DÉCIMO SEGUNDO VERSO
De tal modo que as quadras em
sarilho
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um número aleatório entre 1144 e 1248 inclusive.
Descubra
o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.
1144 - De tal modo que as quadras em sarilho
De tal modo que as quadras em sarilho
Revelem o brilho que por trás se esconde,
Basta que o monde, do termo ao atilho.
Bem ensarilhada, uma quadra freme
E o mundo nos treme, terra germinada.
O que ali esconde sabemos lá bem,
Nem o que contém sabemos lá onde!
Por isso nos basta, dentre a grade estreita,
Ficarmos à espreita: que imensidão vasta!
1145 - Ocioso |
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Aqui estou eu,
ocioso, adorando a companhia. |
É assim que,
laborioso, as mãos lassas, por magia, |
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De paradas
entretecem osos que moldam os ossos |
Doutras vidas
que acontecem por dentro de ignotos fossos |
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Para além de
quanto entendo. Um acto como uma ideia |
Brotam donde os
não vou vendo - e a seca termina em cheia! |
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1146 - Ninhos |
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Quando gero
vida a sério, conto a rir os bocadinhos |
Do saber cujo
mistério não fez mais que andar aos ninhos. |
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É que deles o
destino (que me fez com todo o ardor |
Buscá-los em
desatino) tornar-me foi superior. |
|
Quando a vida a
sério rola, aquela sabedoria |
Se de todo não
é tola, bem tola pareceria! |
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1147 - Regato |
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A primeira água
corrente que há tempo que se não via |
No chão
crestado assobia num coleio de serpente. |
|
A terra não
morrerá jamais enquanto o regato |
Correr, esperto
e pacato, por aqui, por acolá. |
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No corpo do
chão é a veia persistente ainda a pulsar |
Por onde em
todo o lugar o sangue nos enxameia. |
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1148 - Jacente |
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A vida nunca se
pode cortar muito bruscamente, |
Não se pode
estar jacente enquanto vibra e sacode |
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Tudo aquilo que
alterámos, enquanto isto não morrer. |
Um nosso efeito
qualquer somos nós em nossos ramos. |
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Enquanto, pois,
perdurar a memória dolorosa, |
Nela a pessoa
se entrosa, ninguém a pode amputar. |
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É bem lento e
demorado isto de a gente morrer, |
Pedra no lago a
bater que, no círculo alargado, |
Em ondas
percorre e cresce, serena, serenamente, |
A lonjura toda
em frente, até que, quieta, fenece. |
|
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1149 - Ritmo |
|
Tudo um ritmo
repetido parece ter, afinal, |
Excepto a vida
em geral que em nós tem outro sentido. |
|
Que em nós haja
um só nascer como um só morrer parece |
Que com mais
nada acontece, não somos como qualquer. |
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Se não há coisa
nenhuma, pois, que se nos assemelhe |
Que espanta que
me aconselhe e de mim não saiba, em suma? |
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1150 - Sol |
|
O sol é vida e
consola se der uma vida à vida. |
Porém, só como
vivida, enquanto de mim se evola, |
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Nos
subterrâneos da mente, é que ela é de carne e sangue. |
Quando em
palavras a entangue, logo tudo nela mente. |
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De palavras o
vestido sobre uma verdade nua |
Joga-lhe o
corpo na rua, ridículo e sem sentido. |
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1151 - Crepúsculos |
|
No sol morro
cada dia em crepúsculos de sombra |
E meu corpo
pela alfombra se estende à noite macia. |
|
Assim é que,
quando morro, mato da mesma maneira |
Que a vida de
mim se esgueira, nada corre se não corro. |
|
É por mim
sempre que o faço, pelo sol nunca o faria, |
Mas, ao passar
cada dia, sou afinal eu que passo. |
|
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1152 - Doido |
|
Doido é sempre
quem abrir nas almas livre caminho, |
A direito entre
o azevinho, para aquilo que há-de vir. |
|
Às coisas lá
recalcadas, nestas almas mal sofridas, |
Nem santuários
nem ermidas prometem asas de fadas. |
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Melhor é pregar
aos bichos, quer livres, quer nas gaiolas, |
O nosso Natal
de esmolas. Para os mais são só caprichos! |
1153 - Espírito |
|
Quando a
estrada poeirenta geme a seca dentro em mim |
É que inauguro
por fim quanto espírito se inventa. |
|
Quando o gado
fatigado, esquelético caminha |
Pela vereda que
é minha, minha alma me cresta ao lado. |
|
E se, ao
morrer, o que morre, morre por mim dentro além, |
O sangue que
dali vem é por minha alma que escorre. |
|
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1154 - História |
|
A mulher tem
uma história para tudo o que acontece |
E é com ela que
aquece qualquer frio da memória. |
|
Histórias
correm ao lado da corida dos eventos, |
Recobrem-lhe os
elementos com o sonho que é falado. |
|
O encanto que a
mulher canta num murmúrio de magia |
É que faz
nascer o dia que de manhã se levanta. |
|
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1155 - Terra |
|
Quando a Terra
está a morrer, é ver que a Terra não morre: |
O deserto onde
não corre uma outra vida qualquer |
|
Teve em tempos vida a sério. Há, porém, limitações. |
Se muita vez
das sezões um homem cai sob o império |
|
Isto não
provará nunca que ele jamais morrerá: |
A morte
mora-nos cá, ainda um dia ela nos junca! |
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1156 - Companheiro |
|
Deixa andar à
tua frente quem conhecer o caminho |
Das encostas
onde o vinho escorre pela vertente. |
|
Quem ruma à
frente primeiro, mais que à tua frente vai, |
É o que à
besta-fera sai, o que salva o companheiro: |
|
Concede-te que
tu sejas, mostra-te o que a ti segredas, |
Endireita-te as
veredas, conduz-te ao cume que almejas. |
|
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1157 - Herói |
|
Olha para
aquele herói que tanto procura a vida: |
Um sonho em
névoa delida e como um sopro se foi! |
|
Em lugar da
eternidade, importa mantê-lo vivo |
Para retornar
cativo à prisão de ter idade. |
|
Homem, volta
são e salvo ao local donde vieste: |
Não há portão
mais agreste do que imortal ir a um alvo! |
|
|
1158 - Esconderijo |
|
Quando sai do
esconderijo, lança um tal clarão no instante |
Sobre quanto
toca adiante, que o creio ser o que exijo. |
|
Confundo
naturalmente a luminosa verdade |
Com a
ocasionalidade da revelação presente. |
|
Alguém que
tenha sentido a música a arrebatá-lo |
Dirá que ela é
que é o regalo em que o divino é ouvido. |
|
Aquele a que a
imensidão do mar tocou no mais fundo |
Verá no mar o
fecundo elo da religião. |
|
Este dirá
“o meu profeta”, estoutro, “a minha capela”, |
“Meu evangelho”
daquela é a verdade predilecta. |
|
Cada qual seu
edifício em torno dum grão de pó |
Constrói tal se
dele só pudera haver benefício. |
|
Mas é livre o
numinoso, tanto e para além de tudo |
Que é o mesmo,
mesmo se mudo, é o que é, mesmo se o não gozo. |
|
Essência da
liberdade, libertarmo-nos dum bem |
Que não
passará, porém, de parcela da verdade |
|
É a vera
dificuldade: o inverso dum bem é um mal, |
De vez nos
fecha o portal do bem à totalidade. |
|
|
1159 - Memória |
|
A memória nos
liberta pela mão do esquecimento. |
Como escrever
um lamento, se a mão que a caneta aperta |
|
Cada vez que
nela pego no espírito me traduz |
Quantos passos
para a luz na senda da vida agrego? |
|
Se o preço de
isto ocorrer me reproduzira a via, |
Perdia toda a
magia, deixava mesmo de ser! |
|
|
1160 - Borboleta |
|
Sonhei a noite
passada que era a bela borboleta |
A volitar na
valeta toda florida da estrada. |
|
Quando acordei
era eu e não aquela ilusão. |
Mas fica a
interrogação sobre quanto aconteceu: |
|
Quem serei eu,
afinal? Eu sonhando a borboleta, |
Ou antes a
borboleta tendo-me a mim por fanal? |
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1161 - Universal |
|
A razão não
somos nós, pois todos os pensamentos |
São da razão os
momentos, é o Universo a ter voz. |
|
Não somos nós o
vital, pois tudo o que em nós é vida |
É da vastidão
haurida duma vida universal. |
|
Este corpo nós
não somos, dado que dele os compostos |
São-nos,
afinal, impostos com as leis que lhes não pomos. |
|
O que somos,
afinal, se eu não sou que estou em mim, |
É que sou voz
do confim, rumo, em gérmen, ao total. |
|
|
1162 - Ensaio |
|
Têm a falha
fatal todas as revoluções: |
Não há palcos
nem salões para o ensaio geral. |
|
As rupturas,
são, assim, sempre o sonho de quenquer |
Sem teia que
entretecer, chegam de antemão ao fim. |
|
Operadas de
improviso, não é por falta de ser |
Que a ser nem
chegam sequer, é por falta de juízo! |
|
|
1163 - Fossa |
|
O meu corpo é
uma carroça; a minha vida, o cavalo; |
Cocheiro é o
que penso e falo e eu, vontade que o remoça. |
|
Eu controlo o
meu cocheiro, o qual comanda o cavalo |
Na carroça com
que abalo - todos num o dia inteiro. |
|
Do tempo na
maior parte, circula o carro sem dono, |
Tomba o
cocheiro de sono e a besta destina e parte. |
|
Então é quando
a carroça, em desvario, ao virar-se, |
De acordo põe,
sem disfarce, a todos dentro da fossa. |
|
|
1164 - Letras |
|
Tragédia de ser
humano é a de que um pequeno eu |
Assina as
letras, labéu de que a seguir pago o dano. |
|
Sou eu, homem
no meu todo, que enfrento esta situação. |
Vidas inteiras
se vão, a resgatar, deste modo, |
|
As dívidas
contraídas por uns eus acidentais |
Que acabam
pesando mais que as demais vidas das vidas. |
|
|
1165 - Queima-roupa |
|
Morrer é mudar
de roupa e aquele a que a morte assusta |
É como o actor
a quem custa um disparo à queima-roupa |
|
Duma pistola no
palco que sabe que é disparada |
Com pólvora
seca, dada a imitar o catafalco. |
|
Mas pardal
habituado à gaiola não se importa: |
Não voa se lhe
abro a porta, é por dentro encarcerado! |
|
|
1166 - Caixinhas |
|
Agora vais
retornar ao sistema das caixinhas, |
Pelo horizonte
caminhas, do cosmos sais do lugar. |
|
No mundo a três
dimensões reentras que construído, |
Artificial,
medido pelos humanos supões. |
|
Como os demais
ocupar uma única caixinha |
Irás até que a
adivinha te consiga decifrar: |
|
Convencer-te-ás
de novo de que a vida e o mundo inteiro |
Algum valor a
terreiro trarão a chocar no covo. |
|
|
1167 - Candeia |
|
Quando alguém
te perguntar, vendo-te a candeia acesa, |
Para a luz que
tanto preza da fonte qual o lugar, |
|
Sopra, apaga a tua chama. Responde-lhe então assim: |
“Agora que lhe
dei fim, onde é que o lume se acama? |
|
Diz-me para
onde ele foi, dir-te-ei donde ele vinha.” |
Verás que desta
adivinha novo lume se constrói. |
|
|
1168 - Cume |
|
A evolução será
feita pela experimentação, |
Já que o fim da
vida não é aquilo a que vive atreita. |
|
Embora a
felicidade seja, para a maioria, |
O que ao fim
decidiria da vida a finalidade, |
|
Ser feliz
(fugir à ausência) nunca pode ser o fim, |
Mas antes
viver-me a mim de que então é consequência. |
|
Quando me vivo
conforme, tal felicidade advém, |
Já que treparei
também da mudança o cume informe. |
|
Quando a mim eu
me transgrido, vem então o sofrimento |
Que aponta, em
qualquer momento, quanto de mim me divido. |
|
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1169 - Fantoches |
|
Os fantoches de
madeira imitam tanto o ser vivo |
Que o seu
manejo cativo é uma vida verdadeira. |
|
Manejo-vos com
os dedos, dou três voltas ao cordel |
E vós cumpris o
papel, rides ou tremeis de medos. |
|
Porém, quando a
mão retiro, vos jogo nos bastidores, |
Vai-se a ilusão
e os humores, mortos se ao chão vos atiro. |
|
E os fantoches
que ali vimos somos nós, homens, apenas, |
Só que não
cremos nas cenas e sonhamos que existimos. |
|
|
1170 - Lanterna |
|
Caminho
trazendo às costas a lanterna da experiência |
Que me vai
dando a ciência das sendas antes transpostas. |
|
É o caminho
percorrido, quando aquele por correr |
É que me
importa saber para à vida dar sentido. |
|
Porém, o nosso
destino que caminha à nossa frente |
Só minha sombra
pressente quando no abismo me inclino. |
1171 - Dados |
|
Se os dados
estão lançados na vida, cada um pode |
Fazer tudo o
que lhe acode, quebrando as pernas aos fados. |
|
Experiência não
é o que aconteceu a um homem |
Mas dele os
actos que somem o que a vida pôs de pé. |
|
Nem à mesa te
acontece nada ir parar-te à boca |
Se a tua mão
não lhe toca, se de ajudar-te se esquece. |
|
|
1172 - Esforço |
|
Olha que nenhum
esforço, por mais pequeno que seja, |
Perde a fruta
que vareja, dê na festa ou no remorso. |
|
Na boa ou má
direcção, nada morrerá na teia |
Das causas em
que se enleia, mesmo o fumo em dispersão. |
|
Tudo marca os
próprios traços e podes criar desde hoje, |
Na correnteza
que foge, teus mais oportunos passos. |
|
|
1173 - Veludo |
|
Sejas pai,
sejas político, sacerdote ou director, |
Empresário, teu
maior de actuar princípio crítico |
|
É que terás de
aprender a ser mais que paciente |
Dirigindo o
diferente com o igual que convier. |
|
Pois o que
convém a tudo, ao dirigi-lo sem erro, |
É que tenhas
mão de ferro mas em luva de veludo. |
|
|
1174 - Domingo |
|
Para muitos
toda a vida foi a tarde de domingo |
Em que,
infeliz, nem distingo, quando passa de corrida, |
|
Se é apenas
quente e pesada ou se o que é desagradável |
É de tudo ser
inviável e a fazer não haver nada. |
|
Dessa tarde, na
lembrança, fica a contrariedade, |
O aborrecimento
que há-de marcá-la em troca da dança. |
|
Depois, muito
bruscamente, finda pela noite dentro... |
- E a vida em
que já não entro foi mero sonho que mente. |
1175 - Camponês |
|
Manhã cedo, o
camponês nas hortas vai encontrar |
Uma grande égua
a pastar, linda da cabeça aos pés. |
|
De ninguém como
não era, com ela ficou, feliz. |
Cada vizinho
maldiz a sorte que não tivera! |
|
Porém, uns
tempos depois, a égua desaparece. |
A noite fez que
o fizesse bem antes dos arrebóis. |
|
Então toda a
vizinhança lamenta o infortunado... |
Até que, um
tempo passado, de novo a égua se alcança: |
|
Traz um
potrozinho ao lado, a saltitar pela aragem. |
E a vizinhança,
em romagem, inveja o inesperado. |
|
Uma semana mais
tarde, um coice do potro fere |
O filho. Quando
o confere, chora a aldeia com alarde: |
|
“Mais te valera
não teres tido égua do que um filho |
Coxo de vez e
sem brilho para a vida que lhe deres.” |
|
Porém, os
oficiais do senhor local da guerra |
Recrutam após,
na terra, quem de jovem dê sinais. |
|
Ante a
iminência da morte para os filhos, o lamento |
Outra vez o
sentimento muda em inveja: “Que sorte! |
|
Os nossos correm o risco de ser mortos. Mais vale um |
Coxo ter do que
nenhum rapaz a tratar do aprisco!” |
|
|
1176 - Conjuntura |
|
Acolher a
conjuntura não é me manter passivo. |
Se no remoinho
vivo, corro o risco da fundura. |
|
Poderei, ou
recusar e então me debaterei, |
O que vai
cumprir a lei de melhor eu me afogar, |
|
Ou aceitar tal
evento, procurando então a forma |
De me libertar:
a norma de boiar sobre o elemento. |
|
O que daqui se
recolhe tem esta verdade inclusa: |
Quem acolhe é
que recusa e quem recusa é que acolhe. |
|
|
1177 - Comédia |
|
Olha o que é a
vida: a comédia de marionetas sombrias, |
Meras
fantasmagorias, o inverso duma tragédia. |
|
Piruetas e
esgares, fantoches cruzam a cena |
Rindo e
chorando sem pena, com lábios ocos de alvares. |
|
Na outra ponta
do palco desaparecem de vez, |
Já sem máscara
nem tez, terminam no catafalco. |
|
Morrem sem se
recordar de que a mesma mascarada |
Viveram em cada
entrada, prontos a recomeçar |
|
Maquinalmente a
cegueira, movidos das mesmas molas: |
Amor, ódio,
umas esmolas de sexo ali mesmo à beira. |
|
Uma volta ao
carrocel e depois uma saída |
Mais ou menos
conseguida e retoma-se o papel. |
|
Somos bolas de
sabão que nas nuvens se dissolvem |
E sem vestígios
resolvem formar de novo o balão. |
|
|
1178 - Purgatório |
|
A vida tem um
sentido: não é ser um purgatório |
Nem um buraco
ilusório para o além desconhecido. |
|
A vida é um
laboratório onde a pedra, a pouco e pouco, |
Abandona o
mundo mouco, de planta num envoltório, |
|
E, mais tarde,
no animal, até que atingiu o homem. |
Hoje os sábios
se consomem: buscam de amanhã o sinal... |
|
|
1179 - Valho |
|
O que importa
jamais é quanto resultar da acção, |
O ter que te
fica em mão, mas o ser que pões de pé. |
|
Pouco importará
o trabalho, a acção que nele eu tiver: |
A evolução que
vou ter é que dirá quanto valho. |
|
|
1180 - Círculo |
|
Fazer o mal
pelo mal é deixarmo-nos cair, |
Não nos elos do
devir, neste círculo infernal: |
|
O mal que hoje
aqui sofremos é o ricochete daquele |
Que infligimos
sobre a pele dos demais com que vivemos. |
|
Ao ódio o ódio
reforça, só o amor o desintegra: |
O custo que
custa a regra é a vitória a que se esforça. |
|
|
1181 - Hoje |
|
Cuidemos do dia
de hoje, pois é da vida uma vida. |
De sua curta
medida nenhuma verdade foge |
|
Nem qualquer
realidade: do crescimento a alegria, |
Das acções a
fantasia, da beleza a claridade. |
|
Já que ontem é
apenas sonho e amanhã, uma visão, |
Hoje é só o que
tenho à mão, meu alvor de que disponho. |
|
|
1182 - Esperas |
|
Muito esperas
tu da morte, quando nada há que esperar! |
Só a vida te
há-de salvar, conforme jogas a sorte. |
|
Na terra é que
progredis, nela vos realizais, |
É no corpo que
levais a vitória a que sorris. |
|
O ourives
trabalha a prata e da branca brutidão |
Purifica, a
cada mão, a impureza que a maltrata. |
|
Nós somos
aquela roda que corre a senda da vida, |
Toca o solo, de
fugida, num ponto da estrada toda, |
|
Em cada
instante que passa. Atrás dela, eis o passado, |
O porvir à
frente é o dado: de realidade escassa, |
|
Nunca foram nem
serão senão no instante presente |
Em que a roda
fica assente no solo rijo do chão. |
|
Os factos
poderão ter uma existência perene, |
Passado ou
porvir solene e nós cá sempre a correr. |
|
Assim nós é que
chegamos, não eles que se produzem: |
Os comboios nos
conduzem e as paisagens vislumbramos |
|
Bem fugazes,
passageiras e sempre tão sucessivas |
Que as não
vemos ali vivas, coexistentes, inteiras. |
|
Quando nisto
reparamos, não será o tempo que passa, |
Para o bem ou a
desgraça, somos só nós que passamos. |
|
|
1183 - Peregrinos |
|
Aqui vamos,
peregrinos, pela garganta apertada. |
“À vertente
alcantilada, atentos e ouvidos finos!” |
|
- Recomenda-nos
o guia. - “Há quinze dias o monte |
Desmoronou-se
defronte sobre o grupo que aqui ia.” |
|
Cada qual,
obediente, começa, lento, a avançar, |
Os olhos fixos
no ar... - Tomba ao rio, em baixo, à frente! |
|
|
1184 - Credo |
|
Acolher a
realidade e deixá-la então seguir |
Em vez de lhe
resistir é que modela a vontade. |
|
Dos ignotos não
ter medo diminui-nos o temor |
Com que usamos
nos opor da vida presente ao credo. |
|
Se adaptar-me
àquilo que é, em vez do que deveria, |
Nem bom nem mau
o leria pelo ideal que faz fé. |
|
A ilusão é
acreditar que nós logramos vencer |
As coisas só
com o ver, quando apenas tem lugar |
|
Uma influência
qualquer, pense lá quanto eu pensar, |
Quando sobre
ela actuar pelo meu agir e ser. |
|
|
1185 - Presente |
|
Pensamentos
negativos afastam-nos do presente; |
Nele fazem que
eu assente quantos forem positivos. |
|
Viver agora é
viver na comunhão da energia, |
O futuro é
fantasia quanto um passado qualquer. |
|
Há na fadiga um
conflito entre o físico e o mental, |
Quando este ao
corpo faz mal exigindo-lhe um delito: |
|
O mental é
pessimista, vive sempre do malogro; |
Eu quanto da
vida logro é quanto na vida invista. |
|
|
1186 - Sim |
|
Se a outrem eu
der o sim, como outro desaparece, |
Pois desde
então acontece que fará parte de mim. |
|
Um com ele
então farei e não como habitualmente: |
No outro não se
consente, digo não ao que dele hei. |
|
Ele deveria
agir segundo aquilo que eu quero |
Em vez de agir
sob o mero desejo que o leva a ir. |
|
Agora, se podes
ver que ele é um outro, diferente, |
Vês nele o que
nele é um ente e não um outro qualquer. |
|
O teu eu
desaparece, agora já não sois dois, |
Um Nós elevais
depois que a separação falece. |
|
Quando teu sim
acontece ao mundo que te rodeia, |
Entre ambos
urdes a teia e o mundo tal nem parece: |
|
Não te pode
influenciar nem suscitar emoções, |
Nem, sem
causas, reacções - é neutro em todo o lugar. |
|
Quando lhe
dizes que não, lhe reforças a existência: |
O mundo perde a
aparência, solidifica-se então. |
|
Recusar
qualquer evento - de alguém a atitude hostil, |
Dinheiro em
perca febril, morte dum grande elemento - |
|
Pretendê-los
diferentes confere-lhes o importante |
Impacto que
lhes garante os efeitos mais prementes. |
|
Pretendemos o
prazer e recusamos a dor |
Sem sequer
mesmo supor que são um único ser. |
|
O côncavo e o
convexo da mesma panela ao lume |
Dão-nos da vida
o chorume: dor e amor - um mesmo amplexo. |
|
|
1187 - Acontecimento |
|
Vem um
acontecimento bater à porta uma vez, |
Traz-nos o novo
através desse único batimento. |
|
Um novo
enriquecimento provém deste facto novo |
E assim a vida
do povo é uma festa em crescimento. |
|
A emoção não é
um evento, a emoção não é real, |
É uma criação
mental que chega a qualquer momento. |
|
Então aí
acontece. Acolhe-a, que ali é um facto. |
Não a negues,
que tal acto reforça-a, não a arrefece. |
|
Aniquila a
oposição, que a unicidade aparece, |
Enquanto a luta
se esquece entre ti e o coração. |
|
Dissipas
naturalmente a tomada de partido, |
Volta de novo o
sentido na neutralidade assente. |
|
Do homem é um
privilégio ser livre quando quiser, |
Quando além
seguir puder de qualquer decreto régio. |
|
Os
determinismos são do domínio do mental, |
Ser livre o
desejo real leva à neutralização. |
|
|
1188 - Cume |
|
O nosso cume a
atingir será o do conhecimento; |
Com os mais o
que implemento será um amor a fruir. |
|
Somos todos
alpinistas a vivermos alternâncias |
Entre alegrias
e ânsias, aos mais ligados nas pistas. |
|
Pouco importa
caminhemos na frente ou na corda atrás, |
Quem cair o
risco traz de os mais levar na corrente. |
|
Importa sermos
capazes de os mais débeis segurar: |
Quem sobe vai
ajudar os mais a trepar audazes. |
|
A via mal
conhecida, fraca solidez na corda |
Logo fazem que
o pó morda, perdemo-nos na subida. |
|
Amor sem
conhecimento é cego palpando o cego; |
Saber sem de
amor apego pára-me quanto acrescento. |
|
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1189 - Precário |
|
Ama teu corpo
que é teu apenas neste momento: |
A forma humana
é um intento precário roubado ao céu. |
|
É tão fácil de
perder-se, tão breve é tudo no mundo |
Que dura um
curto segundo, raio na terra a fender-se. |
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Gota de chuva
que pus a leiva seca a regar, |
Evola-se a vida
no ar no instante em que vem à luz. |
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1190 - Águias |
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Em vez de
pernas tu tens as asas do pensamento |
Em que os voos,
num momento, das águias leves reténs. |
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Nós que nas
pernas erguermos o limite da estatura |
Rastejamos na
andadura, míseros vermes enfermos. |
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Pensa, pois.
Mas o alimento do voo que tens no ar |
É veres bem que
pensar é o começo do tormento. |
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1191 - Bailarino |
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Um bailarino é
uma estátua fugida à imobilidade. |
Quando a música
o invade, a vida à vida desato-a. |
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Estática, a
melodia junta aqui ver com ouvir. |
Com um passo a
emergir, é o voo que amanhecia. |
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Na dança
casam-se as artes: é música, é movimento, |
É escultura - é
o condimento que ao todo me junta as partes. |
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1192 - Tiranos |
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Deles
acrescentam forças com as dissensões alheias |
Tiranos que nas
ameias se enleiam com as comborças. |
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É do saber
popular que domar um inimigo |
Mais é
domar-lhe o perigo: dividir para reinar. |
|
Com os amigos
atento, preserva bem a união, |
Busca os
consensos, senão vai-se da vida o fermento. |
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1193 - Sinos |
|
Os sinos, por
todo o mundo, servem, onde quer que estejas, |
Para que o
diálogo vejas com eles quanto é fecundo. |
|
Conversam frio
e calor numa linguagem tal |
Que em todo o
mundo é igual, tem da aldeia o teu teor. |
|
Sem par te dão
o sendeiro que te não quer noutras peles: |
Jamais serás,
perante eles, em lado algum estrangeiro. |
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1194 - Quem? |
|
Quem sou eu,
quem somos nós? Quem é, por fim, cada um? |
Nem sangue, nem
meio algum, nem da cultura os ilhós |
|
Faz este eu que eu aqui sou. Contínuo embate comigo, |
No debate é que
consigo talhar o rumo em que vou. |
|
E o lume que
prometeu, ora nas mãos o apanho, |
Ora o perco
quando o ganho: quantos eus há no meu eu! |
|
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1195 - Compreensão |
|
Aos homens
compreensão que se matam e guerreiam, |
Se perseguem e
se odeiam, delimitam vedação |
|
Às terras como
às riquezas, doutrem às crenças, ideias, |
Embrulhando-se
nas teias cada qual de suas rezas, |
|
Com verdades
que não mudam?! - É que em hora de perigo, |
Cada qual
doutrem é amigo, em comum se entreajudam! |
|
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1196 - Religiões |
|
Em terras do
Médio Oriente chocam-se as religiões. |
Nenhuma, nas
confusões, vê que das mais é parente, |
|
Mundo que se
dilacera em nome dum Deus de amor, |
Criança que, no
furor, o Deus-boneca quisera, |
|
Disputa-o às
mais nos trapos, cada qual para seu lado, |
Até que lhes
cai rasgado aos pés desfeito em farrapos. |
|
|
1197 - Velhos |
|
Estes
venerandos velhos que aqui vivem, vergam anos, |
Livros falantes
de arcanos hão-de ser cujos conselhos |
|
Estão escritos
nas rugas do corpo de pergaminho, |
Tão antigo que
adivinho dos ancestrais nele as fugas. |
|
São a tradição
oral que receberam de avós |
Que nos
talharam a nós: são gesto de cada qual. |
|
|
1198 - Pego |
|
Da mais excelsa
alegria será sempre lá no meio |
Que se cava o
pego cheio com a tristura mais fria. |
|
Não há pico
ensoalhado de alcandorada montanha |
Que a seu lado
não despenha um negro abismo cavado. |
|
Tal é nossa
condição que quão mais promovo a vida |
Mais a morte de
seguida me cobra cara a caução. |
|
|
1199 - Milagre |
|
É milagre! -
grita o povo, ao ver o Sol que balança, |
Sem ver que por
trás da dança são incêndios que comprovo. |
|
É feliz quem
acredita no milagre fementido? |
Infeliz quem o
sentido dispõe à causa que o dita? |
|
Que lumes e que
sentenças andam por fim escondidos, |
Ignotos ou
pretendidos, por detrás de nossas crenças? |
|
|
1200 - Hospitalidade |
|
Onde o espírito
cristão da antiga hospitalidade |
Que um laivo de
eternidade via em quem bate ao portão? |
|
Em vendo entrar
pela porta um hóspede inesperado, |
Viram a cara de
lado, tal quem à saída exorta. |
|
Então, quem
atenta nisto, vendo a grande turvação, |
Repara logo que
não entra em casa Jesus Cristo. |
|
|
1201 - Envelheço |
|
Envelheço de
abulia, de abandono, desistência, |
De ideais vendo
a falência que jovem eu perseguia. |
|
É sempre por
abandono que me perco no caminho, |
Do espanto não
sou vizinho, troco um êxtase por sono. |
|
Envelhece quem
não pode mobilizar-se por dentro: |
É quando em mim
já não entro que a paixão me não acode. |
|
|
1202 - Bolandas |
|
Os cristãos,
por seus pecados, passam o tempo em bolandas. |
Amor, paz,
questões quejandas e da caridade os fados, |
|
Eis os pregões
da mensagem que afloram todos os dias |
Aos lábios e às
fantasias. Por dentro, porém, a imagem, |
|
Desde o
imperador ao servo, são porfias e contendas, |
Ódios, raivas,
reprimendas, das cobiças todo o acervo. |
|
Grandes oprimem
pequenos, para si furtam o alheio. |
Vem a morte
pelo meio, a tudo atalham seus drenos: |
|
Cada qual leva
consigo, todos os termos julgados, |
Só as soberbas
e os pecados. Fica o mais ao nosso abrigo. |
|
|
1203 - História |
|
Desta terra que
lugar, que lugar do mundo não |
Viu já Caim
deitar mão de Abel para o atassalhar? |
|
A história da
Humanidade não tem passado da história |
Deste campo de
vanglória que à glória não persuade: |
|
Em lugar de mão
na mão, com o apoio que alicia |
Cada qual ao
novo dia, cada irmão mata o irmão. |
|
|
1204 - Melros |
|
Aquilo que a
mim me enterra no pó do alvor os meus pés |
É que cantam
português os melros da minha terra. |
|
Os ribeiros que
molhei com o calor dos verões |
Nunca têm os
senões dos outros por que passei. |
|
São ervas,
frutos da horta, a mesa com broa e pêras... |
- És tu que te
recuperas quando a saudade abre a porta! |
|
|
1205 - Devagar |
|
Somos parvos
devagar: vemos uma coisa boa |
Apenas se outra
pessoa primeiro a viu no lugar; |
|
Conciliamos ao
dar de comer a um crocodilo, |
A comer-nos a
induzi-lo só em último lugar... |
|
Se tal verdade
magoa, da dor não entra na escala |
O gosto de
procurá-la, mais dói fugir dela à toa! |
|
|
1206 - Mãe |
|
Quando uma
mulher é mãe, nunca fica só consigo, |
Duas vezes vê o
perigo, pensa dobrado também. |
|
Pensa primeiro
por ela, pensa depois no cadilho |
Com que a si
atou o filho: não é só, mora à janela... |
|
Sozinha nos
pensamentos mas a pensar duas vezes, |
De vez só, só
nos reveses dos derradeiros momentos. |
|
|
1207 - Adversário |
|
É impossível
encontrar um adversário melhor |
A que alguém se
possa opor que da adversidade o azar. |
|
Ao medi-la é
que me meço, ao vencê-la é que me venço |
E quando
noutrem eu penso é que a mim eu me ofereço. |
|
Os infortúnios
da vida é que me dão garantia, |
Se os venço no
dia a dia, de ter tamanho e medida. |
|
|
1208 - Justiça |
|
Pode ser cega a
justiça, mas de escuta os aparelhos |
Que a todos ata
aos artelhos ouvem mais que se cobiça. |
|
Acontece que o
juiz, em vez de buscar o justo, |
Não quer é
pagar o custo de se empenhar de raiz. |
|
É tanto um
homem frustrado como qualquer outro ou mais, |
Que, fora dos
tribunais, fora mais um condenado. |
|
|
1209 - Música |
|
A música não
tem siso, toca o som que bem quiser: |
Ninguém repara
sequer que os sinos são dela o riso? |
|
Riem por fora a
gralhada das quebradas das aldeias |
E por dentro
são mancheias dos contos de cada fada. |
|
Repica agudo o
sorriso na alvorada do menino |
E grave ao
crepúsculo o hino é já a noite que diviso. |
|
|
1210 - Rei |
|
Vê bem, rei que
és tanto rei, que teu ancestral mais bravo |
Foi algures um
escravo e também fora-da-lei. |
|
Vê o escravo
que ora é teu, como em seus antepassados |
Teve reis, teve
cruzados, heróis e santos no céu. |
|
Por quê tanta
fantasia, quando afinal todos somos |
Da mesma
laranja os gomos e o mais, vaidade vazia? |
|
|
1211 - Segurança |
|
O desejo mais
antigo é ter alguém que interrogue, |
Ao me ir ao
mar, se me afogue, ao atrasar, se há perigo. |
|
Viva tal que
seus amigos o possam vir defender |
Mas não tenham
de o fazer, que preveniu bons abrigos. |
|
Assim é que a
segurança maior é de quem a monta, |
Depois nem a
toma em conta, tão seguro é quanto alcança. |
|
|
1212 - Poço |
|
É um poço cada
criança, um poço tanto mais fundo |
Quanto mais
novo é no mundo: nosso poço de esperança! |
|
Quem espera
sempre alcança, premedita a voz do povo. |
Mas quando é
que eclode o ovo da espera que eterna cansa? |
|
Entretanto é
fabuloso o mundo que nos rodeia |
Se pelos olhos
ameia da criança a que dá gozo. |
|
|
1213 - Talentos |
|
Talentos,
iniciativas, de árvore são nossas folhas: |
Duas faces,
quando as olhas, nos mostram enquanto vivas. |
|
Uma reluz,
colorida, virente, virada ao céu; |
Outra, baça, se
escondeu, a terra olhando, fingida. |
|
Os nossos
amigos gostam de ver o rosto da luz; |
Aos inimigos
seduz mais a sombra a que se encostam. |
|
Os que são
indiferentes, tendo as folhas de perfil, |
Não nos verão
uma em mil, das frondes irão ausentes. |
|
|
1214 - Empresa |
|
Da empresa no
anonimato é mais fácil atrair |
Quem do topo
não nos vir quando a escrever-lhe desato. |
|
Se minha
escrita for boa, tiver pessoal calor |
Ele
encontra-lhe o sabor a que sabe a ancestral broa. |
|
Mais que o que
se diz ou faz, que voa, desaparece, |
Quem num
escrito acontece permanece no que apraz. |
1215 - Generosidade |
|
Vera
generosidade não é dar o que se tem |
Mas aquilo de
que alguém prec |
|
Quem isto deu a
quenquer, deu muito mais do que deu, |
Restaura a fé
que morreu na Humanidade que houver. |
|
Tal ao carente auxilia-o. Porém, o mais importante |
É com todos
doravante que o gesto reconcilia-o. |
|
|
1216 - Futuro |
|
Sempre a viver
no futuro, no trabalho não trabalhas, |
Nas estradas
atrapalhas: pouco futuro te auguro. |
|
Quem não vive
no local esta prenda que é o presente |
Não tira
partido assente da vida que tudo vale. |
|
Importa
aprender que a vida tem seu próprio calendário |
E que tem
destino vário quem os passos lhe não siga. |
|
|
1217 - Impaciência |
|
Analisa em que
medida esta tua impaciência |
É uma fortuita
ocorrência ou é constante e querida. |
|
Crês-te
importante demais para esperar por alguém? |
Nunca demais o
é ninguém e não és mais tu que os mais. |
|
O mundo ao
nosso desfrute se oferta mas não obriga: |
Goza-o quem
nele se abriga e, sábio, não o discute. |
|
|
1218 - Duradoiro |
|
Para um amor
duradoiro, se alguém a si se pergunta |
Que é feito
dele, lhe junta dúvidas de mau agoiro. |
|
Ignora que é
dele mesmo que qualquer amor constrói, |
Não é lá fora
que foi juntar-lhe as folhas a esmo. |
|
Um amor mora-me
aqui, neste constante entremeio |
Em que a mim
próprio semeio no laço entre mim e ti. |
|
|
1219 - Casal |
|
Um casal bem
sucedido começa quando o casal |
Faz do tempo o
principal em comum a ser vivido. |
|
Se esperamos
encontrar o amor pela vida fora, |
Importa que,
sem demora, se encontre o tempo de amar. |
|
Vai durar um
casamento ao nele se ultrapassar |
O egocentrismo
que a par o casal tem de alimento. |
|
|
1220 - Companheiros |
|
Muitas vezes a
maneira de ver nossos companheiros |
É de os lermos
nós inteiros, deles sem termos joeira. |
|
São aquilo que
nós somos, não aquilo que eles são: |
Só para nós
viverão a imagem que nós lhes pomos. |
|
Tão frágil é a
evidência de que marido e mulher |
Participam no
que houver, um doutro não são ausência! |
|
|
1221 - Enamorado |
|
Quanto homem
enamorado, cai breve de garanhão |
A ronceiro
pacatão, logo após ter-se casado! |
|
E quanta fada
boneca, de solteira finda a zona, |
Se transmuda em
marafona do lar quando veste a beca! |
|
Os amores
duradoiros estimulam para olhar |
Com amor, em
vez de andar em nada a falhar tesoiros. |
|
|
1222 - Casados |
|
Quantos perdem
sua vida de casados a lutar |
Para a maneira
alterar do par com o qual se lida! |
|
Casamentos
infindáveis são todos quantos admitem |
Que nos rostos
coabitem várias vertentes viáveis. |
|
Quando ela me
abrir os olhos vejo aquilo que não vejo |
E o mesmo
quando a cortejo, desvendo esconsos refolhos. |
|
Os dois em
conjunto, então, a visão é totalmente |
Dos eventos
diferente do que era em primeira mão. |
1223 - Casamento |
|
Melhor é
aprender a amar do que a lutar mutuamente: |
Vencer no casal
não tente, mas com o casal a par. |
|
Casamento é
para dar e não para receber, |
É para
permanecer, sendo dois no singular. |
|
Se por si lutar
apenas, só por si pode vencer; |
Se for o lar
que quiser, vencem dois, vencem centenas! |
|
|
1224 - Desejo |
|
Se um desejo te
domina, cede-lhe, mas com medida. |
Todo o esforço
que se envida a destroçá-lo elimina. |
|
E se fores
responsável a saciá-lo, verás |
De quanto mais
és capaz que ser destroço inviável. |
|
Só com tal não
vão as drogas. Mas irão sempre as paixões |
De amorosos, de
glutões: cede um pouco e não te afogas. |
|
|
1225 - Empregado |
|
Um patrão ao
empregado quando decide dar mais |
É bom ver de
quê ou quais coisas decora o que é dado. |
|
Mais
responsabilidades normalmente quer dizer, |
Não a promoção
que houver, mas estas cruas verdades: |
|
Doravante ele
vai ser quem ficará responsável, |
No meio do
imponderável, por tudo o que mal correr. |
|
|
1226 - Trabalho |
|
É sempre o
trabalho duro o factor primordial |
Para o sucesso
real de quanto na vida apuro. |
|
É aquilo que
traz impresso a vergôntea que vingou: |
Nunca ninguém
se queixou do que lhe augura sucesso. |
|
Concentração no
trabalho, dedicação por inteiro |
São, pois, o
metro primeiro daquilo que sério valho. |
|
|
1227 - Sozinho |
|
Quando sozinho
me sento em frente ao papel em branco |
É que a meu
lado no banco acodem ao meu intento. |
|
Fico só com
tanta gente a falar dentro de mim |
Que já nem sou
eu no fim quando escrevo o que alguém sente. |
|
Pela ponta da
caneta falam os pais, os avós, |
Todo o povo
antes de nós - é o mundo inteiro um poeta! |
|
|
1228 - Infinidade |
|
Dizem que amor
é prazer, é sonho de infinidade, |
Mas é só meia
verdade rumo ao que pretendo ser. |
|
Um sonho, para
valer o peso da realidade, |
Vai conferir a
verdade em tudo quanto ocorrer. |
|
Então descobre
que a dor enfrentada com coragem |
Tem o tamanho
da imagem do que a sério pode o amor. |
|
|
1229 - Redundância |
|
Toda a vida é
desperdício, tão cheia de redundância |
Que, perdida,
volta à infância e então é que tem início. |
|
A vida é breve
mentira, vem a morte despertar |
O vazio do
lugar quando do avesso a revira. |
|
O problema
deste lado é que nunca decidimos |
Se acabamos ou
partimos: que começo é o do finado? |
|
|
1230 - Charneira |
|
Não há mortes,
não há morte, mas muitas vidas na vida. |
Esta apenas,
comedida, é a que tem menos da sorte. |
|
No estreito de
tempo e espaço mofinamente apertada, |
Esta vive de
empreitada: distraio-me e me desfaço. |
|
É, porém, nesta
pedreira de pó, suor e cansaços |
Que ato os nós
e aperto os laços, sou doutros mundos charneira. |
|
|
1231 - Guarida |
|
Sempre em busca
de guarida, onde posso acontecer? |
Toda a porta do
saber é experimentar a vida. |
|
Aqui estou
nesta pobreza, mais franciscano que os mais, |
Na vida cujos
sinais são de que só me despreza. |
|
Ela, porém, é
instrumento onde encontro o que preciso |
De que invento,
em meu juízo, de que fugir ao lamento. |
|
|
1232 - Sonhadoras |
|
Consciências
sonhadoras é o que somos no presente, |
Cada qual de si
ausente, a vida inteira a desoras. |
|
Em vigília é
que se sente a demora das demoras, |
Espaço não há
nem horas quando ao sonho estou presente. |
|
Fora do tempo e
do espaço, quando é que me encontrarei |
Por fim liberto
da lei, ao compasso de meu passo? |
|
|
1233 - Criança |
|
Sou uma
criança, mamã. Mesmo se choro por fora, |
Por dentro
canto, canora cotovia da manhã. |
|
Educa-me, as
rédeas soltas mas prontas a ser puxadas: |
Sei lá o piso
das estradas por onde viram as voltas! |
|
Sei que na
festa das vidas eu sou a alegre bandeira |
A drapejar
altaneira sobre a mesquinhez das lidas. |
|
|
1234 - Imortalidade |
|
Se a
imortalidade existe, depois da morte começa |
A mais
fascinante peça com que ao fado alguém assiste. |
|
Se não existe,
porém, tudo enfim se extinguirá |
Na física morte
cá e, com ela, a dor também. |
|
Assim, ambas as
versões, com vantagens semelhantes, |
Retiram,
equidistantes, ao fanatismo as razões. |
|
|
1235 - Gleba |
|
Os grandes
poetas serão, na gleba cheia de cardos, |
Mais do que do
povo os bardos, arautos de Deus em vão. |
|
Zumbir de
abelhas divinas, urzes de aroma serrano, |
Jogam ouriços
no pano com castanhas peregrinas. |
|
Mas os picos
picam tanto, tanto ameaçam quem abrir |
Que todos vão
desistir e calam do encanto o canto. |
|
|
1236 - Honrado |
|
É tão raro o
ser honrado que aparece à luz do dia, |
Não já como
fancaria, mas como um bem procurado. |
|
Torna-se de
vida um modo, honradez a dar fortuna, |
Oferta à
esquina oportuna: quem de honra compra um engodo? |
|
Pôr a virtude a
render na banca, na praça ou feira |
Torna-se a nova
maneira de o que é bom sobremorrer. |
|
|
1237 - Distância |
|
Medeia curta
distância da indigência à rapinagem, |
Do que implora
é curta a margem ao que mata por ganância. |
|
Rouba,
estrangula, assassina o tigre quando esfaimado: |
Desperta no
peito ao lado da honradez que lhe foi sina. |
|
Quando os
ventres sem jantar resmungam juntos na rua, |
Cuidado, que
desta lua é de lobos o luar! |
|
|
1238 - Máquina |
|
Máquina da
humanidade, não cria mais, só produz, |
Falta-lhe do
génio a luz, de sentir a qualidade. |
|
Criar é um acto
de amor, amor é o que é todo o ser |
E nesta raiz
quenquer enfrenta qualquer horror. |
|
Quando a obra
vai a terra, é que só dura o que vive, |
Qualquer raiz
que eu cultive, se esteia mais, mais me aferra. |
|
Muito mais que
um alicerce, que a pedra bruta à montanha, |
Da vida a
prende a gadanha que no alcantil ande a ater-se. |
1239 - Ductilidade |
|
A amorfa
ductilidade dos caracteres humanos, |
Se às energias
traz danos, se impede a espontaneidade, |
|
Facilita, no
entanto, duma maneira sem par, |
Os actos de
governar a moldar o riso e o pranto. |
|
Os dedos dum
escultor a cera branda à vontade |
Modelam de
eternidade. Onde alguém com tal valor? |
|
|
1240 - Marinhagem |
|
Quando o navio
alagado vai ao fundo, a marinhagem, |
No frenesim da
drenagem, discute sobre o costado? |
|
Se um país se
despedaça, se a Terra é um balão furado |
Vais discutir
para o lado de que modo achará graça? |
|
Se já cospes os
pulmões e o cancro te esventra o fundo, |
Vamos discutir
o mundo, convertê-lo a teus sermões? |
|
|
1241 - Pintos |
|
Os indivíduos,
os povos regeneram-se sofrendo, |
Pintos que só
vão nascendo se partem a casca aos ovos. |
|
Pode a dor ser
salvadora, que a virtude sem martírio |
É Cristo sem o
delírio da cruz que nele demora. |
|
Toda a vida
universal na angústia se fortalece, |
A redenção só
merece quem sofrer paixão igual. |
|
A procela
revigora o roble no descampado, |
Ferro ao rubro
é temperado com águas que ele evapora. |
|
Quando a
desgraça matara por inteiro a Humanidade, |
Então não era
verdade, que há muito já se finara. |
|
|
1242 - Sustento |
|
Os desastres,
as misérias, vergonha, calamidade, |
Vergados com
hombridade ou dores doendo sérias, |
|
Enseivam de
novo alento um coração já batido. |
Um raio lasca o
bramido, do pinhal tomba o portento, |
Mas logo brota,
violento, de quanto é galho amputado: |
Mora-lhe alma
noutro lado, a raiz é que é o sustento. |
|
|
1243 - Espírito |
|
O espírito,
como o fogo, calcina pedras e traves, |
Derrete os metais mais graves. Nele, porém, desafogo. |
|
O facho duma
alma em brasa incendeia Babilónias, |
Queima de
impérios colónias, para erguer a própria casa. |
|
Nada por fim
lhe resiste ao chamejar mais fecundo: |
Nele se dilui o
mundo, nenhum credo lhe subsiste. |
|
|
1244 - Legenda |
|
A nação não é
uma venda, nem o orçamento, sagrado, |
O comerciante
abastado não é dos homens legenda. |
|
De estômagos
comunhão não é uma pátria, é alcateia |
Ou então a pia
cheia de porcos com a ração. |
|
Mercearia em
decadência, a ruína da Humanidade |
Moral
contabilidade mais é do que imprevidência. |
|
|
1245 - Pantanal |
|
Sem Banco de
Portugal, somos pobre geração; |
Sem Lusíadas,
então, mísero era o pantanal. |
|
Só que aquele é
passageiro e este seria eterno: |
Dinheiro é
sempre moderno, génio é um e derradeiro. |
|
Quem só na
moeda assente há-de ficar em camisa: |
Então nele
alguém divisa que só nu fica decente. |
|
|
1246 - Alma |
|
Alma frágil,
tão subtil, és força que se derrama |
Ou malha apenas
na trama, nada perdido entre mil? |
|
Não tens cor ou
cor de anil o céu todo em ti se acama? |
Só te não vê
quem não ama o além que há num ser gentil. |
|
Mas, elevada na
chama, um qualquer gesto febril |
Troca-te a
letra, infantil: devéns, de alma, um ror de lama. |
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1247 - Algozes |
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Profetas domam
leões, um mártir aterra algozes. |
Se um povo se
eleva às vozes da verdade, são tições |
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Que incendeiam
consciências e ressuscitam dos mortos: |
Se os trilhos
caminham tortos, explodem as violências. |
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O justo morre na cruz. Porém, ao terceiro dia, |
Ergue a pedra
que o prendia e o mundo inteiro reluz. |
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1248 - Caduco |
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É neste roble
caduco, é nestes galhos exangues |
De pálidas
folhas, langues, que um favo ainda busca o suco, |
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Que as aves
ainda gorgeiam, entrançam ninhos e dormem. |
Bom é que a tal
se conformem nossos machados que ameiam |
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Para o tronco a
derrubar. Rola a Terra no infinito, |
Lá deve, pois,
nosso grito aprender a ir rolar. |