SEXTO VERSO
De bom humor constata o que
sobrou
Escolha um número aleatório entre
566 e 641 inclusive.
Descubra o poema correspondente
como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
566 - De bom humor constata o que sobrou
De bom humor constata o que sobrou
Nas cinzas de cotio
A nossa reserva de fastio
E a rir me vou.
O riso engana o destino
Na fronteira do que sou
E, clandestino,
De contrabando a prenda que me dou
É o vestígio do que tenho de divino.
567 - Conversar |
|
Arte de bem conversar |
É dar ao
trânsito abrigo |
Com placas onde parar, |
Em locais onde
há perigo. |
|
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568 - Viagem |
|
A viagem de ida
e volta |
Ao trabalho que interessa? |
- Ao ir,
imagino à solta |
O que farei,
peça a peça; |
À vinda,
explico o cariz |
Das razões por
que o não fiz! |
|
|
569 - Meteorologista |
|
Quando o meteorologista |
Céu parcialmente nublado |
Previu para a
festa em vista, |
Se é um nevão
que após é o dado |
Contra o qual o
grupo invista, |
A tentação que
nos tenta |
|
É gritar ao cientista |
Enquanto o nevão assenta: |
“Pega na pá e,
cuidado, |
Anda já cá remover |
O palmo aqui a
crescer |
De parcialmente nublado!” |
|
|
570 - Inteligente |
|
- Que criança inteligente: |
Com oito meses
e anda! |
- Esperta mais, é evidente, |
É aquela que
nos comanda, |
Logo da idade
mais breve, |
Que no colo
outrem a leve! |
|
|
571 - Carteiro |
|
Se tens amor verdadeiro, |
Não lhe
escrevas todo o dia, |
Que, ao fim dum
ano, a magia |
Fá-lo-á casar
co’o carteiro! |
|
572 - Hora |
|
A hora ideal |
De as crianças
pôr na cama |
Sofre dum grave senão: |
A hora que não
fará mal |
À paz de quem
as ama |
- É quando elas vão! |
|
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573 - Multidão |
|
Cantar numa multidão |
Tem a vantagem |
De eu poder
cantar sem tom, |
Com a voz em
derrapagem. |
|
Tem a desvantagem |
Do desencanto |
Quando a meu
lado adivinho |
Qualquer vizinho |
A fazer outro tanto! |
|
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574 - Maçadora |
|
Por que é que
uma pessoa maçadora |
Nunca está rouca? |
A toda a hora |
A vida é louca! |
|
|
575 - Vizinho |
|
Sempre quando à
meia-noite |
Do vizinho a
luz do carro |
No sono te
cospe o escarro, |
No descanso dá
um açoite, |
|
Resmungas
quanto ele foi-te |
Violar da miga
o tarro, |
Lacrau por sob
o chaparro, |
Quão tal
irrespeito doi-te. |
|
E, afinal, aconteceu |
Até uma noite
em vigília. |
Queixas-te para
a família: |
|
- É que em toda
a madrugada |
O tipo não deu
entrada! |
Que raio! Que o
impediu? |
|
|
576 - Aldeia |
|
Numa aldeia, em Portugal, |
Linda casa em cantaria |
E, ao lado, no
chavascal, |
Uma estranha moradia. |
|
“É dum que
trabalha em França” |
- Informa um
ganhão na apanha. |
“ E a maior,
que mal se alcança, |
É dum outro da
Alemanha”. |
|
“Então já sei”
- lhe respondo - |
“Que ao paço a
que além me vou |
Da América lhe
anda pondo |
Alguém milhões que ganhou”. |
|
“Nada disso! Cá
da terra” |
- Me retruca o jornaleiro - |
“Quem erguendo
vai na serra |
Maior palácio é
o pedreiro!” |
|
|
577 - Gabar |
|
Homem de
noventa e três |
Anos anda-se a
gabar, |
Após casar-se
outra vez |
Com uma jovem
sem lar, |
Que ora um
filho está a aguardar, |
Enfim, da
esposa em prenhez. |
|
Conto-lhe a
história da caça |
Em que um
homem, distraído, |
Em vez de arma,
o que sobraça |
É um
guarda-chuva perdido. |
Vê uma fera e,
surpreendido, |
Dispara e mata
a pacaça. |
|
“Ah, não!” -
clama o inocente. |
“Alguém disparou por ele. |
Alguém o fez!” Convincente, |
Sem lhe rogar
pela pele, |
Confirmo, antes que interpele: |
“Pois é isso exactamente!...” |
|
|
578 - Inversa |
|
Na inversa vida
de agora |
Ninguém com a
norma atrema: |
- Vou, de
hábito, jantar fora, |
Volto a casa a
ver cinema! |
|
|
579 - Sorriso |
|
O sorriso tem origem |
No arreganhar dos dentes, |
Com as
mensagens que afligem: |
“És comida, não
me tentes! |
|
Porém, embora equipado |
Para te comer, comigo |
Ficas seguro a
meu lado |
Porque, enfim,
sou teu amigo.” |
|
|
580 - Macacos |
|
Se os macacos são |
Nossos parentes chegados |
Que é que revelarão |
De nossos dados? |
- Fomos mesmo
apanhados! Fomos mesmo apanhados! |
|
|
581 - Simiescos |
|
Somos todos simiescos, |
Macacóides, até ver: |
Nossos gestos principescos |
Nem nossos serão sequer. |
|
Se for
chimpanzé o parente, |
Das raças a
mais chegada, |
Como é que a
gente se sente |
A tal gente aparentada? |
|
Falo com gestos exímios, |
Escolho, terei opções... |
Tal e qual como
estes símios: |
- Somos todos macacões! |
|
|
582 - Chimpanzé |
|
Meu mais próximo parente |
Vem a ser o
chimpanzé. |
Do chimpanzé igualmente |
Será o homem
quem o é. |
|
Não será o orangotango |
E também não o
gorila. |
São as pessoas,
não mango, |
Dele o primo
anel da fila. |
|
Só depois, longinquamente, |
De homens e de
chimpanzés |
É o gorila
ainda parente |
Da cabeça até
aos pés. |
|
Somos primos mais inatos |
Do que os
burros e os cavalos, |
Que as
ratazanas e os ratos, |
Do que os perus
e os galos. |
|
E agora quem me
diria, |
Por sobre a
minha eminência, |
Que vinha
encontrar-me um dia |
Dum chimpanzé na aparência?! |
|
|
583 - Dominância |
|
A hierarquia |
De dominância |
Desarma e guia |
Qualquer instância. |
|
Impede a luta |
Dos subordinados, |
Que qualquer disputa |
Obedece aos brados |
Que programados |
Geneticamente |
Tornam obediente |
Qualquer dos descuidados |
De qualquer patente. |
Dois ou três gritos |
Logo nos soldados |
Inibem conflitos. |
Em todos os lados |
Igual é o apresto: |
Em símios danados |
E em homens ao
resto. |
|
|
584 - Sobrepovoamento |
|
Quando há sobrepovoamento |
Os chimpanzés são afáveis, |
Acalmam raiva e tormento |
E as discussões evitáveis |
|
Impedem, bem educados. |
O papel é feminino, |
Com os constantes recados |
A ordenar o desatino. |
|
Isto só nos encoraja, |
Na política mundial, |
A que mais
mulheres haja |
Em soma proporcional. |
|
|
585 - Corneado |
|
Na selva ou no
cativeiro, |
O macaco corneado, |
Quando o descobre, primeiro, |
É contra a
fêmea assanhado. |
|
Logo a ataca, |
Arrasa, aplana, |
Que, porventura, a macaca |
Foi por demais leviana. |
|
E depois é mais
seguro |
Não ir contra o
destino: |
Atacá-la é
menos duro |
Do que um rival
masculino. |
|
Na selva ou no
cativeiro |
Nós temos cada parceiro! |
|
|
586 - Galho |
|
Seis milhões de
anos atrás |
A árvore da evolução |
Bifurca o galho
que faz |
Do chimpanzé nosso irmão. |
|
|
587 - Armazém |
|
O cérebro dos primatas |
É um armazém de
rancores. |
Se és macaco,
não empatas, |
São minutos teus furores. |
|
Se és um
chimpanzé, porém, |
Durarão horas ou dias, |
Mesmo se a
fêmea mantém |
Actos contra o
que ousarias. |
|
Se os ódios são
entre as fêmeas |
Podem durar
toda a vida, |
Não há bolos,
não há sêmeas, |
Nada à paz de
vez convida. |
|
Entre humanos durarão |
De minutos a milénios, |
Depende de como são |
Os motivos e os
convénios. |
|
Dos macacos até nós, |
Um qualquer ressentimento |
Pode ir até aos
avós |
E aos netos,
sem linimento. |
|
Quem genéticas diria |
As balas duma escopeta |
|
Que as tragédias inicia |
De Romeu e Julieta? |
|
|
588 - Primatas |
|
Os programas dos primatas |
São abertos, adaptáveis |
E flexíveis, ajustáveis |
Como os que em
ti mesmo acatas. |
|
É constante a ambivalência |
Bem como a complexidade, |
É comum a incoerência... |
- És primata de verdade! |
|
|
589 - Arsenal |
|
Os assassínios em massa |
Não existem, nem couraça, |
Nem um bélico arsenal |
No demais reino animal. |
|
Destes tais antepassados |
Menosprezamos arcanos |
Quando os
culpamos dos dados |
Que são culpa
dos humanos. |
|
|
590 - Banca |
|
Nós confiamos na banca |
Para nos guardar dinheiro |
E a banca fora
nos tranca, |
Nem nos
empresta um tinteiro! |
|
|
591 - Lâmpada |
|
Uma lâmpada fundida |
Cinco políticos quer |
Para a muda que
é devida: |
O que a muda
há-de fazer, |
Mais quatro, em contrapartida, |
Que juram por
quanto houver |
Que não estava fundida! |
|
|
592 - Livro |
|
Da mulher eu
não me livro |
De me ser complementar: |
- Enquanto eu
mudo de livro, |
Ela muda-o de
lugar! |
|
|
593 - Exposição |
|
O que é ter
falsa cultura? |
É haver uma exposição |
Em que, com
toda a candura, |
Alguém confunde no chão |
Qualquer de algo protecção |
Com obra de
estilo, pura |
E com tanta ou
mais proposta |
Que outra ali
ao lado exposta! |
|
|
594 - Estatísticas |
|
Estatísticas são contas, |
São números à procura |
Daquilo que os assegura: |
- Argumentações já prontas! |
|
|
595 - Educação |
|
Educação é o
que fica |
Quando já nos esquecemos |
De tudo o que
qualifica |
Tudo aquilo que aprendemos. |
|
|
596 - Insónia |
|
A melhor cura
da insónia |
Tem a mezinha caseira |
Que trata sem acrimónia: |
- O alvor de
segunda-feira! |
|
|
597 - Cadeiras |
|
Talha teu lugar |
Por entre as carreiras: |
Escolhe uma e vai. |
Quem se quer sentar |
Em duas cadeiras |
Entre as duas cai. |
|
|
598 - Sintetizar |
|
As relações
pais e filhos |
Podem-se sintetizar |
Não tanto pelos sarilhos |
Mas dum modo circular. |
|
Quando alguém
tem cinco anos |
No pai verá, sobretudo, |
Não fraqueza e desenganos, |
Mas alguém que
sabe tudo. |
|
Porém, quando
se tem doze, |
Qualquer certeza se esvai |
E, enquanto as
dúvidas cose, |
Já não sabe
tudo o pai. |
|
Aos dezoito se consuma |
A arrasante caminhada |
E o que se
conclui, em suma, |
É que o pai não
sabe nada. |
|
São depois os
vinte e cinco |
E, ao constatar
quanto pranto |
Paga as lutas
com afinco, |
Sabe o pai,
afinal, tanto! |
|
Se trinta e
cinco se tem, |
Perante o vazio agudo: |
“Quem me dera o
pai e a mãe! |
Eles, sim, sabiam tudo!” |
|
|
599 - Vira-vento |
|
Muito pior que
um tormento |
É apagar-se
nossa estrela: |
A mulher é um
vira-vento, |
Só um louco se
fia dela! |
|
|
600 - Estelar |
|
Muitos ainda não acreditam |
Que o telefone
estelar já se montou, |
À espera de que
eles emitam... |
...Apenas ainda ninguém ligou! |
|
|
601 - Ovnis |
|
A atitude da
Força Aérea |
É simples e linear: |
- Os ovnis são
uma léria |
Mas os aviões
têm ordem para os atacar! |
|
|
602 - Vaca |
|
Passa um ovni.
Quando passa, |
Somos a vaca no
prado |
A olhar o
comboio, lassa, |
Ruminando ali de lado! |
|
|
603 - Disparates |
|
Caos tradicionalista, |
Esta igreja de dislates |
Demoli-la tenho
em vista. |
Porém,
logra-se-me a pista: |
- Logo há novos disparates! |
|
|
604 - Atracção |
|
O que busca o
peregrino |
No local da aparição |
É espectáculo divino: |
O milagre é uma
atracção! |
|
|
605 - Vender |
|
Quando um artista aprender |
Pretende num seminário |
Como a pintura vender, |
Vai correr um
mau fadário. |
|
“Em arte
vendes-te a ti!” |
- Diz o mestre
da sessão. |
“Se és
vanguarda, um alibi |
É vestir sem convenção; |
|
Se és paisagem realista |
Com gestos de
povo ao vivo, |
Importa que
isso te vista, |
Tal se lá foras
cativo.” |
|
“É quanto basta, querida!” |
- Ouvirás ao lado tu. - |
“No resto da
tua vida |
Não pintas mais
nenhum nu!” |
|
|
606 - Tempo |
|
Se queres ver
algo feito, |
A quem não tem
tempo o pede; |
Se o não queres
a preceito, |
A quem tempo
tem o cede. |
|
Quem não tem
tempo é que faz |
Tudo o que tem
a fazer; |
Quem o tem é
que lhe apraz |
Não cumprir nenhum dever. |
|
|
607 - Galáxia |
|
Se a alguém
disser que haverá |
Na Galáxia
biliões de astros, |
É certo que me
crerá. |
Será que quer
deixar rastros |
|
Quando pintado de fresco |
Lhe aponto o
banco da rua |
E lhe põe logo
a mão nua |
A confirmar o
que atesto? |
|
|
608 - Céu |
|
Um homem é uma
pessoa |
Que, quando uma
mulher diz: |
“Farei isso numa boa”, |
A deixa fazer, feliz. |
|
Por sua vez, a
mulher |
É quem,
dizendo-o de entrada, |
Se o homem
deixa-a fazer, |
Ficará, no fim, danada! |
|
E um homem é
quem, depois, |
Não entendendo
o que vê, |
Ainda espicaça os bois: |
“Danada agora, porquê?” |
|
E mulher é quem
replica: |
“Se não sabes,
não sou eu, |
Não sou eu,
não, quem te explica!” |
- E eis como a
família é o céu! |
|
|
609 - Jardineiro |
|
Se o jardineiro
se apruma, |
Não lhe levante quezília |
Quando dele
este é o princípio: |
“Aqui não há
planta alguma |
Que seja duma família, |
Todas são do município.” |
|
É que a família
das plantas |
Para ele não vigora |
E, se com ela
te encantas, |
O encanto nele
não mora, |
Que só vive, de
hora a hora, |
Que é família
onde tu jantas. |
|
|
610 - Profetizado |
|
Do mundo o fim
eminente |
Tem sido profetizado |
E o crente |
Põe toda a vida
de lado. |
|
Até houve a profetiza |
Que convenceu os fiéis |
A terem careca lisa |
E só, no topo,
uns anéis. |
|
Podiam ser agarrados |
Por anjos que
os salvariam, |
Pendurados, |
Do fim que os
mais sofreriam. |
|
No alto andaime
de madeira |
Entretanto construído |
Trepou, ligeira, |
Após ter os
mais subido. |
|
Aos anjos facilitavam |
No alto a localização. |
Logo, porém, desabavam |
No chão. |
|
Foi de facto o
fim do mundo |
Para os fiéis
que morreram |
No segundo |
Das quedas que
então se deram! |
|
|
611 - Encantos |
|
Se em fantasmas
te perguntam |
Se crês, diz
com teus encantos |
Aos que a
gozar-te se juntam: |
- De modo
algum, já vi tantos! |
|
|
612 - Crime |
|
Um crime,
quando é famoso, |
Tanto imaginário afaga |
Que esquecemos,
com o gozo, |
Que somos nós
quem o paga. |
|
|
613 - Cornos |
|
Nascem cornos ao diabo |
Às dúzias,
quando um caduca, |
Que cornudo, ao
fim e ao cabo, |
Já nem é, é uma
peruca! |
|
|
614 - Demónio |
|
O demónio possuiu |
A Terra há
milhares de anos. |
Breve foi que respondeu |
O homem daquele
aos danos. |
|
Tal como, porém, sucede |
Aos países conquistados, |
Velhos costumes, sucede, |
Continuam praticados. |
|
E o diabo, sorrateiro, |
Às claras ou disfarçado, |
Continua o ano inteiro |
A mandar em
todo o lado. |
|
|
615 - Café |
|
Onde haurir
café tão forte que me mantenha acordado |
Mesmo havendo
já contado três dias além da morte? |
|
O retorcido que
acolhas, quando dele alguém converse |
Vai dizer que
anda a esconder-se por detrás dum
saca- -rolhas. |
|
Na vida não há
batota e terei de ser tão duro |
Que os dentes
limpo e apuro com pregos de galeota. |
|
|
616 - Mãe |
|
Uma mãe é tanto
mãe que esta é sua identidade, |
Pois uma mãe,
na verdade, nenhum outro nome tem. |
|
Nenhum nome lhe
convém senão ser mãe de fulano, |
Já que é mulher
de cicrano e mais não há para além. |
|
Ninguém disto
fica forro: se depois criar um cão, |
Na clínica lhe
dirão - “É a mãe deste cachorro?” |
|
|
617 - Três |
|
Qualquer coisa
que queiramos, sempre haverá três maneiras para que ao fim consigamos obtê-la
sem mais canseiras. |
|
Todas três
sendo certeiras, a primeira é que a façamos: logo então dela te abeiras sem
gerar servos nem amos. |
|
Mas tens outra
alternativa: mandarás alguém fazê-la que, de a fazer, sobreviva. Porém, a
terceira viela é dar ordem proibitiva aos filhos: - vão logo a ela! |
|
|
618 - Dedo |
|
O problema
reformista não é uma questão de credo, é sempre a ponta do dedo que aponta o
que tem em vista. |
|
A revolução que
exista não perece pelo medo mas por não ver o segredo que distorce quanto
invista. |
|
O profeta,
quando aponta, jamais para o dedo olhou e só vai tomar em conta aquilo a que
ele apontou; os sequazes tornam credo a sua ponta do dedo! |
|
|
619 - Papel |
|
Se Deus tivera
contra si o diabo |
Saltaria a feliz dificuldade, |
Deste inimigo
nem veria o rabo |
Reduzido à suprema nulidade. |
Quando
enfrenta, porém, da pena o cabo, |
Escrita no
papel crua verdade, |
Aqui d’el-rei
que Deus está perdido |
À mão de quem
escreve, esse bandido! |
|
|
620 - Custa |
|
Toda a gente
requer viver à custa |
Não dele
próprio, porém do Estado, |
Entendem todos
que é medida justa, |
Que têm um
direito redobrado |
A quanto cada
qual dali degusta. |
Por todos anda
sempre obliterado |
Que se do
Estado tudo quer viver, |
De tudo à custa
também ele quer. |
|
|
621 - Vegetais |
|
A preocupação com vegetais |
Que geneticamente são mudados |
Não é de
cancerígenos sinais, |
Nem sequer dos
efeitos controlados, |
Ou de com eles
não vivermos mais |
Vegetais com os
fins pré-programados, |
- É só que
minha filha, há tempo algum, |
Ao que parece,
anda a sair com um! |
|
|
622 - Mosquitos |
|
São uns
mosquitos as crianças frágeis, |
A volitarem por
aqui, ali, |
Tão ao de leve
e com tais modos ágeis |
Que conta
ninguém dá do frenesi. |
Quando os
mosquitos se nos tornam fáceis, |
Como crianças
que pequenas vi, |
Não é que se
aquietem, não: em suma, |
Estão a
preparar-se para alguma! |
|
|
623 - Jumento |
|
Como um jumento
de elevada carga |
Que por
procuração já se engrandece, |
A si atribuindo
o que o não larga |
No lombo
carregado que enaltece, |
Assim o
potentado a vista alarga, |
Convencido de
que é quanto parece, |
Quando é um
burro que o mundo tem honrado, |
Não por si,
pela carga do costado! |
|
|
624 - Rir |
|
Já que se nasce
a chorar, |
No dia de
alguém partir |
Para o último lugar, |
Se algo
aprendeu, vai-se a rir! |
|
|
625 - Ambição |
|
Manda em nós
tanto a ambição |
Que a ferro
marca o que bole: |
Ferra os
cavalos e o chão, |
Ferra o ar e a
luz do sol! |
|
|
626 - Concordância |
|
O que quero e o
que preciso |
Não têm fácil concordância: |
Nunca quero ter juízo |
Mas preciso desta instância! |
|
|
627 - Pés |
|
Aos pés se
arrastar dos reis |
Traz prebendas e librés. |
E os reis nisto
é que vereis: |
- Só têm
ouvidos nos pés! |
|
|
628 - Confusão |
|
Uma ingénua confusão |
Deita os tronos
a perder: |
- Tomar um
soldado a obedecer |
Pelo consentimento da nação. |
|
|
629 - Insulsos |
|
Os mais insulsos maridos |
São enganados maiores |
De esposas, perdidas flores, |
Por andarem distraídos |
A fazerem de entendidos |
Como amantes sedutores |
De quem nem
lhes presta ouvidos! |
|
|
630 - Bofetada |
|
Libertar uma mulher |
É esquivá-la à
bofetada |
Que seu marido
lhe der, |
Porém, evitando a estrada |
Em que ela se
queixa ao pai |
Pedindo que
vingue a afronta, |
Se esta ajuda
dele atrai |
Como justiça de monta: |
|
- Em que face
te bateu? |
- Na direita - chora ela. |
- Na esquerda
te bato eu |
E assim resolvo
a querela. |
|
E esta ideia ao
fim partilha, |
De novo após
lhe bater: |
- Minha terrível vingança |
Deste modo aqui
se alcança: |
Se ele me bateu
na filha, |
Eu lhe bati na
mulher! |
|
|
631 - Correctivo |
|
Um gato |
É um correctivo. |
Deus criou o rato |
E, ao vê-lo
vivo, |
Descobriu que
era uma asneira. |
Acrescentou-lhe a errata |
Por brincadeira. |
E agora temos à
mão |
A obra exacta |
Da Criação. |
|
|
632 - Pistola |
|
Qualquer homem sem mulher |
É pistola sem gatilho, |
É que ela faz
de qualquer |
Chispar do
disparo o brilho. |
|
|
633 - Afinidade |
|
Qual a estranha afinidade |
Entre a pública mulher |
|
E o homem
público que a cidade |
Tiver? |
Qual é a coisa,
qual é ela |
Que ele não
mostra à janela?... |
|
|
634 - Ceptros |
|
Tantos ceptros, tantos ceptros |
De oiro, ferro
ou flor-de-lis, |
Tão reduzidos a espectros |
Nas revoluções que fiz! |
|
Como uma cana cortada |
Em qualquer canavial |
Pelas mãos esmigalhada |
Deles não há
mais sinal. |
|
Agora revoluções |
Quem as faz
contra um lencinho |
A acenar aos corações, |
Cada qual o
mais sozinho? |
|
Assim bordada de sonho |
Na mão de cera
e cristal, |
Quem não ama o
que medonho |
Da mulher há no
sinal? |
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635 - Muros |
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Andamos há
milhões de anos, |
Homem-mulher
lado a lado, |
Dos muros
saltando os panos |
A amar com
terno cuidado. |
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O diabo, que é
esperteza, |
Desata a odiar
o homem. |
E o homem, que
ama a beleza, |
Antes que as
teias o domem, |
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Mais esperto
que o diabo, |
Desata a amar a
mulher. |
E na soma, ao
fim e ao cabo, |
Fica o diabo a
perder. |
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636 - Segredos |
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Dos segredos
que nos são confiados |
Dois serão os
tipos com que depararmos: |
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- Os que nem
merecem ser guardados |
E os bons
demais para os guardarmos! |
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637 - Eleitorais |
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Campanhas eleitorais |
São vidros mas
mal limpados: |
A sujidade e o
mais |
Sempre estão
dos outros lados! |
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638 - Pontual |
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Ser pontual só
tem problema |
Por não haver
no lugar |
Quem nos siga o
mesmo lema |
Para o poder constatar. |
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639 - Golfinho |
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O golfinho é inteligente: |
Horas após o cativeiro |
Já um homem
treinou, eficiente, |
A atirar-lhe
peixe para o viveiro! |
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640 - Inverter |
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Nascemos de olhos fechados |
E boca aberta. |
A vida são
esforços denodados |
A inverter
ambos os lados |
Em busca da
forma certa. |
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641 - Engenho |
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O engenho para espantar |
Terá por prémio
o consenso. |
Os homens vão adorar |
E que são
néscios nem penso. |