QUARTO  VERSO

 

 

A norma impõe às asas de seu voo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha um número aleatório entre 391 e 491 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem aprticular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

391 – A norma impõe às asas de seu voo

 

A norma impõe às asas de seu voo

A liberdade assim condicionada.

Tal caminheiro temeroso a estrada

Tomo, segura, a garantir que vou.

 

Então aquilo que sou

Contradita declarada

Será do que na jogada

É o ponto onde começou.

 

Vou ser então aquilo que não dou,

De mim em falta sempre até ao fim.

Como esperar jamais, se o que findou

Era afinal a escada para mim?

 

 

392 – Raças

 

Viver no mundo actual

Contra a igualdade das raças

É no Alasca erguer sinal

Contra a neve a que te abraças:

 

Se da neve me desfaço

De mim não resta mais traço.

 

 

393 – Como

 

O livro alimenta

Como o leite ensina:

O que o livro inventa

O leite o germina.

 

Desde o berço à escola

Marcham combinados,

Tal se desenrola

Nossa vida aos dados.

 

 

394 – Rapidez

 

É já tanta a rapidez

Que meus pais não são meus pais,

Nem meus avós, meus avós:

Coexistimos talvez

Nos espaços siderais,

Mas no tempo estamos sós.

 

Andamos nas mesmas ruas,

Dormimos sob igual tecto

Mas nossas memórias nuas

Vivem o encanto secreto

 

Que há nas estrelas cadentes:

- Com roteiros tão comuns,

Moramos como nenhuns

Em planetas diferentes!

 

 

395 – Realidade

 

A realidade não é

Aquilo que imaginamos:

As coisas grandes e nobres

Em que pomos maior fé,

Se as razões delas olhamos,

São das mais banais e pobres.

 

São fruto do compromisso

Entre um míope egoísta

E a boa sorte imprevista

Que à História acende o chamiço.

 

 

396 – Partilha

 

A partilha do trabalho

Para emprego garantir

Troca as cartas do baralho,

Nada muda ao repartir.

 

É que, se não há retoma,

Morre a economia ali:

Querem tratar do sintoma,

Não tratam do mal em si

 

Do labor manter o posto

Não vai diminuir os custos,

Do novo não cria o gosto…

- Somos, ao fim, mais injustos!

 

Crescimento sustentado

São empresas a expandir-se,

Não a encolher cada lado,

Novos frutos a exibir-se

Dando lucros por contado.

 

Novos campos para agir,

Novos bens, novos serviços

É trabalho garantir,

Em vez de encobrir sumiços

Ao que deixou de existir

 

Recuperar da injustiça

E curar de vez a dor

É estimular para a liça

Quem for empreendedor,

Matar de vez a preguiça.

 

Urge evitar a miséria

Que humilha e nos mata em vida.

Mas a pobreza quer féria,

Aguça o engenho e convida

À luta. Ao invés, pretere-a

 

A segurança, a fartura…

O meio termo intermédio

É o que melhor nos augura:

Nem os excessos do nédio,

Nem as pelancas da usura.

 

Vamos garantir as custas

De sobreviver a custo.

Do mercado então nas justas,

Com o suor mais adusto,

Virão as prendas augustas

 

Com que a vida se melhora

De todos e cada um,

A caminho desde agora

Sem desperdício nenhum.

Vamo-nos daqui embora

 

Rumo às veredas de além

Que é o amanhã que convém!

 

 

397 – Recompensas

 

As recompensas da vida

Advêm do capital:

Do financeiro ou humano.

Herdado, aquele invalida

Os trilhos do bem e mal.

Este, porém, de ano em ano,

Pode apurar seu escorço

Com o treino e com o esforço.

O falhado, a vida inteira

Ignorará, comezinho,

Ser esta a trilha primeira

Que o leva ao outro caminho.

 

 

398 – Patrão

 

Se algum dia for patrão,

Nunca trabalho mais tente

Que o que pode ter à mão

Quem for o seu assistente.

 

Ele é quem goza da fama

De à tarefa andar afeito:

Mais labor por seu reclama,

Vai auferir mais proveito.

 

 

399 – Imediato

 

Quando tens algo a fazer,

Fá-lo logo de imediato,

Que não há tempo a perder

Ao preparar para o acto.

 

Quem gasta em preparativos

O tempo de começar

Não lhe sobra nos arquivos

Nenhum mais com que avançar.

 

Da espera neste compasso

Perdeu mais que o próprio passo:

- Perde de vez o lugar!

 

 

400 – Galho

 

Para evitar atrapalho

Convém que cada qual herde

Tempo e modo de seu galho.

Um perfeccionista perde

Como o que adia o trabalho.

 

Dentro dum prazo previsto

Um projecto é o que melhor

Cada qual se pode impor

E que a tempo leva o visto.

 

Nunca será de somenos

Este equilíbrio entre os mais:

Perfeição nunca de menos

E tempo nunca demais.

 

 

401 – Aventura

 

Os fardos, a papelada,

O mesmo sempre à mistura?

- Abre do espírito a entrada

Com vislumbres de aventura.

 

Não vejas filas de contas,

Números à desfilada,

Vê nisto férias que apontas,

Vê teus clarins de alvorada.

Se por trás de cada linha

Descobres sonho a caminho,

Cada dia te adivinha,

Generoso, o melhor vinho

E aos festejos te encaminha

Com oiros de teu cadinho.

Em vez de fanar de tédio,

Teu tempo é pejado e nédio.

 

 

402 – Presente

 

Fica sempre enternecido

Quem oferece um presente:

De costas pega o bandido

Do egoísmo que alimente,

Abre um pequeno postigo

Na avareza natural

A que, animal, pede abrigo,

Por onde então cada qual

Solta em onda que o invade,

Livre, a generosidade.

 

 

403 – Cordeiro

 

Não deve um homem mostrar

Ao lobo seu semelhante

Mais que o jeito de reinar:

Todo o seu poder pensante.

 

Ao cordeiro, porém,

Importa que empreste

O coração que tem

- Ou dele o que reste!

 

 

404 – Caravana

 

Toda a gente aqui se irmana

Neste planeta, ao formar

Uma imensa caravana

Rumando a nehum lugar.

 

Todos nesta caminhada

Marchamos confusamente,

Peregrinação demente,

Incansável, rumo ao nada.

 

Cerca-nos a natureza

Inconsciente, impassível,

Que não nos vê com certeza,

Não entende a nenhum nível

 

E, portanto, não podemos

Dela aguardar nem socorro,

Lenitivo ao que sofremos,

Nem cura a quanto aqui morro.

 

Só nos resta dirigir,

Na rajada que nos leva,

Nossa mão a quem cair,

Antes que o apague a treva.

 

É na partilha do pão,

No manto que se comparte

No braço que ergue do chão

Que a alegria toma parte.

 

É por esta simpatia

Que, a não haver mais verdade,

Dignos cumprimos o dia

Quando a noite nos invade.

 

Nesta escura debandada

Todos correm para a morte.

A beleza da jornada

É desafiar a sorte:

 

Quem sabe se nalgum dia,

Quando menos se aguardar,

Outro rumo principia,

Rompemos noutro lugar?

 

 

405 – Cantar

 

O trabalho principia.

Parece que em Portugal

É mais uma fantasia,

É mais a festa que o guia

Do que o produto final.

 

Alegria interminável

Numa alquimia sem par,

Por mais inimaginável,

- O labor nos é agradável:

O povo fá-lo a cantar!

 

 

406 – Batalha

 

Não batalhes na batalha,

Que, quando penetras nela,

Não te escapas à metralha

 

Com que teu lado atropela

A justeza das razões

Que o inimigo revela.

 

Nele só verás senões

E nos teus, só maravilhas.

A decência que te impões

 

Morre afogada nas ilhas

Que a tempestade combate

Quebrando-te tuas quilhas.

 

A meio deste dislate,

Como ver num inimigo

A justiça que eu maltrate,

 

Que obrigo a correr perigo?

Antes que a vida as mãos te ate

Descobre nele um amigo.

 

 

407 – Lareira

 

Ao borralho da lareira

Converso chamas e lume

E o calor, à minha beira,

 

Da resina no perfume

Com os pinhais nos irmana,

Todos num só nos resume.

 

Até que o sono dimana

A piscar olhos mortiços,

Pardos, da braseira plana,

 

Com os morrões dos chamiços

A tombarem, num bocejo,

Sobre os carvões quebradiços.

 

E na modorra me vejo

Com os demais a sonhar,

Breve cinza em vago arquejo,

 

Todos fundidos no lar:

Ao fim somos nós, no ensejo,

O brasido a lucilar.

 

 

408 – Frio

 

No mais frio Fevereiro,

Como num frio qualquer,

Por mais que seja polar,

O que o mundo tem primeiro

A que melhor se agarrar

Não será o fogo acender:

- Como em qualquer fuga aos ermos,

Um ao outro é nos prendermos!

 

 

409 – Pessoas

 

Há pessoas em que a ira

Se grava em pedra, em granito:

O tempo gira que gira

E o rancor não trava o grito.

 

Há também quem é de areia:

Fácil a raiva o desenha;

Vem a onda e se passeia

A apagar-lhe toda a sanha.

 

Há quem seja água corrente,

Nada escreve lá o rancor,

Todo o mal dilui em frente,

Mantém límpido o frescor.

 

E se alguém há que, seguro,

Leve uma vida fiável

É quem logra ficar puro,

Água fresca imperturbável.

 

 

410 – Palmatória

 

Sentirei que ao perdoar

Dou a mão à palmatória:

No fim sou quem mais apanha.

Só que, abrindo a porta ao ar,

Não é doutrem a vitória,

É quem perdoa quem ganha.

 

 

411 – Perdão

 

Perdão é matar a raiva,

Restabelecer respeito,

Ofertar a tolerância.

Descobre o modo onde caiba

Um presente ao fim atreito

A acartar teu fardo de ânsia.

Livre a mão e o coração,

Podes então construir

Um nova relação

Onde germine o porvir.

 

 

412 – Detrás

 

Por detrás daquele monte,

Por detrás daquele outeiro,

No limite do horizonte,

Negaceia-me, certeiro,

Um mistério interessante:

Algo anda ali a ocorrer

Que me obriga a percorrer

A encosta que tenho diante.

Assim da vida o presente

Se resume na corrida,

A trepar pela vertente

A ver se alcanço a subida.

Um tesoiro é o que anuncia

A aurora de cada dia.

 

 

413 – Gerações

 

Avançam as gerações

E as novas que vão nascendo

Das antigas os guiões

Apagam como não sendo.

 

Assim é que é deserdado

Um homem de seu passado.

 

Não por amnésia qualquer,

Lobotomia ou lesão,

Mas por breve a vida ser

E o tempo, uma imensidão

 

Em que incontáveis se exigem

Contas que afinal não bastam

Para nos levar à origem

Das pegadas que nos gastam.

Quando ali é que se engastam,

Mais aquém de nossos passos,

Do rumo os perfis e os traços.

 

 

414 – Órfãos

 

Como órfãos nós nos culpamos

De ter sido abandonados.

A culpa nós retraçamos:

Demasia de pecados,

 

Inapeláveis augúrios…

Inseguros, agarramos

Lendas e contos espúrios,

Com o sagrado os armamos

E a quem deles duvidar

Duras penalizações,

Não se vá perder o lar,

Cobrem povos e nações.

 

Era melhor do que nada,

Que admitir que abandonados,

Nus, indefesos na estrada,

Somos somente enjeitados

 

Numa soleira de porta

Que, por mais que nós batamos,

Connosco nada se importa,

- Jamais nos dá quaisquer amos.

 

Assumirmos a alforria,

Mais que uma consolação

É a certeira decisão

Que resta à sabedoria.

 

 

415 – Pedra

 

A pedra me conta a história

Imperfeita e conservada

Do mundo cuja memória,

Escrita em língua empedrada,

 

Tem registo variável

Em difíceis dialectos.

Detemos aqui viável

A actual ficha dos decretos:

Apenas aqui e além

Um capítulo guardado,

Uma página refém,

Umas linhas de traslado…

 

E destas palavras soltas

É que eu irei discernir

Em quantas reviravoltas

Dá o mundo rumo ao porvir.

 

 

416 – Escadaria

 

Desce a negra escadaria

Por onde subiu a raça

E vê que onde principia

Nada lhe indicia a traça.

 

Com escamas, barbatanas

Quem é que adivinharia

As aventuras humanas

Dali vindo à luz do dia?

 

Com sussurros e rosnidos

De cegos e surdos fetos,

Já são olhos e ouvidos

Que então se buscam discretos.

 

Entes unicelulares

Sentindo o sol que não vêem

Estendem tentaculares

Dedos rumo ao que nem crêem.

 

Nos desencontros do acaso

Encontramo-nos por fim,

Fruto a que um nada deu azo

Em busca de seu confim.

 

 

417 – Convivas

 

Por trás da diversidade

De todas as coisas vivas

Somos afinal convivas

No mais fundo em unidade.

 

Somos todos descendentes

Dum comum antepassado

Que a todos nos faz parentes

Em variável traslado.

 

Há quatro mil milhões de anos

Começou esta aventura

Que, sem o ver, dos arcanos,

Ao fim, cega, nos depura.

 

E hoje tudo continua

Por nós e pelos demias

Conforme a evolução crua

Do acaso cruze os sinais.

Onde é que isto irá parar

Ninguém logra predizer,

Somos o fruto do azar,

Resta-nos sobreviver.

 

 

418 – Sidéreo

 

Afinal, todo o mistério

Se resume apenas nisto:

Explode, implode o sidéreo

E, pelo meio, eu existo,

- Um fogo-fátuo de nada

Brilhando vago na estrada.

 

 

419 – Amiba

 

Parte-se uma amiba em duas,

Divide-se em mil milhões

Transcorridas duas luas.

De quantas aqui dispões

Todas são a primitiva

Reduplicada, afinal,

Morta, não, antes mais viva,

Que o tempo lhe não faz mal.

 

Em nós a eterna procura

De fruste imortalidade

Da perca da amiba é cura

Sob a forma de saudade.

 

A que hoje existe é a primeira

Desdobrada desde início.

De nós a herdada peneira

Fez efémero resquício!

 

 

420 – Impulsos

 

A vida troca o prazer

Duma refeição presente

Por um benefício a haver

No porvir que se pressente.

 

E, se é tudo um egoísmo,

Um ele é no curto prazo,

Outro o que aposta no abismo

Do que ao longe vai ter azo.

 

A minha vontade erguida

No manto ancestral a enrolo:

Muito antes de mim, a vida

Em meus votos tem controlo.

 

 

421 – Parentes

 

Nós somos todos parentes.

Que é que importa um sacrifício

Se nos traz o benefício

Da Terra plena de gentes?

 

Por mais que se mostre avara

A sorte quando a pressentes,

Toda a vida é uma seara

Que brotou de iguais sementes.

 

Selecção de parentesco,

A natural selecção

Sou sempre eu que me repesco

Mesmo se me perco em vão.

 

Já que noutrem continua

Esta intérmina aventura,

Vida é sempre o que se apura

No novo lanço da rua.

 

 

422 – Sublimidade

 

Na história da humanidade

Em memória veneramos

Seres de sublimidade

Que, conscientes, sem amos,

 

Pelos mais sacrificado

Se houveram sem qualquer paga.

Mas, por cada um contado

Nesta inenarrável saga,

 

Medimos a imensidade

Dos demais, pela calada,

Pequenez que a vida invade,

Que a vida vivem de nada.

 

 

423 – Todo

 

O fígado, o coração,

O cérebro como os rins

Normalmente dão a mão,

Juntos buscam iguais fins.

 

Operam bem todos juntos,

Não competem entre si,

São um todo em que os assuntos

Em comum, sem alibi,

 

Resolvem. E, com tais artes,

Que é o todo assim muito mais

Que a mera soma das partes:

Disto é que somos sinais.

 

 

424 – Paixões

 

Paixões do sexo e da vida

Dentro de nós são formadas

Sem que alguém de tal decida,

Foram já pré-programadas.

 

Ambas lutam arduamente

Para em comum produzir,

Descendente a descendente,

As condições do porvir.

 

Haver muitos descendentes

É uma etapa essencial,

Se ao de leve diferentes,

Da selecção natural.

 

Nós somos a ferramenta

Incônscia, paga com gozo,

De que a selecção inventa

O robô mais prestimoso.

 

 

425 – Coexistem

 

Coexistem dentro de mim

De dois mundos o sinal:

Um  ao animal diz sim,

Outro, ao espiritual.

 

No discurso de cotio

Balanço do sentimento,

De que sempre desconfio,

Até ao meu pensamento.

 

Dentro de nossa cabeça

São dois modos de lidar:

Sentir – a vida começa;

Pensar – vai-a continuar.

 

 

426 – Volteante

 

Um insecto volteante,

Por mais que ele ande ou desande,

Põe-nos a todos perante

Algo ou alguém que o comande?

 

Ou será uma mera soma

De funções cujo arquitecto

É da evolução a coma

Sem nenhuma alma de insecto?

 

 

427 – Modelo

 

Animais com sensações

Tão diferentes das nossas,

Que divergentes visões

Do mundo serão as vossas?

A cada espécie um modelo

E nenhum deles completo,

Impresso no cerebelo.

Falta a todos um aspecto.

 

Por não estarem completos

Mais tarde ou mais cedo advêm

Surpresas que abatem tectos:

- São os milagres de além!

 

 

428 – Inspiração

 

O mais sublime do evento

Que se chama inspiração

Envolve algum pensamento

Ou vem debaixo do chão?

 

A nossa melhor ideia

Surge-nos do inconsciente

Quando eu urdo ou armo  teia

De algo que é-lhe indiferente.

 

Nossa inspiração pressente

O que se anda encadeando

Muito imperceptivelmente

Por sob os trilhos onde ando.

 

Não me vem da consciência

Mas do degrau dela abaixo,

Vem antes da pura ausência:

Quando a calo é que enfim acho!

 

 

429 – Trilionésimo

 

Trilionésimo dum grama

Pesa a modesta bactéria.

Uma hora após se derrama

Por duas de igual matéria.

 

Estas se desdobrarão

Na hora que for segunda:

Quatro bactérias já são.

Ninguém vê se algo isto inunda.

 

Porém, cem horas depois

E cem gerações passadas,

O peso que ali constróis

São dum monte as toneladas.

 

E nas cento e trinta e cinco

Horas de iguais gerações

São o piso onde me finco:

A Terra a pesar milhões!

 

Se atingem cento e cinquenta,

A incomensurável mole

Ninguém o peso lhe aguenta:

Pesa tanto como o Sol.

Após cento e oitenta e cinco

Imparáveis gerações,

Eis o que dá tal afinco:

Da Via Láctea os baldões!

 

Isto só não ocorreu

Porque falta o alimento,

Mas sempre a vida existiu

À procura deste intento.

 

Se, então, me não ponho em guarda,

A vida fora de mim

Como a que dentro me aguarda

Em breve nos leva ao fim.

 

 

430 – Corrida

 

É a vida humana a corrida

De um só contra umas centenas

De milhões desde a partida.

O espermatozóide apenas

 

Tem de ser melhor que os mais.

Todos são competitivos

Desde o início, com reais

Gestos mais do que impulsivos.

 

Tal competitividade

Procura por objectivo

Cooperar de verdade

No mais íntimo e mais vivo.

 

Duas células se fundem

Numa só, se intercombinam,

Dois seres num se confundem

E as gnéticas atinam.

 

Fabricar um ser humano

É um misto de oposições:

Um combate desumano,

Perfeitas cooperações.

 

Tão perfeitas que, na estrada,

Identidades distintas

Dos parceiros dão em nada,

Um só vem das duas tintas.

 

Seria uma incongruência

Quem vem da rivalidade

E forma tal convergência

Vituperar a verdade.

 

E a verdade é que uma delas

Vale o que vale a rival,

Formam ambas as parcelas

Que um homem somam total.

 

 

431 – Hierarquia

 

Hierarquia definida

Sem quaisquer ambiguidades

Assegura qualquer vida

Contra vãs atrocidades.

A violência acontece

Quando uma organização

De pouco firme fenece

Ou muda de situação.

 

Quando um jovem macho tenta

Ocupar a hierarquia,

Às vezes luta sangrenta,

Até morte ocorreria.

 

Hierarquias dominantes

De paz criam ambiente,

Não há surpresas gritantes,

Compensam bestas e gente.

 

Por mais que inconvenientes

Elas arrastem consigo,

Estáveis dão, permanentes,

À vida o melhor abrigo.

 

 

432 – Parte

 

Quando nós fazemos parte

Da hierarquia de mando,

Combina-se em nós, com arte,

A obediência ao comando

 

Que respeitamos de cima

Com o jeito de mandar

Nos ombros a que se arrima

Meu pé que os põe no lugar.

 

Quanto mais complexos foram

Os desafios da vida,

Mais complexos se decoram

Os seres que então valida.

 

 

433 – Destrezas

 

Aves que são nadadoras,

Pinguins debaixo de água,

Perdem como voadoras,

Como as que são corredoras:

Cada qual em sua frágua

Estas destrezas motoras

Especializou sem mágoa

De outras perder entretanto.

 

A selecção obrigou

A escolher por uma, enquanto

Outra adaptação gorou.

 

O ser que se agarra a todas

As alternativas tende

A ser expulso das rodas

Que o palco do mundo atende.

 

Sobregeneralizar

Será um erro evolutivo,

O que nunca dá motivo

A sobrespecializar.

 

Quem é extremamente bom

Mas num só nicho ecológico

Tende, breve, a uma extinção,

Se muda o quadro biológico.

 

Celebra um pacto faustoso,

Troca um viver duradoiro

Pelas lisonjas e gozo

Dum dia pejado de oiro.

 

Se o meio ambiente altera,

Fabricantes de barricas

Quando a cuba de aço impera,

Ferreiros nas chafarricas

A matutar na galera

Quando já mudámos de era

E hoje impera o automóvel,

Artesão a atar as réguas

De cálculo em dorso de éguas,

No tempo intrépido imóvel,

Quando é uma calculadora

Que aqui no meu bolso mora,

- Enfim, os profissionais

Somente especializados

Morrem pelos matagais,

Do rio da vida aos lados.

 

Irão devir obsoletos

Tão depressa, tão depressa

Que de morte nos seus leitos

Nem de virar a cabeça

Lhes dá tempo a evolução:

Sepulcros é o que já são.

 

Entre os extremos importa

À vida talhar os rumos

E fender a estreita porta

Sem a qual tudo são fumos.

 

 

434 – Espécie

 

Somos animais, não plantas,

Bactérias nem quaisquer fungos.

Estes serão o que jantas

De prazer entre resmungos.

 

Temos vertebral coluna,

Não somos invertebrados

Onde tudo se desuna,

Moluscos, vermes pisados.

 

Temos seios que amamentam

Os filhos, não somos aves

Nem réptéis que, quando aumentam,

Não é o leite que os faz graves.

 

Somos primatas e não

Ratazanas ou gazelas,

Nem guaxinins que serão

Doutros modos e sequelas.

 

Depois somos hominídeos

Mas orangotangos, não.

Lémures também elide-os,

Bem como o macaco-cão.

 

Homo – género que temos

Duma espécie que se isola.

E o chimpanzé que além vemos

A nosso orgulho se imola.

 

Já que a nós mais semelhante

É que qualquer outro símio,

Pomo-lo de nós distante:

O nosso medo deprime-o.

 

 

435 – Limo

 

Toda a carga emocional

De pelo alfa ser tratado,

Comparada, é tal e qual

Ao dom nas mãos trespassado

 

De Xamãs e curandeiros,

Carismáticos e reis,

Endireitas, feiticeiros,

Todos quantos têm fiéis.

 

E todos estes, portanto,

Só trazem bem ao de cimo

O que de longe, estretanto,

Foi o nosso ancestral limo.

 

 

436 – Normas

 

Dos chimpanzés a nação

Tem normas verificáveis

E os membros em regra são

Delas cumpridores fiáveis.

 

Obediente ao superior,

Toda a fêmea se submete,

Carinho ao progenitor

Com as crias se repete.

Têm um patriotismo,

Seu próprio grupo defendem

Contra o perigoso sismo

Dos estranhos que contendem.

 

Partilham os alimentos

E abominam todo o incesto.

Só não têm elementos

Que legislem tal apresto:

 

Não têm tábuas de pedra

Nem quaisquer livros sagrados

Onde se inscreve e onde medra

A lei que combina os fados.

 

Apesar de tudo, é

Similar a uma moral

O que opera o chimpanzé,

Já que entre humanos é tal.

 

 

437 – Duzentas

 

Nós, humanos, não viemos

De nenhuma das duzentas

Mais espécies de primatas

Que hoje vivem e que vemos.

Ao invés, nossas ementas,

Desde as avoengas datas

Evoluíram conjuntas

De comuns antepassados.

- Se genealogias juntas,

Juntas parentes chegados.

 

 

438 – Evolutiva

 

Os gorilas bifurcaram

Desta linha evolutiva

Oito milhões de anos antes.

Os chimpanzés desviaram

Connosco em igual deriva

A um milhão de tais instantes.

 

Nós e eles, entretanto,

Nos vimos desenvolvendo

Cada qual para seu canto.

 

E assim, vivendo e morrendo,

Divergiram os destinos.

 

Num planeta que é habitado

Há mil vezes estes finos

Nacos de tempo passado,

Foi muito recentemente:

É como se, de repente,

Em cinco anitos de vida

Eu vivesse aqui somente

Quinze dias de seguida.

 

 

439 – Cinquentenário

 

Somos há um dia de vida

Dum qualquer cinquentenário,

- Assim nos pode ser lida

A rota do itinerário.

 

Vinte e cinco milhões de anos:

Macacos do Velho Mundo

Largaram nossos arcanos

Marcando outra rota a fundo.

 

Há dezoito, eis os gibões,

Há catorze, orangotangos,

Gorila há oito milhões

E o chimpanzé come os mangos

 

Há uns seis milhões apenas.

E as espécies chimpanzés

Correm três milhões de penas

Cada qual pelos seus pés.

 

O nosso género de Homem

Tem dois milhões de anos curtos,

Como homo sapiens se somem

Por milénios os seus surtos.

 

Entre cem, duzentos mil:

- É só um dia de fadário

A rematar o perfil

Dum qualquer cinquentenário!

 

 

440 – Genealogia

 

A genealogia raro

Chega às trinta gerações.

Com detectivesco faro,

De três ou quatro dispões

Na maioria dos casos.

Antepassados remotos,

Meros fantasmas de acasos,

São pouco menos que ignotos.

 

Centenas de gerações

Nos desligam do momento

Da alvorada em que houve o invento

Que fez civilizações.

 

Milhares de elos nos levam

Da nossa espécie às origens

E cem mil já nos elevam

Do primeiro Homo às vertigens.

 

Quantas gerações nos ligam

Às moléculas orgânicas?

As distâncias nos obrigam

A mais de cem mil milhões

Rumo às caldeiras satânicas

Que inventam reproduções.

A nossa genealogia

Se encontra dignificada

Pela mole de inventores

Que nos tiraram do nada

E, ao sabor de cada dia,

Fizeram de nós senhores.

 

São auto-replicações,

A célula, a predação,

As proteicas produções,

Ainda a cooperação,

Simbiosa, fotossíntese

E o respirar de oxigénio

E de contrários a síntese

Que o sexo erige com génio.

 

Invento que nós usamos

Quase minuto a minuto

E nunca sequer pensamos

Donde herdamos tal produto.

 

Benfeitores ignorados

Numa intérmina cadeia:

- Cem mil milhões de elos dados

Que trepam da base à ideia!

 

 

441 – Fingir

 

Vamos deixar de fingir

Que somos o que não somos:

Nem bichos por nós medir,

Nem aparte discutir

Se nos pomos ou não pomos.

Entre os extremos mais plenos,

Com marca de nosso lar

São os do meio terrenos

Que podemos cultivar.

 

 

442 – Ferramentas

 

Teremos de trabalhar

Com ferramentas que temos:

Com que viemos a dar

No que somos e queremos,

Com que se há-de ultrapassar

Um mar de falhas a remos.

 

Depois então poderemos

Principiar a criar

Uma sociedade menos

Apta a trazer cá por fora

O pior que em nós demora,

Buscando sonhos mais plenos.

 

 

443 – Arcanos

 

Matámos chefes divinos,

Libertámos os escravos

E a mulher já canta os hinos

De sotaques femininos

Com o macho de tons cavos.

 

Acresce a democracia

Mais os direitos humanos.

Tão depressa é a correria

Que quem o apreciaria

Já nem vê disto os arcanos.

 

Foi tudo tão de repente

Que isto sozinho refuta

Quem o futuro pressente

Que nos tem pena pendente

Que já nada nos comuta.

 

É tal esta rapidez

Que a selecção natural

Se perde ao longe de vez,

Quem a nós isto nos fez

É o processo cultural.

 

Ele à tona nos faz vir

Tendências, disposições

Enraizadas no devir

Por onde estamos a ir:

- Eis as nossas soluções!

 

 

444 – Ansiedades

 

O que espanta é que os famosos

Como nós as ansiedades

Sentem no meio dos gozos.

Só que arranjam, pressurosos,

(Enquanto te persuades,

De hora em hora, a enfrentá-las)

A forma de ultrapassá-las.

 

 

445 – Quebro

 

No meu tipo de trabalho

Eu em pânico entraria

Se o não quebro galho a galho.

Cada qual enche meu dia

E assim já não me atrapalho

Com o peso do produto:

- Vou colhê-lo fruto a fruto.

 

 

446 – Professor

 

Ser bom professor requer

Um quarto em preparação,

Três em representação,

Mais gostar do que fizer:

- E este mais é, na verdade,

Que ao fim dita a qualidade!

 

 

447 – Demora

 

Cada qual de sua vez,

Muitas coisas vou fazer.

Muitas posso, no entremez,

Evitar de empreender.

- Das escolhas a demora

Será meu ganho de agora:

A fuga ao determinismo

É da liberdade o abismo.

 

 

448 – Inexplicável

 

Por muito que nós tentemos,

Do inexplicável a peita

Em nossas vidas espreita

E aplacá-la só podemos

 

Crendo o sobrenatural,

Excepto se preparados

Formos por todos os lados

A lhe enfrentar o sinal,

 

A atacar precisamente

Aquilo que nos é estranho:

Àquilo que nunca apanho

Se o quiser olhar de frente.

 

 

449 – Gerando

 

Andamos gerando história

Há sete mil anos só

E há cem mil, reza a memória,

O homo sapiens deu o nó.

 

O Sol, aparentemente,

Há cinco biliões de anos

Que evolui resplandecente

Nos rumos circadianos.

A Galáxia foi formada

Há mais de dez biliões

E há doze foi a granada

Cósmica das explosões.

 

No catálogo do imenso

Sou eu que talho a medida:

Perco-me se nisto penso,

Que é que será nossa vida?

 

 

450 – Marca

 

Nenhum de nós quer morrer,

Mas a morte nos habita,

Saibamo-lo ou nem sequer,

Ninguém sabe como a evita.

 

Todo o ser vivo começa

Logo a morrer mal nasceu,

Ninguém foge ao que o processa,

Ser mortal é um selo meu.

 

Morte é a marca decisiva

Que torna uma coisa viva.

 

 

451 – Estrela-neutrão

 

A estrela-neutrão

É a bola homogénea

Tão densa no chão

Que lá pesa em média

 

Uns mil biliões

De vezes o peso

Das águas que pões

Nas bilhas por vezo.

 

De fósforos uma caixa

Um milhão de toneladas

Pesará se nela encaixa

Daquilo umas colheradas.

 

Entretanto, são pequenas

Estas estrelas estranhas:

Quilómetros vinte apenas

São os que delas apanhas.

 

Não têm quaisquer montanhas,

Já que as mais altas dentre elas

Têm quinze, em tais estrelas,

Centímetros de tamanhas!

 

O mais bizarro, por fim,

É que as entendo melhor

Que entendo qualquer confim

Da Terra em que sou senhor!

 

 

452 – Crítico

 

Crítico tamanho

Duma estrela morta

A partir do qual

Dela nada apanho,

Que fechou a porta

A todo o sinal,

É num centímetro apenas

A Terra apertar que tenho.

Se a dimensões tão pequenas

A comprimir teu amanho,

Nem ela nem o que esteja

Numa superfície tal

Libertar-se nunca almeja:

Seria a prisão total.

 

Porém, como é que se apura

Em nossa imaginação

Que será uma compressão

Duma tal envergadura?

 

 

453 – Gémeo

 

Um gémeo que ganhe a vida

A voar de foguetão,

Enquanto que o seu irmão

Dorme na esteira estendida,

 

Virá jovem despedir-se

Do irmão no leito de morte:

Este, velho, anda a esvair-se;

Novo, aquele ruma ao norte.

 

Um relógio em movimento,

Quanto mais acelerado

Mais devagar o momento

Nele tomba no passado.

 

Assim é que, acelerado

Trezentos mil por segundo

De quilómetros, um dado

Eterno mora no mundo:

O tempo fica parado.

 

E devém ele infinito,

Tornado energia pura:

- É a meta que identifico,

Termo de minha amargura?

 

 

454 – Mortalidade

 

Aceito a mortalidade

Mas quero que minha luta

Pelo futuro, em verdade,

Preserve toda a labuta.

 

Esperamos atingir

Parte da imortalidade

Como herança do porvir,

Do filho à vindoira idade.

 

Mas teremos de aceitar

Que este imortal é impossível:

Biliões de anos vão passar

E um buraco negro, é crível

 

Finda por nos capturar.

O nosso futuro é incerto

E, por mais longe que olhar,

Meu jogo joga aqui perto.

 

 

455 – Objectivos

 

Os mais altos objectivos,

Aceites sem objecção,

São de nos mantermos vivos,

Geração a geração.

 

A ausência deles implica

O fim de todos os mais.

Sobreviver é o que explica

A estrada por onde vais.

 

Vale por si e por meio

Ser por onde outrem prossiga.

E assim a vida é o enleio

Da teia que tudo liga.

 

 

456 – Imortalidade

 

Temos a imortalidade

Num Universo oscilante:

Explode, implode. E o que invade

O meio tempo, adiante,

De vida é fecundidade.

- O Cosmos ei-lo perante

Um modo da eternidade.

 

 

457 – Subliminar

 

A mente subliminar,

Lixo com pepitas de oiro,

Tenta sempre apresentar

Um palpite ou um agoiro.

 

E o pensamento desperto

Cobra ali conhecimento

Como desperto decerto

Não cobra em nenhum momento.

 

É todo o mundo submerso

Duma personalidade

Que nos encanta num verso

Que é um eco da eternidade.

 

 

458 – Acreditar

 

Acreditar não é assim

A atitude positiva

Sobre a coisa, com o fim

De a manter de mim cativa.

 

É a reserva de energia

Que me posso armazenar

Para a poder libertar

Quando tal me conviria.

 

A esperança das pessoas

É que uma prece resulte

Devido à carga de loas

Concentrada no que indulte

 

E não por mor das palavras,

Das chaves ou frases feitas

Com que a terra virgem lavras

Sempre achacada às maleitas.

 

Anima-as a intensidade

E uma forma especial:

- Isto o ignoto (creio) invade,

Põe-nos lá de igual a igual.

 

Igreja ou superstição,

A diferença é nenhuma:

As formas de adoração

Todas são apenas uma.

 

 

459 – Ritual

 

Quando as bruxas se empenhavam

Em cumprir o ritual

Com uma emoção total

Tudo então multiplicavam.

 

Se ao trigal falo, hoje em dia,

Mesmo sem já usar vassoira,

Muito mais trigo se aloira,

Como na ancestral magia.

 

Crer na verbalização

Dos desejos é o inato

Do homem na concepção

Em que me aos princípios ato.

 

Diga-se a palavra exacta

E as coisas ocorrerão,

Diga-se a errada e desata

A maior complicação.

 

As palavras são gatilhos,

Ferramenta de crianças

Com que da acção os nodilhos

Desatas de quanto alcanças.

 

 

460 – Extra-sensorial

 

A positiva energia

Força a coisa a acontecer,

Extra-sensorial magia,

Permite enfrentar o dia

Sem receio de perder.

 

As pessoas correspondem

A quanto se espera delas

E os amigos não escondem,

Que aguardavam já o que apelas.

 

Um homem fica feliz:

É o autocarro à tabela,

Um encontro que nos diz

Que nosso labor condiz…

- Todo o sonho tem sequela!

 

 

461 – Sonhador

 

Excêntrico é um sonhador

Que anda com passos de lua:

Ninguém lhe atura o calor

Dos nadas em que flutua.

 

Porém, pode ser também

A imaginação desperta

Que abarca o infindo que tem

A possível descoberta.

 

Liberto assim das grilhetas

Das verdades consumadas,

O explorador ganha aletas

Do mistério nas estradas.

 

 

462 – Ligue

 

Um homem terá de ter

Qualquer coisa a que se ligue,

Que à terra prenda quenquer

E que consigo não brigue,

 

Que dele esteja tão perto

E seja tão pura e sã

Que ele possa ficar certo

De a lá encontrar de manhã.

 

 

463 – Nuvens

 

Enormes nuvens inchadas,

Como de algodão pejado,

Trepam do mar em levadas,

Pousam no cume empinado

 

E depois voltam ao mar

Como aéreos navios

Que a terra vão vigiar,

Soltando líquidos fios

 

Entre os músculos do vento.

São uma guarda avançada

Para o reconhecimento

- E ao fim a vida é chegada!

 

 

464 – Miniatura

 

Haverá homens nascidos

Bem além da humanidade,

Ou tão humanos são tidos

Que os mais não são de verdade.

 

Assim é que em miniatura

Um deus viverá na terra

De vez em quando, em figura

A que a fé se nos aferra.

 

Como os montes que se somem

Quando enfloram vida a rodos,

Esse homem não será um homem

A menos que seja todos.

 

 

465 – Evangélico

 

Que de evangélico há mais

Do que esta delicadeza

Sem prédicas nem morais,

Sem a reza que despreza?

 

Há lá maior compaixão

Por quem tem uma ferida

Do que obrigar-me a que não

A toque nem de fugida!

 

 

466 – Animais

 

Moram animais num homem

Desde a amiba até às águias

E o rosto lhe não consomem,

Embora o gesto lhe afaguem.

 

Para que lho não apaguem,

Ele dentre eles é um só.

Ocorre que em breve o traguem:

Uns poucos mudam-no em pó!

 

 

467 – Vento

 

Passa o homem como o vento.

Porém, o trabalho dum

Doutro somado ao intento

Não deixa canto nenhum

Como ao primeiro momento.

 

Labor a labor somado,

Morto o autor e já esquecido,

Lento o mundo vai mudado

E um novo mundo é erigido.

 

 

468 – Revolução

 

Nunca uma revolução

Deveras vai ser vencida,

É da Providência a mão

Com o fado por medida.

 

Rebenta e desaparece

E nunca mais se desdobra,

Só que onde menos parece

Prolonga secreta a obra.

 

Acabaram as espadas,

Dos disparos os fulgores,

É o tempo de abrir estradas,

É o lugar dos pensadores.

 

 

469 – Corda

 

Quando a uma ilusão já demos corda,

Ela trabalha pelo tempo além,

Mesmo depois que em nós já nada acorda.

O relógio não pára de repente,

Pois a pilha de alimento ainda o mantém

Mesmo quando já dele se perdeu a gente.

 

 

470 – Devaneio

 

Se eu pudera penetrar

Na carne da consciência

Doutrem eu ficara a par.

E mais pelo devaneio

Do que pelo que pensar.

O pensar sofre a influência

Da vontade pelo meio.

No devaneio espontâneo

Sou de mim contemporâneo.

 

 

471 – Emulação

 

Distribuir por igual

É abolir a emulação,

Mata a força laboral,

É preguiça em vez de acção.

 

Um magarefe tal qual

É quem usa uma tal arte:

Ao entalhar o animal,

Mata aquilo que reparte.

 

E quem matar a riqueza

Como pode reparti-la

Se, de tanto que a despreza,

A mata fila por fila?

 

 

472 – Limites

 

Ir ver a nascer o sol

No cume dum monte ameno

É aquele prazer sereno

De quem nos limites bole:

- Dos que entrando vão na vida,

Dos que já vão de saída.

 

 

473 – Criancice

 

Um amor é criancice,

Outras paixões, pequenez.

O que nestas é sandice

Devém naquele a prenhez

Que gera, em vez do pequeno,

Da criança o sonho pleno.

 

 

474 – Caldeira

 

Se na caldeira houver força,

O poder só o há na mente.

O que ao mundo após si força

Não são as locomotivas

Mas estoutras coisas vivas:

- As ideias que eu invente!

 

 

475 – Piropo

 

Quando dirijo um piropo

À mulher a quem amar,

É uma carícia no escopo,

Meia audácia a intentar.

 

Aproveitar um ensejo

De vislumbrarmos o céu,

A amabilidade é um beijo

Dado por cima dum véu.

 

 

476 – Barricada

 

De que é feita a barricada?

Do entulho de seis andares

Damolidos para a estrada?

Ou da estrada que os vagares

Rasgam da cólera unida?

Tem o rosto da ruína

Mas é coisa construída.

- E da destruída é sina!

 

 

477 – Germe

 

Vem o germe da igualdade

Duma educação gratuita.

É que o alfabeto se há-de

Em folha semear muita

 

E à fome ofertar colheita

Em que duma escola idêntica

A Pátria, ao iníquo atreita,

Gere uma equidade autêntica.

 

Mais instrução é mais luz:

A letra duma revolta

Em luz tudo nos traduz,

Dela vem e a ela volta.

 

 

478 – Portagem

 

Na avenida do futuro

Horas de revolução

Um preço pagam e duro.

É a portagem por caução

De que compensa a função

De quanto então inauguro.

 

 

479 – Rio

 

Um rio sempre tranquilo

Não pode ser o progresso.

Podem pedras impedi-lo

Se de ondas houver excesso.

 

No açude escumam as águas

Com a violência com que há-de

Romper a teia das mágoas

Que agitam a humanidade.

 

 

480 – Leis

 

Tudo quanto as leis humanas

Alguma vez perseguiram,

Gestos que despertam ganas,

Protestos que se insurgiram,

Refúgio sempre encontrou

Nas catacumbas urbanas,

Nos esgotos do que sou.

- Sob a terra, permanente,

É que germina a semente.

 

 

481 – Pão

 

Felicidade sozinha

É tal qual um pão singelo,

Come-se bem na cozinha,

Não é o jantar a que apelo.

 

O que não serve de nada,

Demasias da ternura,

É o que traz à jantarada

As mãos dadas da ventura.

 

 

482 – Chão

 

Sempre o sonho aproveitai

E subi das terras chãs,

Que ao arreardes o estai

No charco dareis em rãs.

 

Quem a brisa houver, afague-a,

Seja, por uns tempos, águia!

 

 

483 – Ingrata

 

Muito ingrata é a natureza!

Entre toda a criatura

Corta as que chegam, que preza,

Das que partem, que descura.

 

As que partem têm a frente

Para a sombra já virada.

Quem chega tem-na voltada

Para a luz que há no presente.

 

Daqui vem o afastamento

Que nos velhos é fatal

E nos novos é elemento

Inconsciente e vital.

 

A bifurcação dos ramos

Gradualmente aumentando,

Por ela no tronco damos

E no fim mal se vê quando.

 

Sem nunca se desprenderem

Nem se perderem de vista,

São velhos a se esquecerem

Dos novos que a vida invista.

 

Até ao fim sempre unidos

Como que a pedir desculpa,

São de distância fundidos

E de tal ninguém tem culpa.

 

 

484 – Dois

 

Quando dois fazem amor,

São duas mentes na cama,

Dois os sentidos da trama

Que única se irão propor.

 

Observar o parceiro

Enquanto se faz amor

Excita a meias, primeiro,

Vê-lo a ver-nos é melhor.

 

Na trança feita em comum,

Já não são dois mas só um.

 

 

485 – Erros

 

Os homens mais virtuosos

São moldados pelos erros

E no bem são mais airosos

Quão mais erros põem a ferros.

 

Cada queda é ocasião

Para de vez melhorarmos,

Saber emendar a mão

Leva a nos agigantarmos.

 

Melhor não é quem não erra,

É o que em melhorar se aferra.

 

 

486 – Forte

 

Em qualquer família forte

A repetição constante

É a raiz da aprendizagem.

E aquilo que marca o norte

São as regras que, adiante,

Explicadas, nos coagem.

 

A norma com a razão

Aos filhos firme dá chão.

 

 

487 – Altura

 

Uma altura especial

Para se atender aos filhos

Jamais foi um ideal.

Ultrapassar os sarilhos

É atender ao imprevisível:

- Andar sempre disponível.

 

 

488 – Ritual

 

Uma família feliz

Respeita o seu ritual.

É a fonte que mais condiz

Com sua força motriz,

Partilha tradicional

Onde a planta tem raiz:

Só daí mostra o que vale.

 

 

489 – Tarefa

 

Numa família que é forte

Todos trabalham a par,

Adultos como crianças.

Não é trabalho de morte,

Mas tarefa regular

Que entre todos ata as tranças.

 

 

490 – Humor

 

Uma família feliz

Tem a marca registada

Do bom humor, com cariz

De brincadeira acabada:

Jamais é malicioso

Humor com que a mim me gozo.

 

 

491 – Longe

 

Um amante a agigantar

A efervescência da amada

Longe é que assenta o lugar

Donde a torna requestada.

 

É que em amor uma espera,

Bem longe de fazer mal,

O fôlego recupera

Quando já nada lhe vale.

 

A presença diminui

A fama que alguém tivera

E a distância restitui

A luz a qualquer quimera.

 

O valor perderá brilho

Se tocado em demasia.

Mais que à vista corre o trilho

Longe, longe, a fantasia.