DÉCIMO QUARTO VERSO

 

 

Épicos se erguem da jornada os tectos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Escolha entre os números 1371 e 1372.

 

Descubra o poema correspondente como uma mensagem particular para o seu dia de hoje.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1371 - Épicos se erguem da jornada os tectos

 

Épicos se erguem da jornada os tectos:

Quantos poemas motes dão serenos

Em que vislumbro quanto são completos

Na plenitude os actos mais pequenos!

Pelo caminho, dos avós aos netos,

Do mais em nome iremos, sendo o menos,

E, se nos na jornada não perdemos,

É de isto farol ser do que queremos.

 

 

 

1372 - Universos

 

Da vida humana, um dos aspectos raros

É que vários pequenos universos

Todos e cada qual nos serão caros,

Para sonhos e fins se mostram tersos

Quando servidos com afins preparos,

Porém operam como irmãos conversos

No tempo coexistindo e nos espaços

Sem uns doutros saberem dos abraços.

 

Um homem avisado é marinheiro

Que pelo mar incerto duma vida

Ausculta a ondulação, interesseiro,

Busca o vigor dum braço para a lida,

Segue a rota do Sol e, viageiro,

À nuvem mede a cor, por mais delida,

E acaba dominando os elementos

Por saber de que lado andam os ventos.

 

Mais fácil detestar é a multidão,

Que os feitos se misturam de ameaça,

Que o povo se transmuda no senão

Sem rumo ou tradição que é a populaça,

Mais fácil do que quando fica à mão

Um a um cada homem que nos traça

Seu perfil ante nós tão cara a cara

Que noutrem cada qual em si repara.

 

A maldição dum povo é a corrupção,

É a falta de horizontes que sonhar,

São valores perdidos pelo chão

E o tempo de ano em ano a se arrastar,

É todo o nada disto: sem perdão,

Onde o povo de vez perde seu lar

É quando o dirigirem nulidades,

- Então são maldição suas verdades!

 

Um homem vale um homem e o lugar

Ou a família em cujo seio nasce

Lhe servem dentre pares a ser par

Mas nunca o reconduzem onde pasce

A cimeira grandeza singular:

Dum homem o tamanho afinal faz-se

Por tudo aquilo que em si próprio for,

Nada de fora o tornará maior.

 

Primeiro tribalistas nós o fomos,

Depois nacionalistas até agora,

Internacionalistas quando o somos

Ainda o nacional se nos demora

No grupo, ideologia que supomos

A cruzar as fronteiras toda a hora.

É a nossa idade que nos marca as pistas:

Os jovens são essencialmente egoístas.

 

O que ocorre comigo, humanidade

A tomar corpo inábil, insegura,

É que jamais descubro, com verdade,

O que é que quero, de vontade pura,

Tanto tergiversei, em cada idade,

Com o valor de quanto a idade apura,

Não sei nunca o que quero (e o custo a que orça),

Embora o queira com imensa força!

 

A fama e o prestígio, que agradável

A gratificação que nos convence

Da efémera grandeza saudável!

E como a timidez em nós se vence

Na ilusão de que tudo nos é viável!

Porém, depois do engodo, ao fim mantém-se

O mais pesado custo da ignorância:

A fama a todos põe mesmo à distância.

 

De tão polido, brilha o aristocrata

Em tudo o que é pequeno com fulgor,

Do trato lima arestas com quem trata

Até que se confunde com amor,

Contudo, se é de bens que ele contrata

Ou se é de sacrifícios o penhor,

Opera logo tal como o beato:

- Por fora, adora, dentro é um desacato.

 

Se apenas nós vivêramos a morte

Sem a conceber nunca num conceito,

O instante apenas lhe sofrera a sorte,

Em nenhum tempo lhe haveria preito,

Nem antes nem depois teria corte

Que em eco lhe dobrara a dor no peito,

Porém, como a palavra evoca um acto,

Em concreto a sofremos e em abstracto.

 

Em todo o asceta um salvador dormita,

Por motu próprio ou por moção estranha,

Ao contrariar o que ao prazer concita,

A sensualidade que é tamanha

Ao moderar quando demais palpita.

Porém, atrás do dique o que ele ganha

Não é um poder que cremos ser fantástico:

Referve atrás do asceta um orgiástico!

 

Se este mundo é o só mundo que está certo,

Se as demais dimensões não existirem,

Por mais que ele nos fique de nós perto,

Que as investigações nos persistirem

No fim vamos parar sempre ao deserto

Com os limites que o saber medirem.

Nas dimensões cujo tear não urdo

Mora a esperança de romper o absurdo.

 

Sou Homem apesar de quanto falho,

Sou Homem apesar de quanto quero

E depois traio ao gerir trabalho,

Numa perpétua fuga ao desespero.

Sou homem de raiz como um carvalho,

Mas sempre nas areias é que opero.

De além fronteiras homem sobretudo,

Homem serei mas apesar de tudo.

 

Quem ídolo quer ser, ignora a dor

Que espreme a idolatria, grau a grau,

Por ondas atingindo em seu redor

As correntezas sem lhe deixar vau.

Os ídolos desabam e o fervor

No idólatra morreu e torna-o mau.

Mas quem mais vai sofrer é o deus caído,

De si mais que de deus destituído.

 

Um povo luta até ao fim da vida

Por uma vida cujo fim visou,

Um Camões naufragado, a mão erguida,

Por um poema o fôlego arriscou,

Mas uma empresa, se se vê falida,

À outra vende aquilo em que apostou:

Em dinheiro qualquer sonho resolve,

Que, se o retém, a empresa se dissolve.

 

No mundo, ao fim e ao cabo, que há de errado?

Quando nosso destino verdadeiro

Examino curioso e desvelado,

Descubro, na incerteza do sendeiro,

Que se firma no chão, de cada lado,

Cada dia mais livre, mais ordeiro...

O derradeiro erro, se aprofundo,

É o absurdo total do que é o mundo.

 

Quem busca a solidão nisto conjuga

Consigo o mundo inteiro que abandona

Para se não perder na eterna fuga

De quem lá se procura numa zona

Em que tudo o que encontra é o que subjuga.

Na multidão ninguém vem nunca à tona,

O solitário é quem descobre o veio:

Entre tudo e ninguém, ocupa o meio.

 

A mulher tem ou cabeleira de oiro

Ou cabeleira negra cor da treva.

Tentação e promessa de tesoiro,

A espera duma luz que nos enleva,

Dos dois fascínios é a mulher agoiro

Que eterna a Humanidade no imo leva:

A fome de riqueza uma resume,

A outra a do saber que se comsume.

 

A que é que sabe o pão que dia a dia

Ganham as mãos anónimas que pões

A servir-te hora a hora a fantasia?

Vai saber-te a remorsos e sermões.

Só sabe bem o pão que comeria

A boca que o cozeu em seus fogões.

O pão que melhor sabe é o pão dos grãos

Que dia a dia ganham nossas mãos.

 

Deveras tudo chega à capital

Mas tudo é na província que se passa.

Aqui não há relevo nem sinal,

Mas dramas que em silêncio se ultrapassa,

Mistérios escondidos na actual

Palavra que as catástrofes deslaça.

Aqui é que as acções têm valor,

Na província é que o público é senhor.

 

Entre o céu e a terra onde há duelo

Não é nas grandes urbes nevoentas

Mas onde o vinhateiro faz apelo

Com mais vozes agrárias fatais, lentas,

De tanoeiros a marujos, elos

Se estrangulando dentre as mãos cruentas:

Pois permanente aqui se rasga o véu

Do desencontro entre terra e céu.

 

Incerta vai reinar a opinião,

Que de incerteza o âmago lhe é feito,

E assim incerta fica a duração

Em que sobre nós reina, mal afeito,

O inseguro tremor de seu pendão.

Nunca tende, porém, a ter tal jeito

A opinião da aldeia, criticável,

Pois, quando opina, opina inabalável.

 

Como ave de alto preço engaiolada

Que mimalha seu preço desconhece,

Em provas de amizade interessada

Em que cegada crê, com que entorpece,

A ingénua pequenez da namorada

Nunca vê quanto ao fim é um interesse

Não dela que é vendida e que é comprada,

Mas dum contrato em que é mera jogada.

 

A miserável condição humana

Não é de ser miséria preterida,

Nem da fome nem guerra em que se engana,

Nem duma epidemia sem saída,

Nem de ao vento devir infiel cana

Que todo o rumo aponta de fugida,

- Miserável é ter felicidade

E nem saber sequer quanto é verdade.

 

Sendo a luz o primeiro amor da vida,

Por ela pauto a vida quando nasço;

Luz e trevas, se dura, são medida

Do acerto e desacerto do que faço

E até na morte um túnel me convida

A o percorrer da luz buscando o abraço.

Mas quando o amor nos borbotar do chão,

Eis a primeira luz do coração.

 

É do nobre destino da mulher

Deixar-se comover bem mais depressa

Da miséria por marcas que tiver

Quando humilde na via se atravessa

Do que pelo esplendor que haja qualquer

Fortuna cuja inveja se enalteça.

Do nada onde uma vida breve aponta

É que a mulher retira sua conta.

 

Um amor que um amor é verdadeiro

Verdadeira retém a presciência

Da via que conduz a amor inteiro,

Embora quase nunca haja a evidência

Do que um parceiro leva a seu parceiro

Nem jamais a final disto ciência.

Amor que sabe a amor, sabe o valor

E vale quanto amor excita o amor.

 

Todo o poder humano é um derivado

De duas linhas de enredar a teia:

Uma o tempo desnuda com cuidado

Por onde a outra trepa a lenta ameia.

De ano em ano o vigor do que é traçado

É pela paciência que se alteia.

Paciência e tempo é que o poder revelam:

Fortes são os que querem e que velam.

 

O avarento ao cordeiro engordará,

Metê-lo-á no redil e depois mata-o,

Cozinha-o por poupança mesmo lá,

Porventura até come e nisto acata-o,

Mas despreza, porém, quanto nele há.

É que a avareza enreda-o, depois ata-o:

O avaro se alimenta como alguém

Que dinheiro digere mais desdém.

 

Da riqueza a vantagem perigosa

É que destrói nos luxos a igualdade.

Tem a miséria a face de que goza

Quando iguais nos revela e persuade.

Tem a mulher dos anjos a formosa

Veia da compaixão que sempre a invade,

Qual tesoiro maior que qualquer cofre,

Quando na vida topa alguém que sofre.

 

A vida moral quer respiração

Senão morre por falta do que aspira.

Qualquer alma quer ter um coração

O qual por ela sinta quanto a fira,

Absorva os sentimentos, a emoção

Que noutrem despertou e lhos retira

Para os assimilar com tal perfil

Que em paga a cada qual retribui mil.

 

Lisonja de grande alma não dimana,

É apanágio de espíritos mesquinhos

Que aos ventos ainda vergam mais a cana

Do capitoso eflúvio dos bons vinhos

Que em torno a quem gravitam sempre emana,

Por muito que divirjam os caminhos.

Lisonja oculta sempre um interesse

Que bem pequeno torna quem a tece.

 

Sem nada todos, todos nós nascemos,

Considerando que é uma desvantagem,

Já que inermes a vida percorremos

Impreparados de vez para a viagem

E por mais que aprendamos não sabemos

O que serve ou não serve na triagem.

Porém, se nada sou e nada sois,

É lucro o que adquirimos nós depois.

 

Por entre nossas perdas e vitórias

Podemos tirar sempre nosso ganho

Se apenas não buscamos fúteis glórias

Mas do saber e ser tudo o que apanho.

Com efeito, a melhor destas memórias

Não vem só do combate em que me assanho,

É que há vitórias de alma ao perder quando,

Mesmo perdendo, aqui me vou ganhando.

 

Ao buscar a falaz publicidade

Obteremos os ganhos do produto;

Ao inchar a peitaça de vaidade,

O namorado pode colher fruto.

Tem um preço, porém, esta ansiedade

Que não compensa o ganho diminuto:

O que mata as doninhas é o alarde

Que fazem delas próprias, cedo ou tarde.

 

O que importa é viver suficiente

Vida para rever bem cuidadoso,

Examinando à vez, atentamente,

Numa segunda volta, o que formoso

A mim me apareceu quando presente,

De que, por isso, indefectível gozo.

O inteiramente certo a vez primeira

Falha, se vivo assaz, à derradeira.

 

Aceitar um favor dum inimigo

Ou é reconversão ou tanto faz,

Atendo a quando enfim me desobrigo,

Tudo o mais abandono para trás.

Quando aceito um favor, porém, de amigo

Serão dois os favores que ele traz:

Primeiro, o que ele faz ao meu apelo;

Segundo, o que lhe faço ao acolhê-lo.

 

Há quem se modifique ao ver a luz,

Arrebatado no êxtase da aurora.

Outros, porém, jamais isto os seduz,

Pois é o frio que os tolhe de ir-se embora:

É nestes que a mudança se traduz

Pelo calor que sentem desde agora.

São a luz e o calor o que convida

Qualquer vida a trepar pela subida.

 

O Criador nunca teria feito

Dias tão lindos nem teria dado

A sensibilidade com tal jeito

De apreciá-los bem por todo o lado

Se nos não destinara a maior preito

Do que na curta vida o que é prestado,

Se acaso não houvera programado

Para a imortalidade nosso fado.

 

Riremos com humor do inabitual

E com humor também do acto falhado,

Do desigual riremos quando igual

Se puser do diverso mesmo ao lado.

No riso pretendemos que se emale

O nada que se grande crê talhado.

Humor é rir daquilo que não temos

E libertar a festa em quanto vemos.

 

Fugir dizem que é muito saudável

Embora algumas vezes seja feio.

Se a prudência o comanda, é desejável,

Mas prudente é reter o justo meio,

Ao excesso escapando condenável

De ser a marioneta do receio;

Depois, é quando a fuga tem lugar

Que se está mais sujeito a tropeçar.

 

Ninguém logra viver de antanho a vida,

Que de antanho uma vida já passou

E atrás a caminhada é proibida,

Só a memória ali logra um sobrevoo.

Repara adiante até que além progrida

Esta passada incerta que és e sou.

Olhai em frente o que vos mostra a montra:

Em frente olhai onde o porvir se encontra.

 

Se andarmos construindo a vida a dois,

Não podemos deixar interferir

Os outros nos ideais, porque depois

Tais influências vão-nos destruir.

Os demais podem ser os nossos sois

De longe a iluminar o que há-de vir,

Se quem cavar as hortas formos nós

Do alvor desde antes ao poente após.

 

O que a felicidade tem de mais

Maravilhoso foi que, mesmo quando

Dela à procura nem sequer andais,

Ao vosso encontro pode vir andando.

Senão, como é que então vos explicais

Este petiz os vossos pés mirando?

“Que lindos!” - encantado, ri o petiz.

- E, sem mais, cada qual fica feliz!

 

Se dentro das famílias as pessoas

Não tiverem descanso umas das mais,

Em breve deixarão de andar às boas,

Enervam-se, de guerra dão sinais.

E os dias depois só não arregoas

Do arado das discórdias se te vais

Programar consciente, em cada dia,

Teu tempo de estar só, sem companhia.

 

Dormir sobre um assunto, diz o povo

Que ajuda a resolver certos problemas,

Sem descobrir quanto me ali renovo,

Desde a acalmia a que sujeito os lemas,

Efeito primordial por que me movo,

Até me estruturar todos os temas:

Se, quando treino, eu ao sonhar me rendo,

Durante os sonhos é que mais aprendo.

 

Se a vida não te acerta na pintura,

Que a jarra nela posta não combina

Com as tonalidades que emoldura,

Mistura alguma com tais tons atina,

Se pintor queres ser, mas com finura,

A quem pintar tal vida te destina

Pinta-lhe a vida, sim mas troca a barra:

- Pinta-lhe em tom igual também a jarra!

 

Depois de por fim termos perdoado,

Rimos a vida, sentimento fundo,

Aos outros cada qual é mais ligado,

Começa a desbravar um outro mundo.

O bom sentir que então será gerado

Vai recobrir caminhos tão fecundo

Que nos chega a curar dos traumatismos,

A borda nos saltando dos abismos.

 

Não julgues que perdoar será esquecer:

Não conseguimos esquecer a dor

E nem o deveríamos sequer.

As experiências é que vão-nos pôr

De prevenção contra um algoz qualquer.

Ser vítima de novo é bem pior

Que a vez incauta em que primeiro foi

E o que doeu prevenirá o que doi.

 

O perdão pode bem exigir mais

Do que por nós teremos para dar,

Tão pequeninos somos, desiguais

Da ofensa ante os tamanhos e o lugar.

É preciso rumar aos arraiais

Onde a pegada humana não tem par.

Errar é humano, eis o fatal destino,

Mas perdoar, perdoar é divino.

 

Pessoas perdoadas podem nunca

Compreender que nos fizeram mal

Ferindo-nos de esquiva garra adunca.

As marcas que nos deixam, cada qual

Poderá renegar, que o chão se junca

De cicatrizes mil, rede banal.

Poderão nem saber que as perdoámos,

Da raiva, porém, nós nos libertámos.

 

Quero vingança e à vingança o preito

Ando a prestar solene. E, na verdade,

A vingança não deixa satisfeito

Quanto deixa o perdão que persuade.

Pois perdoar jamais quer a um suspeito

Ceder, mas o apagar que nos agrade.

Quando perdoo, eu quebrei grilhões:

De quem me maltratou fujo às prisões.

 

O perdão livra mais dum pesadelo

Em que outrem para nós se transformou

Que as raivas incontidas o atropelo

Dos gestos me provocam em que sou.

O perdão nos acorda para o apelo

Das caminhadas mil em largo voo,

Em que da raiva o inferno inteiro passa

Pondo-nos em estado nós de graça.

 

Se o perdão de alguém faz sentir tão bem

Por que será que tantos dão consigo

A arrastar ressentida a vida além?

Será porque a impotência não consigo

Compensar quando me magoa alguém,

Senão se à fúria em mim lhe der abrigo?

Só que o perdão incute a sensação

Maior que do poder os dias dão.

 

Quando a alguém eu perdoo, recupero

O meu poder de escolha já perdido.

A raiva me mantém por prisioneiro

De quem para mim quis ser um bandido.

E, se nenhum perdão merece, quero

Para mim o direito preterido.

Pouco importa a injustiça que sofremos,

Se conta que ser livres merecemos.

 

Quem crer que perdoar é a confissão

De que o perdoador andava errado,

De que afinal é justa a punição

Que a vítima atirara para o lado,

Engana-se, que não livra o perdão

Quenquer que haja ofendido ou mal andado:

Perdoar é arrancarmos o punhal

Que nos cravou nos pés o marginal.

 

Muitas vezes aquele que magoa

Nem dá conta da mágoa que provoca,

Não importa esperar que se condoa

Por nos roubar de vez o pão da boca.

É o perdão que me dá uma trilha boa

Do mal ao libertar-me que me toca.

Senão, enquanto sofro na amargura,

Nada sente, ignorante, quem tortura.

 

O passado nos fere ao revivermos

As cicatrizes que ele nos causou.

O corpo então nos mata, dado sermos

Sempre este corpo de alma que incarnou.

Um simples recordar de quanto houvermos

Sofrido, o coração que se magoou

Magoa-se lá então a vez segunda,

Na morte, lento e lento, ali se afunda.

 

Alguns não poderão nunca atingir

O estádio derradeiro do perdão.

Mas o bem como importa prevenir,

Que nem uma migalha caia ao chão,

Todo o perdão importa descobrir

Que desde o mais pequeno já é bom.

O perdão é tão bom que já faz bem,

Perdoe embora parcialmente alguém.

 

Será o ressentimento que é menor

Que nos vai fornecer campo de treino

Para as forças treinar de o sobrepor

E apertar quanto em nós estiver leino.

Perdoar o pequeno tem valor

De nos introduzir no novo reino:

Quem perdoa o menor, perdão suave,

Aqui treina o perdão da ofensa grave.

 

Se no vale de lágrimas vivemos,

A linha de água que por ele corre

São dias a chorar que entretecemos,

Até que a vida exausta enfim nos morre.

As lágrimas em nós são voz dos demos,

Suor do inferno que na Terra escorre.

O tempo a rir passado é o tempo ideal,

Já que é tempo de céu, é deus no vale.

 

Se alguém ama em verdade, a tabuleta

À porta com o signo “amor” não põe,

Como ante o mundo quem cumpre a etiqueta.

Se alguém der de verdade não se expõe

No termo “caridade” como a meta

Pública duma paga que propõe.

Quando vir tais palavras descaradas,

Apenas cobrem os ladrões de estradas.

 

Nem fúrias nem frequências duma briga

Provocam a ruptura a um casamento.

O modo como cada qual se obriga

À diferença a dar o atendimento

É que aos casais retira ou dá fadiga.

Quatro passos darão o finamento:

A crítica ao parceiro e após desprezo;

A defensiva e a fuga enquanto ileso.

 

Uma pequena crítica ignorada

Transforma-se na raiva e, de seguida,

No desprezo: a pessoa mal-amada

Contra o parceiro joga, enraivecida.

Este, na defensiva da jogada,

Fecha-lhe as portas a qualquer guarida.

Tais passos, de acrescento em acrescento,

Provocam, no final, o afastamento.

 

Encoraja a família a rapariga

A que exprima a emoção bem francamente,

Enquanto dum rapaz quer que prossiga

Aguentando calado e vindo em frente.

O sistema nervoso ao homem liga

Mais sensibilidade que ele mente.

Do lar na briga sofrem mais pressão

Os homens do que as moças sofrerão.

 

As brigas os casais interromper

Deveriam o tempo de acalmar,

Deixar de a si deviam de atender

Para ao sentir doutrem manter lugar.

E para nunca mais haver sequer

A perda do que aqui se conquistar

Deviam praticar esta receita

Até que a vida a ela fique afeita.

 

Recordar-nos-ão sempre os pessimistas

Que os lírios à família-mor pertencem

Das cebolas que às lágrimas malquistas

Os mais inveterados já convencem.

Ao contrário, porém, os optimistas

Lembrarão que as cebolas que nos vencem

Na família dos lírios bem se integram

E os lírios é que a nós nos ao fim regram.

 

Um parvo em posição muito elevada

É como um homem em cimeira torre:

Tudo parece-lhe pequeno, um nada,

Enquanto a toda a gente que lá corre

Ele é que mal se vê, cisco de nada.

E quando do balofo cimo escorre

A palavra ou a lei de tal vanglória

Todos sentimos que o que chove é escória.

 

Aquele só que em vãos divertimentos

A vida ocupa sem jamais cuidar

Dos meios de viver, dos mantimentos,

Por muito que fizer isto durar,

Por múltiplos, certeiros seus intentos,

Quando indigente houver de se topar

Recusa encontrará do prevenido,

Por ao porvir não ter prestado ouvido.

 

Sempre a lisonja, estulto, do interesse

É filha, que o viver do lisonjeiro

De quem adulações preza se tece,

Come-lhe o queijo e a fama que primeiro

Louvou e que, abonada, logo esquece.

É quem na adulação for pioneiro

Que pioneiro muda de casaca:

Nas costas de quem suga espeta a faca.

 

É sempre que em grandeza pede meças

O pobre ao potentado que acontece

Que esquece de que peças são as peças

De que é feita a vaidade que entontece.

À medida que ele incha com as pressas

A simular grandeza que não tece

O peito lhe transborda em modo tal

Que explode feito bomba em carnaval.

 

Os cumes nos atraem como um fado

E o cimeiro lugar é apetecido,

Tal se da final prova fora o dado,

No pedestal erguera o herói subido.

Contudo, o viver dita que, ignorado,

O pobre, humilde, escapa de esquecido

E aquele que mais mora levantado

Mais arrisca na queda, se tombado.

 

Há quem a sujeição aguente ledo

Em troca duma vida de favores,

Jura e trai a lição de qualquer credo,

Não tem fidelidades nem amores.

Porém, homem a sério desde cedo

Às cadeias não cede dos credores:

Antes mísero e pobre em liberdade

Que em prisões rico de que não se evade.

 

Quem com os poderosos fez tratado

Ou é tão poderoso como os mais,

Ou breve tem o trato desmanchado

Ou destruído foi com muitos mais.

Porque, sem garantia, o combinado

Apenas de quem tem dará sinais.

Quem com os poderosos tem contrato

Mui raro colhe frutos de tal acto.

 

Das dobras do destino uma é fatal,

A de quanto pesamos como bem,

Que o nosso peso jamais fica igual

Quando alguém requerer pesar também

O que nos foi pesado como mal,

Pois mais nos pesa o que nos mais convém:

Fácil cremos no bem que mal ouvimos

E no que é mal, nem quando à frente o vimos!

 

A grandeza buscada insanamente

Quantas vezes traiu quem a adorou!

De inquietações pejada, o que consente

É o flagelo de quem sacrificou,

De enganos combatido, e que, demente,

Mentido vê na espera qualquer voo.

Em paz, calado, o que afinal mais goza

É o que viu que a humildade é mais ditosa.

 

Para honrar seus crimes, prepotente,

Sempre o sagaz buscou clara aliança

Com a razão, por base bem assente

Para encobrir o mal de quanto alcança.

Assim é que a razão à razão mente,

Pois que a razão na má razão descansa.

Então o maior crime é o que consente

De razão se encobrir só aparente.

 

Quando um ladrão com um ladrão à briga

Ambos disputam ladravaz destino,

Sempre um terceiro atento os desobriga,

Das mãos lhes desviando, noutro tino,

Da ladroagem furtos e os castiga

Sem nada lhes deixando o desatino.

Assim, quando nas guerras se disputam,

Perdem os povos quanto por que lutam.

 

O poeta e o sábio são os filhos

Que do céu para a terra vêm descendo

E nos atam suaves os cadilhos

Que de lá nos atraem, ascendendo,

Desvelando da altura os breves trilhos.

Quem os ignora, a si não entendendo,

Se os céus ao mesmo tempo menoscaba,

Será consigo próprio que ele acaba.

 

As raparigas nos atraem belas

E por mais que o machismo predomine

É nelas que se encontram as janelas

Onde a vida fiel mais se define.

E do poder dos homens as sequelas

Serão que quando um deles não atine

É que à vontade duma se adivinha

Que verga e não à dele que antes tinha.

 

Se de vez a razão fizera a lei

E a justiça fizera de equidade,

Acabava a trapaça cuja grei

Prolifera, ao arbítrio, falsidade.

Assim é que os que julgam saberei

Se operam na viril legalidade

Ou se a lei ao capricho torceriam

Dos que maior empenho pagariam.

 

A pérola tombada no poder

De quem o valor dela não veria

Desprezada por certo ela há-de ser,

Que ao néscio não lhe sobra fantasia.

Preterida por ciscos, em qualquer

Momento pela vaza se perdia.

Morre às mãos do ignorante o alto valor

Das descobertas sábias dum autor.

 

Antes ser a dobrável cana ao vento

Que ao tufão se modela de alto a baixo,

Deste modo resiste ao turbulento

Meio que os demais muda em escalracho,

Do que ser dum carvalho este portento

A resistir erecto como um facho

Mas que quebra da vida nas procelas

Enquanto o pobre escapa por entre elas.

 

Os apertos da vida são por vezes

De modo que as mezinhas que se encontra

Piores são que o mal e seus reveses.

São mil receitas que se expõe na montra,

Projectos desde os finos aos soezes,

Quer da gente de bem, quer do bilontra.

Tudo pode entreter uma assembleia,

Que só o que é praticado é que urde a teia.

 

O problema insolúvel do juiz

É de ver o inocente inocentado

E de nunca punir, nem por um triz,

Quem a prova não tenha de culpado.

E muito criminoso, de feliz,

Por esperto se ter escamoteado,

A vitimar, impune, continua

Porque o juiz sempre o porá na rua.

 

Nas batalhas cruéis dos potentados

A tragédia maior não é das percas

Nos teres que vão sendo estraçalhados

Quando lhes caem do direito as cercas.

Mais cruel é que vão ser esmagados

Os que nada te dão de quanto mercas,

Os pequenos: por nunca terem nada

São a terra do chão sempre esmagada.

 

Quantos na dor desejam mais a morte

Que, perante esta morte desejada,

Preferem, afinal, a triste sorte

Que a vida lhes mantém acorrentada!

É do mortal a sina fazer corte,

Não à morte fatal predestinada

Mas ao instinto que os viventes quer

Que vivam a penar até morrer.

 

Virão as soluções sempre do amor

Em cujas guerras quem for adestrado

Verá que mata e morre bem melhor

Do que o exército mais bem armado.

O que a desgraça faz que em nós demore

É meio mundo haver armas gizado

Que a uma metade entrega que, aguerrida,

Outra metade delas tem ferida.

 

Sempre abusa o preverso da bondade

E se lhe abrimos franco o coração

Não mais larga o que a só necessidade

Nos levou a emprestar-lhe sem questão.

O bem que aos maus fazemos, na verdade,

Quase sempre o deplora o ingénuo em vão.

Em casa mete a gente a toda a hora

Quem às vezes nos expulsa dela fora.

 

Quando o grande se finca ao pedestal,

Do tamanho é por norma tão temido

Que apenas afrontado por igual

O cremos porventura ser vencido.

Um mosquito, porém, dá-nos sinal

Que um homem da picada é combalido:

Às vezes é, portanto, o mais pequeno

Do maior mal o mais subtil terreno.

 

Muitas vezes, pequenos, a vitória

Nos sorriu e trepou pela cabeça

De modo que, tamanhos na vanglória,

Não há grandeza igual à que nos meça!

Enquanto apregoamos a memória

Da coragem gabada em cada peça,

Uma frágil, fugaz teia de aranha

De insecto a pequenez nos logo apanha.

 

Solitário guiar-me é atrevimento,

Por outrem me guiar, alienação.

Onde encontrar então o fundamento

De ser eu com os mais sem confusão?

Entre os mais procurar meu alimento,

Da escolha não me exclui da conclusão:

Por más cabeças guiar-me me embaraça,

Que a boa sorte dum, a cem desgraça.

 

Nós somos esta raça de insofridos,

Pelo tempo incapazes de esperar,

A temer a ameaça dos olvidos

Se o porvir vier muito devagar.

São, porém, os trabalhos repetidos

Em que só paciência tem lugar

Que fazem mais que a força, que a imprudência,

Pois a fúria a ninguém dá competência.

 

De boca aberta fica a Humanidade,

Pobre glutona que tardia vê

Que só deve contar, na inanidade,

Com o que tem à mão ou mora ao pé.

Vendo que a gratidão tantos invade,

Então o mais viável por fim é

Que o fazer bem não se perdeu no mundo:

As mais das vezes frutos deu, fecundo.

 

O mais medroso dos medrosos há-de

Um mais medroso ver onde nem pensa,

Quando a um qualquer o medo o persuade

A escondê-lo, canino, na despensa.

Assim é que a desdita que o invade

Ao desespero o não talvez convença,

Que do que ele outro bem mais infeliz

No mundo há-de encontrar sem alibis.

 

Normal é que o matreiro fique a rir

Quando o tratante vê fugir com medo,

De orelha baixa, rubra, a lhe fremir.

Que prazer quando o vemos com o credo,

De enganador feito enganado a ir

Desmascarado e nu, mais tarde ou cedo,

Tornada a tentativa toda vã,

Bem tosquiado quando vinha à lã!

 

Quando um homem entrar por uma empresa,

Por muito que o sonhar bem lho comande,

É bom que as forças pese do que pesa

Antes que em frente qualquer passo ande.

Não basta o sonho a garantir a presa,

Nem quando em mim deixar que ele me mande.

Da natureza e da cultura os modos

Implicam que nem tudo é para todos.

 

Jamais um invejoso quer a troca

Do que tem contra aquilo que teria

Se ter lograra o que lhe a inveja evoca

E por que nutre estrénua idolatria.

O nosso instinto o que cruel provoca

É de invejar o que outrem possuía

Para apenas, porém, nos alargarmos

- Mas sem jamais o que é nosso largarmos!

 

Um homem não consegue corrigir

A mulher que por génio seja má,

Porque somente a cova há-de o devir

Mudar às propensões que o berço dá.

A novidade, a aposta em descobrir

Serão véu que aos defeitos cobrirá.

Só que avultarão estes e enfastiam

Quando saturar já o que prometiam.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Enganador que, de intenção nociva,

Proveito doutrem pretender tirar,

Tramas com tramas, numa roda viva,

A vida logo  forçará a pagar.

Quase sempre os que iludem à deriva

São iludidos em qualquer lugar.

Pois nunca aos outros faça então ninguém

O que não quer que a si façam também.

 

Daquele estado em que hoje enfim vivemos

Jamais os homens conformados são,

Pois mais falta nos faz o que não temos

Que o que temos domado aqui à mão.

Acontece, porém, quando o perdemos

Que o buscaremos com fervor então,

Só na ausência descobre-se em lamento

O peso que “hoje” tem quando o invento.

 

É dos mexeriqueiros sempre insanos

Que quem casa tiver tem de ter medo,

Que a tragédia dos lares, levianos,

Acabarão tramando, tarde ou cedo.

Com pés de lã se metem nos arcanos,

Trazem e levam, apontando a dedo,

E os que às intrigas vierem a dar peso

Sentem ao fim que nada fica ileso.

 

Quando os vícios por dentro se inveteram

Tornam-se males que não têm cura,

Agora e sempre vivos reiteram

Contra a vontade embora que os atura

E nem as sepulturas recuperam

As marcas que gravou sua figura.

Os vícios pior são que causar danos,

Pois que aos covais arrastam os humanos.

 

Quantas vezes nos vem dos benefícios

Que damos aos malévolos um dia

Uma trama tão vil de sacrifícios

Que de tal cada qual se arrependia!

Os frutos que tiramos, malefícios

Sobre nós são que caem numa orgia.

O bem feito ao malévolo é um invento

Com que se inventa um arrependimento.

 

Ao inimigo raro alguém o pinta

Com alguma faceta de favor.

E ao contrário é vulgar que então se minta

Sobre o que é nosso com falaz louvor.

Assim é que a verdade não consinta

Revelar qual ao fim o seu teor.

Então vivemos todos enganados,

Do grupo e não de nós só comandados.

 

É quando do poder o poderoso

Decai que antigamente lhe coubera,

Que ele há-de suportar o doloroso

Preço do que antes foi uma quimera.

Em dor se vai mudar o antigo gozo

E só se bem serviu é boa a espera.

Doutra maneira conte que o mais vil

Há-de afrontá-lo quanto foi servil.

 

A muitos o que ocorre no labor

E mais ocupações do dia a dia

É que engordar pretendem dum teor

Que, para além de ser em demasia,

Lhes inflará um perfil tanto maior

Que não resta buraco nem fasquia

Por onde no ajustar das contas vão

Poder safar nem bens nem coração.

 

Há muitos que perseguem altos planos,

Que por grandiosas metas já se empenham,

Que sôfregos mais são que são humanos

À espera de que os frutos sobrevenham.

Porém depois, com o correr dos anos,

De tudo aquilo já afinal desdenham

Não por perder valor, como referem,

Mas porque o fruto ao fim lho não conferem.

 

Contra a desgraça meu melhor escudo

É prevenir-me bem, desconfiando

Com justa desconfiança sobre tudo

Quanto na vida for peso tomando.

Raras vezes se engana e por miúdo

Quem com um pé atrás vai avançando.

Seguro do terreno por que pisa

Corre-lhe a vida como quem desliza.

 

A ingénua, cega e vil credulidade

A intérminas desgraças nos conduz.

Porém, uma paixão, maior deidade,

Maiores danos afinal produz.

O férvido apetite é que nos há-de,

No culto da paixão que nos induz,

Levar a precipícios mal temidos,

Se somente ao amor damos ouvidos.

 

Quando um burro quiser passar por cão

Põe-se a ladrar em vez de andar zurrando

E desconhece-se a partir de então.

Importa conhecer-nos sempre quando

A um projecto queremos lançar mão:

Sou leviano quando me comando

A ultrapassar limites numa empresa

Que fica para além da natureza.

 

É o homem ao sobreiro comparado

Que as bolotas apenas nos entrega

Quando valentemente varejado.

A quem se prestam honras não se agrega

Senão casca de inútil enfatuado.

Só o rigor e a violência nele adrega,

Agora e sempre e em qualquer lugar,

A força de ser útil despertar.

 

Aquele que do alheio se vestir,

Mesmo em privado, em breve irá na praça

Ter vergonhosamente que o despir.

Despi-lo-á também quem rouba a traça

Do tamanho pequeno que auferir,

Mentindo dum maior a etérea graça.

Cultura e natureza dão lição

Aos que parecer querem mais que são.

 

O mal que fazer quer com um embuste

Sobre o embusteiro tarde ou cedo cai.

As tramas quase sempre que ele ajuste

Se ajustam às passadas em que vai

E o mal que não pensou que bem lhe custe

A volta acaba dando com que o trai.

Mil vezes a perfídia com rigor

Tomba violenta sobre o seu autor.

 

Há muito quem, pela vulgar vingança,

Néscia prole que advém da fatuidade,

Se prive do que após jamais se alcança,

Do usufruto da frágil liberdade.

Por isso é que a prudência que não cansa

Ignorar uma ofensa impor-nos há-de

Toda a vez que o furor de nos vingarmos

Abismos cave até de nos matarmos.

 

Nas ameaças de quem muito ama

Manda a prudência que se creia pouco.

Quem nelas crer em breve tem a fama

De ser um crédulo não tarda louco.

É que o amor sempre de quem desama

Ao desamor fará um ouvido mouco,

Impõe ao fim o rumo que condiga

Com os metais do amor na melhor liga.

 

De varas quando um feixe fica unido,

Vantagem que nos traz uma união,

Não há força que o tenha já partido,

Ao contrário de soltos quando são.

O forte, quando vive desunido,

As mãos mais frágeis fim lhe encontrarão.

Aos baldões da injustiça que há na sorte

Só escapa quem se unir até à morte.

 

Quase sempre aos mortais a segurança

À liberdade serve de guarida,

Embora importe ver o que ela alcança

Porque terá de ser bem comedida.

Quem no seguro apenas se descansa,

Não tarda só a prisão tem por medida.

Segura, não é vã desconfiança

A que a vida mil vezes nos entrança.

 

Bem raro, se calhar em extinção,

É o dum amigo a sério, verdadeiro,

Com que contar se pode sempre à mão,

Gratuito a dar, jamais interesseiro.

Nome sagrado não há tanto em vão

Que mais se invoque pelo ano inteiro.

Não há uma casa que, por mais pequena,

Alguma vez vá ficar deles plena.

 

Irá ser quase sempre uma amizade

A espúria filha vil dum interesse.

Quando se lhe procura a identidade,

Logo esta identidade lhe falece.

Pendente do que lucra, na verdade,

O nome de amizade logo esquece

Quando se lhe acabar a dependência

E resta da amizade uma falência.

 

Quando um ímpio extático ficou

Por receber em mal do mal a paga,

De intuito ele deveras não mudou

Porque do mal as obras são que afaga.

O mau do mau agir só se deixou

Quando de algum terror o inunda a vaga

Ou se os olhos lhe fecha eternamente

A justiceira morte, finalmente.

 

Se alguém quiser vencer uma demanda,

Se uma tarefa quer levar a termo,

Não pode repousar em quanto manda,

Que um membro que é mandado é membro enfermo:

A si próprio, se quer, é que comanda

As fúrias a vencer em qualquer ermo.

Quem quer vai, diz o sábio popular,

Quem não quer manda e então não muda de ar.

 

Quando um ricaço for um avarento

De nada lhe valeu ter tanto oiro,

Que não lhe diminui o sofrimento

O que lhe aumenta as arcas do tesoiro.

Igual ao pobre será seu lamento,

Traz-lhe a fortuna apenas mais desdoiro.

É quem não quer tal como quem não pode,

Não goza a sorte a que a fortuna acode.

 

É de antes preferir um “toma lá!”

Que dois “eu-te-vou-dar-em-qualquer-dia”.

Seguro do seguro sempre está

Quem o mantém à mão tente e com guia.

Da sorte cada qual se queixará

Se pretender viver da fantasia.

É tolo quem deixar o duvidoso

Ao certo ultrapassar que lhe dá gozo.

 

Vaidoso, se teus fumos foram menos,

A vida alcançarias venturosa.

Descobre que teus membros são pequenos,

Descansa e, do que a vida te deu, goza.

Pois sempre que supomos de somenos

Nossa vida afinal tão prestimosa,

Supondo ter o que jamais teremos,

Só do engano os incómodos sofremos.

 

Quem um delito cometeu gravoso

Um ferrete danoso nele imprime

Tal que parceiros busca pressuroso

Que na fronte demonstrem ter tal crime.

A si mentindo crê que o vergonhoso

Deixa de o ser quando os demais encime.

Mancha de crime desde então não conta,

Tão usual que já ninguém afronta.

 

Aquele que melhor vir é por ver

No campo onde andará mais empenhado.

Nada os olhares doutrem vão sequer

Pressentir, se são olhos dum criado.

Não é do mau empenho que ele houver,

Apenas dum sentir que é desviado.

Só quando for profundo um interesse

Profundamente as vistas esclarece.

 

Carniceiro, ervanário, vendedor,

Por tudo quis passar sem estudar,

Sem nunca à altura certa se propor.

É sempre esta a toleima, se calhar,

De certa humanidade sem valor.

O prémio que ela acaba por ganhar,

Vem de que cada qual, afinal, faz-se

No contexto de ser para o que nasce.

 

Quem seus campos de muito revolver

Em busca de hipotético tesoiro

Ignora o cultivar e o recolher

Trocou-se no teor de qual o oiro.

Se desvendá-lo pretender quenquer

Vai na seara apostar de trigo loiro,

Porque no mundo aquilo que ao fim valho

É aquilo que valer o meu trabalho.

 

Quando a montanha nos promete a vida

E partureja, em pleno aturdimento,

Barregando tal vaca mal parida,

Um reles musaranho em fingimento

Da plenitude apenas prometida,

Repetimos o eterno e vão lamento

De todos que de tudo o que prometem

O nada que nós somos nos cometem.

 

Se aos danos sucumbir quem quer perigo,

Muito invulgar é desculpar-se logo

Com o destino falso que, inimigo,

Aos passos lhe ateou infausto fogo:

Pelo contrário, nunca busca abrigo,

Teimando vida além no próprio jogo.

Na vida a maior parte dos reveses

De má escolha são fruto o mais das vezes.

 

Sempre o fingido anda arriscado a ser

Por um descuido descoberto logo

E punido do dolo que tiver.

Cansa-se em vão quem pretender o jogo

De encobrir o perfil ante quenquer,

Que, mais tarde ou mais cedo, o que lhe advogo

É que, quando ele menos o sentir,

Lhe há-de a máscara aos pés de vez cair.

 

Com remédios ou sem, nós findaremos,

Que a morte a todos toca por igual,

Só que em maior desgraça viveremos

Se for “tanto-pior!” nosso fanal.

Doentes, à saúde propendemos

Sem de mais nós mudarmos o sinal,

Se num “tanto-melhor!” nós apostarmos

Que opera de alavanca de arribarmos.

 

Muitas vezes o avaro foi quem mata

Dos ovos de oiro o galináceo mago

Sempre que de ambição tanto o maltrata

Que à morte o leva em derradeiro pago.

Mais estranho é que fica-lhe barata

A fonte que afinal destrói dum trago.

Depois jamais encontra tal condão

E assim paga de vez sua ambição.

 

Aquele que destrói o seu amparo,

Que a vida assim coloca a descoberto,

Sem abrigo morrer não será raro,

Paga justa de tanto desconcerto.

Quem à roda em que gira parte um aro

Espere baquear logo mais perto.

Quem profanar o asilo que o conserva

Apenas tem a morte de reserva.