
A mim próprio abandonado, |
Muito longe deve estar |
Esse Deus desperdiçado |
Sabe Deus em que lugar! |
|
Angústia e perturbação |
A evolução activou. |
O que pede o coração, |
A evitar o que mais teme, |
É que eu creia que aqui vou |
Com alguém seguro ao leme. |
|
Quando, no fundo, a verdade |
É que nada, nada, nada |
Nos substitui na jogada |
Desta fatal soledade. |
|
|
320 – Travão |
|
Pedimos à evolução |
Que chegue onde quer chegar, |
Que de vez ponha travão |
À crueldade sem par. |
|
Porém, a vida não sabe |
O que é que quer atingir, |
Não tem um plano e não cabe |
Do tempo em nenhum porvir. |
|
Não visa ao fim nenhum fim, |
Não tem mente onde manter |
A meta a que diga sim |
Nem justiça que fazer. |
|
Esbanjadora, alheada |
E cega pelo caminho |
Desperdiça para nada |
Tudo em total desalinho. |
|
|
321 – Macacos |
|
Prefiro que meus avós |
Tenham vindo dos macacos |
Que ser homem cuja voz |
Teme a verdade e que após |
A vende por dois patacos |
Sob a máscara fingida |
De que um monturo de cacos |
É que é verdadeira vida. |
|
|
322 – Parentes |
|
Que todos somos parentes |
Por comum ponto de origem |
De nós fez os descendentes |
De ancestrais que já não vigem. |
|
Nenhuma forma de vida |
Das que hoje aqui permanecem |
Nos pode dar a medida |
Dos avós que nos esquecem. |
|
De antepassados remotos, |
Por mais que primos nos façam, |
Em nós não vemos, ignotos, |
Os herdados comuns traços. |
|
Vago parente ignorado, |
Sem tal reconhecimento |
Da vida caminho ao lado: |
De meu lar qual o momento? |
|
|
323 – Insecto |
|
Jóia vistosa, este insecto |
Com um desenho elegante, |
A voltear indiscreto |
Do sol na poalha impante, |
|
Tem alguma consciência? |
Ou, delicado robô, |
Matéria orgânica só, |
Autómato da ciência, |
|
Rico em carbomo, equipado |
Com sensores e programas, |
Activadores, tablado |
De rotinas, tudo em tramas |
|
Pelo AND fabricadas, |
Toda a maravilha apenas |
São figuras enredadas |
De reflexos às centenas? |
|
|
324 – Principesco |
|
Quando vejo o parentesco |
De toda a vida na Terra, |
Terei o dom principesco, |
Alma que só a mim se aferra? |
|
Tem uma alma o ser humano, |
Os outros não a terão. |
- De facto, a todos me irmano |
Mas por trás digo que não. |
|
|
325 – Mosca |
|
Muitos acabam nervosos |
Se os interrogamos acerca |
Da consciência da mosca. |
No entanto, falaciosos |
São os juízos da perca |
Nos quais a razão se enrosca. |
|
Fica-nos a sensação |
De que é parca a divisória |
Genética-consciência: |
Perde a razão toda a glória, |
Que lhe é porosa a eminência, |
|
Pois dacolá para aqui |
E daqui para acolá |
Corre quanto a mosca em si |
De capaz fazer será. |
|
|
326 – Milionésimo |
|
Um milionésimo tem |
Do cérebro que detenho. |
Será que tal nada nem |
De consciência tem de ganho? |
|
Só por ser insecto vago |
Lhe recuso a fantasia |
Do cacho que, bago a bago, |
À razão nos chegaria. |
|
Se, depois da reflexão, |
Insistir que ele é apenas |
Um robô de mente em vão, |
Como é que comigo as cenas |
|
Seriam doutro jaez? |
- A razão perco de vez! |
|
|
327 – Dominância |
|
Poucos são os que dominam |
E muitos os dominados. |
Como é que estes se eliminam |
Tanto de nossos cuidados |
|
Que apenas a dominância |
Nos atrai e preocupa? |
Ou é ânsia ou é ganância… |
- Com pouco a vida se ocupa! |
|
|
328 – Erva |
|
Flor do campo, assim florescem |
Meus dias, tal como a erva: |
Perpassa o vento e fenecem, |
Seu lugar jamais conhecem… |
- E nada mais se conserva! |
|
|
329 – Heroísmo |
|
O acto de heroísmo humano, |
Rotina pré-programada, |
Ocorre sem qualquer plano, |
Não é uma acção ponderada. |
|
Para o herói é natural, |
Não é escolha nem ciência: |
Tem da genética o aval, |
Nem passa na consciência. |
|
|
330 – Especialização |
|
Mal da especialização |
É que, quando tudo muda, |
O indivíduo, já não |
E já não há quem lhe acuda. |
|
Quem estiver adaptado |
Ao seu habitat actual |
Pode já não ter de lado |
Com que ao porvir dê um aval. |
|
Mas se gasta o tempo inteiro |
A prevenir contingências |
Pode já nem ser parceiro |
Do presente nas urgências. |
|
A natureza coloca |
Sempre este dilema à vida: |
No meio se encontra a soca |
Que, regada, enflora a toca |
Da entrada que nos convida. |
|
Tudo, porém, se complica: |
Nem genes nem organismos |
Sabem lá que é que se aplica |
Àquela ignota rubrica |
Do futuro nos abismos! |
|
|
331 – Pretensão |
|
A pretensão de que apenas |
Nós temos o dom mental |
É de mentes tão pequenas |
Que nem mentam o animal. |
|
Se uma economia é de uso |
Ao descobrir o encoberto, |
Lermo-nos sós é um abuso |
De quem crê mas não é esperto. |
|
Muitíssimo mais provável |
É que as vivências mentais |
Sejam campo trabalhável, |
Como em nós, nos animais. |
|
Se houver grandes diferenças |
Serão só na natureza |
Ou nas complexas mantenças |
De que a espécie em nós se preza. |
|
O repúdio radical |
Que reduz vivência a nada |
Em qualquer vida animal |
É ignorância condenada. |
|
|
332 – Rodapés |
|
A vida social dos chimpanzés |
Tem faces claramente assustadoras |
E, no entanto, são nossos rodapés |
Que encontramos naqueles seus emboras: |
Muitas associações e rapapés |
Instintivos se criam a desoras |
Que giram em redor da hierarquia, |
De tudo quanto um homem aprecia, |
|
Competitividade e jogos duros |
Que chegam sangue humano a derramar, |
Sexo de criminosos e de impuros… |
Combinações de macho a dominar |
Fêmeas submissas, súbditos seguros |
Mas ardilosos, de jamais fiar, |
Ávidas buscam o respeito hierárquico |
Que a segurança induz contra o anárquico. |
|
A troca de favores no presente |
Com vista à lealdade no futuro, |
Pactos de protecção, força latente, |
Sexual exploração, sem mais apuro, |
De qualquer fêmea adulta um uso assente, |
Quanta similitude acentuada |
Dum absoluto rei com tal parada, |
|
Com ditadores ou patrões gigantes, |
Burocratas de todas as nações, |
Com os bandos, quadrilhas de hoje e de antes, |
Porventura com grandes figurões |
E até mesmo com vidas mais gritantes |
De históricas figuras consagradas |
Que por nossos maiores são tomadas! |
|
Tais benesses e horrores quotidianos, |
Por muito que os creiamos nossos traços, |
Nos chimpanzés há vários milhões de anos |
Marcaram igualmente animais laços. |
Da vileza e grandeza os desenganos |
Na genética ocupam mais espaços |
Que quantos a soberba persuade |
Que em nós ocupa, exígua, a liberdade. |
|
|
333 – Altaneiros |
|
Como é tão conveniente, |
Como tanto reconforta |
Que a vida na Terra assente |
Na mais clara hierarquia |
Em que a dominância exorta |
A termos nós dela a guia! |
|
Grande cadeia do ser |
- E os alfas seremos nós! |
Se parentesco há-de haver, |
No cume, altaneiros, sós, |
Eis os homens. E a ideia |
De formar esta cadeia |
Nem sequer nos pertenceu: |
Há o Alfa maior do que eu |
Que ma impôs, imperativa, |
- Nem terei alternativa… |
|
Só de espécies de primatas |
Sabemos dumas duzentas |
E talvez, lá pelas matas, |
Se escondam as mais cinzentas. |
|
Espécies são quase tantas |
Como na Terra há nações, |
Cada qual com suas plantas, |
Costumes e tradições, |
|
Tudo tal qual como nós |
E também tão diferente |
Como umas doutras após |
Várias são quando se atente. |
Eis porque um tremor de terra |
Não será tão temeroso |
Como isto que mais aterra: |
- Ser vão o cume que gozo. |
|
|
334 – Diferença |
|
A diferença absoluta |
Em lugar das relativas |
Entre nós e os animais |
Não a encontra quem perscruta. |
Todas as espécies vivas |
Somos nós, menos ou mais. |
|
A diferença específica |
Simplesmente não existe, |
Nenhuma criação típica |
Que aos homens só pertencera |
A uma análise resiste, |
Doutra espécie está na esfera. |
|
Resta apenas admitir |
Que temos a propensão |
Dum grau maior ou menor |
De nas heranças fruir |
Que comuns a todos são: |
Entendo-me então melhor. |
|
Poder-me-ei orgulhar, |
Ante uma aptidão primata, |
Do intenso desabrochar |
Com que em mim se ela remata. |
|
Não posso ir mais adiante |
Sem de mim ficar distante. |
|
|
335 – Luxo |
|
Talvez não sejamos mais |
Do que modelos de luxo |
De símios que os ancestrais |
Desviaram, num repuxo, |
|
Do imenso lago da vida. |
Só diferenças de grau, |
Género igual que se olvida |
No enfeite do mesmo pau. |
|
É fundo o constrangimento |
Em que a evolução humana |
Amordaça o sentimento, |
Tão de rastos nos aplana! |
|
|
336 – Criminoso |
|
“Sabem, eu sou mesmo assim”, |
- Alegará o criminoso – |
“Há o animal dentro em mim |
E então só me dará gozo |
(Quando melhor agir tento, |
Cumprir a lei, cidadão) |
O crime que inulto invento, |
Praticar a transgressão. |
|
É da natureza humana, |
Não sou dono de meus actos, |
A testosterona emana, |
Obriga até os mais pacatos.” |
|
Vemos que estas teorias, |
Se amplamente divulgadas, |
Esfiaparão os dias, |
De sociais vestes rasgadas. |
|
O melhor é reprimir |
Estes nossos animais, |
Pensa quem não quiser ir |
Se atascar nos lodaçais. |
|
Os que acolhem e discutem |
Com tais transviados são |
Os que, surdos, nos escutem |
O incêndio que atearão: |
|
Quando o que todos tememos |
É o mal que, lá bem no fundo, |
Todos por trás escondemos |
De a ferros pôr todo o mundo. |
|
Se calhar seremos todos |
Crocodilos insensíveis: |
Por trás de nossos bons modos, |
Monstros de matar horríveis. |
|
Quando o nosso poder chega |
À destruição global, |
Nada anima se o carrega |
Aquele rosto do mal. |
|
|
337 – Evoluído |
|
Os nossos antepassados, |
Ancestrais da evolução, |
Da violência nos pecados |
Sempre lograram ter mão. |
É o Homem que, evoluído, |
Tem vindo a perder sentido. |
|
|
338 – Extinção |
|
Das espécies um milhão |
Nas décadas derradeiras |
Nós levámos à extinção. |
Genéticas bem certeiras |
Que resistem milhões de anos |
Não resistem aos humanos. |
|
Somos desleais herdeiros |
A desbaratar a herança |
Da família em que, parceiros, |
O espólio comum nos lança. |
- Quão parcas contemplações |
Com vindoiras gerações! |
|
|
339 – Alheio |
|
O Universo vive alheio |
Às ambições e destino |
De que o Homem vive cheio. |
A ciência tem o tino |
|
De nos vir a despertar |
Para a nossa condição. |
Teremos de dar lugar |
À natural selecção, |
|
Quer dizer, tomar a cargo |
A própria preservação, |
Sem de tal nos pôr ao largo, |
Sob pena duma extinção. |
|
|
340 – Maturidade |
|
Mostramos maturidade |
Quando olhamos nossos pais |
Como foram na verdade, |
Sem euforias nem ais, |
Sem mitos nem passar culpas |
Daquilo que, injustamente, |
Não passa de más desculpas |
Das falhas que a gente sente. |
|
|
341 – Fadas |
|
“As fadas devem ter vindo!” |
- E o menino não dormia |
A sonhar com a magia. |
Depois a idade foi vindo… |
|
“Pai,não consigo dormir: |
Que é que quer dizer aquilo?” |
- Começa aqui o porvir: |
Revelo breve o sigilo. |
|
Sorridente e descansado |
Finalmente adormecia. |
- Então é que eu, encantado, |
Acredito na magia. |
|
|
342 – Inexplicável |
|
Desde sempre o inexplicável |
Tem explicação em nós: |
Terrestres, sabemos tudo! |
Cada dogmático amável |
Ata ao já sabido os nós |
E não vê que isto é um entrudo. |
|
Não hesita em recorrer |
Ao saber já conhecido |
Para, absurdo, então obter |
Que o novo seja abolido. |
|
|
343 – Liberdade |
|
Liberdade, liberdade |
É viver sem sujeições? |
Então quem é que me invade |
De vez a privacidade |
Violando-me os serões? |
|
A liberdade consiste |
Em fazer tudo o que não |
Prejudique outrem que existe |
E que de igual modo insiste |
Em ser como os demais são. |
|
É que frequentemente |
Liberdade significa |
A luta de certa gente |
Contra quem lhe não consente |
Quanto a nós nos sacrifica. |
|
|
344 – Muralhas |
|
Com setas de chuva o vento |
Se arremessa das muralhas |
De nuvens sobre o elemento |
Das medievas batalhas. |
|
Hoje em dia não seria |
Tal o moderno sinal: |
A tormenta enxamearia |
Mil abelhas de cristal |
|
Que a chuva cinzenta inscreve, |
De atómica teia armada, |
Sobre a poeirada leve, |
Na terra ao raio abrasada. |
|
|
345 – Cinquenta |
|
Com anos mais de cinquenta, |
Desagradado e agradado, |
Ganho e perco o que se inventa, |
Efeitos de todo o lado: |
A repressão do fascismo, |
Um ar de revolução, |
Os desastres deste abismo |
Da nacionalização… |
|
Racionei-me com medida, |
Esbanjei com contenção, |
Sofri calotes na vida, |
Paguei o devido e o não. |
|
Falam bem e mal de mim, |
Fui maltratado, enganado, |
E nem sei como aqui vim, |
De tão traído e burlado… |
|
Se continuo a correr |
Sem já de vez desistir |
É só mesmo a tentar ver |
O que acontece a seguir. |
|
|
346 – Grácil |
|
A ciência se encadeia |
Sem fim nos elos causais. |
A fé, crente, foge à teia, |
Põe logo os pontos finais. |
|
A ciência, aos bocadinhos |
Rasga brechas para a luz. |
A fé, crendo, em seus cadinhos |
À crença o todo reduz. |
|
Daqui deriva mais fácil |
Acreditar que saber. |
O problema é que é só grácil |
A vida enquanto a souber. |
|
Um acto de fé dum homem |
Protege o resto da vida, |
Na ciência se nos somem |
Anos e anos de seguida. |
|
Eis porque tantos são crentes, |
Apostando na ignorância, |
Sem alcançarem, dementes, |
Sonho algum de nossa infância. |
|
|
347 – Calor |
|
Do cientista ao olhar frio |
Escapa o calor do amor, |
Por isso na fé confio |
Para encontrar-lhe o sabor. |
|
Quando, no tempo perdido, |
Do amor só nos resta um acto, |
Perco ao que vivo o sentido |
Se o reduzo externo ao facto. |
É que uma experiência humana |
Tem sempre um lado de dentro |
Donde cada qual emana |
E ali somente eu é que entro. |
|
Não há nenhuma ciência |
Que ultrapasse esta fronteira: |
Não existe experiência |
Que passe um sonho à peneira. |
|
|
348 – Rituais |
|
Os rituais do passado |
Nunca a civilização |
Salvam da destruição. |
Não pode ser aguardado |
|
Que o retorno, em nossa idade, |
A um modelo passadista |
Fará que o mundo resista, |
Salve agora a Humanidade. |
|
|
349 – Corrente |
|
Nascemos para morrer, |
Nesta corrente incessante. |
Ninguém capaz de a deter, |
Seguimos sempre adiante: |
|
Todos temos a viver |
Uns anos de vida plena |
E abandona-se a correr |
Esta experiência terrena. |
|
Porém, ninguém sabe ao certo |
(Vejo apenas o visível) |
O que além nos fica perto, |
Nem que fronteira é credível. |
|
|
350 – Traumatizados |
|
Traumatizados na infância |
Ao descobrir que não somos |
Nós o centro do Universo, |
Satisfazemos com ânsia |
Dos pais o mundo de gnomos, |
Fica o nosso ali disperso. |
|
Podemos recuperar |
Um pouco o que foi perdido |
Coroando a Terra-mãe: |
E o Homem, ao escapar, |
Esforçado, assim, do olvido, |
O cume do ser mantém. |
|
É uma atitude atraente |
Em meio às religiões |
Que consideram o Homem |
Nado particularmente |
Com cuidados e atenções |
Que a Deus o tempo consomem. |
|
Séculos foram precisos |
E brutais carnificinas |
E prisões em demasia, |
Até do acerto os avisos |
Das sangrentas oficinas |
Saltarem à luz do dia. |
|
Sabemos hoje que somos |
Estes frágeis habitantes |
Dum medíocre planeta |
Que, sem mais porquês nem comos, |
Corre em órbitas distantes |
Dum Sol mesmo de opereta, |
|
Do centro a enorme distância |
Duma Galáxia que é média, |
Ela mesma incorporada |
Noutraas médias, sem mais ânsia |
Do que andar todas à rédea |
A girar no infindo nada. |
|
O nosso local ambíguo |
De habitação no Universo |
Não tem absolutamente |
Nada de incomum: exíguo, |
Não há orgulho no reverso |
Deste pó que nos consente. |
|
Os solitários confins |
Do espaço em que nós vivemos |
Apenas podem terror |
Provocar a quem seus fins |
Vê perdidos nos extremos |
Do Universo no negror. |
|
Afinal somos poeira |
Num Cosmos que nunca sente |
Nem planifica, nem pensa. |
O assombro é a nossa maneira |
De o tamanho olhar demente |
Desta frigidez imensa. |
|
|
351 – Contracção |
|
No Universo em contracção |
O tempo se inverteria, |
Filme correndo ao contrário, |
E dos sepulcros então |
Cada morto se ergueria |
Até se acabar no ovário. |
|
Se esta imagem dos humanos |
Nos é já perturbadora, |
O que mais vai perturbar |
Os que vivam em tais anos |
É o que vivemos agora: |
Viver é um jogo de azar! |
|
|
352 – Magnetismo |
|
Qual a força ou energia, |
O magnetismo que leva |
Repentinamente, um dia, |
A paixão a abrir a treva? |
Todos nós somos os filhos |
Da força paranormal |
Que ao coração abre os trilhos |
E, depois, nem um sinal! |
|
E a seguir, envergonhados, |
Recusamos-lhe a existência: |
Factos psi são os estrados |
De charlatões em falência |
|
E a parapsicologia |
É a corrente que à vontade |
Só se liga por magia… |
- E ninguém nos persuade! |
|
|
353 – Preconceito |
|
O problema da teoria |
É prender ao preconceito |
Com que a si própria se urdia |
Os factos todos a eito: |
- E quanto ali não couber |
Nunca existiu, não tem ser! |
|
|
354 – Cérebro |
|
O cérebro é um porteiro |
Que só admite ao consciente |
Um interesse primeiro, |
Tudo o mais mantém ausente. |
|
Multidões de percepções |
Preparadas para entrar |
Entram nas ocasiões |
Em que ele sai do lugar. |
|
São actos de contrabando |
Quando ele mal funciona: |
A sonhar, em transe, é quando |
Tudo o mais nos vem à tona. |
|
Ninguém sabe decidir |
Se isto é passado ou porvir. |
|
355 – Oculta |
|
Por que é que a ciência oculta |
Se oculta tão cuidadosa? |
É que ao vidente, insepulta, |
Dá uma força temerosa |
Que pode usar por igual |
Para o bem e para o mal. |
Importa ter garantia |
De que às trevas vence o dia. |
Enquanto ela não houver, |
Convém de nada saber. |
|
|
356 – Invisível |
|
Visível revelação |
Duma razão invisível |
- É o traço da divisão |
Da ciência perecível |
Que teremos hoje à mão, |
Perante a crença falível, |
De outrora em ocultação. |
Hoje creio no exequível |
Que o for em cada estação. |
- Mas a fé mora, imortal, |
Sempre além deste sinal. |
|
|
357 – Frustrados |
|
Os indivíduos frustrados |
Gostarão de destruir |
Na vida todos os dados |
Que não podem possuir. |
|
Os felizes, ao contrário, |
Preferem ver em redor |
Um mundo feliz e vário |
A rir de luz e calor. |
|
|
358 – Rol |
|
Nenhuma divina graça |
Nos leva a acrescer o rol: |
Nada de novo se passa |
Por sob a rosa do sol. |
|
E o que à vida nos aferra |
É, porém, este contraste: |
Muito mais coisas na terra |
Há do que jamais sonhaste. |
|
|
359 – Adiante |
|
Um homem com um passado |
Obscuro, insignificante, |
Como vai ser adorado |
Pelos milénios adiante? |
|
Como diz a profecia |
Quando se reporta a ele, |
Nem ele mesmo sabia |
Qual seria o seu papel. |
|
E então o que lhe fizeram |
Depois que a morte o tomou, |
As guerras que aconteceram, |
Riqueza que se gerou? |
|
Como é que ao fim destes anos |
Ainda impõe sua marca |
Da cultura nos arcanos |
Sem se ver o fundo à arca? |
|
|
360 – Mentiras |
|
As mentiras são iguais |
E se alguém engolir uma |
Seguem-se logo outras mais, |
Engasga a vida na ruma. |
|
E se a mentira engrandece |
Quem pequeno atrás se esconde, |
Do que é bom não se entretece, |
Perde ali seu lugar onde. |
|
Se alguém, sendo um sapateiro, |
Num raio mentir voar, |
Mente já que o céu é herdeiro… |
- Quem o vai recuperar? |
|
|
361 – Fantasmas |
|
Os fantasmas são as fracas |
Sombras da realidade? |
O que aqui vive e que atacas |
Mais que nós é de verdade. |
|
Que vivemos e que pomos |
Por dentro de nossas peles? |
Fantasmas nós é que somos |
Da realidade deles! |
|
Pense lá quanto pensar, |
Não é por pensar quenquer |
Fantasmas, deuses a par, |
Que vivem ou vão morrer! |
|
|
362 – Ocasiões |
|
Em certas ocasiões, |
Pessoas, terras e montes |
São o mesmo, onde dispões |
Do amor pelos horizontes. |
|
E o amor disso é tão forte, |
Reveste tanta certeza |
Que dói fundo como a morte, |
Magoa como a tristeza. |
|
|
363 – Fala |
|
Muito mal é mal da fala: |
Fala tanto que ao falar |
No fogão a lenha estala, |
Só cinza fica em lugar. |
|
O que nisto é deprimente |
É que isto é cinza de gente. |
|
|
364 – Metralha |
|
Um povo é sempre maior |
Que a ventura da metralha, |
Não se lhe esgota o fulgor |
Na espingarda que lhe calha. |
|
A majestade que tem |
É de instância menos densa |
Que o eleva mais além: |
- É a grandeza do que pensa. |
|
|
365 – Caduco |
|
A teima do que é caduco |
Em querer perpetuar-se |
É o canto esconso do cuco, |
Porém, da vista a esgueirar-se. |
|
Obstinação dum perfume |
Rançoso a prender cabelos, |
São peixes podres no lume |
A exigir quem vá comê-los. |
|
Como se a roupa infantil |
Quisera vestir um homem, |
É um cadáver que o perfil |
Na tumba enterra aos que o tomem. |
|
|
366 – Rosas |
|
Há uma quadra em que as donzelas |
Desabrocham repentinas |
E de improviso são rosas. |
Ontem só crianças belas, |
Hoje lêem-nos a sina: |
- Tornaram-se perigosas! |
|
|
367 – Grito |
|
Quem procura o absoluto |
Tem o céu todo nos olhos. |
Mesmo no fim e de luto |
Tem por baixo dos sobrolhos, |
Na forma ao menos dum grito, |
Ainda um clarão do infinito! |
|
|
368 – Cair |
|
Quem chamar usurpação |
Ao que é o nosso direito |
Vai julgar que é concessão |
O que for nossa conquista. |
Não lhe vai prestar mais preito, |
Com tanta falta de vista: |
Por muito que nos resista |
Vai cair do trono ao chão! |
|
|
369 – Erro |
|
Os que um erro fascinou |
Erram mas de boa fé. |
Um cego ninguém culpou |
De não ver que tem ao pé. |
|
Nas colisões temerosas |
A culpa da tempestade |
Deve-se à fatalidade, |
Que são por demais brumosas |
As vistas da Humanidade. |
|
|
370 – Acontecimentos |
|
Deus mostra sua vontade |
Na voz do acontecimento, |
Texto obscuro em que a verdade |
Se esconde atrás do tormento |
|
Duma língua misteriosa. |
Bem a tentam traduzir, |
Mas fica pejada a prosa |
De lacunas sem porvir. |
|
Ao fim, quando alguém consegue, |
Após infinda labuta, |
O véu do pomar erguer, |
Tanto partido o persegue |
Em controversa disputa |
Que nem talhada sequer |
Provou da escondida fruta. |
371 – Desiguais |
|
Casamentos desiguais |
Mui raro merecem palmas. |
Todavia, os que o são mais |
São os desiguais nas almas. |
|
Quantas vezes na pobreza |
Mora um mancebo sublime |
E a alma gémea, na riqueza |
Que, afinal, justa, o redime! |
|
E quantas mais, ao invés, |
Uniões ricas se ajustam |
E a máscara cai aos pés: |
- São pés de bode o que custam! |
|
|
372 – Ideia |
|
Nós, que cremos numa ideia, |
Que podemos recear? |
Como o rio o sonho ondeia |
E não pode recuar. |
|
Quem gritar não ao progresso |
O futuro não condena, |
Mas condena-se ao regresso, |
Contamina-se em gangrena. |
|
No contágio do passado, |
O amanhã jamais prover |
É um caminho caminhado |
Como um modo de morrer. |
|
|
373 – Miséria |
|
A miséria traz consigo |
Atrás dela, por arrasto, |
A solidão como abrigo |
E seu derradeiro pasto. |
|
A miséria da criança, |
Apesar dela, também |
Ao menos ainda alcança |
A ternura duma mãe. |
|
A miséria dum mancebo |
Tem por mais comum sequela |
Atrair como um placebo |
Um amor duma donzela. |
|
Mas a miséria do velho |
Não interessa a ninguém: |
Do outro lado do espelho |
É só parede o que tem. |
|
|
374 – Montão |
|
Uma barricada é feita |
De pedras, de madeirais, |
De ferros, coisas menores… |
Muito maior é a colheita |
Do montão que é de ideais |
E do montão que é de dores. |
|
|
375 – Depressa |
|
Ir o povo de surpresa |
Mais depressa do que quer, |
Ninguém logra tal empresa: |
Não cede se não quiser. |
|
A si próprios abandona |
Insurrectos, insurgentes: |
São empestados à tona |
De desvairadas correntes. |
|
A casa é um despenhadeiro, |
Toda a porta, uma repulsa, |
A fachada, um muro inteiro |
E a todos eles expulsa. |
|
|
376 – Utopia |
|
A utopia presa aos factos |
Vai devir insurreição: |
Da filosofia os pactos |
Traem-se de armas na mão. |
|
Utopia impaciente |
E que então devém revolta |
É cedo demais presente, |
É uma catástrofe à solta. |
|
Renunciar ao triunfo, |
Sem queixas e a desculpar-se, |
Dela é o magnânimo trunfo |
Mas também final disfarce. |
|
|
377 – Abismo |
|
Quem viver habituado |
Ao caos das profunduras, |
Aos crimes, às imposturas, |
Todo um mundo negregado, |
Vai recuar assustado |
Ante o abismo das alturas: |
A assombrosa aparição, |
Em troca de dar-lhe um lar, |
Revela-lhe o que é a prisão. |
|
|
378 – Lareira |
|
Um homem tem o seu deus |
E a religião que tiver. |
Porém, a melhor maneira |
De adorar o que há nos céus |
É olhar bem para a lareira: |
- É adorar sua mulher! |
|
|
379 – Pelourinho |
|
Por que não me calo eu |
Quando ninguém me persegue, |
Me denunciou nem prendeu? |
Donde a luz vem que me cegue, |
|
Por que mão, se é de ninguiém? |
Sou eu mesmo que embaraço |
A via que me retém, |
Me arrasto e me prendo ao laço. |
|
Por dentro me agarro a mim, |
No pelourinho executo |
O réu que me torno assim. |
Se preso sou meu produto, |
|
Escusarei de tentar |
Fugir do que me persegue, |
Procurar outro lugar: |
Ninguém, ninguém o consegue! |
|
|
380 – Caraça |
|
Para o fugido à justiça |
A caraça não mascara |
Nem as teias desenliça |
A quem antes enredara. |
|
A máscara ao perigo |
Oferece um abrigo. |
|
Um nome falso é um engano, |
Não tanto da falsidade |
Que ao olhar estende o pano |
Que esconde uma identidade, |
|
O nome falso alcança |
Na fuga a segurança. |
|
Condenado que o rejeita |
Ou é falho de ciência |
Ou é já doutra colheita: |
- Pôs a mão na consciência. |
|
|
381 – Terrível |
|
Terrível felicidade |
A aprisionar-nos no gozo! |
Alcançado o falso fim |
Da vida que nos invade, |
A ventura, o venturoso |
Logo esquece, no confim, |
O verdadeiro a atender, |
De que abandona a procura: |
O de cumprir o dever |
Para garantir ventura. |
|
|
382 – Contrários |
|
Não logramos caminhar |
Em dois sentidos contrários, |
Mas da vida andar a par |
É ter seus itinerários. |
|
O que ela tem de agradável |
É levar-nos ao destino |
Por qualquer rumo viável |
Com que ao calhar eu atino. |
|
Arte e ciência conduzem, |
Por caminhos diferentes, |
Às verdades que seduzem |
Os caminheiros ausentes. |
|
O que mais nos interessa |
Vai ser, por fim, a viagem: |
O caminho é que atravessa |
Os dias numa romagem. |
|
Torna-os entretenimento |
E as noites são de prazer |
Ao relembrar o momento |
Da luz sempre a alvorecer. |
|
Toda a meta é sempre um sonho |
Sempre além, irremediável |
E aquilo que me proponho |
É só meta aproximável. |
|
|
383 – Limite |
|
Uma família feliz |
Não é uma democracia |
Em que toda a gente diz |
E após vence a maioria, |
Nem dispõem as crianças |
De liberdade total, |
Sem que o limite das franças |
Se avalie do que vale. |
Têm os pais autoridade |
Que exercem benignamente, |
Conta o filho a identidade |
De tudo aquilo que sente |
E, no fim, a decisão |
Serão sempre os pais que a dão. |
Sente-se bem a criança |
Por entre os baldões em que anda, |
Ao sentir a segurança |
De saber quem é que manda. |
|
|
384 – Escolhas |
|
Todos fizemos escolhas, |
Mesmo escolhas infelizes. |
Os pais são tanto aprendizes |
Que os filhos às vezes olhas |
Transformados em juízes. |
Mas revê-se a decisão, |
Vai-se em via diferente, |
Fica encerrada a questão. |
|
Esgotou-se na família |
O motivo da quezília, |
- Eis como é um lar coerente. |
|
|
385 – Regras |
|
Quando um casal muito triste |
Confessa seguir as regras |
E o sucesso não existe, |
Diz-lhe como a regra integras. |
|
É que um mapa jamais é |
O chão a inventariar, |
Muro que faz fincapé, |
Curva fora do lugar… |
|
As surpresas, os buracos, |
Os desvios que há na estrada, |
Os tufões porão em cacos |
Qualquer regra enunciada. |
|
Forte é aquele que souber |
Que as curvas que houver na rua |
Não se podem antever: |
Só quem voar sobe à Lua! |
|
|
386 – Melodia |
|
Quem me dera a melodia |
Da mulher como convém |
E aquela aurora do dia |
Que faz dela minha mãe! |
|
Parabéns em dia de anos |
Poucos são e são de menos, |
Pois cada dia, em teus planos, |
Grandes fez de nós, pequenos. |
|
Tamanhos marido e filhos |
Tanto nos engrandeceste |
Que nos atas em atilhos |
Com malhas de azul celeste. |
|
Música de anos a fio, |
Eis a paz que comemora |
O que o lar tem de atavio: |
O quanto a gente te adora! |
|
|
387 – Alvor |
|
Há melodias heróicas, |
Outras tristes como o fado. |
Não cantam gestas estóicas |
De quem vive lado a lado. |
|
Parabéns pela alegria |
Que, no esforço repartido, |
Nos repartes cada dia |
Em tanto gesto sumido. |
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Herói nenhum é um herói, |
Pois um herói de verdade |
É quem hoje e sempre foi |
Chave de felicidade. |
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A festa de anos é, pois, |
Quando o alvor foi cada dia, |
A festa de muitos sóis: |
- Hoje e aqui tu tens magia! |
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388 – Acumulas |
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Simulas o que não és |
Se te gabas e não fazes. |
Dissimulas, ao invés, |
Se do que és não te comprazes. |
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Se a virtude dissimulas, |
Tal virtude não ilude, |
Com a modéstia a acumulas, |
Das virtudes é a virtude. |
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389 – Demora |
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É o amor meu inimigo, |
Desejo o que não desejo, |
Temo o que nele prossigo, |
Que ao fim não veja o que vejo. |
E, assim lhe adiando a hora, |
É meu gozo o da demora. |
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390 – Mentado |
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É um amor amor mentado |
Quando o corpo deseja |
E o desejo é desprezado. |
Sem corpo que se veja, |
Incapaz de desejar, |
Um amor não tem lugar. |
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