DÉCIMO  SEGUNDO  VERSO

 

De tal modo que as quadras em sarilho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha um número aleatório entre 1144 e 1248 inclusive.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1144 - De tal modo que as quadras em sarilho

 

De tal modo que as quadras em sarilho

Revelem o brilho que por trás se esconde,

Basta que o monde, do termo ao atilho.

 

 

Bem ensarilhada, uma quadra freme

E o mundo nos treme, terra germinada.

 

O que ali esconde sabemos lá bem,

Nem o que contém sabemos lá onde!

 

Por isso nos basta, dentre a grade estreita,

Ficarmos à espreita: que imensidão vasta!

 

 

1145 - Ocioso

 

Aqui estou eu, ocioso, adorando a companhia.

É assim que, laborioso, as mãos lassas, por magia,

 

De paradas entretecem osos que moldam os ossos

Doutras vidas que acontecem por dentro de ignotos fossos

 

Para além de quanto entendo. Um acto como uma ideia

Brotam donde os não vou vendo - e a seca termina em cheia!

 

 

1146 - Ninhos

 

Quando gero vida a sério, conto a rir os bocadinhos

Do saber cujo mistério não fez mais que andar aos ninhos.

 

É que deles o destino (que me fez com todo o ardor

Buscá-los em desatino) tornar-me foi superior.

 

Quando a vida a sério rola, aquela sabedoria

Se de todo não é tola, bem tola pareceria!

 

 

1147 - Regato

 

A primeira água corrente que há tempo que se não via

No chão crestado assobia num coleio de serpente.

 

A terra não morrerá jamais enquanto o regato

Correr, esperto e pacato, por aqui, por acolá.

 

No corpo do chão é a veia persistente ainda a pulsar

Por onde em todo o lugar o sangue nos enxameia.

 

 

1148 - Jacente

 

A vida nunca se pode cortar muito bruscamente,

Não se pode estar jacente enquanto vibra e sacode

 

Tudo aquilo que alterámos, enquanto isto não morrer.

Um nosso efeito qualquer somos nós em nossos ramos.

 

Enquanto, pois, perdurar a memória dolorosa,

Nela a pessoa se entrosa, ninguém a pode amputar.

 

É bem lento e demorado isto de a gente morrer,

Pedra no lago a bater que, no círculo alargado,

 

Em ondas percorre e cresce, serena, serenamente,

A lonjura toda em frente, até que, quieta, fenece.

 

 

1149 - Ritmo

 

Tudo um ritmo repetido parece ter, afinal,

Excepto a vida em geral que em nós tem outro sentido.

 

Que em nós haja um só nascer como um só morrer parece

Que com mais nada acontece, não somos como qualquer.

 

Se não há coisa nenhuma, pois, que se nos assemelhe

Que espanta que me aconselhe e de mim não saiba, em suma?

 

 

1150 - Sol

 

O sol é vida e consola se der uma vida à vida.

Porém, só como vivida, enquanto de mim se evola,

 

Nos subterrâneos da mente, é que ela é de carne e sangue.

Quando em palavras a entangue, logo tudo nela mente.

 

De palavras o vestido sobre uma verdade nua

Joga-lhe o corpo na rua, ridículo e sem sentido.

 

 

1151 - Crepúsculos

 

No sol morro cada dia em crepúsculos de sombra

E meu corpo pela alfombra se estende à noite macia.

 

Assim é que, quando morro, mato da mesma maneira

Que a vida de mim se esgueira, nada corre se não corro.

 

É por mim sempre que o faço, pelo sol nunca o faria,

Mas, ao passar cada dia, sou afinal eu que passo.

 

 

1152 - Doido

 

Doido é sempre quem abrir nas almas livre caminho,

A direito entre o azevinho, para aquilo que há-de vir.

 

Às coisas lá recalcadas, nestas almas mal sofridas,

Nem santuários nem ermidas prometem asas de fadas.

 

Melhor é pregar aos bichos, quer livres, quer nas gaiolas,

O nosso Natal de esmolas. Para os mais são só caprichos!

 

 

1153 - Espírito

 

Quando a estrada poeirenta geme a seca dentro em mim

É que inauguro por fim quanto espírito se inventa.

 

Quando o gado fatigado, esquelético caminha

Pela vereda que é minha, minha alma me cresta ao lado.

 

E se, ao morrer, o que morre, morre por mim dentro além,

O sangue que dali vem é por minha alma que escorre.

 

 

1154 - História

 

A mulher tem uma história para tudo o que acontece

E é com ela que aquece qualquer frio da memória.

 

Histórias correm ao lado da corida dos eventos,

Recobrem-lhe os elementos com o sonho que é falado.

 

O encanto que a mulher canta num murmúrio de magia

É que faz nascer o dia que de manhã se levanta.

 

 

1155 - Terra

 

Quando a Terra está a morrer, é ver que a Terra não morre:

O deserto onde não corre uma outra vida qualquer

 

Teve em tempos vida a sério. Há, porém, limitações.

Se muita vez das sezões um homem cai sob o império

 

Isto não provará nunca que ele jamais morrerá:

A morte mora-nos cá, ainda um dia ela nos junca!

 

 

1156 - Companheiro

 

Deixa andar à tua frente quem conhecer o caminho

Das encostas onde o vinho escorre pela vertente.

 

Quem ruma à frente primeiro, mais que à tua frente vai,

É o que à besta-fera sai, o que salva o companheiro:

 

Concede-te que tu sejas, mostra-te o que a ti segredas,

Endireita-te as veredas, conduz-te ao cume que almejas.

 

 

1157 - Herói

 

Olha para aquele herói que tanto procura a vida:

Um sonho em névoa delida e como um sopro se foi!

 

Em lugar da eternidade, importa mantê-lo vivo

Para retornar cativo à prisão de ter idade.

 

Homem, volta são e salvo ao local donde vieste:

Não há portão mais agreste do que imortal ir a um alvo!

 

 

1158 - Esconderijo

 

Quando sai do esconderijo, lança um tal clarão no instante

Sobre quanto toca adiante, que o creio ser o que exijo.

 

Confundo naturalmente a luminosa verdade

Com a ocasionalidade da revelação presente.

 

Alguém que tenha sentido a música a arrebatá-lo

Dirá que ela é que é o regalo em que o divino é ouvido.

 

Aquele a que a imensidão do mar tocou no mais fundo

Verá no mar o fecundo elo da religião.

 

Este dirá  “o meu profeta”, estoutro, “a minha capela”,

“Meu evangelho” daquela é a verdade predilecta.

 

Cada qual seu edifício em torno dum grão de pó

Constrói tal se dele só pudera haver benefício.

 

Mas é livre o numinoso, tanto e para além de tudo

Que é o mesmo, mesmo se mudo, é o que é, mesmo se o não gozo.

 

Essência da liberdade, libertarmo-nos dum bem

Que não passará, porém, de parcela da verdade

 

É a vera dificuldade: o inverso dum bem é um mal,

De vez nos fecha o portal do bem à totalidade.

 

 

1159 - Memória

 

A memória nos liberta pela mão do esquecimento.

Como escrever um lamento, se a mão que a caneta aperta

 

Cada vez que nela pego no espírito me traduz

Quantos passos para a luz na senda da vida agrego?

 

Se o preço de isto ocorrer me reproduzira a via,

Perdia toda a magia, deixava mesmo de ser!

 

 

1160 - Borboleta

 

Sonhei a noite passada que era a bela borboleta

A volitar na valeta toda florida da estrada.

 

Quando acordei era eu e não aquela ilusão.

Mas fica a interrogação sobre quanto aconteceu:

 

Quem serei eu, afinal? Eu sonhando a borboleta,

Ou antes a borboleta tendo-me a mim por fanal?

 

 

1161 - Universal

 

A razão não somos nós, pois todos os pensamentos

São da razão os momentos, é o Universo a ter voz.

 

Não somos nós o vital, pois tudo o que em nós é vida

É da vastidão haurida duma vida universal.

 

Este corpo nós não somos, dado que dele os compostos

São-nos, afinal, impostos com as leis que lhes não pomos.

 

O que somos, afinal, se eu não sou que estou em mim,

É que sou voz do confim, rumo, em gérmen, ao total.

 

 

1162 - Ensaio

 

Têm a falha fatal todas as revoluções:

Não há palcos nem salões para o ensaio geral.

 

As rupturas, são, assim, sempre o sonho de quenquer

Sem teia que entretecer, chegam de antemão ao fim.

 

Operadas de improviso, não é por falta de ser

Que a ser nem chegam sequer, é por falta de juízo!

 

 

1163 - Fossa

 

O meu corpo é uma carroça; a minha vida, o cavalo;

Cocheiro é o que penso e falo e eu, vontade que o remoça.

 

Eu controlo o meu cocheiro, o qual comanda o cavalo

Na carroça com que abalo - todos num o dia inteiro.

 

Do tempo na maior parte, circula o carro sem dono,

Tomba o cocheiro de sono e a besta destina e parte.

 

Então é quando a carroça, em desvario, ao virar-se,

De acordo põe, sem disfarce, a todos dentro da fossa.

 

 

1164 - Letras

 

Tragédia de ser humano é a de que um pequeno eu

Assina as letras, labéu de que a seguir pago o dano.

 

Sou eu, homem no meu todo, que enfrento esta situação.

Vidas inteiras se vão, a resgatar, deste modo,

 

As dívidas contraídas por uns eus acidentais

Que acabam pesando mais que as demais vidas das vidas.

 

 

1165 - Queima-roupa

 

Morrer é mudar de roupa e aquele a que a morte assusta

É como o actor a quem custa um disparo à queima-roupa

 

Duma pistola no palco que sabe que é disparada

Com pólvora seca, dada a imitar o catafalco.

 

Mas pardal habituado à gaiola não se importa:

Não voa se lhe abro a porta, é por dentro encarcerado!

 

 

1166 - Caixinhas

 

Agora vais retornar ao sistema das caixinhas,

Pelo horizonte caminhas, do cosmos sais do lugar.

 

No mundo a três dimensões reentras que construído,

Artificial, medido pelos humanos supões.

 

Como os demais ocupar uma única caixinha

Irás até que a adivinha te consiga decifrar:

 

Convencer-te-ás de novo de que a vida e o mundo inteiro

Algum valor a terreiro trarão a chocar no covo.

 

 

1167 - Candeia

 

Quando alguém te perguntar, vendo-te a candeia acesa,

Para a luz que tanto preza da fonte qual o lugar,

 

Sopra, apaga a tua chama. Responde-lhe então assim:

“Agora que lhe dei fim, onde é que o lume se acama?

 

Diz-me para onde ele foi, dir-te-ei donde ele vinha.”

Verás que desta adivinha novo lume se constrói.

 

 

1168 - Cume

 

A evolução será feita pela experimentação,

Já que o fim da vida não é aquilo a que vive atreita.

 

Embora a felicidade seja, para a maioria,

O que ao fim decidiria da vida a finalidade,

 

Ser feliz (fugir à ausência) nunca pode ser o fim,

Mas antes viver-me a mim de que então é consequência.

 

Quando me vivo conforme, tal felicidade advém,

Já que treparei também da mudança o cume informe.

 

Quando a mim eu me transgrido, vem então o sofrimento

Que aponta, em qualquer momento, quanto de mim me divido.

 

 

1169 - Fantoches

 

Os fantoches de madeira imitam tanto o ser vivo

Que o seu manejo cativo é uma vida verdadeira.

 

Manejo-vos com os dedos, dou três voltas ao cordel

E vós cumpris o papel, rides ou tremeis de medos.

 

Porém, quando a mão retiro, vos jogo nos bastidores,

Vai-se a ilusão e os humores, mortos se ao chão vos atiro.

 

E os fantoches que ali vimos somos nós, homens, apenas,

Só que não cremos nas cenas e sonhamos que existimos.

 

 

1170 - Lanterna

 

Caminho trazendo às costas a lanterna da experiência

Que me vai dando a ciência das sendas antes transpostas.

 

É o caminho percorrido, quando aquele por correr

É que me importa saber para à vida dar sentido.

 

Porém, o nosso destino que caminha à nossa frente

Só minha sombra pressente quando no abismo me inclino.

 

 

1171 - Dados

 

Se os dados estão lançados na vida, cada um pode

Fazer tudo o que lhe acode, quebrando as pernas aos fados.

 

Experiência não é o que aconteceu a um homem

Mas dele os actos que somem o que a vida pôs de pé.

 

Nem à mesa te acontece nada ir parar-te à boca

Se a tua mão não lhe toca, se de ajudar-te se esquece.

 

 

1172 - Esforço

 

Olha que nenhum esforço, por mais pequeno que seja,

Perde a fruta que vareja, dê na festa ou no remorso.

 

Na boa ou má direcção, nada morrerá na teia

Das causas em que se enleia, mesmo o fumo em dispersão.

 

Tudo marca os próprios traços e podes criar desde hoje,

Na correnteza que foge, teus mais oportunos passos.

 

 

1173 - Veludo

 

Sejas pai, sejas político, sacerdote ou director,

Empresário, teu maior de actuar princípio crítico

 

É que terás de aprender a ser mais que paciente

Dirigindo o diferente com o igual que convier.

 

Pois o que convém a tudo, ao dirigi-lo sem erro,

É que tenhas mão de ferro mas em luva de veludo.

 

 

1174 - Domingo

 

Para muitos toda a vida foi a tarde de domingo

Em que, infeliz, nem distingo, quando passa de corrida,

 

Se é apenas quente e pesada ou se o que é desagradável

É de tudo ser inviável e a fazer não haver nada.

 

Dessa tarde, na lembrança, fica a contrariedade,

O aborrecimento que há-de marcá-la em troca da dança.

 

Depois, muito bruscamente, finda pela noite dentro...

- E a vida em que já não entro foi mero sonho que mente.

 

 

1175 - Camponês

 

Manhã cedo, o camponês nas hortas vai encontrar

Uma grande égua a pastar, linda da cabeça aos pés.

 

De ninguém como não era, com ela ficou, feliz.

Cada vizinho maldiz a sorte que não tivera!

 

Porém, uns tempos depois, a égua desaparece.

A noite fez que o fizesse bem antes dos arrebóis.

 

Então toda a vizinhança lamenta o infortunado...

Até que, um tempo passado, de novo a égua se alcança:

 

Traz um potrozinho ao lado, a saltitar pela aragem.

E a vizinhança, em romagem, inveja o inesperado.

 

Uma semana mais tarde, um coice do potro fere

O filho. Quando o confere, chora a aldeia com alarde:

 

“Mais te valera não teres tido égua do que um filho

Coxo de vez e sem brilho para a vida que lhe deres.”

 

Porém, os oficiais do senhor local da guerra

Recrutam após, na terra, quem de jovem dê sinais.

 

Ante a iminência da morte para os filhos, o lamento

Outra vez o sentimento muda em inveja: “Que sorte!

 

Os nossos correm o risco de ser mortos. Mais vale um

Coxo ter do que nenhum rapaz a tratar do aprisco!”

 

 

1176 - Conjuntura

 

Acolher a conjuntura não é me manter passivo.

Se no remoinho vivo, corro o risco da fundura.

 

Poderei, ou recusar e então me debaterei,

O que vai cumprir a lei de melhor eu me afogar,

 

Ou aceitar tal evento, procurando então a forma

De me libertar: a norma de boiar sobre o elemento.

 

O que daqui se recolhe tem esta verdade inclusa:

Quem acolhe é que recusa e quem recusa é que acolhe.

 

 

1177 - Comédia

 

Olha o que é a vida: a comédia de marionetas sombrias,

Meras fantasmagorias, o inverso duma tragédia.

 

Piruetas e esgares, fantoches cruzam a cena

Rindo e chorando sem pena, com lábios ocos de alvares.

 

Na outra ponta do palco desaparecem de vez,

Já sem máscara nem tez, terminam no catafalco.

 

Morrem sem se recordar de que a mesma mascarada

Viveram em cada entrada, prontos a recomeçar

 

Maquinalmente a cegueira, movidos das mesmas molas:

Amor, ódio, umas esmolas de sexo ali mesmo à beira.

 

Uma volta ao carrocel e depois uma saída

Mais ou menos conseguida e retoma-se o papel.

 

Somos bolas de sabão que nas nuvens se dissolvem

E sem vestígios resolvem formar de novo o balão.

 

 

1178 - Purgatório

 

A vida tem um sentido: não é ser um purgatório

Nem um buraco ilusório para o além desconhecido.

 

A vida é um laboratório onde a pedra, a pouco e pouco,

Abandona o mundo mouco, de planta num envoltório,

 

E, mais tarde, no animal, até que atingiu o homem.

Hoje os sábios se consomem: buscam de amanhã o sinal...

 

 

1179 - Valho

 

O que importa jamais é quanto resultar da acção,

O ter que te fica em mão, mas o ser que pões de pé.

 

Pouco importará o trabalho, a acção que nele eu tiver:

A evolução que vou ter é que dirá quanto valho.

 

 

1180 - Círculo

 

Fazer o mal pelo mal é deixarmo-nos cair,

Não nos elos do devir, neste círculo infernal:

 

O mal que hoje aqui sofremos é o ricochete daquele

Que infligimos sobre a pele dos demais com que vivemos.

 

Ao ódio o ódio reforça, só o amor o desintegra:

O custo que custa a regra é a vitória a que se esforça.

 

 

1181 - Hoje

 

Cuidemos do dia de hoje, pois é da vida uma vida.

De sua curta medida nenhuma verdade foge

 

Nem qualquer realidade: do crescimento a alegria,

Das acções a fantasia, da beleza a claridade.

 

Já que ontem é apenas sonho e amanhã, uma visão,

Hoje é só o que tenho à mão, meu alvor de que disponho.

 

 

1182 - Esperas

 

Muito esperas tu da morte, quando nada há que esperar!

Só a vida te há-de salvar, conforme jogas a sorte.

 

Na terra é que progredis, nela vos realizais,

É no corpo que levais a vitória a que sorris.

 

O ourives trabalha a prata e da branca brutidão

Purifica, a cada mão, a impureza que a maltrata.

 

Nós somos aquela roda que corre a senda da vida,

Toca o solo, de fugida, num ponto da estrada toda,

 

Em cada instante que passa. Atrás dela, eis o passado,

O porvir à frente é o dado: de realidade escassa,

 

Nunca foram nem serão senão no instante presente

Em que a roda fica assente no solo rijo do chão.

 

Os factos poderão ter uma existência perene,

Passado ou porvir solene e nós cá sempre a correr.

 

Assim nós é que chegamos, não eles que se produzem:

Os comboios nos conduzem e as paisagens vislumbramos

 

Bem fugazes, passageiras e sempre tão sucessivas

Que as não vemos ali vivas, coexistentes, inteiras.

 

Quando nisto reparamos, não será o tempo que passa,

Para o bem ou a desgraça, somos só nós que passamos.

 

 

1183 - Peregrinos

 

Aqui vamos, peregrinos, pela garganta apertada.

“À vertente alcantilada, atentos e ouvidos finos!”

 

- Recomenda-nos o guia. - “Há quinze dias o monte

Desmoronou-se defronte sobre o grupo que aqui ia.”

 

Cada qual, obediente, começa, lento, a avançar,

Os olhos fixos no ar... - Tomba ao rio, em baixo, à frente!

 

 

1184 - Credo

 

Acolher a realidade e deixá-la então seguir

Em vez de lhe resistir é que modela a vontade.

 

Dos ignotos não ter medo diminui-nos o temor

Com que usamos nos opor da vida presente ao credo.

 

Se adaptar-me àquilo que é, em vez do que deveria,

Nem bom nem mau o leria pelo ideal que faz fé.

 

A ilusão é acreditar que nós logramos vencer

As coisas só com o ver, quando apenas tem lugar

 

Uma influência qualquer, pense lá quanto eu pensar,

Quando sobre ela actuar pelo meu agir e ser.

 

 

1185 - Presente

 

Pensamentos negativos afastam-nos do presente;

Nele fazem que eu assente quantos forem positivos.

 

Viver agora é viver na comunhão da energia,

O futuro é fantasia quanto um passado qualquer.

 

Há na fadiga um conflito entre o físico e o mental,

Quando este ao corpo faz mal exigindo-lhe um delito:

 

O mental é pessimista, vive sempre do malogro;

Eu quanto da vida logro é quanto na vida invista.

 

 

1186 - Sim

 

Se a outrem eu der o sim, como outro desaparece,

Pois desde então acontece que fará parte de mim.

 

Um com ele então farei e não como habitualmente:

No outro não se consente, digo não ao que dele hei.

 

Ele deveria agir segundo aquilo que eu quero

Em vez de agir sob o mero desejo que o leva a ir.

 

Agora, se podes ver que ele é um outro, diferente,

Vês nele o que nele é um ente e não um outro qualquer.

 

O teu eu desaparece, agora já não sois dois,

Um Nós elevais depois que a separação falece.

 

Quando teu sim acontece ao mundo que te rodeia,

Entre ambos urdes a teia e o mundo tal nem parece:

 

Não te pode influenciar nem suscitar emoções,

Nem, sem causas, reacções - é neutro em todo o lugar.

 

Quando lhe dizes que não, lhe reforças a existência:

O mundo perde a aparência, solidifica-se então.

 

Recusar qualquer evento - de alguém a atitude hostil,

Dinheiro em perca febril, morte dum grande elemento -

 

Pretendê-los diferentes confere-lhes o importante

Impacto que lhes garante os efeitos mais prementes.

 

Pretendemos o prazer e recusamos a dor

Sem sequer mesmo supor que são um único ser.

 

O côncavo e o convexo da mesma panela ao lume

Dão-nos da vida o chorume: dor e amor - um mesmo amplexo.

 

 

1187 - Acontecimento

 

Vem um acontecimento bater à porta uma vez,

Traz-nos o novo através desse único batimento.

 

Um novo enriquecimento provém deste facto novo

E assim a vida do povo é uma festa em crescimento.

 

A emoção não é um evento, a emoção não é real,

É uma criação mental que chega a qualquer momento.

 

Então aí acontece. Acolhe-a, que ali é um facto.

Não a negues, que tal acto reforça-a, não a arrefece.

 

Aniquila a oposição, que a unicidade aparece,

Enquanto a luta se esquece entre ti e o coração.

 

Dissipas naturalmente a tomada de partido,

Volta de novo o sentido na neutralidade assente.

 

Do homem é um privilégio ser livre quando quiser,

Quando além seguir puder de qualquer decreto régio.

 

Os determinismos são do domínio do mental,

Ser livre o desejo real leva à neutralização.

 

 

1188 - Cume

 

O nosso cume a atingir será o do conhecimento;

Com os mais o que implemento será um amor a fruir.

 

Somos todos alpinistas a vivermos alternâncias

Entre alegrias e ânsias, aos mais ligados nas pistas.

 

Pouco importa caminhemos na frente ou na corda atrás,

Quem cair o risco traz de os mais levar na corrente.

 

Importa sermos capazes de os mais débeis segurar:

Quem sobe vai ajudar os mais a trepar audazes.

 

A via mal conhecida, fraca solidez na corda

Logo fazem que o pó morda, perdemo-nos na subida.

 

Amor sem conhecimento é cego palpando o cego;

Saber sem de amor apego pára-me quanto acrescento.

 

 

1189 - Precário

 

Ama teu corpo que é teu apenas neste momento:

A forma humana é um intento precário roubado ao céu.

 

É tão fácil de perder-se, tão breve é tudo no mundo

Que dura um curto segundo, raio na terra a fender-se.

 

Gota de chuva que pus a leiva seca a regar,

Evola-se a vida no ar no instante em que vem à luz.

 

 

1190 - Águias

 

Em vez de pernas tu tens as asas do pensamento

Em que os voos, num momento, das águias leves reténs.

 

Nós que nas pernas erguermos o limite da estatura

Rastejamos na andadura, míseros vermes enfermos.

 

Pensa, pois. Mas o alimento do voo que tens no ar

É veres bem que pensar é o começo do tormento.

 

 

1191 - Bailarino

 

Um bailarino é uma estátua fugida à imobilidade.

Quando a música o invade, a vida à vida desato-a.

 

Estática, a melodia junta aqui ver com ouvir.

Com um passo a emergir, é o voo que amanhecia.

 

Na dança casam-se as artes: é música, é movimento,

É escultura - é o condimento que ao todo me junta as partes.

 

 

1192 - Tiranos

 

Deles acrescentam forças com as dissensões alheias

Tiranos que nas ameias se enleiam com as comborças.

 

É do saber popular que domar um inimigo

Mais é domar-lhe o perigo: dividir para reinar.

 

Com os amigos atento, preserva bem a união,

Busca os consensos, senão vai-se da vida o fermento.

 

 

1193 - Sinos

 

Os sinos, por todo o mundo, servem, onde quer que estejas,

Para que o diálogo vejas com eles quanto é fecundo.

 

Conversam frio e calor numa linguagem tal

Que em todo o mundo é igual, tem da aldeia o teu teor.

 

Sem par te dão o sendeiro que te não quer noutras peles:

Jamais serás, perante eles, em lado algum estrangeiro.

 

 

1194 - Quem?

 

Quem sou eu, quem somos nós? Quem é, por fim, cada um?

Nem sangue, nem meio algum, nem da cultura os ilhós

 

Faz este eu que eu aqui sou. Contínuo embate comigo,

No debate é que consigo talhar o rumo em que vou.

 

E o lume que prometeu, ora nas mãos o apanho,

Ora o perco quando o ganho: quantos eus há no meu eu!

 

 

1195 - Compreensão

 

Aos homens compreensão que se matam e guerreiam,

Se perseguem e se odeiam, delimitam vedação

 

Às terras como às riquezas, doutrem às crenças, ideias,

Embrulhando-se nas teias cada qual de suas rezas,

 

Com verdades que não mudam?! - É que em hora de perigo,

Cada qual doutrem é amigo, em comum se entreajudam!

 

 

1196 - Religiões

 

Em terras do Médio Oriente chocam-se as religiões.

Nenhuma, nas confusões, vê que das mais é parente,

 

Mundo que se dilacera em nome dum Deus de amor,

Criança que, no furor, o Deus-boneca quisera,

 

Disputa-o às mais nos trapos, cada qual para seu lado,

Até que lhes cai rasgado aos pés desfeito em farrapos.

 

 

1197 - Velhos

 

Estes venerandos velhos que aqui vivem, vergam anos,

Livros falantes de arcanos hão-de ser cujos conselhos

 

Estão escritos nas rugas do corpo de pergaminho,

Tão antigo que adivinho dos ancestrais nele as fugas.

 

São a tradição oral que receberam de avós

Que nos talharam a nós: são gesto de cada qual.

 

 

1198 - Pego

 

Da mais excelsa alegria será sempre lá no meio

Que se cava o pego cheio com a tristura mais fria.

 

Não há pico ensoalhado de alcandorada montanha

Que a seu lado não despenha um negro abismo cavado.

 

Tal é nossa condição que quão mais promovo a vida

Mais a morte de seguida me cobra cara a caução.

 

 

1199 - Milagre

 

É milagre! - grita o povo, ao ver o Sol que balança,

Sem ver que por trás da dança são incêndios que comprovo.

 

É feliz quem acredita no milagre fementido?

Infeliz quem o sentido dispõe à causa que o dita?

 

Que lumes e que sentenças andam por fim escondidos,

Ignotos ou pretendidos, por detrás de nossas crenças?

 

 

1200 - Hospitalidade

 

Onde o espírito cristão da antiga hospitalidade

Que um laivo de eternidade via em quem bate ao portão?

 

Em vendo entrar pela porta um hóspede inesperado,

Viram a cara de lado, tal quem à saída exorta.

 

Então, quem atenta nisto, vendo a grande turvação,

Repara logo que não entra em casa Jesus Cristo.

 

 

1201 - Envelheço

 

Envelheço de abulia, de abandono, desistência,

De ideais vendo a falência que jovem eu perseguia.

 

É sempre por abandono que me perco no caminho,

Do espanto não sou vizinho, troco um êxtase por sono.

 

Envelhece quem não pode mobilizar-se por dentro:

É quando em mim já não entro que a paixão me não acode.

 

 

1202 - Bolandas

 

Os cristãos, por seus pecados, passam o tempo em bolandas.

Amor, paz, questões quejandas e da caridade os fados,

 

Eis os pregões da mensagem que afloram todos os dias

Aos lábios e às fantasias. Por dentro, porém, a imagem,

 

Desde o imperador ao servo, são porfias e contendas,

Ódios, raivas, reprimendas, das cobiças todo o acervo.

 

Grandes oprimem pequenos, para si furtam o alheio.

Vem a morte pelo meio, a tudo atalham seus drenos:

 

Cada qual leva consigo, todos os termos julgados,

Só as soberbas e os pecados. Fica o mais ao nosso abrigo.

 

 

1203 - História

 

Desta terra que lugar, que lugar do mundo não

Viu já Caim deitar mão de Abel para o atassalhar?

 

A história da Humanidade não tem passado da história

Deste campo de vanglória que à glória não persuade:

 

Em lugar de mão na mão, com o apoio que alicia

Cada qual ao novo dia, cada irmão mata o irmão.

 

 

1204 - Melros

 

Aquilo que a mim me enterra no pó do alvor os meus pés

É que cantam português os melros da minha terra.

 

Os ribeiros que molhei com o calor dos verões

Nunca têm os senões dos outros por que passei.

 

São ervas, frutos da horta, a mesa com broa e pêras...

- És tu que te recuperas quando a saudade abre a porta!

 

 

1205 - Devagar

 

Somos parvos devagar: vemos uma coisa boa

Apenas se outra pessoa primeiro a viu no lugar;

 

Conciliamos ao dar de comer a um crocodilo,

A comer-nos a induzi-lo só em último lugar...

 

Se tal verdade magoa, da dor não entra na escala

O gosto de procurá-la, mais dói fugir dela à toa!

 

 

1206 - Mãe

 

Quando uma mulher é mãe, nunca fica só consigo,

Duas vezes vê o perigo, pensa dobrado também.

 

Pensa primeiro por ela, pensa depois no cadilho

Com que a si atou o filho: não é só, mora à janela...

 

Sozinha nos pensamentos mas a pensar duas vezes,

De vez só, só nos reveses dos derradeiros momentos.

 

 

1207 - Adversário

 

É impossível encontrar um adversário melhor

A que alguém se possa opor que da adversidade o azar.

 

Ao medi-la é que me meço, ao vencê-la é que me venço

E quando noutrem eu penso é que a mim eu me ofereço.

 

Os infortúnios da vida é que me dão garantia,

Se os venço no dia a dia, de ter tamanho e medida.

 

 

1208 - Justiça

 

Pode ser cega a justiça, mas de escuta os aparelhos

Que a todos ata aos artelhos ouvem mais que se cobiça.

 

Acontece que o juiz, em vez de buscar o justo,

Não quer é pagar o custo de se empenhar de raiz.

 

É tanto um homem frustrado como qualquer outro ou mais,

Que, fora dos tribunais, fora mais um condenado.

 

 

1209 - Música

 

A música não tem siso, toca o som que bem quiser:

Ninguém repara sequer que os sinos são dela o riso?

 

Riem por fora a gralhada das quebradas das aldeias

E por dentro são mancheias dos contos de cada fada.

 

Repica agudo o sorriso na alvorada do menino

E grave ao crepúsculo o hino é já a noite que diviso.

 

 

1210 - Rei

 

Vê bem, rei que és tanto rei, que teu ancestral mais bravo

Foi algures um escravo e também fora-da-lei.

 

Vê o escravo que ora é teu, como em seus antepassados

Teve reis, teve cruzados, heróis e santos no céu.

 

Por quê tanta fantasia, quando afinal todos somos

Da mesma laranja os gomos e o mais, vaidade vazia?

 

 

1211 - Segurança

 

O desejo mais antigo é ter alguém que interrogue,

Ao me ir ao mar, se me afogue, ao atrasar, se há perigo.

 

Viva tal que seus amigos o possam vir defender

Mas não tenham de o fazer, que preveniu bons abrigos.

 

Assim é que a segurança maior é de quem a monta,

Depois nem a toma em conta, tão seguro é quanto alcança.

 

 

1212 - Poço

 

É um poço cada criança, um poço tanto mais fundo

Quanto mais novo é no mundo: nosso poço de esperança!

 

Quem espera sempre alcança, premedita a voz do povo.

Mas quando é que eclode o ovo da espera que eterna cansa?

 

Entretanto é fabuloso o mundo que nos rodeia

Se pelos olhos ameia da criança a que dá gozo.

 

 

1213 - Talentos

 

Talentos, iniciativas, de árvore são nossas folhas:

Duas faces, quando as olhas, nos mostram enquanto vivas.

 

Uma reluz, colorida, virente, virada ao céu;

Outra, baça, se escondeu, a terra olhando, fingida.

 

Os nossos amigos gostam de ver o rosto da luz;

Aos inimigos seduz mais a sombra a que se encostam.

 

Os que são indiferentes, tendo as folhas de perfil,

Não nos verão uma em mil, das frondes irão ausentes.

 

 

1214 - Empresa

 

Da empresa no anonimato é mais fácil atrair

Quem do topo não nos vir quando a escrever-lhe desato.

 

Se minha escrita for boa, tiver pessoal calor

Ele encontra-lhe o sabor a que sabe a ancestral broa.

 

Mais que o que se diz ou faz, que voa, desaparece,

Quem num escrito acontece permanece no que apraz.

 

 

1215 - Generosidade

 

Vera generosidade não é dar o que se tem

Mas aquilo de que alguém prec

 

Quem isto deu a quenquer, deu muito mais do que deu,

Restaura a fé que morreu na Humanidade que houver.

 

Tal ao carente auxilia-o. Porém, o mais importante

É com todos doravante que o gesto reconcilia-o.

 

 

1216 - Futuro

 

Sempre a viver no futuro, no trabalho não trabalhas,

Nas estradas atrapalhas: pouco futuro te auguro.

 

Quem não vive no local esta prenda que é o presente

Não tira partido assente da vida que tudo vale.

 

Importa aprender que a vida tem seu próprio calendário

E que tem destino vário quem os passos lhe não siga.

 

 

1217 - Impaciência

 

Analisa em que medida esta tua impaciência

É uma fortuita ocorrência ou é constante e querida.

 

Crês-te importante demais para esperar por alguém?

Nunca demais o é ninguém e não és mais tu que os mais.

 

O mundo ao nosso desfrute se oferta mas não obriga:

Goza-o quem nele se abriga e, sábio, não o discute.

 

 

1218 - Duradoiro

 

Para um amor duradoiro, se alguém a si se pergunta

Que é feito dele, lhe junta dúvidas de mau agoiro.

 

Ignora que é dele mesmo que qualquer amor constrói,

Não é lá fora que foi juntar-lhe as folhas a esmo.

 

Um amor mora-me aqui, neste constante entremeio

Em que a mim próprio semeio no laço entre mim e ti.

 

 

1219 - Casal

 

Um casal bem sucedido começa quando o casal

Faz do tempo o principal em comum a ser vivido.

 

Se esperamos encontrar o amor pela vida fora,

Importa que, sem demora, se encontre o tempo de amar.

 

Vai durar um casamento ao nele se ultrapassar

O egocentrismo que a par o casal tem de alimento.

 

 

1220 - Companheiros

 

Muitas vezes a maneira de ver nossos companheiros

É de os lermos nós inteiros, deles sem termos joeira.

 

São aquilo que nós somos, não aquilo que eles são:

Só para nós viverão a imagem que nós lhes pomos.

 

Tão frágil é a evidência de que marido e mulher

Participam no que houver, um doutro não são ausência!

 

 

1221 - Enamorado

 

Quanto homem enamorado, cai breve de garanhão

A ronceiro pacatão, logo após ter-se casado!

 

E quanta fada boneca, de solteira finda a zona,

Se transmuda em marafona do lar quando veste a beca!

 

Os amores duradoiros estimulam para olhar

Com amor, em vez de andar em nada a falhar tesoiros.

 

 

1222 - Casados

 

Quantos perdem sua vida de casados a lutar

Para a maneira alterar do par com o qual se lida!

 

Casamentos infindáveis são todos quantos admitem

Que nos rostos coabitem várias vertentes viáveis.

 

Quando ela me abrir os olhos vejo aquilo que não vejo

E o mesmo quando a cortejo, desvendo esconsos refolhos.

 

Os dois em conjunto, então, a visão é totalmente

Dos eventos diferente do que era em primeira mão.

 

 

1223 - Casamento

 

Melhor é aprender a amar do que a lutar mutuamente:

Vencer no casal não tente, mas com o casal a par.

 

Casamento é para dar e não para receber,

É para permanecer, sendo dois no singular.

 

Se por si lutar apenas, só por si pode vencer;

Se for o lar que quiser, vencem dois, vencem centenas!

 

 

1224 - Desejo

 

Se um desejo te domina, cede-lhe, mas com medida.

Todo o esforço que se envida a destroçá-lo elimina.

 

E se fores responsável a saciá-lo, verás

De quanto mais és capaz que ser destroço inviável.

 

Só com tal não vão as drogas. Mas irão sempre as paixões

De amorosos, de glutões: cede um pouco e não te afogas.

 

 

1225 - Empregado

 

Um patrão ao empregado quando decide dar mais

É bom ver de quê ou quais coisas decora o que é dado.

 

Mais responsabilidades normalmente quer dizer,

Não a promoção que houver, mas estas cruas verdades:

 

Doravante ele vai ser quem ficará responsável,

No meio do imponderável, por tudo o que mal correr.

 

 

1226 - Trabalho

 

É sempre o trabalho duro o factor primordial

Para o sucesso real de quanto na vida apuro.

 

É aquilo que traz impresso a vergôntea que vingou:

Nunca ninguém se queixou do que lhe augura sucesso.

 

Concentração no trabalho, dedicação por inteiro

São, pois, o metro primeiro daquilo que  sério valho.

 

 

1227 - Sozinho

 

Quando sozinho me sento em frente ao papel em branco

É que a meu lado no banco acodem ao meu intento.

 

Fico só com tanta gente a falar dentro de mim

Que já nem sou eu no fim quando escrevo o que alguém sente.

 

Pela ponta da caneta falam os pais, os avós,

Todo o povo antes de nós - é o mundo inteiro um poeta!

 

 

1228 - Infinidade

 

Dizem que amor é prazer, é sonho de infinidade,

Mas é só meia verdade rumo ao que pretendo ser.

 

Um sonho, para valer o peso da realidade,

Vai conferir a verdade em tudo quanto ocorrer.

 

Então descobre que a dor enfrentada com coragem

Tem o tamanho da imagem do que a sério pode o amor.

 

 

1229 - Redundância

 

Toda a vida é desperdício, tão cheia de redundância

Que, perdida, volta à infância e então é que tem início.

 

A vida é breve mentira, vem a morte despertar

O vazio do lugar quando do avesso a revira.

 

O problema deste lado é que nunca decidimos

Se acabamos ou partimos: que começo é o do finado?

 

 

1230 - Charneira

 

Não há mortes, não há morte, mas muitas vidas na vida.

Esta apenas, comedida, é a que tem menos da sorte.

 

No estreito de tempo e espaço mofinamente apertada,

Esta vive de empreitada: distraio-me e me desfaço.

 

É, porém, nesta pedreira de pó, suor e cansaços

Que ato os nós e aperto os laços, sou doutros mundos charneira.

 

 

1231 - Guarida

 

Sempre em busca de guarida, onde posso acontecer?

Toda a porta do saber é experimentar a vida.

 

Aqui estou nesta pobreza, mais franciscano que os mais,

Na vida cujos sinais são de que só me despreza.

 

Ela, porém, é instrumento onde encontro o que preciso

De que invento, em meu juízo, de que fugir ao lamento.

 

 

1232 - Sonhadoras

 

Consciências sonhadoras é o que somos no presente,

Cada qual de si ausente, a vida inteira a desoras.

 

Em vigília é que se sente a demora das demoras,

Espaço não há nem horas quando ao sonho estou presente.

 

Fora do tempo e do espaço, quando é que me encontrarei

Por fim liberto da lei, ao compasso de meu passo?

 

 

1233 - Criança

 

Sou uma criança, mamã. Mesmo se choro por fora,

Por dentro canto, canora cotovia da manhã.

 

Educa-me, as rédeas soltas mas prontas a ser puxadas:

Sei lá o piso das estradas por onde viram as voltas!

 

Sei que na festa das vidas eu sou a alegre bandeira

A drapejar altaneira sobre a mesquinhez das lidas.

 

 

1234 - Imortalidade

 

Se a imortalidade existe, depois da morte começa

A mais fascinante peça com que ao fado alguém assiste.

 

Se não existe, porém, tudo enfim se extinguirá

Na física morte cá e, com ela, a dor também.

 

Assim, ambas as versões, com vantagens semelhantes,

Retiram, equidistantes, ao fanatismo as razões.

 

 

1235 - Gleba

 

Os grandes poetas serão, na gleba cheia de cardos,

Mais do que do povo os bardos, arautos de Deus em vão.

 

Zumbir de abelhas divinas, urzes de aroma serrano,

Jogam ouriços no pano com castanhas peregrinas.

 

Mas os picos picam tanto, tanto ameaçam quem abrir

Que todos vão desistir e calam do encanto o canto.

 

 

1236 - Honrado

 

É tão raro o ser honrado que aparece à luz do dia,

Não já como fancaria, mas como um bem procurado.

 

Torna-se de vida um modo, honradez a dar fortuna,

Oferta à esquina oportuna: quem de honra compra um engodo?

 

Pôr a virtude a render na banca, na praça ou feira

Torna-se a nova maneira de o que é bom sobremorrer.

 

 

1237 - Distância

 

Medeia curta distância da indigência à rapinagem,

Do que implora é curta a margem ao que mata por ganância.

 

Rouba, estrangula, assassina o tigre quando esfaimado:

Desperta no peito ao lado da honradez que lhe foi sina.

 

Quando os ventres sem jantar resmungam juntos na rua,

Cuidado, que desta lua é de lobos o luar!

 

 

1238 - Máquina

 

Máquina da humanidade, não cria mais, só produz,

Falta-lhe do génio a luz, de sentir a qualidade.

 

Criar é um acto de amor, amor é o que é todo o ser

E nesta raiz quenquer enfrenta qualquer horror.

 

Quando a obra vai a terra, é que só dura o que vive,

Qualquer raiz que eu cultive, se esteia mais, mais me aferra.

 

Muito mais que um alicerce, que a pedra bruta à montanha,

Da vida a prende a gadanha que no alcantil ande a ater-se.

 

 

1239 - Ductilidade

 

A amorfa ductilidade dos caracteres humanos,

Se às energias traz danos, se impede a espontaneidade,

 

Facilita, no entanto, duma maneira sem par,

Os actos de governar a moldar o riso e o pranto.

 

Os dedos dum escultor a cera branda à vontade

Modelam de eternidade. Onde alguém com tal valor?

 

 

1240 - Marinhagem

 

Quando o navio alagado vai ao fundo, a marinhagem,

No frenesim da drenagem, discute sobre o costado?

 

Se um país se despedaça, se a Terra é um balão furado

Vais discutir para o lado de que modo achará graça?

 

Se já cospes os pulmões e o cancro te esventra o fundo,

Vamos discutir o mundo, convertê-lo a teus sermões?

 

 

1241 - Pintos

 

Os indivíduos, os povos regeneram-se sofrendo,

Pintos que só vão nascendo se partem a casca aos ovos.

 

Pode a dor ser salvadora, que a virtude sem martírio

É Cristo sem o delírio da cruz que nele demora.

 

Toda a vida universal na angústia se fortalece,

A redenção só merece quem sofrer paixão igual.

 

A procela revigora o roble no descampado,

Ferro ao rubro é temperado com águas que ele evapora.

 

Quando a desgraça matara por inteiro a Humanidade,

Então não era verdade, que há muito já se finara.

 

 

1242 - Sustento

 

Os desastres, as misérias, vergonha, calamidade,

Vergados com hombridade ou dores doendo sérias,

 

Enseivam de novo alento um coração já batido.

Um raio lasca o bramido, do pinhal tomba o portento,

Mas logo brota, violento, de quanto é galho amputado:

Mora-lhe alma noutro lado, a raiz é que é o sustento.

 

 

1243 - Espírito

 

O espírito, como o fogo, calcina pedras e traves,

Derrete os metais mais graves. Nele, porém, desafogo.

 

O facho duma alma em brasa incendeia Babilónias,

Queima de impérios colónias, para erguer a própria casa.

 

Nada por fim lhe resiste ao chamejar mais fecundo:

Nele se dilui o mundo, nenhum credo lhe subsiste.

 

 

1244 - Legenda

 

A nação não é uma venda, nem o orçamento, sagrado,

O comerciante abastado não é dos homens legenda.

 

De estômagos comunhão não é uma pátria, é alcateia

Ou então a pia cheia de porcos com a ração.

 

Mercearia em decadência, a ruína da Humanidade

Moral contabilidade mais é do que imprevidência.

 

 

1245 - Pantanal

 

Sem Banco de Portugal, somos pobre geração;

Sem Lusíadas, então, mísero era o pantanal.

 

Só que aquele é passageiro e este seria eterno:

Dinheiro é sempre moderno, génio é um e derradeiro.

 

Quem só na moeda assente há-de ficar em camisa:

Então nele alguém divisa que só nu fica decente.

 

 

1246 - Alma

 

Alma frágil, tão subtil, és força que se derrama

Ou malha apenas na trama, nada perdido entre mil?

 

Não tens cor ou cor de anil o céu todo em ti se acama?

Só te não vê quem não ama o além que há num ser gentil.

 

Mas, elevada na chama, um qualquer gesto febril

Troca-te a letra, infantil: devéns, de alma, um ror de lama.

 

 

1247 - Algozes

 

Profetas domam leões, um mártir aterra algozes.

Se um povo se eleva às vozes da verdade, são tições

 

Que incendeiam consciências e ressuscitam dos mortos:

Se os trilhos caminham tortos, explodem as violências.

 

O justo morre na cruz. Porém, ao terceiro dia,

Ergue a pedra que o prendia e o mundo inteiro reluz.

 

 

1248 - Caduco

 

É neste roble caduco, é nestes galhos exangues

De pálidas folhas, langues, que um favo ainda busca o suco,

 

Que as aves ainda gorgeiam, entrançam ninhos e dormem.

Bom é que a tal se conformem nossos machados que ameiam

 

Para o tronco a derrubar. Rola a Terra no infinito,

Lá deve, pois, nosso grito aprender a ir rolar.