O PROFESSOR AO ESPELHO


Causa do rendimento escolar, segundo docentes do Ensino Secundário



BARTOLOMEU VALENTE



Lisboa, 2000




Jogo de máscaras

O problema do desvendamento do professor a partir dele próprio




a) O tema e o personagem

Perspectivas de explicação do insucesso escolar, atitudes do professor perante elas e posição da pesquisa ante o docente




Ao propormo-nos desvendar o intocável que, a muitos títulos, é o personagem do professor, não ignoramos quão longe ficaremos do alvo, após todo o esforço para surpreender, por trás de aparências e simulacros, o rosto verdadeiro que afivela. Abordá-lo-emos a partir duma área crítica, onde mais o docente é vulnerável, como todo o sistema escolar e mesmo a sociedade e a cultura inteiras - o problema do insucesso, da falta de rendimento curricular dos alunos.


A problemática do fracasso escolar recobre domínios e aspectos vários que convém clarificar para com precisão situarmos o ângulo sobre que incidiremos. Antes de mais há a fuga à escolaridade, mesmo obrigatória, de todo um leque de educandos, habitualmente a coberto da cumplicidade parental. Se isto ocorre logo à entrada da Primária, tende a agravar-se depois com a idade, mormente pela colaboração no labor familiar em que tais crianças muito precocemente são coagidas a comparticipar. Muito próximo deste fenómeno advém ainda o abandono escolar pelos motivos mais variados, mas em que largamente predomina a forte incidência entre os reprovados e mais ainda entre os que vão acumulando reprovações ano após ano (no Alentejo, por exemplo, a terceira perca tende a ser definitiva). Um outro conjunto é o dos que rejeitam escolarizar-se porque pretendem outros caminhos, alimentam diferentes projectos, descreram ou não encontraram no modelo educativo o que procuravam. Para além destes estratos, há ainda o conjunto dramático dos que pontual ou totalmente vão falhando e constituem os “maus alunos”, na linguagem comum da instituição. Ora têm classificações negativas, ora transitam de ano à tangente ou com disciplinas perdidas e atrasadas, ora reprovam mesmo, ocasionalmente. É óbvio que o mais doloroso e preocupante neste leque derradeiro é o chamado insucesso escolar, rubrica em que habitualmente é contabilizado o número de perdas de ano dos estudantes e apenas tal dado.


A área de que partiremos é justamente a dos referidos “maus alunos” que quase por inteiro alimentam as franjas de repetentes e seguramente são os que mais dores de cabeça e perguntas levantam ao educador, à instituição, à cultura e ao País.


Mesmo limitados a este domínio, todavia, as perspectivas de abordagem são variegadas e os conflitos ideológicos e de escolas tantos que, uma vez mais, convém joeirar para delimitar o ângulo e o ponto de partida que exploraremos.


A primeira interpretação do fenómeno dos estudantes com problemas pode resumir-se como: o mau aluno é um aluno mau. Responsabilizar os educandos pelas dificuldades na escola foi doutrina praticamente sem alternativa multissecularmente e apenas nas últimas décadas se genetralizou a dúvida e depois o repúdio daquele dogmatismo. Não é, porém, líquido que o anacronismo de tal entendimento se haja universalizado entre os professores, bem pelo contrário. A nossa experiência de cotio bem como a pesquisa revelam quanto persistem os preconceitos e as culpabilizações que atingem os educandos.


Uma outra linha doutrinária atribui, em alternativa, à família e meio ambiente social do estudante a responsabilidade pelas carências e deficiências com que este chega e tenta singrar pela escolaridade além. É aqui que radicam múltiplas modalidades de apoio e suplência aos oriundos de estratos sociais marginalizados, pobres ou de cultura não académica. A larga margem de fracasso destes remendos levou desde o princípio a contestar aquelas interpretações, ainda nesta perspectiva, denunciando o farisaísmo duma escola ao serviço da classe e cultura dominantes e que simularia pretender que não, arremedando um acolhimento igual aos filhos de todos os estratos e subculturas da colectividade, com que calaria consciências e compraria cumplicidades, desarmando os injustiçados, sempre em proveito dos senhores do mundo.


A partir daqui, uma nova pista, de mais directa atinência política, se afirma: o mau aluno é produto da escola. Esta é que é má, senão um mal (no extremo propugna-se a desescolarização da sociedade). De modo mais comezinho denuncia-se e requer-se a transformação do instituição escolar concomitantemente com a mudança político-económico-social de tal modo que a sociedade classista venha a ser ultrapassada. Para estes, a escola sozinha não logrará jamais qualquer mudança decisiva: ela é necessariamente um reflexo do equilíbrio conjuntural e estrutural dos interesses das várias classes conflituantes que formam a colectividade.


Finalmente, acabou-se por defender que o mau aluno é criado pelo professor. Entramos aqui num domínio extremamente difícil de abordar com serenidade. As paixões e projecções cruzam-se. Todos, porém, vislumbramos quanto custa aos docentes poderem admitir tal doutrina. A isto não é estranho o fogo cruzado a que continua sujeita a pesquisa relativa, por exemplo, ao efeito de Pigmaleão, a ponto de a obra de Rosenthal e Jacobson a ele reportada, para alguns, estar hoje em dia totalmente destruída.


Depois disto, as posições doutrinárias evoluíram para a defesa de que nenhuma matriz esgota o problema, estamos perante uma questão de causalidade múltipla e circular, impossível de atirar para as costas de qualquer actor ou perspectiva. Esta parece ser a atitude hoje mais capaz de colher consenso e a mais adequada a dar conta do que realmente ocorre no terreno. A ela, pois, igualmente aderimos. Com isto, todavia, ainda não fica claro o ângulo particular a partir do qual iremos interrogar o professor.


Efectivamente, o mais característico de todas estas doutrinas é que revestiram fundamentalmente o padrão de ideologias quase sempre sem fundamento experimental bastante, sem confirmação factual de todos os aspectos pertinentes: não foram habitualmente os dados empíricos que a elas conduziram, mas antes eles vieram a posteriori a ser procurados e joeirados para as confirmarem. É por isso que idêntica força e convicção demonstram os paladinos de qualquer das perspectivas e a mesma razão e fraqueza a todos igualmente tende a atingir. Mutuamente se confirmam e infirmam, uma vez que os factos sobejam para qualquer das vias e o exclusivismo de cada uma a encegueira para quanto às demais é pertinente e lhes assegura paralelo fundamento. Tudo válido e, simultaneamente, relativo à validade doutrem e por ela delimitado. Ora, neste contexto, o pendor generalizador ou mesmo sectário tendeu sempre a enviesar tanto o ponto de partida como o de chegada: nem a doutrina mudava de perspectiva para criar espaço às demais, nem os dados, os ângulos de questionamento, os aspectos seleccionados se relativizavam a ponto de permitir compreender que havia mais mundos, mesmo que desinteressantes para o autor ou corrente em causa. Para o que nos importa convém desde já afirmar que o nosso acatamento da multiplicidade e circularidade causal que redunda na produção em série do mau aluno se reporta às perspectivas doutrinárias e à factualidade em que cada qual assenta. Aqui, porém, como já deixámos entrever, limitar-nos-emos a dissecar o professor para tentar ver mais claro neste personagem-chave do sistema. Não iremos é, pois, limitar-nos à leitura que lhe joga em cima as culpas do fracasso escolar. Ao contrário, todas as matrizes ideológicas nos servirão para elucidar as sombras e tabus que o mascaram. É que, aceite que múltiplas fontes convergem a produzir idêntico efeito, então não nos encontramos já perante contrapostas doutrinas mas mais ante faces diversas do mesmo cristal que apenas conjugadas no-lo podem revelar mais próximo da totalidade que o constitui. Ora, isto aplica-se a cada objecto particular privilegiado por cada teoria e, conseguintemente, também ao docente. É justamente a fecundidade cognitiva que tal enfoque permite que trataremos de explorar, acolhendo quanto possa clarificar o rosto escondido, ora endeusado, ora vilipendiado e sempre mal reconhecido, do professor.


Importa, finalmente, dar conta do modo como se tem interrogado e definido a pesquisa quanto ao papel do educador perante o mau aluno. É que, se apenas se chegou àquele enviesadamente, depois duma convergência culpabilizante e unilateral no aluno e após um desvio pela família, depois pela sociedade, finalmente pela instituição e políticas que serve ou reflecte, ainda assim a abordagem do papel do educador não é tão inequívoca, frontal ou clara como seria de esperar. Partindo da acusação ideológica (o professor é a ponta de lança da classe dominante, executor cego e obediente do projecto de reprodução ideológica da cultura imperante), acabanos constatando que ele é mais vítima do que carrasco, desviando a atenção para as más condições materiais (vencimentos, equipamentos, instalações, instabilidade profissional, indefinição de estatutos e carreiras...), para confessarmos que, afinal, o docente é muito mais complexo do que à partida presumiríamos, vive estraçalhado entre forças e pressões contraditórias e dividido entre papéis e funções mutuamente incompatíveis, o que leva a classe a fragmentar-se constantemente, pesem embora quantos comportamentos e atitudes, a prazo, se lhes acabam por impor maioritariamente, por imperativo de forças e tendências hegemónicas que os ultrapassam bem como à própria instituição, sobredeterminando-os.


Ora, apesar de tal ser actualmente o pendor das pesquisas relativas ao professorado, ainda assim a abordagem de tal estrato muito raramente se reporta a ele directamente quando busca compreendê-lo, bastando-se habitualmente com dados que permitem entrevê-lo indirectamente: listas de concursos, quadros de colocações, distribuição geográfica de efectivos, percentagens por escalões de carreira, opiniões acerca dele colhidas no meio escolar ou ambiente mais ou menos alargado e assim por diante. Muito poucas vezes se colhe a palavra do próprio professor que afinal se quer abordar. Ainda o que mais abundante encontramos no diálogo da pesquisa com o docente é o que resulta da observação deste em aula, onde no último decénio e meio muito e em múltiplos campos se tem vindo a investir.


Esta metodologia, porém, sofre de um limite e corre um risco. O limite é que, confinada à factualidade recolhida durante o relacionamento pedagógico não logra estender-se para além das quatro paredes da sala; ora, sabemos que o que aqui ocorre é altamente condicionado, derivado e concomitantemente promotor ou estimulante de múltiplos eventos jogados fora deste minúsculo microcosmos. A pesquisa aqui opera, portanto, à partida, uma abstracção que em muitos casos coloca de fora justamente aquilo que é decisivo, ficando-se por reflexos e sombras que pode tomar por realidades originárias. O risco parte justamente de tal: é que, de tanto laborar intramuros, se oblitere o resto do mundo e de quanto dele aqui desemboca e daqui em retorno lá nos reconduz. Isto, aliás, pode tornar altamente suspeita a metodologia de observação de professores. Com efeito, ela muito facilmente cai sob a alçada dos argumentos de quantos a queiram atacar da má intenção de uma vez mais levar a pesquisa, a cultura, os docentes e a sociedade em geral a ficarem confinados às pequenas insignificâncias a fim de jamais poderem dar conta dos grandes condicionamentos colectivos que garantem o interminável privilegiamento da classe dominante, ratificando-lhe com isto a ideologia e valores que assim se tornam mais indiscutidos e, portanto, indiscutíveis, sagrados. Com efeito, a permanência de dogmas colectivos apenas se eterniza na ordem directa do inquestionamento deles. A partir do momento em que forem problematizados logo se matizam, relativizam, são confrontados com outras alternativas, o que, concomitantemente, altera padrões de atitude, formações e produções colectivas, tudo ameaçando a estabilidade da pirâmide social que desata então a transformar-se. Ora, quem menos tolera isto são obviamente os estratos que lhe ficam no topo cujos privilégios doravante resultam minados, irão sendo demolidos. O princípio de toda a justiça é sempre a equidade: esta jamais se compadece com o privilegiamento de qualquer tipo que seja. É tudo isto que a exclusividade da metodologia da observação do professor em aula corre o risco de ignorar, surgindo a esta luz como uma via nada inocente, nada objectiva social, política e eticamente, pelo menos tanto quanto (como é o caso no trajecto actual de muita investigação) não explicitar permanentementeestes limites e riscos que corre, de modo a contrabalançar o efeito cultural que pode e já vem na prática produzindo. Não é verdade que nas fileiras dos respectivos apaniguados se propugna que este é o método privilegiado, senão único, para formar adequadamente professores, e que tal é a imposição do legislador entre nós para o acompanhamento da prática dos docentes que se formam em serviço, como se não houvesse outras maneiras, campos e níveis em que as actividades educativas podem e devem ser problematizadas, exemplificadas e acompanhadas?


Para fugir a estes múltiplos escolhos iremos combinar vários caminhos de abordagem, mas não nos centraremos, à partida, em dados colhidos com a metodologia da observação, mormente limitada às aulas. Em lugar de enviesarmos a pergunta ao professor, preferimos enfrentá-lo cara a cara. Este será o ponto de referência e a espinha dorsal da pesquisa. Complementá-la-emos integrando-a com os demais recursos de que podemos deitar mão e a que chegaremos por todos os caminhos ao dispor e que resultam, como veremos, incrivelmente mais ricos e matizados do que o que lograríamos se percorrêssemos uma pista apenas. De quais e quantas perspectivas irá, então, equilibrar-se a construção?




b) Os recursos


Inquérito sobre as causas do rendimento escolar segundo os professores, literatura acerca da matéria e experiência directa das situações no trabalho em campo



Aquilo que antes de mais nada tentaremos desvendar é o pensamento do professor. Como ele é inabordável de modo minimamente seguro por qualquer via indirecta, preferimos que ele o exprima em primeira mão. Para tal, o método que escolhemos é o do inquérito, cujas respostas quantificadas analisaremos, constituindo isto o fio condutor da pesquisa. Ali pretendemos colher dados relativamente às condições de vida e profissionais dos inquiridos, o que constitui um conjunto de variáveis independentes. Ainda neste contexto, colocámos uma pergunta relativamente à maior ou menor ligação de cada um ao trabalho docente. Numa segunda parte, como variáveis dependentes, propusemos um conjunto de dez razões explicativas da existência de maus alunos, relativamente às quais pedimos a cada abordado para hierarquizar apenas as três mais importantes no entender dele, bem como as que, em seu juízo, os alunos escolheriam se fossem interrogados. Tal é a estrutura do inquérito. Convém comentá-lo desde já com algum pormenor para se lhe entender com rigor o alcance e os limites.


Em primeiro lugar, relativamente às variáveis independentes, englobámos a idade, o sexo, o curso de habilitação, a área disciplinar leccionada, a situação na carreira e a maior ou menor adesão à profissão. Isto permite estabelecer muitas comparações e correlações mas limita igualmente o campo dos possíveis. Se correspondem de facto os aspectos referidos às variáveis mais questionadas nas pesquisas, no nosso caso haveria talvez uma outra que poderia clarificar aspectos incomuns: a da terra de origem. Com efeito, para se compreender, por exemplo, a tendência das opções anuais nos concursos do corpo docente, talvez este aspecto entre nós não seja inteiramente desprezível. De qualquer modo, não foi incluído na colheita de dados aos inquiridos. Teremos ocasião de referir o que neste particular ocorre por mediação doutras fontes.


Em segundo lugar, no que respeita às variáveis dependentes, o modelo adoptado permite apreender tanto o que o professor pensa que origina o mau aluno como o que ele crê que o discente julga do mesmo. Mas igualmente dá-nos elementos para compararmos a projecção própria com a que se opera sobre outrem, bem como analisar as respectivas margens de convergência e divergência e o significado e alcance que podem ter. É evidente, porém, que no imediato apenas disporemos de depoimentos cuja fidelidade não poderá jamais ser garantida, bem como, por esta única via de acesso, não atingiríamos critério para discernir entre fantasmas e realidades, aspirações e factos, o que se imagina e o que se é, para além do que a própria factualidade contém inelutavelmente de transfinitude irremediavelmente problemática, por muito que a elucidemos. Para ir rasgando estes múltiplos véus e tentar atingir o que no fundo subsistir, outros recursos teremos de mobilizar.


Em terceiro lugar, os itens dependentes, em número de dez, estão desigualmente distribuídos por áreas de incidência, para além de baralhados entre si. Este último cuidado é precaução comum para evitar que o inquiridor induza a resposta. Quanto às perspectivas a que se reportam, quatro referem-se ao aluno, três ao professor, dois à escola, e um à família. São atendidos todos os domínios até agora julgados, neste campo, relevantes pela pesquisa. Porquê a discrepância no número de itens de cada um? Apenas porque em grupo tentámos recolher o que de nossa experiência resultava como o mais referido pela classe docente nas escolas. Tanto a formulação como a distribuição obedeceram a este critério. Aliás, cremos que a quantidade de incidências por área é irrelevante para os resultados finais, dado solicitar-se apenas a escolha e graduação dos três motivos preponderantes dentro das alternativas apresentadas. Ao ter de fazer exclusões e de graduar, não cremos que ninguém se tenha deixado arrastar por qualquer diferença do número de incidências por área por nem terem sequer notado tal aspecto.


Em quarto lugar, optámos por um inquérito fechado: são dez e apenas estas as alternativas de escolha. Obviamente que isto limita à partida a flexibilidade das posições e o alargamento do leque das perspectivações possíveis. Seria mais rico e em análise qualitativa mais sugestivo que colhêssemos relatórios abertos. Estas vantagens, porém, têm a contrapartida de dificultar e inviabilizar mesmo os tratamentos quantitativos, até de sermos acusados de arbitrariedade quando os depoimentos se tentam ordenar por tipificações ou alinhamentos por proximidades e diferenciações. Perante a alternativa, escolhemos deliberadamente um modelo estanque, com as precauções atrás referidas, para que à partida tivéssemos a certeza de que nada fundamental teria a probabilidade de nos escapar na redacção dos itens. Com isto garantimos a viabilidade duma espinha dorsal com tratamento quantitativo para toda a pesquisa, mas, ao mesmo tempo, para atenuar as limitações da escolha, decidimos deitar mão a outras achegas que enriqueçam todo o esmiuçar qualitativo que a temática requer. A complementaridade dos caminhos que trilharemos morigerará o efeito limitativo da matriz fundamental que nos servirá de guião em todo o trabalho.


Em quinto lugar, o inquérito tem um alcance estatístico meramente indicativo. Com efeito, a amostra não é nada significativa do todo da população. Os dados respeitam apenas a sessenta e um professsores, trinta de uma escola secundária de Évora e trinta e um doutra de Beja. Para além da limitação do efectivo, restam ainda a do nível único das escolas abordadas bem como da zona geográfica a que pertencem. Pretender com isto significar os docentes portugueses seria um disparate. Os inquiridos representam-se obviamente a eles próprios e fornecem sugestões mais ou menos ricas relativamente ao conjunto da classe, bem como à escola e à colectividade de que partilham. Mais do que isto não poderemos, pois, aguardar dos dados por esta via recolhidos. Ocorre, porém, que quando um educador fala dele e de outrem, diz inelutavelmente mais do que aquilo que diz: não apenas porque não está só (convive e, portanto, é produto-produtor de cultura e comunidade) mas igualmente porque não é uno nem único (nele se cristalizam e afloram as contradições da classe, do País, da escola, da família, do meio ambiente...). Daí que quando responde a um mero inquérito ele nos revele muito mais do que julga ou crê e, muitas vezes, desvende mais pelo que esconde do que pelo que mostra, ao explicitar algo dele próprio quando nos escamoteia o outro, ao apontar-nos este descaindo-se relativamente a ele mesmo. É tudo isto que, afinal, nos abritrá a caixa de surpresas, desde que abordemos os dados com as chaves adequadas.


Os nossos recursos explicativos irão beber antes de mais na nossa experiência de trabalho directo com os professores, em número de alguns milhares, que nos últimos anos, por exigência profissional, nos foi requerida. Nesta fonte não trataremos de colher apenas um ângulo qualquer experimentado mas todos por igual e conforme se mostrarem relevantes ou sugestivos para clarificar qualquer aspecto da análise que os dados inquiridos requeiram. Assim, tanto dissecaremos a nossa própria actividade docente e o que ela nos permitiu ou impôs de contacto e partilha com os colegas, bem como a de membro de direcções ou de responsável doutros cargos da vida escolar, bem como tudo quanto decorreu e teceu as tarefas de orientador na formação contínua da classe, como ainda na de coordenador doutros em tarefas idênticas.


É nesta fonte que recolheremos os dados biográficos que tecem história, hoje tão do agrado da investigação na revitalização em curso das análises qualitativas, através de métodos nelas concentrados por vezes em exclusivo, após um período de exagerada sobrecarga de abordagens quantitativas áridas, desvitalizadas e sem imaginação. Aliás, o mito de que medindo, provando estatisticamente, reduzindo tudo a números se lograria mais rapidamente e com maior segurança a universalidade dos conhecimnentos caiu hoje por terra. Não apenas se não descortina, em área de ciências humanas em geral e particularmente no sector sociopsicopedagógico, qualquer descoberta que se imponha universalmente de modo convincente e indiscutível, como ainda, para nossa desgraça, o afã com que se procurou ansiosamente queimar etapas nas novéis disciplinas, ao tornar secas e bizantinas as explanações, com infindáveis cortejos de números e quadros, com provas e contraprovas hieroglíficas para a generalidade mesmo dos especialistas em tais domínios (já nem referimos os outros nem a população eventualmente interessada ou empenhada em aproveitar e desenvolver o que as descobertas permitissem), tudo isto gerou o descrédito e alargou o desinteresse pelo que nestes domínios ocorre. É o que teremos de concluir, por exemplo, do cepticismo com que o professorado acolhe a formação contínua nestas áreas, o que hoje é demonstrado mesmo com pesquisas representativas de países inteiros.


Evidentemente que este recurso à experiência variada de cotio, mesmo estendida ao longo de dezasseis anos, não permitiria tratamentos quantificados, senão ocasionalmente e ainda aí em escalas qualitativas (muito embora episodicamente se adregue lograr uma ordenação destas nalgum pormenor singular). É mesmo este limite que oferece, afinal, a maior riqueza do veio, uma vez que o exploraremos o mais possível para analisar o inquérito, contrabalançando deste modo o que de estreito e mortiço derive da espinha dorsal do trabalho que este constitui e tornando-o assim ordenador da experiência recolhida. É claro que os dados vividos são muito mais largos e reportam-se a inúmeros registos de que pela primeira via nem suspeitaríamos. Isto nos garantirá que o colorido existencial da narrativa, preso às expectativas e desilusões, aos sonhos e desaires vividos na carne e no sangue dos professores, simultaneamente intente prender a atenção e a curiosidade de quantos com tal se importem, bem como espicace o despertar do imaginário e da criatividade tão requeridos às reconversões que a educação e os sistemas com ela interligados urgentemente têm de implementar.


Uma derradeira trilha percorreremos: a do aproveitamento das pesquisas e análises anteriores, mormente as que se cruzam mais de perto com o nosso objecto de estudo. Antes de mais socorrer-nos-emos das convergências e divergências, bem como das interpretações e questões dos parcos tentames relativos ao que os docentes pensam do insucesso escolar. Depois apoiar-nos-emos nos mais vastos relativos ao modo como os alunos encaram o mesmo fenómeno (ocasionalmente utilizaremos referenciais do mesmo tipo provenientes das famílias). Uma outra área nos ajudará, a das mutações do professor ao correr da idade e da carreira, bem como a de quanto vá explicitando a psicossociologia genética do adulto nesta área laboral. Finalmente, toda a corrente dos estudos biográficos dos mestres, qualquer que seja o nível ou grau escolar a que se reportem, desde que alguma coisa de sugestivo manifestem para iluminar qualquer ângulo do tema que nos importa. É evidente que sendo estas as vias mais imediatas com que nos confrontaremos, isto não implica que abstraiamos de quanto, no âmbito da sociologia da educação, da psicologia do desenvolvimento e da pedagogia, bem como da análise da instituição escolar e demais matrizes correlatas eventualmente se antolhe clarificador, problematizante ou elucidativo de qualquer aspecto, pormenor ou domínio dos que abordamos. Pelo contrário, de tudo nos armaremos para irmos o mais longe possível no desbravar da floresta de enganos que em grande parte constitui o reino privado do educador no âmbito escolar.


Resta definirmos como iremos interligar tudo isto, qual o papel de cada aspecto, qual o peso relativo e como garantir a unidade do conjunto, bem como o equilíbrio e a harmonia finais que garantam quanto com isto nos proporemos atingir.




c) O método

Análise dos dados do inquérito com recurso a pistas explicativas da experiência e da literatura



A forma que adoptaremos é a de questionarmos os dados do inquérito para, quadro a quadro, irmos avançando na clarificação deles, desvendando o personagem do professor (método quantitativo, como base).

A estruturação da sequência terá como pedra angular, portanto, as respostas quantificadas e será sempre este registo medido que alimentará questões e respostas. Com isto faremos jus a quanto se justifique de pretensão de segurança e objectividade nos traços e perspectivas relevados, mormente no que se reporte aos grupos de docentes abordados, evidente como é que com este único referencial a mais ninguém praticamente poderíamos alargar juízos, tão pequeno e indiferenciado é. Com efeito, o mais que, a partir dos sessenta e um docentes questionados, poderíamos tendencialmente generalizar seriam traços do professor das escolas alentejanas onde se colheu a amostra, e isto provavelmente permitiria indiciar características comuns à região e aos vários níveis da escolaridade. A partir daqui já seria muito aleatório pretender alargamentos à classe dos distritos interiores (Beiras e Trás-os-Montes), mesmo que haja, como é óbvio, ainda muitas características comuns nas condições de trabalho, carência de meios locais e ambientais de preparação, escassez de comunicações e intercâmbios, elevada percentagem de professores deslocados da terra de origem e afastados da família, enorme flutuação anual de contingentes, com mudanças de estabelecimento para estabelecimento que se aproximam dos cem por cento, e assim por diante, como os quadros anuais dos concursos e outros dados do Ministério vêm ilustrando (mormente estatísticas do Gabinete de Estudos e Planeamento). Evidentemente que nos escaparia por inteiro o resto do País. Como fazer extrapolações mais alargadas sem cairmos em completa arbitrariedade, no subjectivismo mais contestável ou no puro imaginário? Ou teríamos de alargar a amostra do inquérito até a tornarmos representativa do todo nacional, ou então resta-nos mudar de rumo. Como aquela escolha (difícil de executar) apenas contentaria por inteiro os adoradores de números e convenceria os ingénuos ou acríticos, mantendo-se os restantes, como ocorre relativamente a toda a pesquisa da área e das ciências humanas em geral, renitentes na reserva, ou declarada e fundadamente em oposição e repúdio, gorando-se toda e qualquer pretensão de universalidade de resultados, único facto que poderia justificar tão custosa alternativa, então melhor será pôr de lado um objectivo inalcançável por natureza e por confirmação à saciedade da prática e antes procurarmos acessíveis resultados úteis tão ou mais convincentes que os que por acolá lograríamos, mas com a vantagem de poderem ser mais vívidos, mais certeiros quanto ao cerne dos educadores e para os demais interessados, mais capazes de atingirem as cordas da sensibilidade, de ferirem as mentes nos recantos mais decisivos e assim poderem ter maior probabilidade de serem eficazes. Ora, para tal meta se viabilizar, o rumo teria de acolher outras inspirações.


Faremos assim intervir a segunda fonte de recursos, ordenada ao esclarecimento das interrogações que a primeira nos colocar: a experiência directa em trabalho de campo, no decurso dos múltiplos papéis da vida de professor. Esta matriz terá uma função meramente explicativa e revestirá um colorido primordialmente qualitativo. Duas precisões e prevenções devemos, porém, desde já registar.


A primeira é a de que, se iremos utilizar, como ilustrador existencial das questões que a matriz quantificada nos levantar, este manancial de vida que é a nossa experiência e os elementos que ela nos acumulou ao longo dos anos e da diversidade de papéis e funções exercidos, a verdade é que nos não iremos nunca deixar ficar por aí. Transgrediremos sistematicamente os limites estreitos que a primeira fonte nos talha (reporta-se apenas a 61 indivíduos) em busca da totalidade do objecto a elucidar, do professor em corpo inteiro e no inteiro corpo que no País (e para além dele) constitui. Efectivamente, os dados colhidos nesta matriz extravaasam indefinidamente o limiar do campo estreito de incidência imediata dos grupos do inquérito. Ora, recusamo-nos a reconhecer a uma abordagem quantitativa enclausurada nela própria maior dignidade científica e menos ainda maior proveito que à explicação qualitativa, mormente, como é aqui o caso, se ordenada a clarificar aquela, uma vez fracassada por inteiro a tentativa que empolou a primeira (e a esvaziou em muitos casos) de por tal via atingir conhecimentos de validade universal e, com isto, de impor a legitimação das novéis ciências. Não foi nunca preciso que de fora nos atirassem pedras. Bastaram, para fazer ruir por terra o nosso orgulho e presunção, os permanentes artigos e livros que incansavelmente atiramos à cabeça uns dos outros, destruindo-nos mutuamente e demonstrando a inépcia de continuarmos batalhando numa guerra à partida e à chegada definitivamente perdida. Por nós, recusamo-nos a revestir a armadura quixotescamente ridícula de combater interminavelmente contra moinhos de vento. Por isso não teremos qualquer pejo em atribuir, na diferente e complementar função referida, num método quantitativo aberto e flexível, encarando o inquérito numa perspectiva sintomática, igual peso e dignidade aos dados de ambas as fontes de que nos serviremos e de os explorar até ao limite do que nos propiciarem, ordenando os existenciais à ilustração e clarificaçãop dos inquiridos e servindo estes, por tal via, de mapa organizador e questionador daqueles, numa opção de síntese mais fecunda do que se por qualquer daquelas pistas isoladas enveredássemos.


A segunda precisão é a de que, por isto mesmo, tanto faremos corpo com as análises de determinismos e respectivas causalidades condicionantes ou constringentes que mormente logramos surpreender pela quantificação de dados observados experimentalmente, como, em complemento, concomitantemente daremos largas à cor individual única e às matrizes difusas de convergências de escolhas e sentidos que apenas se deixam adivinhar nas análises biográficas dos professores, menos até nas que pretendem ainda aqui enfeixar pendores comuns capazes de nos traçarem as etapas por que cada um passa ao correr da idade e da carreira e mais até nas que no-los dão a esperar, a batalhar, a sofrer, a atingir ou a falhar, em carne viva. Não é por acaso que nos últimos anos, aquém e além Atlântico, é aqui que incide grande parte das pesquisas (com métodos particulares a tal adequados) e onde mais surpresas e sugestões encontramos. É que deparamos neste domínio com aqueloutra área que o cientista demasiadas vezes oblitera, tão entre palas lhe anda encafuado o olhar, por abusivo totalitarismo das ciências físicas e da natureza em geral nos derradeiros quatro séculos: a região da liberdade humana, objecto ímpar e sem paralelo em qualquer outro campo de pesquisa. Ora, é com ela que todos e cada um primariamente se identificam, é nela e apenas nela que nos reconhecemos enquanto pessoas, sujeitos de iniciativa, criadores. Secundariamente identificamos os determinismos que nos encarrilam os passos, nos delimitam os caminhos, nos condicionam os gestos e os sonhos. Nunca, porém, nos aceitamos definir como sendo isto: inelutavelmente, estas malhas constituem a rede que nos transcende e entretece o muro dentro do qual o drama vital de cada um é agido. Jamais isto é o sujeito mas o que o sujeita. E que apenas o sujeita tanto quanto a liberdade, a criatividade e a vontade individual ou colectivamente conjugada não logrem assujeitar-se disso, alargando as marcas e espaços pessoais indefinidamente mais longe.


Ora, se pelo inquérito abarcaremos mais de perto o domínio dos determinismos que ainda não são o professor enquanto eu que como tal se reconhece e protagoniza mas já o constituem enquanto lhe traçam as fronteiras da liberdade e do inovamento, pelos testemunhos da experiência avançamos um passo além, atingimos o coração de cada qual, onde brota o gérmen do que cada um é em profundidade, autenticidade, em liberdade que se assume. Estranho seria que se secundarizasse o momento que nos permite atingir mais de perto o âmago do problema, em detrimento de quanto nos oferece de revelador, promissor e mobilizador, pelo mero preconceito de que a primeira aproximação é mais parceira da tradição científica experimental, pese embora abandonar-nos a meio caminho, no reino das exterioridades com que ninguém se identifica, a que jamais alguém aceita ser reduzido, a que nem sequer acata sujeitar-se voluntariamente, quando de tal toma consciência. Seria uma rematada estupidez em que tem caído infelizmente muito preconceito engravatado de científico nestes domínios. É que, no fundo, é inamovível o dilema: ou tudo se reduz a determinismos e nexos causais, por muito sistémicos que sejam, e jamais deparamos com o homem, no que tem de irredutível, de egoidade, pela frente e andamos irremediavelmente confundidos e a confundir toda a gente, chamando pessoa a um espantalho; ou preservamos a interioridade do sujeito, o eu que o unifica pela vontade através da liberdade criadora e então toda a ciência (humana) clássica, enquanto determinista, embora tendencial, se esbarronda em incongruências e tem de ser irremediavelmente ultrapassada e transgredida, uma vez que ser livre é ser irrepetível e irrepetido e isto manifesta-se na irrupção imparável do inédito de que a história humana é a esmagadora e indesmentível demonstração permanente (e apenas o homem tem história porque só ele cria cultura, justamente pelas razões aduzidas). Ora, tudo isto é a contradição, o irredutível à lei científica, por natureza a do repetitivo e do fatídico. A fatalidade foi quebrada pela humanidade: abordar esta como ainda sujeita àquela é justamente ignorar o que caracteristicamente nos diferencia de tudo o mais, é deixar de fora o que é mais importante, o decisivo, é abolir-nos enquanto somos o que somos, é potencialmente impedir-nos de ser o que pretendermos vir a ser, é, numa palavra, condenar-nos à regressão, à animalidade pré-humana, à máquina, à robotização. Tal o pego que nunca soube evitar o vector da pesquisa em ciências humanas tradicionalmente obcecado com a mensuração e o cálculo e que tudo pretende reduzir a isto, ilegitimando quanto lhe escape ou o supere: como medir e calcular a liberdade, como meter entre determinismos a criatiuvidade, como prever e programar o inesperado, o totalmente novo? Este o absurdo permanente dentro de que se movimenta, esta a inépcia que a cancera e a condena tão de raiz e tão justamente, afinal, à inoperância e ao desprezo dos educadores. É que estes, obviamente, jamais logram reconhecer-se naquilo e nunca poderão aceitar mecanizar-se, tornados meras máquinas de ensinar como os skinnerianos primários desejariam (e ainda propugnam: o Walden II de J. B. Skinner que mais é que o delírio superficial e eminentemente contraditório de quem vê o planeta como um imenso circo e nem sequer se olha ao espelho para constatar que isto apenas lhe é tolerável porque reserva para ele próprio o papel de domador único, totalitário, sobre todos os símios humanos que seríamos nós outros?). Decididamente, não trilharemos tais caminhos.


Com isto, duas notas finais restam. A primeira é a de que, sintetizando as duas matrizes numa solução metodológica unitária aberta indefinidamente, as mergulharemos permanentemente numa antropologia filosófica que não explicitaremos de modo sistemático por não ser por ora nosso objectivo mas que, por quanto já expressámos, se adivinha e é muito divergente da que se generalizou entre os investigadores e na cultura de escol da civilização contemporânea, gravemente cancerada de cientismo e que sobrevive masoquista e triunfalistamente estraçalhando a humanidade do homem. Assim, não hesitaremos em permanentemente abrir um diálogo entre o discurso na terceira pessoa, o do objecto da ciência (quer assumido quantitativa quer qualitativamente, mais alheio ou mais próximo da intimidade do sujeito), com a palavra na primeira pessoa que testemunha a vivência, a partir do íntimo, do projecto do professor, a principiar em mim próprio que o sou e a prolongar-se nas análises de quantos em nosso entender façam sentido e permitam descer até às raízes do mistério que inelutavelmente continuaremos sendo enquanto pessoas que não nos abolimos quando nos propomos como educadores. A segunda é a de que para fazer luz em todos os campos, níveis e perspectivas deitaremos mão a todas as pesquisas e linhas de interpretação, venham elas donde vierem e nem sequer nos preocuparemos com a discutível e empobrecedora pretensão de as respeitarmos no respectivo contexto de sentido, área objectal, convicção de alcance. É que a esta região lhe atribuiremos mero papel instrumental: as ferramentas utilizam-se conforme o projecto e fins em vista e jamais conforme os intuitos do fabricante. Serão sugestão, operarão como estímulo do imaginário e outra função lhes recusaremos neste contexto. Tal implica que com toda a liberdade as transporemos de campo, as distorceremos de sentido, as modelatemos a domínios e objectos imprevistos, ignorando deliberadamente o que detrás as determinou com o critério único de que adequadamente sirvam a clarificar recantos obscuros, operações encobertas, traços do perfil do professor. Este e apenas este, ao fim e ao cabo, aqui importa pôr a nu. Tudo o mais é, nas devidas proporções, instrumental e como tal o manipularemos com a destreza a nossa perícia viável.


Numa palavra, analisaremos os dados do inquérito explorando até ao limite a explicação possível deles, tanto quanto o recurso das várias fontes e níveis de questionamento no-lo permitam.






CAPÍTULO I


Dizer-se


Análise das respostas dos inquiridos relativas à sua caracterização e situação e às opiniões sobre o que provoca o fraco rendimento escolar dos maus alunos




a) Falar de si

Análise das variáveis independentes e das opiniões em que os inquiridos atribuíram aos professores o mau rendimento escolar dos alunos



A escolha duma população inquirida à roda de trinta professores por escola obedeceu ao pressuposto de que em estabelecimentos cujo corpo docente ronda a centena de indivíduos isto teria à partida muita probabilidade, numa colheita aleatória, de deixar transparecer a composição real do todo e ainda por cima, num ou noutro aspecto, se calhar permitiria o afloramento de estratos, pendores ou fracturas de alcance mais vasto. Como veremos, isto foi largamente atingido mas, dadas as relações de trabalho dos inquiridores com as escolas onde colheram os dados, apesar da preocupação com o acaso das abordagens, algumas distorções acabaram por ocorrer, como adiante identificaremos. O facto de contarmos com trinta inquéritos em Évora e trinta e um em Beja permite-nos, por outro lado, comparar de modo imediato os resultados dos dois grupos e levantar as questões que as convergências e as divergências sugerirem, sem necessidade de recorrer a operações de reconversão de quantitativos para torná-los apreensíveis.


QUADRO I


Idades

Total

%




Menos de 20

1

1,6

20/30 anos

16

26,2

30/40 anos

31

50,8

Mais de 40

13

21,3




Total

61

99,9



Quadro I – Distribuição dos inquiridos das escolas de Évora e Beja por escalões etários


Quanto às idades abrangidas, apenas um professor ainda não ultrapassara os vinte anos. Os demais distribuíam-se assim: 16 na casa das vintenas; 31, na dos trinta; e 13 tinham de quarenta para cima. Esta distribuição requer alguns comentários e clarificações. Desde logo o caso isolado do colega mais novo. Relativamente às escolas do interior alentejano, beirão ou transmontano, tal facto é insólito e deriva directamente da circunstância de estarmos perante professores em capitais de distrito. Efectivamente, em qualquer escola isolada e mormente nas mais recentes ( Mértola, Almodôvar, Odemira...) ou nas preparatórias que foram alargando a abrangência pelo curso unificado além até eventualmente ao complementar (Castro Verde, Mora, Alandroal...), o que por todo o lado encontrámos, na primeira metade dos anos 80, foi um grupo elevado de docentes que haviam acabado de ser alunos no próprio local e agora eram os professores de recurso para os horários que ninguém queria ocupar. Se nas escolas urbanas esta franja é de casos isolados, um pouco mais em redor encontram-se todos bastante bem acompanhados. Nem sequer a transição de ano para ano permite que tal estrato envelheça, que eles não chegam a aquecer o lugar. De facto, quando monitorámos cursos de formação permanente em tais estabelecimentos constatámos que as caras mudavam em geral duma vez para a outra, mantendo a mesma fonte de abastecimento dos lugares. É que, explicatram-nos, todos encaravam aquilo como uma solução de recurso até encontratrem emprego mais a contento. Ora, como ser professor era um reconhecimento público e oficial de competência e uma excelente carta de apresentação, ao fim do ano praticamente todos saltavam para lugares de melhor futuro (e de muito mais presente!). Isto tende a reproduzir indefinidamente aquela mancha bastante alargada de docentes de muito limitada preparação académica e baixa idade. Este fenómeno não tem paralelo nas escolas da faixa litoral do País e menos ainda nas das áreas urbanas respectivas, sendo mesmo inimaginável em Lisboa, Porto ou Coimbra, o que leva a que as próprias instâncias ministeriais a ignorem ou fiquem incrédulas quando lha reportamos. A comodidade dos gabinetes encegueira e é, de qualquer modo, mais cómodo obliterar abstrusidades quejandas que canceram o sistema escolar entre nós.


Os dezasseis colegas com idades na casa dos vinte anos, portanto em princípio de carreira, constituem já uma franja larga e verdadeiramente típica de toda a região e do interior em geral. Este estrato constitui um sector que aguarda, ano após ano, o concurso, para gradualmente ir-se aproximando da terra em que pretende fixar-se definitivamente. Pelo “efeito Léger” sabemos que a tendência do professorado é deslocar-se para as escolas onde predominam os filhos das classes privilegiadas em detrimento das dos estratos populares, operários ou camponeses. Ora, a rejeição, por parte dos mais graduados ou antigos na carreira, dos estabelecimentos deste último tipo obriga os novos docentes a não terem alternativa senão principiarem a peregrinação por aqui, para depois irem saltando de ano em ano rumo à escola desejada que para a quase totalidade é a urbana, mais rica e cosmopolita. Este fenómeno que se verifica em todo o lado onde a pesquisa o inquiriu, também entre nós é avassalador, mormente no Alentejo. Com efeito, é ali que constatamos maior índice de transumância anual, havendo escolas que ainda há pouco tempo rodavam integralmente de corpo docente de ano para ano (Mora, por exemplo), sem se manter um único professor que garantisse qualquer continuidade. Com a gravidade que atinge em toda a zona cremos que em mais região alguma ocorre, mas os colegas confirmam que a Beira interior e Trás-os-Montes não andam longe disto. De notar, porém, um pormenor: os depoimentos orais dos milhares de colegas com que temos vindo a trabalhar, entretanto, reafirmam que a pretensâo de mudar não é para atingir escolas das classes privilegiadas, mas antes para reunir-se à respectiva família. É verdade que é dramática a situação afectiva e conjugal da maioria destes docentes e, portanto, o que mais pesa psicológica e emocionalmente para cada um é este vector, pelo menos em toda a região transtagana, e já não a perspectiva de buscar um local de trabalho mais agradável, cómodo, bem apetrechado e conseguintemente mais gratificante profissional e emotivamente. Entretanto, é preciso não nos deixarmos arrastar por aparências. É que a classe docente não é, em geral, do extracto operário, camponês, nem sequer dos serviços mais humildes, pese embora o facto de a primeira geração de alargamento do professorado primário ter tal origem. Os filhos destes já foram de novo docentes: estabilizaram a fonte na classe média a que os progenitores haviam acedido. Por larguíssima maioria, assim, o professor é oriundo das franjas sociais intermédias, hoje em dia (1985). Ora, obviamente, estas habitam prioritariamente zonas urbanas, mais ricas e equipadas. Muito embora, portanto, estes colegas pretendam primariamente atingir a convivialidade familiar aproximando o local de trabalho do núcleo dos íntimos, isto, em virtude da origem social da vasta maioria deles, redunda no efeito de os já privilegiados buscarem os privilegiados, por muito que em concreto nenhum deles dê conta do produto desta tendência, vivida como é por cada um apenas a nível individual. Como constante partilhada em sentido idêntico por milhares, é evidente que o mais relevante acaba por ser o resultado de conjunto.


Os próprios números, aliás, nos revelam uma outra confirmação de idêntico fenómeno, ao mostrar-nos 31 colegas com idades na casa dos trinta anos. Este estrato coloca-se numa posição intermédia, correspondente claramente ao facto de as escolas inquiridas serem, apesar de tudo, urbanas, muito embora em meio à mais extensa e inveterada região rural do País. É que, relativamente às que se espalham, solitárias, por pequenas vilas e povoados, estas já são uma apreciável melhoria. Ora, aqueles que entevêem problemática ou demasiado longínqua a probabilidade de um dia chegarem a casa, optam deliberadamente por um compasso de espera de alguns anos nestes meios, apesar de tudo mais suportáveis para as respectivas preferências. Não é fácil encontrar, com efeito, uma proporção tão elevada desta faixa etária, nem em escolas definitivamente rurais nem nas da região urbana privilegiada, mormente da lisboeta. É que na distribuição da amostra esta é a franja mais representada. Isto poderia ser, obviamente, aleatório. Mas não vale a pena crer em tal quando reparamos no último grupo, o dos professores mais velhos, uma vez que este apenas contempla treze indivíduos. Ora, nós sabemos que os estabelecimentos preferidos, como os centrais de Lisboa, Porto ou Coimbra, contam com o maior número relativo de docentes exactamente entre os mais velhos que ali permanecem até à reforma. Estamos aqui, portanto, perante um fenómeno inteiramente diverso. O atractivo destas escolas inquiridas é maior do que o das que as rodeiam e menor que o das grandes metrópoles. Daí que o leque dominante tenda exactamente a convergir para a faixa etária dos que estão a meio da carreira, aguardando a vez para darem o salto.


Um outro fenómeno reforça este efeito. É que são estas escolas intermédias as que melhores condições e em maior quantidade profissionalizam e conferem habilitação pedagógica aos colegas academicamente aptos para o professorado, mas a que falta esta componente legalmenmte requerida para singrarem na carreira. É evidente que quem pretenda segurança no labor e garantia de estabilidade, a não lograr melhor colocação, claramente escolha esta como mal menor e trampolim que logo após o habilitará a transpor melhor o obstáculo que o separa da escola-terra que almeja.


Convém ter em conta que o “efeito Léger” não se explica inteiramente pelo fenómeno do urbanismo que atrai há séculos às cidades as populações periféricas e rurais, mormente, no Ocidente, a partir do movimento comunal medievo. Sabemos que este é multissecularmente alimentado pelo facto de as urbes concentrarem nelas mais riqueza, mais oportunidades de trabalho, uma gama mais vasta de bens e serviços, outras oportunidades de cultura, lazer e diversão, maior flexibilidade nos padrões éticos e relacionais, mais liberdade individual, fortes estímulos ao espírito de aventura e ao gosto de promoção socio-económica.


Os professores não podem deixar de ser sensíveis a estes atractivos como a população em geral. O que diferencia e acentua neste estrato aquele pendor é o facto de ele maioritariamente ser oriundo de lá mesmo e ser forçado, por períodos mais ou menos longos, em grande número, a deslocar-se para a província. Isto leva a que se conjuguem em quase todos tanto o atractivo do meio urbano quanto o do retorno ao lar e que, psicologicamente, este sobrepuje aquele a ponto de os professores se não darem conta da convergência de ambos. Tal conduz à criação espontânea e inconsciente para a generalidade da classe de zonas e escolas preferenciais e privilegiadas. O privilégio advém-lhes tanto de partilharem do meio urbano e respectivos benefícios mas mais ainda do facto de a proximidade do poder e da administração lhes permitir serem mais ouvidas e atendidas, o que redunda em melhores instalações e equipamentos e mais vastos recursos. Acresce que o preferi-las leva a que os corpos docentes se lhes tornem nos mais qualificados e experientes, com o tempo, o que é outra vantagem de grande monta. Constituindo um condicionamento omnipresente, a ele nos teremos de reportar sistematicamente ao correr da análise e sempre que o referirmos estaremos a reportar-nos a toda esta complexidade subjacente à tendência geral encontrada.


Finalmente, o grupo como tal mais reduzido é o dos professores que ultrapassaram os quarenta anos de idade, com treze elementos. Este, em grande parte, está para ficar. Mesmo assim, porém, é curioso notar que, para além de não ser o mais numeroso, como ocorreria se as escolas fossem do centro duma grande urbe litoral, ainda assim não é seguro que esteja por inteiro fixo. Com efeito, se tal fora o caso, o normal é que aqui se encontrassem a totalidade dos efectivos e ainda os agregados a aguardar vaga para se efectivarem. Ora, acontece que entre os inquiridos há 25 efectivos (e mais um agregado), o que representa um número desproporcionado de membros do quadro da escola em escalões etários abaixo dos quarenta anos. Com efeito, nos estabelecimentos mais procurados, são os mais velhos que ocupam todas aquelas vagas, pelo que só com a reforma vai havendo lugares para outros. Como os novos, porém, ficam ali anos como agregados aguardando vez, ou efectivam-se fora e longe, quando entram no quadro também já a idade lhes não tende a ficar abaixo do limiar dos quarenta. Em escolas alfacinhas ou tripeiras centrais é este o fenómeno. Aqui, no coração alentejano, a meio da década de oitenta, aquele grupo de professores mais idosos será então constituído tanto pelos que pretendem de vez radicar-se ali como por quantos vieram efectivar-se fora para depois lhes ser mais fácil cativarem uma vaga em escola que lhes importe (como ocorre com o largo número de efectivos de baixa idade que entre os inquiridos encontramos), mas que, entretanto, não lograram ainda tal mudança. São o resto dos que se encontram em trânsito, qualquer que seja a posição que ocupam na carreira ( provisórios, agregados ou efectivos), e que nesta faixa etária em princípio já lograram profissionalizar-se e efectivar-se. Tudo isto quer dizer que nem sequer temos a garantia de que este grupo, à partida já o mais reduzido, (se ignorarmos o colega isolado com menos de vinte anos), afinal se estabilize nos estabelecimentos. A instabilidade docente é uma das maiores pragas do interior, mormente rural, como anotámos. Nesta franja aparece agravada pelo factor da irradicação da experiência acumulada, da segurança e estabilidade pedagógica que assentam maioritariamente neste leque de professores de largo traquejo. Efectivamente, sabemos quanto tende a convergir nos estratos mais novos a dificuldade de garantir a disciplina nas aulas, o deficiente domínio científico-pedagógico dos programas que leva à insegurança e à criação dum clima permanente de ansiedade. Tudo redunda no facto de nem sequer nas escolas urbanas do interior podermos contar com a sedimentação de práticas adequadas e estáveis, dado o sector apto a garanti-lo ser afinal, diminuto e, provavelmente, muitas vezes não ter peso nem força bastantes para tramitá-lo, de ano para ano, numa escola e para um corpo docente em constante rotação e em atitude psicológica de provisoriedade, de peregrinação, para quem qualquer coisa serve e basta. Obviamente, já nem falamos das restantes escolas de toda esta região onde nem sequer encontramos ninguém (ou quase) em tal faixa etária e correspondente posição na carreira. Aqui é a permanente instabilidade, insegurança, arbitrariedade, incompetência ou ansiedade, um pouco de tudo o que é negativo ou limitativo, cada ano com tónicas e vectores diferentes mas sempre sem gerar tradição positiva, uma vez que a única herdada fatidicamente é esta de jamais transitarem para um estádio em que cada qual, afinal, possa ao menos reconhecer aquilo com que pode contar ao cair em tais escolas. Anotemos, entretanto, que isto, contrariamente ao que poderia crer-se, não significa que os professores sejam melhores ou piores, em termos mormente do rendimento escolar dos alunos. É conhecido que este não varia significativamente com a idade e posição na carreira dos respectivos docentes. Aqueles aspectos negativos referidos são compensados nos escalões etários mais baixos por outros que os equilibram, nomeadamente o empenhamento, o entusiasmo, a flexibilidade, a iniciativa e o gosto por experimentar, variar e inovar. O problema é que um desenvolvimento pessoal equilibrado dos educandos requer a complementaridade de todos os aspectos e o bom ambiente convivial da comunidade escolar pressupõe a serenidade, a acalmia que apenas os estratos etários mais altos dominantemente garantem. A deficiência de tudo isto nos estabelecimentos da charneca alentejana e das serranias beiroa e transmontana é mais um factor de empobrecimento a juntar a tudo o mais.


Relativamente ao sexo, entre os inquiridos há 25 homens e 36 mulheres. Esta distribuição é significativa de múltiplos vectores da realidade profissional e cultural do País, a vários níveis. Em primeiro lugar reflecte o desequilíbrio da composição docente das escolas em causa. Efectivamente, o que ali sistematicamente ocorre é a predominância feminina, não exageradamente acentuada mas claramente notória. Isto, porém, confirma-se em toda a região, quer a nível do secundário, quer do preparatório e mais ainda neste que naquele. A estatística constata, além disso, que tal é a tendência em qualquer maio ambiente e a pesquisa informa-nos que o mesmo ocorre pelo mundo fora, pelo menos no Ocidente, onde a investigação mais dados relativos a esta variável nos coloca ao dispor. Tal situação é fruto duma conjunção de factores diversificados que importa esclarecer, uma vez que não actuam aos mesmos níveis nem com alcances iguais, muito embora se camuflem atrás da máscara comum do mesmo produto final.


Antes de mais, no Alentejo, a docência apresenta-se para as raparigas locais como uma alternativa de promoção fortemente atraente. Estamos perante um meio ambiente estruturalmente rural com a agravante de manter, relativamente à mulher, pesados ónus da cultura mourisca, da clausura do harém e da total segregação feminina da vida em sociedade. A tentativa de fuga a uma estrutura familiar tradicional tão fechada para as raparigas depara com um contexto em que as alternativas são praticamente nulas. As próprias cidades transtaganas são demasiado ronceiras, repetitivas e passivas, sem vitalidade em termos de dinamização de novos postos de trabalho, alargamento comercial, industrial ou de serviços, mesmo de iniciativas culturais que não sejam o mero culto de criações de antanho, monocórdico e asfixiante para quem pretenda rasgar janelas para novos mundos. Neste contexto, a explosão escolar é uma novidade prometedora e próxima dos papéis tradicionais da mulher na família patriarcal que é a nossa (seja da tradição monogâmica cristã ou da poligâmica maometana). É, por isto, uma via privilegiada mormente pelas novas gerações femininas da área, na tentativa de romperem com a claustrofobia da educação tradicional dominante. Isto tende a fixar nas escolas da zona um estrato pouco numeroso (a densidade populacional é aqui a mais baixa do terrirório) mas constante e bem notório de professoras dali mesmo oriundas. Ocorre, porém, que mesmo em tal região se logra constatar a diferença que este mesmo movimento produz entre escolas da cidade e do campo propriament dito. Naquelas o grupo descobre-se com facilidade e constitui de algum modo um pequeno contrapolo à instabilidade e apetência de fuga para os grandes centros da maioria. As colegas nadas e criadas ali são bairristas e saboreiam com garridice os valores e riquezas socioculturais do próprio meio com que se identificam. E, como são grupo coeso, logram ouvir-se e reconhecer-se. Pois bem, nas escolas mais isoladas e dos pequenos agregados acabámos sempre por descortinar o afloramento disto mas agora com componentes muito diversas. Nalguns casos mesmo, havia apenas uma ou duas professoras de lá oriundas; as demais, até quando ainda da região, já eram de povoados a dezenas ou centenas de quilómetros e na quase totalidade este sector docente era composto por membros migrantes que incorporavam o rio das anuais transferências de escola para escola, em busca da aproximação do lar. Ora, nestas condições, já não era viável criar espírito de grupo, o isolamento pesa mais e chega a doer fundo, a ponto de algumas destas colegas nos referirem o desapontamento e descrença com que viviam o dia a dia do labor, num permanente sentimento de abandono e solidão.


É claro que os números significam e representam algo bastante diferente disto quando nos reportamos ao todo do País e de além-fronteiras. Aqui reflecte-se primariamente o efeito da divisão social do trabalho. É conhecido e entre nós se confirma uma vez mais que a mulher vem penetrando neste século no mundo laboral por duas vias privilegiadas: a das tarefas mais mal remuneradas (mesmo quando estas são comuns, os homens recebem em todo o Ocidente mais que as parceiras) e a das mais afins às funções tradicionais do mundo feminino, oriundas da maternidade e respectvos condicionamentos (permanência longa no agregado familiar, alimentação, educação e trato dos filhos). Ora, ambas as vias se conjugam na carreira docente. Com efeito, ela é universalmente reconhecida como mal paga mesmo à escala mundial, como várias declarações da UNESCO têm acentuado, e, quanto ao conteúdo, é obviamente um prolongamento natural das tarefas educativas maternais. Daqui deriva o padrão comum em todo o mundo ao sistema escolar, entre nós igualmente comprovado: a mulher predomina nos níveis mais baixos (nos jardins de infância praticamente não se encontram homens, apenas educadoras), é fortemente maioritária no âmbito da escola primária, começa a sentir a competição no preparatório, quase se equilibra no secundário com a componente masculina e é largamente superada por esta no âmbito do ensino superior, por enquanto. Concomitantemente com este perfil distributivo opera outra tendência: de ano para ano aumenta a invasão feminina ao sector, regredindo proporcionalmente a percentagem de homens, e também aqui a partir dos ramos mais próximos das tarefas tradicionais da mulher na nossa cultura. Por exemplo, no ensino superior irrompe mais (e já é maioritária) nas Escolas Superiores de Educação do que, para não ir mais longe, nas Faculdades de Letras, e nestas já opera um leque feminino mais largo do que em Ciências ou, mais notório ainda, nas engenharias, donde ainda está ausente quase por inteiro. É evidente que tudo isto revela quanto o sistema escolar é antes de mais um reprodutor e não um transformador sociocultural, mas simultaneamente quanto se vai revelando permeável aos efeitos do movimento de libertação da mulher no mundo contemporâneo, embora de modo meramente passivo, contrariamente ao que deveria ser em parte função dele, mormente na conjuntura mundial presente, caracterizada por cada vez mais acelerada mudança de técnicas, valores e padrões culturais, a requerer que os educadores, em qualquer domínio ou estrutura, tomem a iniciativa de preparar as novas gerações para tal emergência. Isto requer iniciativa, criatividade, inovamento, criação de alternativas, capacidade de propor e experimentar, tudo muito longe da tradicionaal tarefa de garantir a transmissão da cultura herdada que lhe incumbiu durante os derradeiros dois milénios e meio da história ocidental. Fica-se pelo meio termo: não obstaculizando a transformação sociocultural liderada pela mulher, em prol da autoafirmação e realização personalizada dela própria, também a não promove, assume, analisa nem aprofunda ou critica. Já não é mau mas poderia e deveria ser muito melhor, uma vez que o sistema escolar é porventura, doravante, a instituição mais poderosa e abrangente no campo da formação pessoal e da cultura e alheia-se por norma dos projectos e intervenções mais vivos e promissores em gestação na humanidade. Ora, este não é dos de menor alcance, bem pelo contrário.




QUADRO II


Curso

Prof.

%




Letras

23

37,7

Ciências

16

26,2

Outros

22

36




Total

61

99,9


Quadro II – Distribuição dos inquiridos nas escolas de Évora e Beja por áreas de habilitação




Os cursos dos inquiridos permitem erguer o véu relativamente a um outro conjunto de perspectivas que nos caracterizam. Dentre eles, 23 são de Letras, 16 de Ciências e os restantes 22 são de outras áreas. Apesar de aqui se ter decerto reflectido na colheita de dados a relação de trabalho do inquiridor com os colegas e destes entre eles, tendendo a concentrar em determinados grupos disciplinares as respostas, a verdade é que, apesar de tudo, o esforço para tornar a abordagem aleatória resultou minimamente, dado que foram atingidos nada menos que professores de catorze áreas curriculares diferentes, o que é pouco menos que a totalidade das alternativas que as escolas em causa oferecem. Isto permite, embora com alguma reserva, analisar os porquês daquela distribuição.


O que ressalta de imediato é a enorme hegemonia das Letras, com 23 inquiridos ali habilitados. Isto confirma quanto acabámos de referir quanto à preponderância feminina neste nívl escolar e ao predomínio em áreas afins aos papéis tradicionalmente atribuídos à mulher em nossa cultura. Os cursos deste sector, ligados às línguas, à formação humana, aos valores, ao levantamento cultural, constituem o prolongamento natural da educação infantil e da iniciação à vida que a mãe habitualmente lidera na infância dos filhos. Também como alunas, as mulheres estão mais em Letras (nas Universidades) que noutros domínios e como docentes acabam preponderando em tal área, a nível do secundário. O mais relevante, porém, não é este efeito de pormenor. De facto, se a escola não precisasse de tantos habilitados em tal campo, jamais o número ascenderia à proporção em causa. O caso é que a distribuição de habilitações que encontramos é representativa dum modelo escolar, o nosso, e que por acaso neste particular não coincide em nada com o dos países industrializados e mais ricos. O problema é, portanto, mais profundo e revelador. Um pormenor bizarro levanta-nos a ponta do véu: é que nós estamos perante professores de antigas escolas técnicas (industriais e comerciais) onde justamente o peso de componentes da área curricular das humanidades era diminuto e onde, ao invés, a presença e disponibilidade dum largo parque de oficinas, aparelhos, ferramentas e tecnologia vária faria presumir uma composição diversa do corpo docente. Que aconteceu?


Desde logo isto, a nível local: a escola opera como um meio de fuga e não de promoção social equilibrada, no sentido em que os que a procuram em larga medida pretendem ter, por mediação dela, entrada na classe dominante e no parasitismo, hedonismo e improdutividade dela, que tais são as características que reveste aos olhos dos desprotegidos, marginalizados e pobres, como são os povoados alentejanos em geral. Ora, os cursos que condizem com os privilegiados são os das humanidades, visando o puro deleite na arte (literaturas), na convivialidade (línguas), na estese contemplativa do mundo e da vida ( geografia, filosofia, história).


O resultado é que a procura vai dominantemente neste rumo e as escolas têm de corresponder-lhe, criando horários e mais horários em tal vector. O fenómeno, porém, não se limita a isto. Efectivamente, o que por trás se perfila é um País inteiro que ainda não descobriu a estupidez suicida de tal tendência e se deixa arrastar inconsciente por ela como se fora a melhor via do mundo. É que tal desequilíbrio de distribuição de efectivos é comum às escolas do País, sendo muitíssimo mais grave ainda nos antigos liceus, destituídos como sempre ficaram de instalações e equipamentos para trabalhar no âmbito científico-tecnológico. Não oferecendo à partida um leque de escolhas tão rico como o dos antigos estabelecimentos técnicos e industriais neste domínio, muito mais reduzido ele resulta no fim. No fundo, o efeito acumulado de tal fenómeno é uma escola alheia aos ritmos e cadências do mundo actual, assente na industrialização, na tecnologia e no diálogo estreito entre a pesquisa e o investimento, bem como na antecipação ao aplicarem-se novas técnicas em todos os domínios da vida económica, na produção, transformação, troca e consumo de matérias-primas, bens e serviços, em circuitos cada dia mais largos no espaço, mais complexos e em aceleração crescente no tempo. Em lugar de nos virarmos para aqui e tratarmos de intervir nos feixes cruzados e nos jogos de força e de pressões do modo a nós e ao equilíbrio da humanidade mais conveniente, nós fugimos do turbilhão e pomo-nos (e às novéis gerações) a mastigar Camões e Pessoa à margem do rio. As oficinas, os laboratórios vão ficando mais ou menos ao abandono, as ferramentass enferrujam e os equipamentos são bonitos para mostrar às visitas. Restam uns escassos horários para os professores candidatos, mesmo nos estabelecimentos mais propícios a que a inversão de prioridades ocorra. Neste aspecto, curiosamente, a criação do curso unificado foi um retrocesso: em lugar do avanço para o respeito e competência, generalizados a todos os educandos, no domínio do trabalho produtivo, nos pendores hoje em dia mais relevantes, gerou o movimento inverso da corrida de toda a gente para as opções tradicionalmente típicas da classe dominante, as que antigamente entreteciam o curso liceal, as que continuam permitindo melhor acesso aos quadros administrativos e superiores da economia e do Estado, a coutada dos privilegiados.


Nem sequer os 16 habilitados em Ciências, neste aspecto, podem contrabalançar tal efeito, dado que são os herdeitros directos do segundo ramo do curso liceal que se bifurcava no termo naquela (Letras) e nesta alternativa, em ambos os casos sempre à margem dum fito de preparação para a actividade produtiva directa, mas antes para funções tutelares e de domínio, nesta vertente para os campos justamente da indústria, comércio e serviços.Com efeito, Ciências Naturais, Biologia, Física, Química, Matemática não eram (e não são) currículos para preparar técnicos, industriais, agentes de transacções e assim por diante. Sempre integraram a carreira escolar destinada aos filhos do escol ou dos respectivos serventuários imediatos, os braços direitos da classe dominante. O que resta, pois, no âmbito da educação para o universo industrial, mercantil, altamente científico e tecnológico em que cada dia mais nos movemos, são eventualmente os restantes 22 inquiridos das outras habilitações. Para antigas escolas técnicas, a desproporção é gritante: professores das disciplinas tradicionais são 39, quase o dobro daqueles. Para que nos serve uma educação com tais tónicas? Para eternizar a nossa alienação colectiva perante o mundo em que, queiramo-lo ou não, estamos vivendo? É que até para eventualmente o repudiar, o transformar ou lhe criar alternativas, a condição necessária é saber geri-lo para poder ocasionalmente gerá-lo. Por onde continuamos indo apenas logramos ser cada vez mais marionetas movidas ao gosto dos cordelinhos dos poderosos do século. Ora, a verdade é que eles próprios já transformaram a escola a ponto de, mesmo neste nível, a equilibração de componentes curriculares ser outra, justamente a mais próxima possível das exigências actuais da dinamização económico-político-cultural que impeça que colectivamente os respectivos povos devenham bonecos a mando doutrem, sem autonomia nem vontade próprias, nem capacidade para afirmá-las e as obrigar a respeitar, como vergonhosamente vem sendo norma em muitos domínios entre nós.


Opera aqui um círculo vicioso que convém rapidamente identificar, na expectativa de alguém alguma vez decidir quebrá-lo: o Ministério, pela lei do menor esforço, promove um desenvolvimento currricular assente na herança de antanho, com remendos mais ou menos mal cosidos e muitas vezes contraditórios ou então com intermináveis sobreposições ignorantes umas das outras; os utentes, satisfeitos pela promoção comum às vias de ensino dos privilegiados, aplaudem e querem mais. Como ninguém dá pelo desvio, tudo bem. Lá vamos muito alegremente caindo no abismo, solidários e míopes. Quando é que o esmagamento atingirá o limiar do intolerável, no qual a explosão do inconformismo devirá incontrolável e provavelmente com enormes perdas, perfeitamenmte evitáveis se prevenidas a tempo?



QUADRO III


Área leccionada

Professores

%




Matemática

11

18

Electrotecnia

3

4,9

Geografia

3

4,9

Inglês

9

14,7

Contabilidade

2

3,3

Mecanotecnia

1

1,6

Físico-Química

1

1,6

Educação Física

8

13,1

Construção Civil

1

1,6

Português/Francês

10

16,3

História

4

6,6

Secretariado

4

6,6

Filosofia

1

1,6

Ciências Naturais

3

4,9




Total

61

99,7



Quadro III – Distribuição dos inquiridos nas escolas de Évora e Beja por áreas curriculares



Uma análise das áreas curriculares leccionadas pelos inquiridos revela que tudo isto é mesmo mais grave do que os indicadores já reportados. Com efeito, o total dos que ensinam programas de Letras (inglês, geografia, português, francês, história e filosofia) monta a 27, o que significa que, para além dos 23 habilitados em tal área, ainda mais quatro vieram dos outros campos para este cumprir horários com currículos para que não estão habilitados academicamente. Não é apenas, ainda por cima, a hegemonia desta componente que se alarga mas, mais gravemente, o empobrecimento das condições de trabalho com a impreparação e desmotivação destes docentes para trabalharem programas alheios aos respectivos cursos, ficando por outro lado subaproveitados, uma vez que não são investidos nas disciplinas para que estão preparados. O reflexo deste predomínio da área de Letras atinge mesmo os habilitados em Ciências, o que não deveria normalmente ocorrer, uma vez que esta componente era parte dos antigos liceus. Pois bem, dos dezasseis colegas de tal sector apenas quinze leccionam em grupos a ele pertinentes (ciências naturais, matemática, física e química). Mesmo aqui um deles teve de mudar de campo, portanto. Um outro pormenor reforça quanto acabamos de referir. Os docentes a laborar em disciplinas técnicas são apenas 11 dos inquiridos (electrotecnia, mecanotecnia, contabilidade, construção civil e secretariado). Com oito de educação física perfazem os sessenta e um abordados. Isto demonstra que não apenas o campo tecnológico e laboral é um irmão menor, como, pior ainda, é o que mais concorre para a fuga do âmbito da habilitação própria para o das Letras, com três elementos (de notar que as preparações académicas fora dos dois grandes domínios tradicionais não foram discriminadas por especialidades no inquérito e, portanto, para além de abranger o ramo a que nos reportamos, contém um leque muito vasto doutras componentes, como Direito, Medicina, Música, Arquitectura..., o que diminui ainda mais a representatividade do vector científico-técnico dos corpos docentes).


Leccionar programas para que o professor não tem preparação académica prévia é um recurso que constatámos ocorrer em todo o lado, nos anos oitenta. Aconteceu-nos a nós próprios numa escola central de Lisboa. Múltiplos problemas insolúveis concorrem para esta situação anómala. Destacamos, primeiro, o mais comum que é ter de se completar horários que ficam incompletos dentro da própria área, sob pena de o docente não ter trabalho bastante para um vencimento por inteiro, ou então ficar privilegiado auferindo tudo e laborando a tempo parcial. Ora, esta dificuldade repercute-se em todo o lado da forma seguinte: os horários completos homogéneos são primeiro elaborados e tornam-se nominais, para os colegas mais adiantados na carreira ou com funções determinadas que implicam redução lectiva. Apenas no fim ocorrem aquelas soluções anormais, muitas vezes ainda com a agravante suplementar de as horas de aula ocorrerem em vários turnos de funcionamento (manhã-noite, manhã-tarde, tarde-noite ou até espalhadas pelos três). Ora, tais horários vão inelutavelmente parar às mãos dos colegas mais novos e inexpertos, justamente os que mais dificuldade sentem em garantir disciplina na turma, dominar conteúdos programáticos, optar adequadamente no âmbito pedagógico-didáctico, dispor de recursos, materiais e destrezas pessoais bastantes para geri-los formativamente. Tudo isto concorre para a degradação da qualidade formativa da relação pedagógica e para a degenerescência da convivialidade escolar. O mais grave é que, se tal é comum a todo o País, tem uma incidência incrivelmente mais vasta na província interior. Aqui dificilmente se atingem horários completos em determinadas áreas curriculares, justamente as mais precárias atrás identificadas. Não há outra via senão este aleijão pedagógico para ultrapassar o problema. Com dimensionamento reduzido (alguns estabelecimentos andam à roda de trezentos alunos: Alandroal, Milfontes...), então isto acaba por tornar-se quase a norma, poucos logram turmas bastantes para um horário completo dentro da mesma área, acabam por ter de repartir-se pelo menos entre duas. Mais um factor grave, conseguintemente, a desqualificar e empobrecer um meio já de si postergado.


Aqui, porém, outro problema concorre para soluções deste tipo e agora não tem paralelo em mais região alguma do litoral, urbana ou de província. É que no Alentejo, como em Trás-os-Montes e nas Beiras interiores, não há professores para uma vasta gama de disciplinas cronicamente (nos anos 80). Os concursos ficam vagos. O antigo liceu de Beja, durante anos seguidos, não conseguiu preencher o quadro de efectivos de Filosofia, chegando mesmo a não ter um único professor profissionalizado no grupo; a escola secundária de Moura, na mesma disciplina, há muito vem tendo como docente de recurso um jurista da terra; o grupo de agricultura não abriu anos e anos, em Castelo de Vide, na ex-técnica de Beja e em Milfontes porque se não encontrava professor para responder pela área... Então urge colmatar o buraco como puder ser, com soluções de recurso. Para isto serve quem esteja disposto a responder pelo trabalho, desde que minimamente habilitado, mesmo em áreas nada afins à de leccionação. Ora, se acolá as escolas das regiões isoladas e rurais comungavam do problema com todo o País, aqui sofrem sós este que é dos maiores factores de desqualificação do trabalho educativo que deveriam implementar. Com efeito, este problema tende a ser resolvido a título de favor e de pequeno entretenimento de horas livres de quem tem outra profissão e interesses. Casos constatei em que apenas se logrou o acatamento dum docente após múltiplos pedidos e insistências (por exemplo, um engenheiro para leccionar economia, em Portalegre...). Obviamente que tais colegas não revelam qualquer empenhamento na docência como nenhum brio profissional. O resultado é o desinteresse por quanto praticam e a consequenta falta de qualidade pedagógica, ignorância científica, alheamento institucional. Com a agravante de ainda lhes terem de agradecer por isto, sob pena de nem tal se poder garantir no futuro...



QUADRO IV


Categoria profissional

Professores

%




Efectivos

25

40,9

Profissionalizados

1

1,6

Com habilitação própria

12

19,6

Com habilitação suficiente

8

13,1

Em profissionalização

15

24,5




Total

61

99,7



Quadro IV – Distribuição dos inquiridos por categorias profissionais



Onde mais se reflectiu a relação de trabalho do inquiridor com as escolas foi no âmbito da situação profissional dos abordados. A distorção maior ocorreu com o grupo dos profissionalizandos, 15 ao todo, manifestamente exagerado relativamente à proporção dos demais na totalidade dos dois corpos docentes. Para além destes, responderam 25 efectivos, 1 profissionalizado, 12 colegas com habilitação própria para o ensino e mais 8 que a não tinham. Para além de o maior lote ser ilusoriamente de docentes fixos no quadro (já vimos que grande parte deles vai ali efectivar-se para ter mais probabilidades de conquistar um lugar na escola que pretende, na área urbana litoral vulgarmente), o restante demonstra e reforça quanto vimos anotando. A escassez de profissionalizados (na situação legal de agregados), aqui representados apenas por um colega é significativa da deserção da região em troca de lugares mais a contento: inseguro por inseguro do local de trabalho, quem não logra efectivar-se por ali, na lógica atrás descrita, então agrega-se o mais próximo possível de onde pretende fixar-se definitivamente. Apenas aqueles para quem nem estas vagas chegam e um ou outro da zona que fica aguardando lugar aí é que se mantêm como profissionalizados em escolas do interior.

Isto contrasta fortemente com a situação do outro extremo, por exemplo em Lisboa, onde os agregados são sempre uma constante praticamente em todos os grupos, somando várias dezenas por estabelecimento. Nalguns casos, aliás, preferem esternizar esta situação, prescindindo da carreira profissional desde que antevejam a garantia da permanência indefinida na área (opção predominante hoje em dia entre as educadoras da rede pública da cidade, quase tantas como as efectivas da pré-Primária). Curiosamente, o atractivo das escolas das classes privilegiadas, das zonas cosmopolitas mais ricas e pejadas de recursos, é de tal ordem que tivemos oportunidade de encontrar colegas com esta opção em todos os níveis de ensino e que explicitamente a propugnam justamente pelos motivos aduzidos: afirmaram-no-lo educadoras de infância, professores primários, do preparatório e do secundário e o mesmo ocorreu no preenchimento dos quadros do ensino superior quando, por exemplo, se tratou de concorrer às Escolas Superiores de Educação (múltiplas áreas curriculares destas ficaram sem concorrentes nas do interior, apesar de os haver sem vaga para as do litoral, mormente das maiores urbes). Tão grande fuga à ruralidade, à província, ao isolamento, às carências de toda a ordem, das instalações ao equipamento, à convivialidade, aos recursos, para além de nos revelar, como atrás referimos, quanto estas regiões acabam, como caixote do lixo, com os concorrentes da cauda de todos os grupos e ainda com os mais novos, inseguros, ansiosos e inexpertos, também nos indicia como poderá ser o estado emocional e o grau de empenhamento de quantos (e são quase todos) acabam ali caindo por não disporem de alternativa, contra vontade, desgostosos e até muitas vezes revoltados (deparámos com inúmeros em tal atitude). Evidentemente que tudo isto converge para agravar a má qualidade do ensino e da educação que em todo o interior ocorrem e, em grau menor, na província litoral, somando-se à grande miséria das demais componentes da vida escolar que já as oneram (aqui como em todo o mundo).



Desta situação partilham igualmente, em geral, os colegas com habilitação própria, 12 entre os inquiridos. Também estes habitualmente não pretendem radicar-se na região, ou então, quando o intentam, não é na escola onde em cada ano vão ficando. Este estrato defronta-se com obstáculos particulares, por vezes difíceis de compreender e até de acreditar. Um destes professores participou em vários cursos de formação permanente que monitorámos, mas sempre em escolas diferentes. Quando estranhámos isto, ele confessou-nos que já andava desesperado: há onze anos que leccionava, era alentejano e ali pretendia fixar-se, mas nunca lograra permanecer no mesmo estabelecimento e também não conseguia profissionalizar-se porque no grupo dele nunca abriam vagas na zona. Consequência: vegetava indefinidamente em interminável nomadismo para não se afastar da família e terra de origem, só porque lhe era inviável sair por dois anos para se profissionalizar numa região onde porventura arranjaria vaga para tal no respectivo grupo.


Por outro lado, a generalidade desta franja vem ali parar das terras mais díspares: encontrámos colegas do Minho, do Porto, de Trás-os-Montes, da Beira Alta, de Lisboa, Setúbal e assim por diante. Os provisórios (que eles constituem) são neste meio ambiente um mapa do País. Se à partida tal permite um vasto intercâmbio, alargamento de laços e conhecimentos, descoberta de que há outros mundos e outras gentes, o que eles até aproveitam constituindo pequenos falanstérios, com grande espírito de aventura e camaradagem, com solidariedades ricas e compensadoras, por outro lado, mormente para os que têm família constituída ou outros projectos de vida, isto devém rapidamente numa tortura, numa fonte de tensão, de traumas, de desagregação pessoal e de famílias e assim por diante. O preço é depois pago pelos alunos e pela comunidade escolar, com membros quezilentos, mal-humorados e desmotivados a corroer quanto de agradável e rendível poderia levar-se a cabo.


Quanto aos oito que não têm habilitação própria para o ensino, integram tanto os que têm apenas graduação académica tida por suficiente (11.º, 12.º anos ou então frequência universitária sem diploma), como os que dispõem de curso tido por não vocacionado para a docência. Ambos os vectores encontrámos, como já referimos, em todas as escolas da região. O que de mais notório o número deste estrato sugere é que estamos perante estabelecimentos apesar de tudo privilegiados no contexto do interior, uma vez que, nalguns casos que conferimos, esta franja constituía a maioria do corpo docente ( Mértola, Almodôvar...). E é isto mesmo, com efeito, o que ocorre. Nas terras mais pequenas e isoladas este sector é muito vasto, diminui nas cidades, em particular nas capitais de distrito, e já o não encontramos no litoral, mormente nas áreas mais cosmopolitas. É este facto, obviamente, que mais negativamente condiciona a qualidade docente dominante dos estabelecimentos das regiões isoladas, geralmente muito pobre tanto científica como pedagogicamente. O facto de não ser verificável nas zonas privilegiadas agrava os efeitos deletérios do fenómeno. É que não é possívvel dar-se ali conta dele nem fazer chegar aos ouvidos do poder quanto isto pesa e destrói, uma vez que a cúpula apenas escuta e é sensível à pressão dos ramos urbanos privilegiados que a rodeiam e se tornam assim determinantes da opinião e decisão soberanas, em regra.


Finalmente, os 15 profissionalizandos inquiridos confirmam-nos quanto referimos da excepcionalidade destas escolas no respeitante à oferta de lugares para a formação pedagógico-didáctica, imprescindível à carreira profissional. Com efeito, em grande parte dos estabelecimentos mais pequenos e isolados não há nunca vaga nenhuma ou então são em número tão reduzido que os formandos preferem fugir-lhes para evitar a solidão e o abandono a que acabam por sentir-se condenados. Esta situação igualmente se encontra apenas no interior. Mesmo quando, na região lisboeta, deparamos com escolas sem este estrato, tal ocorre por rejeição delas próprias ou então por dificuldade de reservarem horários para profissionalizandos, em virtude da pressão incomportável da busca destes lugares por parte das outras franjas docentes que, já vimos, tendem universalmente a fixar-se em zonas de tais características. Um pormenor, entretanto, convém anotar. A existência de formandos nas escolas é um factor permanente de animação comunitária (promovem-se debates, projeccões de cinema ou de vídeo/DVD, organizam-se exposições, concursos, jornadas culturais...), como de actualização pedagógica (há seminários, cursos, programas de educação permanente...), como de eficiência didáctica (aulas assistidas e analisadas, experiências de novos modelos e técnicas, equacionamento de casos-problema...), bem como ainda de recursos inéditos (iniciativas de formação, reciclagens, documentação e bibliografia actualizadas constantemente...). Perante isto, podemos imaginar, também por esta via, quanto ficam marginalizadas as escolas já de si mais destituídas; ao invés, quanto já no meio rural e serrano surgem como vantajosas as das maiores urbes, bem como quanto estas, afinal, ainda acabam longe dos privilégios da região litoral e dos grandes centros. O efeito em cadeia que tende a somar vantagens às vantagens e prejuízos a prejuízos é perfeitamente notório neste encadeado de pendores, todos encaminhando em idênticos sentidos, aprofundando os abismos que por tais vias acabam por tender a cavar-se entre a província e as metrópoles, entre o campo e a cidade, entre o interior e o litoral, entre a serra e a campina. O fosso cavado é tanto na qualidade educativa dos serviços prestados pelos respectivos estabelecimentos como no tónus emocional com que a convivialidade comunitária escolar é vivida por cada docente que a integra. Os professores, num caso, tendencialmente andam satisfeitos, empenhados e descontraídos e, no outro, ansiosos, revoltados ou descrentes.




QUADRO V


Outro Trabalho

Professores

%




Mantém-se

48

78,6

Muda

1

1,6

Muda sob Condições

12

19,6




Total

61

99,8



Quadro V – Distribuição dos inquiridos nas escolas de Évora e Beja segundo as respostas à questão: “se lhe aparecesse um outro trabalho em que lhe fosse garantida a mesma remuneração, que faria?”




Relativamente a este aspecto da maior ou menor ligação dos inquiridos ao labor educativo, a cada um foi perguntado o que faria se lhe aparecesse um outro trabalho em que lhe fosse garantida a mesma remuneração. A isto, 48 responderam que continuariam professores, 12 mudariam mediante certas vantagens e, finalmente, 1 não hesitaria em acolher outra alternativa incondicionalmente.


Antes de mais, o que predomina é a ligação afectiva do educador à profissão, dado universal confirmado pelo mundo fora e decerto comum igualmente entre nós, uma vez que é dominante até na região mais carenciada. Este aspecto, aqui como em toda a parte, revela a que ponto, afinal, os professores vivem como gratificante a actividade formativa dos educandos, apesar de quantos sacrifícios os oneram, desde a pobreza dos ordenados (motivo mundial de queixa tão gritante que acabou por cristalizar-se em recomendações de melhoria da UNESCO para todos os países da ONU), até às condições de trabalho (falta de instalações, equipamentos e recursos, anos e anos fora do meio ambiente familiar) e à alienação institucional (modelo centralizado, imposição programática, rigidez legal de estruturas e funcionamento, massificação e anonimato impostos à relação pedagógica). Quer dizer, os docentes, em geral, não estão neste campo como mercenários mas por gosto, não é uma solução de recurso para a maioria, antes uma vocação. Apenas acabam por sentir-se mal com uma infindável lista de aspectos constringentes de que a tarefa educativa acaba inçada no âmbito do sistema escolar, aqui ou em qualquer outro país onde este vector tenha sido estudado. Isto explica que os professores não pretendam, em lado algum, maioritariamente, trocar de profissão, mas antes que nela se curem quantas mazelas a molestam e a acabam por tornar um fracasso (é ver os níveis do insucesso escolar em todo o mundo), levando muitos a abandoná-la, desiludidos e falhados.


Por trás desta linha de fundo, porém, perfilam-se outros vectores. Em primeiro lugar, os doze que estariam dispostos a trocar de trabalho desde que, para além de igual vencimento, deparassem com certas vantagens. Estamos perante uma franja que não tem paralelo nos grandes centros e que proporcionalmente cresce nas escolas rurais mais isoladas. Encontrámos nas escolas lisboetas um pequeno resto idêntico a este, mas constituído por dois ramos numericamente irrelevantes, o de alguns provisórios em princípio de carreira, normalmente com intransponíveis dificuldades para disciplinar a aula, o que largamente leva, entre nós como pelo mundo fora, ao abandono precoce da carreira educativa mesmo por quem para ela se encontra vocacionado, e um segundo vector de colegas em tempo parcial, cuja actividade principal é outra (engenharia, arquitectura, medicina, advocacia...), e que aqui vêm dar uma ocasional achega e colher um suplemento monetário, abandonando quando fora disto auferem mais no mesmo período de tempo que aqui dispendiam. Estes são habitualmente profissionais em fase de criar um lugar ao sol na área do labor liberal e a docência apenas lhes empresta a muleta de segurança enquanto se não firmam no respectivo terreno. Depois abandonam este barco, então imprestável e pernicioso para eles, pois lhes tolheria os passos e ocasionaria perdas sem contrapartida a que sejam sensíveis. Com efeito, neste sector, a relação pedagógica não é sentida como gratificante, ao contrário dos demais.


O que, porém, no grupo em análise dos inquiridos encontramos não tem nada a ver com isto, a similitude é meramente aparente. Aqui a disponibilidade para mudar mediante contrapartidas vantajosas tem habitualmente outras origens. Desde logo, todos os médicos, juristas, engenheiros e quejandos que pelo Alentejo encontrámos a colaborar connosco eram indivíduos estabilizados na profissão, nalguns casos de elevada idade, e jamais um sequer nos revelou qualquer interesse eventual em abandonar a escola, por muito que o trabalho ali prestado fosse diminuto. Pelo contrário. Este estrato busca já não a segurança nem um suplemento pecuniário, mas a convivialidade do único sector do meio que é culto, tem gostos e interesses minimamente depurados e, concomitantemente, detém um prestígio irradiante que devém poder social e é gratificante e às vezes compensador para quem vive em grande parte da fama e acatamento que logra em volta, como ocorre particularmente com as profissões liberais. Aqui, portanto, não encontramos facilmente quem alimente a franja dos dispostos a mudar de trabalho, por muito que as respectivas motivações não decorram do âmbito pedagógico-didáctico e docente em geral (falta de profissionalismo), como atrás já vimos. Igualmente é fortuita a segunda fonte na província e particularmente no âmbito rural. Com efeito, a carência de quadros e especialistas em todos os domínios é uma constante nestes meios, pelo que não se lhes impõe uma luta tão feroz com a concorrência como nas grandes urbes, às vezes são mesmo solicitados empenhadamente, já têm o lugar e as condições criadas e oferecidas à partida.


O estrato que aqui enfrentamos tem outra origem e componentes. São quantos se arrastam anos e anos aguardando o ingresso e progressão na carreira porque não conseguem forma de obterem habilitação pedagógica compatível reconhecida e ainda os que avançam de terra em terra, na morosa conquista da proximidade do lar ou do local de fixação definitiva. A estas duas matrizes alimentadoras aflui uma terceira, a dos que não encontram trabalho nem têm habilitação bastante para encetarem carreira como professores e, por conseguinte, apenas podem usar a escola para uma outra saída laboral com futuro e a contento. As vantagens que cada um destes grupos aguarda para trocar de profissão são diferentes, por consequência. Os que se mantêm instáveis, mudando de escola em cada ano, desejam parar este nomadismo e trocariam por uma função que lho garantisse. Os que aguardam interminavelmente adquirir as condições para progredir na carreira, esperam apenas que a alternativa corresponda ao que eles lhe podem ofertar à partida, sem exigências complementares de maiores habilitações académicas para contarem com um itinerário laboral à frente. Quem não poderá na prática arrumar vida aqui, então aguarda apenas emprego estável à sua altura, com as expectativas normais de promoção que lhe forem inerentes. Os que sofrem o desterro da distância, a saudade do afastamento, requererão o termo disto, um lugar próximo daquele onde pretendem radicar-se, com perspectivas de futuro paralelas ao menos às do professorado. Finalmente, urge anotar que em geral múltiplas destas carências se conjugam no mesmo indivíduo, somando-se-lhe as condições para satisfatoriamente poder abandonar a via educacional. Não ignorar, entretanto, que tudo isto confirma, afinal, que genericamente tal franja não larga de boa mente esta opção laboral, apenas para eles o peso das circunstâncias limitadoras é já de tal ordem que acabaram dispostos ao abandono, uma vez garantidos de que as deficiências crónicas que os ferem e andam destruindo ficariam de vez extirpadas.


Nalguns casos o estado de espírito agudiza-se a ponto de se tornar definitivamente intolerável continuar e então o professor tenta a fuga a qualquer preço, a escola devém-lhe num pesadelo quotidiano. Nestas circunstâncias, sem condições, o que quer que seja que apareça é melhor que continuar leccionando e o colega em tal conjuntura agarra-se à primeira tábua de salvação que descubra. Nos inquiridos encontrámos apenas um. Confirma que não são regra mas, por outro lado, demonstra quanto, apesar de tudo, no contexto transtagano as escolas abordadas são privilegiadas. É que nos múltiplos contactos e cursos que monitorámos pela região inteira, a quantidade de quantos nos confessaram o desespero e a urgência de fugirem da docência nos estabelecimentos pequenos e isolados foi de molde a podermos aguardar maior representatividade entre os inquiridos, não fora o facto de os termos abordado em duaas capitais de distrito, encaradas como áreas de privilégio por toda a região rural circundante. Só isto explicará que apenas um, afinal, em tal contexto, ainda se encontrasse em atitude de ruptura com o emprego. Caso a colheita fora operada nas demais, a probabilidade maior era de que este pequeno resto se não revelasse tão restrito assim. De qualquer modo é muito mais previsível encontrar neste meio franjas mais ou menos vastas com esta opção do que num ambiente cosmopolita. Este oferece muitas alternativas de defesa, escolhas profissionais alargadas e em permanente mudança, o que não encontra paralelo na província, mormente na rural interior.


Em Lisboa ou no Porto, quando um colega se incompatibiliza com a docência (o que desde logo é mais improvável, dadas as melhores condições do meio), mais não precisa em regra que buscar outra ocupação, uma vez que, com todas as crises de desemprego que nos atingem, neste nível não é jamais (em 1985) complicado encontrar alternativa. Ora, tal possibilidade está vedada à partida no ambiente rural em que a mudança é lenta e a plasticidade do mercado de trabalho, diminuta e morosa. Tudo isto também não joga a favor dos meios pobres, uma vez que é neles que proliferarão os desesperados, ovelhas negras a desgarrar o rebanho, destruir os laços interpessoais, a agredir colegas, educandos e até as comunidades locais. Fautores de vítimas vitimados em revindicta, num círculo infernal de que não há saída senão a irradiação problemática e adiada por não encontrarem alternativas, constituem um pesadelo vivo cancerando o tecido ambiental sem proveito de ninguém.


Revelador do que os inquiridos são, para além do que pensam da génese dos maus alunos, serão as respostas que inculpam os próprios professores. Como razão prioritária, apenas 4 referem que os professores não sabem ensinar e 3, que não têm boa relação com os alunos. Como causas de segunda ordem, apenas dois apontam aquela e 1 deles, esta. Como factores terceiros é que nos aparecem referidas as três alternativas que apontamos no inquérito: 2 inquiridos referem que os professores não dominam bem a matéria, 1 e 3, respectivamente, aqueloutros dois motivos.




GRÁFICO 1







GRÁFICO 1 – Respostas dos inquiridos aos três itens que põem em causa os professores, conforme foram referidos como razões de 1.ª, 2.ª ou 3.ª prioridade para o fraco rendimento escolar dos maus alunos



A primeira evidência que salta de tais números é que em geral os professores não se crêem na origem dos maus alunos. Com efeito, dado que cada inquirido apontou três causas hierarquizadas para tal, é insignificante a incidência de respostas nos docentes, ainda por cima com apenas sete a atribuírem a primeira prioridade aos desempenhos destes. Isto parece comprovar aqui a tendência de não assumir as próprias responsabilidades e sacudi-las para outrem, cultivando de si mesmo, do respectivo grupo e tarefas uma imagem imaculada, indefectível. Este falso retrato diz muito mal da classe e justifica os que lhe assacam culpas de quanto de negativo no sistema escolar ocorre, bem como eterniza a boa consciência daqueles que a marginalizam em direitos, regalias, vencimento e consideração. Agravando tudo, esta inconsciência aparente dos inquiridos surge num contexto regional em que, como anotámos, há largas franjas de colegas sem habilitação própria para o ensino, em grau elevado com preparação tida apenas por suficiente, em que a maioria dos corpos docentes é constituída por provisórios ou então por efectivos de passagem que não têm condições nem interesse em se dedicarem a fundo à actividade educativa.


Poderíamos acatar pacificamente a conclusão de os professores serem efectivamente sectários e alimentarem o ludíbrio de permanentemente baterem a culpa no peito dos outros, à excepção duma franja minoritária insignificante, não fora o facto de a pesquisa ter comprovado exactamente o contrário noutras paragens e meios. Que se perfilará por detrás disto? Uma excepção? A insensatez generalizada num estrato social por dever de ofício inteligente e assim desmascarado como tão estúpido como qualquer outro sem obrigação particular?


Cremos que há outros elementos que permitirão fazer luz através da incongruência. Antes de mais urge reparar que não seria decerto esta a resposta se os inquiridos foram de regiões privilegiadas escolarmente. Aliás, o que os investigadores anotam em contradita é colhido em áreas cosmopolitas ou respectivas periferias. É provável que entre nós uma busca em tais coordenadas não divergisse do pendor geral além-fronteiras. O que ocorre é o seguinte: há aqui, de alguma maneira, um ajuste de contas. Os colegas das escolas transtaganas, do interior e província em geral sentem-se espezinhados, contrariamente aos dos grandes centros, sofrem frustrações e violências demasiadas para ainda por cima reconhecerem a eles próprios ou a outrem qualquer direito a exigirem-lhes mais. Ora, era o que redundaria das respostas normais ao questionário em análise: se criam maus alunos, então terão de mudar, não estão cumprindo com o primeiro dever laboral, o de educarem, mas antes operam em termos que deseducam, traindo a função institucional e pessoal. Se é viável acatar isto onde as condições de trabalho correspondem no geral às expectativas docentes, como entendê-lo num meio e em estabelecimentos onde tudo são carências, desde as instalações ao equipamento, à composição do corpo docente, à traição das expectativas profissionais e individuais? Como ali a dominante está deste lado, nas escolas inquiridas (apesar de tudo em vantagem relativamente à generalidade da zona) a tendência das respostas é outra. O grupo acusado defende-se aumentando a coesão. Jogando à defesa, violentamente marcados, estes colegas evitam o mais possível atirar pedras uns aos outros. Com efeito, é pouco crível que se não dêem conta da degradação da qualidade do trabalho nas respectivas escolas. Ao contrário, permanentemente, pelos cursos e reuniões além em que os contactámos aos milhares, muito lucidamente escalpelizaram as dificuldades, os recursos, os meios de reconverter tudo aquilo, sem mascararem a própria ignorância, inexperiência e fracassos (por isto mesmo é que compareciam em massa, de dezenas de quilómetros, quantas vezes escolas inteiras, às sessões).


O que por trás dos números se esconde não é a irresponsabilidade nem a inconsciência que por toda a parte maciçamente nos foram sempre, ano após ano, desmentidas, mas antes a intolerabilidade da conjuntura profissional vivida que não lhes permite que batam mais em quem já é um farrapo, um estropiado de sonhos e de esperança. Feridos num combate à partida em grande parte perdido, não lhes resta já coragem senão de denunciar o que alimenta esta estrutura prévia de derrota, muito embora não ignorem quanto afinal, nas condições degradadas em que os enredaram, depende ainda deles para ir sendo salvo dos destroços. O que no fundo não acatam é que se não denuncie antes de mais que eles não são colocados para navegar pela escolaridade além mas antes no meio dum permanente naufrágio em que tudo persistentemente se afunda e, conseguintemente, a tarefa deles é de tentar ir aguentando sobreviventes possíveis, com a agravante de saberem bem que são os menos aptos e adestrados para mesmo nisto lograrem obra de jeito. A revolta é de tal ordem que seria iníquo, aos olhos de tais colegas, não fazer ressentir esta prioridade antes de tudo.


Não se trata, pois, de farisaísmo, maniqueísmo, pretensiosismo ou tentativa de criar uma cortina de fumo. Em trabalho no terreno, bem pelo contrário, sempre foram muito frontais a exporem-se, problematizarem-se, dissecarem casos, situações, problemas em que na mesa de observações estava o próprio e quantos com ele se identificavam (e muitas vezes o fizeram expressamente). Naquele meio ambiente e mais ainda nas escolas isoladas há uma consciência muito lúcida e sofrida da postergação, do desprezo a que são votados, o que lhes torna inaceitável uma abordagem em pé de igualdade ante os ramos das grandes metrópoles. Para eles, trata-se de situações essencialmente distintas, de duas realidades sem paralelo: umas escolas são de promoção, outras de desterro; umas são para educar um escol, outras para impedir que ele seja poluído por estranhos da ralé; num caso labora-se para preparar os dirigentes de amanhã, no outro simula-se isto para que os excluídos não logrem dar-se conta de que é a marginalização o que lhes ocorre. Colocar no mesmo saco duas realidades tão distintas é uma ilegitimidade, uma burla, uma mistificação intolerável. Porque o repudiam é que não podem assumir a responsabilidade pelo mau aluno: com efeito, numa instituição a operar em tais coordenadas, este é o que ela deseja, promove e impõe que o professor estigmatize, rotule e elimine do sistema. Como considerar que o docente é que é o responsável por tal efeito? Se o poder o pretende e implementa camufladamente e escolhe os melhores agentes para garantir que tal não possa jamais inverter-se, sequer minorar-se, como fazer de conta que isto não existe e apenas atender ao momento seguinte, o da execução, quando o fundamental já ficou antes consumado e agora apenas deparamos com os carrascos cumprindo, obrigatoriamente e contra vontade, a sentença condenatória em massa, em que ninguém pode ser tido nem achado, com os dados todos viciados à partida?


Aqui chegados, teremos de concluir que, ao invés de os acoimarmos de inconscientes ou irresponsáveis, estes colegas deveremos encará-los como extremamente lúcidos. Com efeito, revelam-nos a vários níveis o peso relativo e equilibrado dos condicionalismos do mau educando na região e no País. Antes de mais, obrigam a pressentir quanto o alheamento perante as carências próprias do isolamento, ruralidade, provincianismo e interioridade é o factor primário das dificuldades que a escolarização ali enfrenta. Apenas depois aceitam que se repartam responsabilidades quanto à gestão dos destroços que tal situação permanentemente amontoa. Estes advêm da estrutura regional e nacional, não podem atribuir-se a qualquer dos agentes no terreno; os ganhos ou perdas de conjuntura, depois, é que virão de factores locais ou da respectiva qualidade. À partida, porém, o poder de eventualmente obterem efeitos comparáveis aos de escolas lisboetas, portuenses ou coimbrãs está prejudicado, uma vez que o campo de intervenção e o leque de possibilidades disponíveis com que contam são totalmente outros, foram já drasticamente reduzidos e são em grande parte de sinal contrário: a escola opera para desempatar numa competição em que uma das partes entra na corrida com as pernas partidas. Nestes termos, aguardar que tal franja docente responda ao inquérito como se estivessem no outro campo é pedir-lhes que consumam a trafulhice fazendo de conta que nada disto existe, como se eles não se sentissem radicalmente burlados, jogados como marionetas, sem consciência nem vontade. O que os números gritam é que, no meio da desgraça, eles não perdem a dignidade e não se demitem de sublinhar de dedo bem estendido que o rei vai nu, como efectivamente as realidades largamente confirmam.


Nestes termos, e dada a lucidez que afinal subjaz às respostas em análise, não custa antever que os mesmos docentes, uma vez colocados e laborando na outra vertente do sistema, a que efectivamente reproduz e promove o escol social, a partir dos grandes centros, não havendo aqui aquele sofisma estrutural dominante a desmascarar, então responderiam ao inquérito nos termos comuns à classe que a pesquisa do problema em causa pelo mundo tem confirmado e que consiste em que os professores tendem a assumir uma quota-parte equilibrada de responsabilidades pelo fracasso dos alunos, ponderando-a com as da instituição, do meio ambiente, do educando e respectiva família. Já vai longe o tempo em que apenas a um dos vectores se atribuía a culpa de tudo, jogando as teorias de interpretação como modas. Hoje é comum reportar o insucesso escolar à conjunção de toda a pluralidade dos factores referidos, assumindo perfis preponderantes e secundários variáveis de região para região, de época para época, de educando para educando, de professor para professor e até de escola para escola. É indesmentível, perante os dados recolhidos e tratados neste domínio, a extrema plasticidade dos factores em causa, a enorme variabilidade de caso para caso e até relativamente ao mesmo em momentos diferentes. Ora, os docentes dão-se conta desta mudança de atitudes quanto ao problema (em grande parte obra deles próprios enquanto investigadores que muitos são) e tal reflecte-se nas pesquisas que visam traçar o perfil do que a classe vai pensando em tal matéria.


Não é facilmente crível que entre nós seja diferente, até porque nas escolas privilegiadas assentam os colegas de maior traquejo e formação, num meio ambiente por outro lado mais actualizado e com permanente circulação de informação, de iniciativa cultural na criação, divulgação e crítica de quaisquer modelos de interpretação e intervenção, incluindo os que se reportam ao fracasso escolar. Tudo isto ajuda a criar uma consciência e um clima que são comuns em comuns circunstancialismos. Daí que em Lisboa ou em Paris o professor, no problema em causa, acabe certamente optando por atitudes muito próximas.


Tudo isto nos conduz, porém, a outra perspectiva de abordagem que ultrapassa o mero falar de si, fio condutor até agora. Passemos, portanto, a um novo pendor.






b) Falar da instituição

Análise das respostas em que se atribui à escola o mau rendimento dos alunos



Os colegas inquiridos claramente privilegiam o sistema escolar como o grande responsável pela existência de maus alunos, como, aliás, decorre implicitamente de quanto acabamos de analisar.



QUADRO VI


Item

(1.ª)

%

(2.ª)

%

(3.ª)

%

Total

%

0

0

0

0

0

1

100

1

100

1

0

0

0

0

2

100

2

100

2

0

0

0

0

2

100

2

100

3

16

42,1

14

36,8

8

21

38

99,9

4

10

41,6

8

33,3

6

25

24

99,9

5

4

57,1

2

28,5

1

14,2

7

99,8

6

5

38,4

3

23

5

38,4

13

99,8

7

12

34,2

10

28,5

13

37,1

35

99,8

8

3

42,8

1

14,2

3

42,8

7

99,8

9

9

25,7

15

42,8

11

31,4

35

99,9

10

2

10,5

8

42,1

9

47,3

19

99,9



Quadro VI – Opiniões dos professores inquiridos nas escolas de Évora e Beja acerca das razões que contribuem para o rendimento escolar dos alunos considerados maus, graduadas como 1.ª (mais importante), 2.ª e 3.ª ( menos importante), dentre o leque das seguintes:

1 – Falta de capacidade intelectual dos alunos;

2 – Os professores não dominam bem a matéria;

3 – Os conteúdos e a forma como estão organizados os programas;

4 – Os alunos não têm hábitos de trabalho escolar;

5 – Os professores não sabem ensinar;

6 – Os alunos andam na escola contra vontade;

7 – Os alunos não têm interesse pelas matérias que têm de estudar;

8 – Os professores não têm boa relação com os alunos;

9 – As condições em que funciona a escola (n.º de alunos por turma, funcionamento dos directores de turma, ocupação dos tempos livres, etc.);

10 – Falta de acompanhamento e de estímulo da família.

O zero na primeira coluna corresponde a ausência de resposta.




Efectivamente, não apenas a razão isolada que mais votos colhe entre as de maior peso e a um ponto da mais citada, também relativa à escola (n.º 9), entre as de relevância intermédia é a mesma, os conteúdos e a forma como estão organizados os programas (n.º 3), totalizando, respectivamente, 16 e 14 opiniões, como ainda a segunda e terceira do leque das menos relevantes são justamente as que se reportam à instituição, as condições em que esta funciona (n.º 9) e a já referida, com 11 e 8 registos. Por outro lado, a que mais pontos soma nos três graus de relevância é a que se reporta aos programas, totalizando nas três colunas 38, logo seguida pela relativa ao funcionamento da escola, com 35, surgindo esta empatada com a razão mais anotada dentre as que se reportam aos alunos. Evidentemente que o facto de as causas relativas ao educando serem quatro (n.º 1, 4, 6 e 7) leva a dispersar mais as opiniões contrapondo-se à concentração nas única duas que relevam da instituição escolar. O peso deste contra-argumento é, entretanto, irrelevante, dado que, pela mesma ordem de razões, a solitária atribuição causal à família (n.º 10) poderia somar o máximo, o que está longe de ocorrer, bem como as proposições referentes aos discentes deveriam tender a ocupar o derradeiro lugar nos somatórios por serem então as mais dispersivas. Ora, estas vêm logo a seguir aos totais relativos à instituição (respostas aos n.º4 e 7). Há, porém, um pormenor que desautoriza por inteiro a objecção. É que a razão referente aos alunos mais vezes apontada aos três níveis de importância (n.º 7) é a que afirma que os discípulos não têm interesse pelas matérias que têm de estudar. Como é evidente, isto é o efeito directo dos conteúdos e da forma como estão organizados os programas, justamente a razão institucional mais vezes apontada. Sabemos que não depende do aluno, do professor nem do estabelecimento em que trabalham qualquer margem de opção, em princípio, neste domínio: os programas são nacionais e impostos hierarquicamente por decisão dos serviços centrais de tutela. O sistema escolar assenta neste pressuposto em todos os níveis intermédios, desde a primária (1.º Ciclo) até ao termo do complementar (Secundário), constituindo excepções à regra apenas os dois extremos da trajectória, o ensino pré-primário e o superior, que se autoprogramam. Daí que a razão mais apontada no âmbito dos alunos não seja verdadeiramente autónoma mas claramente dependente e reflexo daqueloutra. Não admira, por conseguinte, a forte incidência nela, manifestando, afinal, uma consciência lúcida da relação de causa e efeito que entre ambas medeia, a tal ponto que teremos de afirmar que não estamos falando doutra dimensão mas da mesma, a institucional, no prolongamento imediato dela. Isto evidentemente distancia de modo definitivo este factor de maus alunos relativamente a qualquer dos outros.


Um aspecto lateral convém sublinhar pelo que tem de significativo, no que se reporta a esta inter-relação. Não cremos que o resultado obtido dos inquiridos no item mais votado desse o mesmo, caso a redacção fosse a mais comum, “os conteúdos programáticos”, em vez da que escolhemos, “os conteúdos e a forma como estão organizado os programas”. Com efeito, este aparente preciosismo não é aleatório, nem redundante, nem mesmo inocente. Pelo contrário, foi perfeitamente intencional e ponderado, movido por razões que quem está fora dos níveis intermédios da escolaridade não chega sequer a suspeitar. É que, se os programas são impositivos e de decisão soberana que escapa por inteiro às instâncias de base da escola, já o mesmo não podemos afirmar quanto à execução deles, directamente dependente da relação pedagógica professor-aluno que, em larga medida, pode obstaculizar, subverter ou contrariar os intuitos do poder. Ora, aqui intervêm dois pendores de pesos diferentes que podem alterar ou não muito do que ocorre na aula e até no estabelecimento. São eles, primeiramente, a maior ou menor flexibilidade com que o programa é definido, bem como a margem mais ou menos larga de impositividade com que se lhe exige cumprimento. Nesta perspectiva, é já um espaço de manobra para o professor poder contar com programa máximo e mínimo, com alternativas temáticas de escolha livre ou, mais ainda, com áreas em branco de preenchimento optativo. No limite, um programa poderia apenas indicar conceitos-chave que seriam concretizados, interligados de modo indefinidamente variável, conforme o docente, os alunos, os locais ou as épocas; mais ainda, tais indicações de meras áreas conceptuais poderia revestir o estatuto de simples guião, um indicador para facilitar a definição das temáticas de incidência da relação pedagógica, a utilizar apenas como recurso e jamais subservientemente.


Ora, o modo como os programas entre nós são elaborados e a força legal que impreterivelmente revestem são iniludíveis. Neste aspecto não fomos jamais além de impor currículos mínimos (e sempre como solução de recurso para tapar buracos, nunca para libertar e empenhar a criatividade e autenticidade das bases) e de oferecer alternativas de escolha dentre um leque definido e fechado, sempre a título muito excepcional e de modo pouco duradoiro. A delimitação programática total é largamente a regra. No outro aspecto, nem sequer se admite que um currículo temático de definição ministerial possa não ser de cumprimento obrigatório universalmente. O efeito deste pendor, por conseguinte, é a inviabilidade de se atender às diferentes motivações regionais, locais e pessoais, o que redunda inexoravelmente na alienação dos educandos da província e do interior, particularmente das zonas mais isoladas como ocorre com o Alentejo, dado que as escolhas que mais lhes corresponderiam às expectativas, carência ou projectos jamais logram fazer-se ouvir e menos ainda acatar a nível das instâncias centrais de tutela e decisão. Estas, coerentemente, optam de modo fatal pelo coro das vozes maioritárias e bem integradas no sistema que são inexoravelmente as dos grandes centros litorais. Assim, o conteúdo programático é de ordem a interessar e promover os privilegiados à partida, onde tudo corre obviamente a contento da generalidade dos intervenientes. Ao invés, desmotiva e marginaliza quantos foram já postergados, uma vez que não conseguem, por norma, reconhecer-se nem integrar-se naquilo.


Há, porém, ainda um outro pendor relativamente ao modo como os programas se organizam. É que, depois de tudo, como nos cursos que com eles fomos animando pudemos constatar, qualquer educador experiente e criativo, que tenha perdido o medo ao soberano e coloque acima de tudo a qualidade pedagógica do trabalho que presta, consegue, apesar de todos os espartilhos, estabelecer diálogo entre a fome de vida e as coacções do sistema. Então porque não explorar o veio e por aqui levar a balança a pender para o lado dos mais inermes e carentes? Ora, sabemos que na região deparamos pela frente com os docentes mais novos, inexpertos e impreparados do País (em 1985), o que, à partida, bloqueia largamente o trilho. Há, porém, um factor subtil que mesmo aos que restarem os induz em erro e agrava os desvios e fracassos. É que os programas são elaborados (sem excepção que encontremos) de acordo com uma lógica dedutiva, muito agradável ao adulto diplomado que assim os logra visionar em panorâmica global, como um todo unificado, integrado, esteticamente belo, racionalment apreensível e familiar. Parte-se de grandes campos cognitivos, normalmente até com uma ideia-mestra prévia a totalizá-los à partida, e depois vai-se especificando de conceito em conceito até, eventualmente, atingir a factualidade individualizada ou tipificada. Ora, o que acontece é que a faculdade do pensamento formal apenas se desenvolve a partir da puberdade e se encontra estabilizada, se foi atempadamente estimulada de modo adequado, a partir da adolescência, tendencialmente, portanto, à roda dos 15 anos de idade dos educandos. Conseguintemente, um programa concebido em tais parâmetros é simplesmente incompreensível e inabordável em termos absolutos para qualquer educando não precoce, pelo menos até àquele limiar etário tendencial.


Para ultrapassar a dificuldade, urge inverter aquela lógica dedutida substituindo-a, não por uma indutiva que seria impraticável por regressiva, mas por uma genética. O programa terá de ser abordado pelo aluno nos termos exactos em que se operar o desabrochar das capacidades intelectuais, activas e relacionais. Ora, como a incidência primária do ensino é de carácter cognitivo, a lógica do desenvolvimento programático, para ser pedagogicamente adequada, mormente no nível etário com que laboram o preparatório e o secundário (2.º e 3.º Ciclos e Secundário), teria de ser esta: partir sempre da vivência do concreto, individual e factual, para o abstracto, para o conceito, princípio, definição, lei ou teoria. Mais ainda, isto deveria revestir o aspecto dum movimento pendular permaanente, avançando dum polo ao outro e regressando ao ponto de partida em ciclos curtos, de minutos, mormente durante a pré-puberdade e a puberdade inteira. Ora, se até empiricamente a generalidade dos professores mais traquejados descobre e modela isto, gerindo-o destramente, os novos, mal habilitados e inexpertos, não chegam facilmente a vislumbrá-lo. Para isto concorre em boa parte justamente aquela concepção dedutiva dos programas imposta coercivamente como sem alternativa e, não apenas inconversa, silente relativamente a uma informação-chave de tanto relevo para a integração e respeito do educando como esta.


É evidente que o correcto seria mesmo reconverter por inteiro a lógica programática, ao elaborar os currículos, pondo de lado a dedutiva que tanto nos apraz e reelaborando tudo em perspectiva genética, adequada a cada estádio etário de desenvolvimento. A não se operar isto, porém, seria imprescindível pelo menos prevenir os educadores de que o costumeiro ângulo de focagem e tramitação da informação programática tornam quaisquer conteúdos enigmáticos e inassimiláveis para a generalidade dos educandos. Ora, nem uma medida nem outra foram jamais tomadas oficialmente entre nós. O resultado, uma vez mais, é que a reconversão didáctica vai ocorrer nos meios onde proliferam os docentes experientes, preparados e seguros, que em regra não requerem nenhuma prevenção, uma vez que por eles próprios descobriram já e organizaram uma estratégia para transformar o currículo, tornando-o acessível aos educandos. Os que não contam com tais condições ou continuam muito desarmados não poderão protagonizar, por norma, tal viragem e o efeito é a estranheza e incompatibilidade generalizada dos alunos quando confrontados com os conteúdos curriculares. Uma vez mais, tudo joga a favor de quem melhor anda à partida.


Por estas razões, vezes sem conta analisadas e confirmadas por milhares de colegas com que vimos trabalhando, não é de crer que as respostas dos inquiridos fossem rigorosamente as mesmas se o texto não permitisse integrar conotações com o relevo que estas em tal ambiente revestem. Isto, aliás, reforça e confirma a ligação estreita entre esta razão para proliferarem maus alunos e a que aponta a desmotivação deles para as matérias leccionadas. Compreendemos agora melhor o porquê desta ligação e de os números dos dois itens se aparentarem tão estreitamente.




GRÁFICO II








Gráfico II – Respostas dos inquiridos aos dois itens que põem em causa a instituição, conforme foram referidos como razões de 1.ª, 2.ª ou 3.ª prioridade para o fraco rendimento escolar dos maus alunos




Atendendo agora aos dados apenas no âmbito dos dois quesitos relativos à instituição escolar, reparamos primeiro que, sendo os totais praticamente iguais para ambos, como vimos (38 e 35 respostas, respectivamente para os programas e para as condições da escola), ainda assim resta aquela pequena diferença, reforçada por um outro pormenos (gráfico II). É que a distribuição pelas prioridades é claramente distinta nos dois casos. Enquanto relativamente à razão curricular de haver maus alunos, descer na prioridade coincide com diminuir o número de vezes que tal motivo foi apontado (16, 14 e 8, respectivamente para os que a consideram a mais importante, a intermédia ou a terceira em peso), já tal não é a tendência no que releva das condicionantes escolares, manifestando-se aqui a propensão para sobrepujarem justamente as escolhas de relevância média ou menor, concentrando-se mais naquela (9, 15 e 11, respectivamente, para cada uma das importâncias). Que significará tal distribuição?


Se, antes de mais, estes aspectos confirmam uma distinção suficientemente nítida entre ambas as causas, não revelam claramente à partida o porquê de tal perfil, nem mesmo dos totais, por irrelevante que neles seja a diferença numérica, demasiado reduzida. Ora, a primeira razão de estranheza deriva do facto de sempre aparecer a classe docente, nos meios de comunicação social, nos cadernos reivindicativos sindicais e até nas conversas nas salas de professores e nas sessões de trabalho que desenvolvemos com colegas em múltiplas escolas, como privilegiando as queixas relativas à falta de condições para o trabalho pedagógico: superlotação dos estabelecimentos e das turmas, ausência de instalações, equipamento e recursos, limite intolerável das verbas orçamentais, carência de pessoal administrativo e auxiliar, sobrecarga de exigências burocráticas, instabilidade regulamentar e legal em geral, com a consequente insegurança laboral generalizada e quebra de continuidade dos processos educativos, e assim por diante, indefinidamente. Queixas mais vultosas que as deste campo, apenas encontramos as respeitantes ao vencimento e subsídios, eco, aliás, do mundo inteiro. Por outro lado, ao invés, quase nunca espontaneamente recolhemos em lugar algum razões de queixa alusivas aos programas curriculares e ao que com eles se prenda. Efectivamente, nem na comunicação de massas nem nos cadernos reivindicativos é fácil encontrar vestígios deste domínio. Quanto ao nosso trabalho de campo, apenas ao monitorarmos cursos relativos à análise ou gestão de programas é que tais aspectos foram aflorando. Em regime de espontaneidadde, mesmo em actividades que ali se repercutiam (psicologia genética, metodologia e didáctica ou psicolinguística) contamos pelos dedos as vezes em que aquele tipo de críticas ocorreu, apesar das iniciativas terem envolvido milhares de colegas. Tanto mais bizarro é isto quanto os inquiridos o foram na região onde tivemos a maior parte destas relações de trabalho. Seria de esperar, portanto, que o inquérito desse o máximo relevo à componente condições da escola e não à dos programas. É esta expectativa que justamente se não confirma. E se, pelos números totais, poderíamos, dada a proximidade de ambos, considerar o resultado aleatório e provavelmente irrepetível noutro grupo qualquer, já não é fácil defender o mesmo quando tomemos em conta conjuntamente a diferença dos perfis da distribuição pelos três graus de pertinência das razóes invocadas.


O que, em primeiro lugar, os números confirmam é o que atrás já analisámos: o sistema escolar, no interior do País e no Alentejo em particular, é o responsável primário dos maus alunos, uma vez que opera clara e coerentemente para proliferá-los em massa. Ora, se os motivos relativos às condições de funcionamento da escola reforçam e aumentam interminavelmente o efeito, a verdade é que, na perspectiva já delineada, assentir nisto apenas é escamotear ainda o fundamental, justamente os mecanismos infinitamente mais subtis e inultrapassáveis que se prendem à estranheza cultural, tanto derivada do divórcio entre a mentalidade, conceptualização e linguagem escolar-curricular, por um lado, e, por outro, a idiossincrasia geral do meio ambiente de inserção, como oriunda do abismo cavado e cegamente mantido entre o grau das capacidades do educando e o que lhe é requerido metodológica e programaticamente. Ora, este domínio é unicamente identificável pela razão relativa aos programas. Isto permite compreender porque há uma tendência para acentuar este último factor, tanto pelo maior número de vezes que é referido, como pela incidência predominante em que o é nos escalões prioritários, contrariamente ao que ocorre com o outro.


Há, porém, mais motivos para tal. Os colegas inquiridos, na esteira de inúmeros com que anos seguidos tivemos o gosto de laborar em tais paragens, bem como na região lisboeta, sadina e algarvia, convergem todos numa preocupação: a da qualidade pedagógica do trabalho que prestam, em termos de garantirem o máximo de eficácia formativa ao respectivo envolvimento profissional. Isto é de tal modo vincado na classe que os mercenários, preguiçosos ou oportunistas ressaltam de imediato à vista em toda a parte e ficam expostos ao pelourinho da opinião e vilipêndio dos demais. Ora, por trás da diferenciação dos números escondem-se constatações graves, impossíveis de obliterar ou de encobrir na região dos inquiridos (outra seria, ainda aqui, cremos, a atitude dos das zonas privilegiadas, dado que o problema lhes aparece com outros contornos). O que se passa é que, em virtude do programa, a qualidade pedagógica do serviço prestado na escola aos educandos e comunidades é vivida por estes professores como pouco menos que uma traição. Efectivamente, em primeiro lugar, não podem tomar em conta as carências, motivações e expectativas dos alunos, inelutavelmente outras e doutros domínios e tipos que as atendidas pelos currículos. Recordamos um colega de Serpa que num seminário nos perguntava que ideia fariam no Ministério dum estudante camponês duma aldeia arrabaldina para lhe exigirem que compreendesse Camões, a literatura e altissonantes noções de estilo, quando, no complementar (secundário), ele escrevia ainda, numa redacção, por exemplo, a palavra “hxce”. Havia-lhe acontecido e, perante e perplexidade dele ante o enigma ilegível, o rapaz retorquira-lhe, cheio de razão:


- Então, professor, está-se mesmo a ver! Isto é “agache-se”...

Como conciliar a imposição programática com o que este educando requer de facto do professor? Eis o dilema que nos colocou e para o qual, efectivamente, o modelo escolar vigente não permite resposta. Isto não é tão incomum como poderíamos crer, é mesmo a regra, embora não atinja o extremo senão excepcionalmente. A confirmá-lo, aqueloutro caso em que o discípulo escrevera (continuamos no português), a meio da frase, esta palavra: “u~”. Claro que todos conhecemos tal grafia de antanho para o artigo indefinido masculino do singular ou para o primeiro número cardinal. Já seria bizarro este anacronismo, mas, enfim, poderia compreender-se em virtude do eventual contacto com um qualquer texto arcaico, perdido nas berças. A perplexidade do professor , porém, adveio do facto de tal palavra não fazer qualquer sentido na frase se lida como “um”. Não tendo logrado descortinar que é que o aluno lá pretendera escrever, este elucidou-o com a maior ingenuidade e segurança:


- É mesmo o que aí está ! É “útil”!

Ora, um pouco por todos os programas se vai escrevendo útil com um “u” e um til por cima. Como atender ao que, de facto, precisam estes discentes, mesmo para assimilarem as rubricas e a cultura escolar curricularmente impostas sem alternativa? Um professor em tais circunstâncias corre o risco de desesperar ou cruzar os braços, tolhido de impotência. É evidente que no meio urbano litoral tal não se coloca, uma vez que, à partida, a cultura ambiental do aluno é idêntica e pejada de elementos escolares. No campo e na serra do interior, não. Acolá, a vida é escrita, desde as bibliotecas domésticas, aos jornais diários e hebdomadários, aos livros infantis que o bebé de leite já tem de prenda, em pano ou plástico, aos anúncios nas ruas, às vitrinas comerciais, à identificação de vias e casas e assim por diante. No outro país é, ao invés, a oralidade e a mímica que reinam e é a memória e o ancião, o velho sábio, que aqui perduram ainda, que são o computador para conservar e reproduzir os dados para a geração vindoira. Aqui não há ainda bibliotecas nem museus de vulto, os registos ainda moram incarnados nos avós, são gente, são vida. Mais importante e grave, não há sensibilidade nem componentes sociais que requeiram ali o peso da escrita nem o desenvolvimento e apetrechamento cognitivos e do intelecto em geral tal como são requeridos e impostos pela escolarização. Em contrapartida, se aquilo se lhes antolha, a educandos, pais e comunidades locais como substancialmente inútil e alheio a eles, ocupando-os futilmente e de maneira insensatamente esforçada e angustiosa, por outro lado, desvia-os e esvazia-os de componentes pessoais-comunitárias que requerem permanente apoio, estímulo e desenvolvimento. Ora, eles não logram colher nada disto por via da escola. Anotamos exemplarmente o contacto com a natureza, a harmonia pessoa-ambiente humano e natural, a inadiabilidade de actuações práticas para ocorrer a carências vitais permanentes muito mais próximas do nível de subsistência do que ocorre na população urbana, a invenção do lúdico e da festa, o culto dos laços interpessoais e a necessidade de equilibração entre a autonomia e a interdependência, a urgência de assumir e de reconverter a tradição rumo ao inovamento, a preservação da identidade própria equilibrada com a abertura a novos universos de realidade e de valor.


Como nada disto é propriamente questão em cultura urbana, onde os problemas se vão resolvendo pelo facto consumado, para bem ou para mal, a escola não foi jamais focalizada sobre preocupações deste jaez: ela transmite heranças de escol e prepara os peritos que gerirão os interesses da classe dominante citadina, cosmopolita, que considera que o resto do mundo é ela mesma, tem por fronteiras os limites do próprio império e por conteúdo mobilizador os seus projectos. Tudo aquilo lhe é ignoto, alheio e sem interesse. Quando para lá exporta a escola é ainda para lho fazer saber e sentir. Afinal, quem é que manda? Se querem democratização cultural, então aprendam e submetam-se, moldem-se a amputem-se, de modo a poderem vestir de acordo com o figurino. Se sim, são dos privilegiados; se não, mantenham-se entre os réprobos, que tal é a vossa condição. Nem sequer institucionalmente e no automatismo dos valores dominantes da cultura, se vislumbra espaço de dúvida, menos ainda a admissibilidade de que porventura haveria alternativas outras, com inéditos fios condutores, diferentes valores, diversos conteúdos que a escola eventualmente poderia consagrar e equilibrar com os da pretérita herança nela hegemónica e que isto poderia ser vantajoso para todos, ponderados bem os benefícios mútuos. A cegueira e o dogmatismo do habitual e consagrado tolhe-nos o olhar e a sensibilidade a ponto de nem a dúvida aflorar.


Ora, é aqui que justamente lançam o grito os colegas que vão cair nestes meios. Porque se não demitem e o abismo da inconsciência e do irrespeito da instituição por aqueles que tem por função e dever (mesmo legal) servir é tão indiscutível e esmagador, eles não podem deixar de sublinhar prioritariamente o aberrante de tudo isto que não está na mão deles solucionar.


A gravidade desta constatação é tão mais intolerável quanto todos vão intuindo que até dispõem de recursos de conhecimento, de destrezas, de capacidades, de habilidades, de relacionamentos, de compreensão que, noutro contexto e com diversos meios de intervir ao dispor, poderiam ser eficazes em cada caso e comunidade em concreto. A muitos os encontrei animando projectos nas associações de cultura e recreio, integrados (até eleitoralmente) nas autarquias, liderando iniciativas em Casas do Povo, esquecidas bibliotecas locais e clubes desportivos e assim por diante. Noutros casos foram abordagens de situações-problema, enfrentamentos individuais ou em grupo de conjunturas-limite, de maior ou menor gravidade, envolvendo mais ou menos pessoas. Nós próprios acabámos por nos envolver em intervenções à margem do sistema, no âmbito de nossa competência e os apoiámos em muitas outras (fizemos assistências e despistagens psicológicas, acompanhamento familiar, animação comunitária sobre novos valores polémicos para o meio...).


O problema é que isto não ocorre nas aulas, a partir das rubricas dos programas, nem na comunidade escolar, naquilo de que se ocupa. Entretanto, é o que em tais meios todos esperam e acolhem com alvoroço. Quando conseguimos cruzar alguma destas achegas, por exemplo, com a direcção de turma e abrimos as portas aos pais, tivemos sempre enchentes, entusiasmo, participação com pedidos de mais. Por aqui, a escola iria ao encontro das comunidades e seus filhos, pondo-lhes ao dispor os recursos de que se vai apetrechando. O problema é que os programas são impositivos, rígidos, não dão margem a alternativas nem complementaridades onde poderia joeirar-se o que fosse premente para cada educando e agregado. Assim, é inviável.


Ora, é isto que os inquiridos e todos os demais que por trás se perfilam nos anotam ao relevar prioritariamente os programas como fautores de maus alunos. Neste sentido, diríamos até que pior que isto, eles fazem antes mal aos alunos. Com efeito, ou estes lhes aderem, alienando-se das próprias raízes sem possibilidade de estabelecerem sínteses em que cresceriam por dentro, não amputados das fontes que os alimentam, e o resultado é um monstro cultural, prenhe de desequilíbrios e carências que vai andar o resto da vida a apodrecer o tecido social, fazendo pagar a outrem as amputações e enganando-se com os ouropéis de escolarizado, intelectual, ou, pior ainda, doutor; ou então foge a sete pés disto como ocorre com a larguíssima maioria dos reprovados que a triagem escolar se encarrega automaticamente de praticar, mas o preço da autodefesa é o ferrete do analfabetismo ou da marginalização social, perante o escol, em todos os domínios. Isto, obviamente, é perverso. Mas é o mecanismo institucional na irradiação moral e colectiva de que vive aureolado. Evidentemente que os professores não deixam de acusar este viciamento dos dados e em consciência têm de repudiá-lo, até porque faz deles os carrascos de sentenças doutrem com que não podem eticamente ter contemplações.


Mas então porque é que a denúncia de tudo isto não aparece praticamente nunca em parte alguma? Fundamentalmente por duas ordens de razões, uma de eco nacional e outra perfeitamente localizada mas intraduzível para a experiência colectiva. Aquela reporta-se ao que é comum à generalidade do País (e que em amostra deste representativa certamente acabaria por inverter a dominância das duas causas do mau aluno em análise), a saber, a carência, vetustez, inadequação, degradação ou insuficiência de instalações, equipamentos, materiais e recursos que ocorrem com quase todas as escolas, qualquer que seja a região do território, mesmo nas zonas privilegiadas, até no centro das grandes metrópoles (o liceu Camões, no coração lisboeta, teve recentemente alas fechadas porque os tectos abateram em pleno decurso do ano lectivo, em 1985; a Escola do Magistério de Benfica, de larga e aureolada tradição, está em obras de recuperação de várias alas encerradas anos seguidos porque já se lhes via o céu pelos telhados – no mesmo ano). É mais fácil fazer coro com toda a classe do que gritar isolado nos alcantis da serra ou no ermo das planuras, onde apenas as feras ou o silêncio afinarão ouvidos. Tanto mais que esta ordem de razões do mau aluno segue de perto a primeira, relativa aos programas, e comparativamente é infindamente mais onerosa nas escolas isoladas do que nos grandes centros. Com efeito, nestas jamais encontrei, como ocorreu naquelas, aulas de educação visual em cavalariças adaptadas sem luz natural, exposições em garagens arranjadas, reprografias paradas meses seguidos por avaria e total inviabilidade de reparação na escola ou comunidade, ou, pior ainda, paralização deste sector, da secretaria, até de actividades do conselho directivo por mera falta de papel que deveio a breve trecho insuportável por não haver abastecimento no meio ou então por total esgotamento do orçamento escolar. São alguns respigos do que fomos encontrando nos terrenos de além, sem paralelo, em gravidade, em áreas de privilégio. Porque compartilham com os demais das sequelas destas mazelas, com eles alinham no coro das críticas. Mas, se razões não faltam para tal, bem pelo contrário, há pelo menos uma característica das escolas da província e do interior que a prazo ameaça tornar em grande parte sem sentido este vector reivindicativo.


É que em vários locais a população está envelhecendo, a natalidade é diminuta, a emigração sangra as comunidades, o que, nalguns casos, levou já ao abandono completo e à venda de aldeias inteiras (na Serra da Estrela). Ora, isto vem-se gradualmente reflectindo na diminuição da população escolar, o que sistematicamente está obrigando ao encerramento anual de centenas de salas da primária já não compensadas pelo alargamento da rede nas grandes urbes e litoral. O fenómeno principiou a atingir as escolas do preparatório e secundário (curso geral), a um nível incipiente, ainda não significativo, mas já bastante notório para nos ter sido constatável (há estabelecimentos que começam a libertar salas e a ficar mais desafogados porque as matrículas estão lentamente diminuindo). Ora, o alargamento eventual deste pendor tornará em grande parte impertinentes críticas do teor das referidas. É um facto, por exemplo, que as instalações novas construídas na província e distritos do interior, à medida em que a procura escolar declinar (e tende por ora, em 1985, a estabilizar) não só não justificarão argumentos contra o sobredimensionamento e a superpopulação como também levarão a atribuir à má gestão local a eventual degradação de construções ou a delapidação de equipamentos e recursos. Por enquanto ainda, em geral, toda esta linha de denúncia corresponde a estrangulamentos reais e nalguns casos intoleráveis verificados em campo. Futuramente, esta atitude pode revelar-se alheia ao que mais oneroso é de facto sentido por esta franja docente e que já vimos que se reporta ao divórcio cultural perante estas comunidades e educandos, institucionalizado nos conteúdos e formas dos programas. Então, decerto, um risco andaremos todos decerto correndo, o de que se implante uma ruptura entre dois sectores de professores que correspondam já não a ideologias e preconceitos, como até agora vem ocorrendo, mas antes derivem de dois tipos de prioridades e carências que na prática não logrem assumir relevo igual para cada um dos leques docentes em causa. Então atingirá todo o peso a segunda ordem de razões, as programáticas, que hoje andam silenciadas na grande comunicação.


O que leva, como segunda ordem de motivos, a que ninguém se aperceba do vulto da crítica aos programas é que, por um lado, isto não é assumível por toda a classe docente porque os professores das escolas e regiões preferidas concordam genericamente com eles e com razão, dado que, melhor ou pior, se demonstram suficientemente adequados à população e cultura ambiente em que mergulham; por outro lado, não é fácil explicar em que consiste e onde radica esta anomalia. É o produto directo de qualquer mundividência predominante numa sociedade. Os pressupostos, valores, padrões relacionais, afectivos e de actividade são dogmaticamente assumidos de modo espontâneo, inconsciente e acrítico pela colectividade em geral. Os que chocam com os esmagamentos individuais ou os estrangulamentos que a ideologia implantada semeia enfrentam múltiplos obstáculos ao pretenderem a ruptura com a tradição. É que eles próprios partilham da cultura dominante espontaneamente e isto basta para lhes encegueirar o olhar, impedindo-os largamente de constatarem o óbvio, o que garante a manutenção da ordem reinante até à ocorrência de situações-limite em que tudo se estilhaça e os dogmas se esboroam, de máscaras caídas. Após isto, porém, os indivíduos ficam desarmados e em permanente angústia, uma vez que perderam as seguranças anteriores e concomitantemente descobrem-se impotentes para criar outras em alternativa, adequadas aos factos e que os reconciliem com os demais e com a situação. Não há padrões de referência nem a criatividade individual é destra a ponto de cada um lograr interpretar e encaminhar cada conjuntura de modo convincente, eficaz, fecundo e gratificante para os nela envolvidos. O vulgar é o desnorteamento, o cepticismo e a revolta, entalados em repúdios, acusações e denúncias em vez de abertos a projectos e ideais. Por outro lado ainda, o próprio meio ambiente dorme seraficamente prisioneiro da ideologia dominante, o que o leva a tender a acatar o insucesso escolar maciço como um efeito justo, bem equitativo, sem mesmo suspeitar que pode estar sendo manipulado e jogado em prol da reprodução da ordem estabelecida que o vitima e explora com o consentimento e aplauso dele mesmo.


Se isto não facilita a criação de novos modelos de compreensão e encaminhamento das vidas, o pior é que os obstaculiza quando eles ocorrem e não apenas pela resistência passiva, dado que por vezes encontrámos conflitos abertos, quando, afinal, o que estava em causa poderia ser benéfico para todos (por exempolo, na alteração de padrões de relaciuonamento pais-filhos, flexibilizando-os, ou na consideração de valores de autonomia e originalidade pelas novas gerações). Nestes termos, como dar conta da anomalia? Nem sequer os próprios colegas que mais a sofrem na carne logram identificá-la, em geral; não é partilhada pelos demais, numericamente os representativos, dos grandes centros; não é compreendida pelo meio ambiente lesado nem pelos educandos dele oriundos. Não há, por ora, praticamente saída.


Em geral, os professores que experimentam o grande choque da alienação cultural e funcional da escola seriam, na prática, incapazes de darem conta, em palavras deles, do que aqui reportamos e menos ainda de lhe identificarem um fio condutor explicativo convincente. A nós foram-nos surpreendendo dados em bruto, desesperos acéfalos, feridas gangrenadas cujo diagnóstico surgia por demais problemático e para que não havia vislumbre de terapia nem prevenção. Também por aqui a todos é mais fácil descarregar responsabilidades na crónica área deficitária comum, a das condições de funcionamento da escola. No inquérito, porém, as razões desagregaram-se e então já não houve dificuldade em atribuir prioridade ao que de facto lhes importava e que ainda não lograram desmontar e rotular de modo suficientemente inequívoco para o proporem à consideração universal e até a eles próprios.


Para além de tudo, não devemos ignorar que a quase totalidade dos professores são oriundos da classe média, com forte incidência de filhos de docentes, às vezes há já gerações, ao que nos revelam pesquisas da área. Ora, esta particularidade reforça a estranheza destes colegas perante o meio em que laboram quando caem no Alentejo ou na serrania beiroa ou transmontana. O desconforto é máximo porque a educação e cultura de origem não se despem como um sobretudo, constituem uma segunda natureza da pessoa de que não logra demitir-se sem perder a identidade ou abjurar dela própria, nos valores que porventura lhe são mais caros e se lhe antolham até eventualmente como de validade indesmentível. Isto é agravado ainda pelo facto de neles tudo estar fortemente embebido de padrões escolares, meio de origem e clima onde a maioria nasceu e respirou. Isto ajuda a compreender porque tantos querem fugir deste ambiente: aqui asfixiam por inaptidão para integrá-lo e saboreá-lo.


Concomitantemente, ficam tolhidos entre alternativas destrutivas sem recurso. Por um lado, repudiar as condições dos educandos e do meio desenraíza-os destes, muito embora consume o intuito secreto do sistema escolar como reprodutor de critérios dum escol e joeira entre o que lhe é estranho e o que lhe é afim. Tal via, para além do ostracismo a que os condena, obriga-os igualmente a trair as expectativas mais autênticas (mesmo que não assumidas) dos alunos e comunidades. Com isto, ficam em conflito de consciência e com uma intransponível frustração afectiva, a do fracasso profissional, gravemente lesivo onde justamente deveria ocorrer gratificação.

Mas a inversa não lhes oferece melhores perspectivas. Se acolhem hospitaleiramente os discípulos e os padrões porque se definem e a partir de que se projectam, ficam canhestros e inábeis, não logram acertar o passo pelo deles, interiorizam contradições e incongruências, perdem a coerência e a paz dos ideais que os enformaram até então, acabando na despersonalização e indefinição mais dolorosas, como a muitos encontrei. Não atingem a eficácia na educação e entreajuda em que se empenham, nem sequer a harmonia com eles próprios. Uma nova síntese demora uma vida a elaborar-se e impregnar-nos não é viável na instabilidade e transitoriedade da condição laboral destes colegas. É por isto igualmente que o Alentejo (e o interior) vive semeado de angústia e frustração também entre docentes.


Uma ambiguidade se mantém após a análise destes vários aspectos. É duvidosa qual seria a via para ultrapassar os impasses que em todas as perspectivas constatámos que finalmente se acumulam. Convém, pelo menos, que fique claro que não cremos que a solução possa advir da mera demissão da escola perante a cultura local ambiente, nos componentes desta que, embora domesticados pela ideologia dominante, se revelem mais ou menos gritantemente desumanizantes, castradores, lesionantes ou marginalizadores de indivíduos, grupos ou agregados. Isto porque a simples invasão curricular por elementos daqui oriundos apenas os reproduziria, tanto no que têm de positivo reconhecimento e identificação pessoal-comunitária, como no que inelutavelmente implicam de negativo refechamento sobre eles próprios, de carência de horizontes valorativos de porvir e de tolerância e acolhimento ao divergente, inovador e criativo, como ainda de chauvinismo isolacionista, de bairrismo míope que, a pretexto de valorizar o que lhe é próprio, denega e fecha os olhos ao valor do que for alheio, tranca portas e janelas e fenece na penúria de informação, actualização e comunicabilidade, redundando na caducidade de projectos, sonhos e valores, na morte dum mundo demasiado estreito que, afinal, devirá estrangulador para os que se lhe enredarem na teia. Igualmente, o polo inverso produz efeitos deletérios de sinal contrário. A escola que invade, dogmática, cega e surda, o universo rural, serrano e isolado do interior mais não faz que desautorizá-lo, gravar-lhe na testa dos filhos o ferrete do reprovado, surdir triunfalistamente como o césar conquistador colocando de joelhos perante ele os míseros escravos, a gentalha desprezível para quem a generosidade soberana ainda se permite um vislumbre de clemência quando lhe elege um ou outro discípulo mais subserviente que logrou modelar-se à padronização curricular imposta. O servo pode interiorizar o senhor e não acatar nem compreender a alforria. Nem por isto ela é menos desejável e eticamente imprescindível. Por outro lado, aquele facto não justifica a podridão e o crime de tal padrão relacional, antes demonstra até onde a destruição humana avançou, a ponto de silenciar e castrar as próprias vítimas, aliciando-as como cúmplices da abjecção que as aniquila.


Rejeitadas as duas vias, em que ficamos? Na abertura ao diálogo e mútua relativização de ambas as matrizes culturais, em busca de novas sínteses mais eficazes para os projectos dos comparticipantes, sem que ninguém se demita dele próprio nem se imponha cegamente nem contra a vontade dos demais. Tal via foi sempre a das saídas salutares em todos os momentos históricos que não sejam estruturalmente vocacionados ao trauma colectivo (como a invasão, a guerra, a ditadura...). Obviamente que a operacionalidade dela deriva directamente da distribuição do poder e da capacidade de as franjas dele mais destituídas o lograrem assumir e gerir equilibrada e convincentemente, a contento delas próprias e sem concitarem contra o novo rumo forças sociais maioritárias na capacidade que detiverem. Muito está (diríamos praticamente tudo) por desbravar neste itinerário que tão promissor para toda a colectividade se pode afinal revelar, principiando pelos até agora vítimas da cega e surda desordem implantada. E os professores não são, como verificamos, os que menos lhe sofrem a ferroada.






C) Falar de outrem

Análise das respostas em que se atribui aos alunos e à família o mau rendimento escolar daqueles



Os professores inquiridos, no que se reporta aos motivos que põem em causa os educandos, crêem que a razão mais forte de haver maus alunos (n.º 7) é a de que estes não têm interesse pelas matérias que têm de estudar (35 registos ao todo), como atrás anotámos, seguida (n.º 4) pela que aponta que eles não têm hábitos de trabalho escolar (totalizando 24), vindo depois (n.º 6) o facto de frequentarem a escola contra vontade (somando 13) e, finalmente, (n.º 2) a falta de capacidade intelectual dos educandos, quase ignorada (2 anotações), praticamente irrelevante em tal contexto (ver quadro VI e gráfico III).




GRÁFICO III








Gráfico III – Respostas dos inquiridos aos itens que põem em causa os alunos e a família, conforme foram referidos como razões de 1.ª, 2.ª ou 3.ª prioridade para o fraco rendimento escolar dos maus alunos



A triagem mais significativa que aqui importa clarificar é a que respeita a factores mutáveis e imutáveis e, dentre aqueles, os que derivam da vontade própria e os que dependem da alheia. Já referimos quanto a causa primeira de maus alunos nesta ordem de razões, a que nos aponta que eles não se interessam pelas matérias curriculares, depende praticamente por inteiro de instâncias a eles estranhas e sobre as quais são manifestamente impotentes. Com efeito, isto é óbvio relativamente ao poder central que define e impõe programas e, quando muito, consulta professores das escolas antes de decidir. O educando é por inteiro estranho a este domínio. Tal é verdade tanto no que se refere a conteúdos como ao estatuto e funções de tais documentos ministeriais (grau de flexibilidade, abertura e alternativas, rubricas em branco a preencher localmente, o que é vinculativo e optativo, se o todo é ou não cogente, se reveste a figura de guião ou de recurso), muito embora os docentes tenham uma palavra decisiva no momento da execução, constituindo os garantes finais do cumprimento ou não de quanto o poder determina. Como tudo é desempatado na relação pedagógica, poderíamos ainda crer que o educando teria uma oportunidade derradeira. Não é verdade, contudo. O poder deste é tão limitado naquelas terras que, quando muito, se fará sentir no clima emocional do relacionamento e na dinâmica do grupo-turma. O resto é o jardim selado da sabedoria onde apenas alguns eleitos lograrão gradualmente penetrar, ficando os mais lentamente pelo caminho.


Este efeito final é verdade não apenas na região transtagana mas em todo o território, mesmo na área alfacinha, onde a regra da história escolar é igualmente a da experiência da reprovação e abandono por parte da maioria, à medida que vamos subindo nos níveis de ensino. O desinteresse pelas matérias é, conseguintemente, um factor obviamente mutável mas independente da vontade própria do aluno, dado o modo como entre nós se triam os conteúdos programáticos e o perfil rígido e cogente que revestem na lei que os impõe e na execução que deles é implementada. Se isto, porém, é assim praticamente sem reservas nas escolas alentejanas e da província interior em geral, já não é rigorosamente o mesmo nas áreas preferenciais dos professores. Nestas, com efeito, no momento da prática lectiva convergem dois factores que tendem a atribuir maior peso e sentido à comparticipação do educando, pelo que a causa de maus alunos em análise acaba parcialmente por ficar na mão destes.


Em primeiro lugar, o que é trabalhado nas aulas corresponde em geral a preocupações do meio e da cultura académica dominante no ambiente de origem da generalidade dos educandos. Isto resulta em que, por um lado, o desinteresse destes pelos programas não revista o peso, a acuidade que atrás referimos na região dos inquiridos, antes o ajustamento mútuo tenda a ocorrer em número muito mais elevado, evitando-se as reacções de estranheza, o desencantamento ou o repúdio. Por outro lado, porém, quando, apesar de tudo, sobrevém a desmotivação, então a tendência será muito mais provavelmente por desajustamento individual, em virtude de o educando provir dum meio alheio à cultura e padrões escolares, o que lhe é muito mais viável de superar pela convivialidade com os colegas sintonizados com tal do que se não estivera por eles rodeado, como ocorre na província e no interior, ou então o divórcio entre o currículo e o discípulo é transitório, oriundo de factores estruturais (crise de puberdade, transição de níveis institucionais) ou aleatórios (fracasso amoroso, crise religiosa, conflito de gerações). Em qualquer dos casos o mero decorrer do tempo e o superar das dificuldades existenciais resolvem-no. Obviamente que em qualquer destas circunstâncias o empenhamento do educando é fundamental para redescobrir o interesse das matérias que tem de estudar e sentir-se conseguintemente motivado. Uma outra ordem de razões converge no mesmo efeito. É que os professores, como vimos, tendem a preferir as escolas destas regiões, o que redunda em que elas detêm os mais estáveis, experientes e satisfeitos membros da classe, justamente os que mais facilmente (quase espontaneamente) logram adequar as rubricas curriculares às experiências e vivências relevantes para o meio e os educandos em particular. Isto vale tanto para a generalidade destes como para o atendimento individual cuja perícia requer treino, serenidade, gosto pelas tarefas e empatia com os discípulos. Pois isto tem o máximo de probabilidades de aconttecer onde os educadores partilham da cultura e gostos dos educandos e se sentem entre eles como em família. Aqui evitam sempre a necessidade de reconversão pessoal que noutro meio o professor terá de operar para sintonizar-se com a comunidade. Tudo é, portanto, mais fácil e exequível no imediato. Dos alunos depende aproveitar ou esbanjar esta oportunidade, obviamente. Nestes termos, algo desta razão, a do interesse pelas matérias programáticas, acaba, também nesta vertente, por depender deles, no desempate final da execução.


De qualquer maneira é evidente, como atrás tornámos notório, que os inquiridos entendem que, do ângulo dos educandos, é a desmotivação para os conteúdos e modos curriculares que mais pesa e que tal factor de maus discípulos decorre de instâncias a estes praticamente por inteiro alheias (bem como, em menor grau, aos docentes), embora, evidentemente, tal ordem de razões não seja imutável, bem pelo contrário (a dança de programas posterior ao 25 de Abril, se não fora irresponsável, teria sido hilariante), apenas não decorre dos mais directamente implicados nem da relação pedagógica que entre eles alimentam. É importante ter isto em conta para ficar bem claro que, se os inquiridos acoimam a instituição de primeira responsável pela proliferação de maus alunos, mormente no meio transtagano onde laboram, a segunda matriz reporta-se aos educandos, mas apenas aparentemente, uma vez que logo neste primeiro e mais oneroso motivo tornam claro que nestes somente aflora o efeito daquele enquadramento e das alienações que ele institucionaliza e reproduz através deles. Não depende dos educandos inflectir a desmotivação pelos programas, estes é que teriam de ir-lhes ao encontro de carências, expectativas e projectos. Ora, apenas uma minoria privilegiada vive à partida sintonizada com o que os currículos lhe carreiam e requerem. Os demais são ignorados e não dispõem de meios para evitá-lo, tanto quanto os respectivos docentes, títeres igualmente jogados pelas instâncias de poder sem recurso nem alternativa, no que a este particular se reporta, dado que as consultas eventuais que lhes são feitas revestem carácter facultativo e não obrigatório e, por outro lado, os pareceres são meramente consultivos e jamais vinculantes. Mesmo que o foram, seria muito provável que ficassem esmagados diante da avalanche dos indicadores divergentes da massa maioritária e perita dos professores das áreas urbanas litorais mais cosmopolitas.


Como segunda razão das que se reportam aos alunos, os inquiridos anotaram, com 24 votos, que os discípulos não têm hábitos de trabalho escolar (gráfico III). É evidente que estamos perante uma causa dependente da vontade, perfeitamente mutável, directamente derivada da aprendizagem e grandemente sob a alçada do educando. Efectivamente, a criação de habituações decorre da repetição regular, disciplinada, de padrões comportamentais e, portanto, este factor de maus alunos é removível desde que os discípulos se empenhem adequadamente em superá-lo, praticando o labor escolar de modo sistemático, duradoiramente, até lhe implantarem o ritual neles próprios como um automatismo facilitador das tarefas institucionalmente inevitáveis. Por outro lado, nada nem ninguém os pode substituir nesta aquisição, uma vez que os hábitos são cristalizações comportamentais eminentemente individuais e que não decorrem de qualquer matriz alheia à respectiva personalidade que os cria e desenvolve. Não é possível transplantá-los nem gerá-los no exterior para os injectar noutrem por muito que as inoculações de mielina de cobaias treinadas nas que previamente o não foram tenda a reproduzir nestas os automatismos daquelas. Estamos muito longe ainda de resultados concludentes e inequívocos, mormente a nível de eficácia, e a transposição para a escala humana nem sequer se vislumbra tecnicamente, para já não chamarmos a terreiro todo o problema ético que tal domínio da engenharia biológica levanta. De qualquer modo, por certo nenhum dos inquiridos equacionou questões desta ordem ao responder ao quesito em análise. Podemos, portanto, reter que o intuito desta escolha é, de facto, remeter, numa primeira linha, a responsabilidade deste factor de maus alunos directamente para os educandos, os únicos que poderão vir algum dia a removê-lo, caso se empenhem voluntariamente em atingi-lo.


Clarificado, porém, este aspecto, logo ressalta que a situação dos discípulos, à partida, não é a mesma fora do meio ambiente do inquérito. Efectivamente, à escola chegam com hábitos de trabalho escolar os filhos e moradores de áreas com escolarização muito elevada. Quando o clima do lar dá forte relevância a valores altamente repercutidos no sistema educativo, então os descendentes respiram-nos, impregnam-se deles constantemente e de modo espontâneo, inconsciente, implantando neles próprios os padrões comportamentais e prioridades axiológicas mais adequados à posterior escolarização. Quando chegam ao limiar desta, as habituações já estão criadas em todos os planos, ético, relacional, afectivo, intelectual e activo. O professor mais não tem que continuar e desenvolver o que já de trás lhe chega harmonicamente integrado, motivado e expectante. É só alimentá-lo permanentemente e enriquecê-lo de modo indefinido. Não tem de perder tempo e energias a reconduzir ovelhas tresmalhadas, a ensiná-las a entrar no tredil ou acertar o passo pelas demais. Quer dizer, os hábitos de trabalho escolar num caso, são dado adquirido à partida, nem a escola nem o docente têm que preocupar-se nem pensar nisso; no outro, eles têm de ser criados, o labor educativo, para além de atender às componentes curriculares, ainda deve assumir mais esta responsabilidade.


Daqui derivam múltiplos efeitos encadeados. Desde logo, os professores tendem a fugir dos alunos mais alheios aos padrões escolares, dada a sobrecarga de trabalho que lhes cai em cima. Isto ocorre prioritariamente nas regiões mais isoladas e na província em geral, bem como em todos os meios pequenos, mas igualmente opera o aguilhão da fuga das cinturas das áreas urbanas onde a população discente provém de estratos sociais menos escolarizados, operários, artesãos, funcionários de baixo escalão, trabalhadores não especializados nem qualificados. Todas estas franjas sofrem da mesma carência à partida e daí que também nas regiões cosmopolitas os docentes tendam a fugir bem para o centro da cidade, zona dos bairros mais antigos e estabilizados onde problemas destes se não colocam. Por outro lado, o mesmo factor acaba por escorraçar os professores contra vontade, mesmo quando idealistamente se propõem solidarizar-se com os mais inermes. É que ele aumenta enormemente o insucesso escolar destes estratos discentes, o que redunda em frustração profissional dos educadores aí empenhados, levando-os ao desânimo. Mais tarde ou mais cedo, mesmo os mais dedicados saturam-se e, desalentados, acabam retirando-se para estabelecimentos que lhes sejam mais gratificantes.


Converge em idêntico efeito a condicionante da origem sócio-cultural predominante dos docentes, dado estes, como já referimos, provirem largamente de franjas largamente escolarizadas, em particular sendo filhos de professores. Ora, os padrões valorativos e comportamentais de tal franja sempre se pautaram pela conformidade à escola, sem alternativa. Daí ser dificilmente viável a receptividade, a compreensão doutros modelos culturais e axiológicos, como anotámos. Mesmo quando o atingem, já o prevenimos, resta por resolver todo o problema de sintetizar ambas as mundividências em causa e, depois disto, ainda o conseguir comunicá-las, transfundi-las para os educandos de modo não traumático, flexível e dinâmico, a ponto de eles lograrem a contento enquadrarem-se escolarmente sem alienação nem estranheza. Nalguns meios isto é um itinerário tão complicado, dadas as distâncias acumuladas (linguísticas, de ritmo diário de vida, de hierarquia entre o afectivo, o cognitivo e o activo, de valores, de modelos de relacionamento com a natureza e os outros e assim por diante), que um professor oriundo de sectores cultos académicos baqueia quase inevitavelmente, não logrando sequer discernir o que o rodeia nem conferir-lhe um sentido qualquer minimamente aceitável para ele próprio e tolerável ao ambiente.


Encontrámos muitos destes desterrados cuja obsessão era a fuga, a ponto de até raramente nos aparecerem nos cursos e sessões de trabalho que monitorámos. Deparámos com eles quase só em pequenos encontros à margem da escola e do meio, em tertúlias improvisadas, serões de convívio mais ou menos erudito onde logravam simular ilhotas do mundo originário perdido, retemperando forças para a travessia quotidiana do deserto que se lhes antolha o ambiente em que vieram cair. Curiosamente, para nós que provínhamos do pretenso paraíso perdido, reservavam um acolhimento tão caloroso e sofrido quanto fugiam a encontrar-nos em situação de trabalho. Aqui, só quando o grupo dos mais íntimos pressionava em tal sentido, doutro modo esgueiravam-se, mesmo que fosse (e várias vezes ocorreu) para nos esperarem à saída, a fim de irmos celebrar. Tudo isto é coerente com as particulares dificuldades que toda esta franja enfrenta em tal contexto. Do mesmo modo, a facilidade com que nos escolheram como confidente, quando à partida éramos por inteiro desconhecidos, é significativa de toda uma ânsia desesperada de reatar laços com o lar originário que não logram reconhecer no bravio primitivismo das comunidades rústicas, na singeleza dos modos de vida, na nudez das aspirações e empresas. Como é que estes homiziados poderão ser educadores? O mais intolerável, porém, é que eles se dão lucidamente conta da situação, o que lha torna verdadeiramente desesperada. No limite, não aguentam e vão parar no psicanalista ou no psiquiatra. A vários os tentámos recuperar já neste estádio. As baixas médicas e a tentativa obsidiante de fugir para mais perto do meio de origem são a via sacra destes desenraizados que, quando tal se prolonga, acabam desertando do ensino, derrotados por inteiro.


Um tema obsessivo de nossas conversas nos serões e nas tertúlias com este sector (e, entretanto, com os demais colegas em colocação de província) era o de que os alunos não sabiam estudar e era preciso ensiná-los a consegui-lo, antes de mais. A muitos isto revelava-se como uma novidade tão inusitada que não logravam compreendê-la, a tal ponto os hábitos do labor escolar lhes eram familiares, automáticos, conaturais. Depararem com este fenómeno generalizado entre os respectivos educandos era uma revelação doutro mundo, tão longínquo e estranho ao deles que não atinavam no sentido ou volta a dar-lhe. No geral, com efeito, declaravam-se impotentes, desarmados para enfrentar com eficácia semelhantes conjunturas. Tinha-lhes sido tão precoce e pré-reflexiva a aquisição de quejandos hábitos e modelos de trabalho que não eram de todo em todo capazes de os tematizarem, de lhes elucidarem etapas, isolarem precisões e ajustamentos e, conseguintemente, não podiam compartilhá-los, por mais que o desejassem, com os educandos, quase todos disto carentes em tais meios.


Há, finalmente, um aspecto ainda que para muitos outros é a ferida mais dolorosa. É que a falta de hábitos de trabalho escolar constitui-se como um discriminador automático joeirando, a prazo, quem vai ou não sobreviver na instituição. Ora, tal mecanismo cego e frio estrangula sonhos e esperanças, reproduzindo as discriminações sociais de partida com incrível precisão e demonstrando uma inflexibilidade e impermeabilidade entre classes que a extensão da rede escolar e o generalizado acesso a ela pretendem desmentir e camuflar. Esta falsidade e as vítimas que semeia por todo o lado, as quais na área rural largamente predominam, por serem norma, são por alguns vividas como contradições intoleráveis em absoluto. Como falar de educação quando o que se institucionaliza e impõe legalmente é uma burla como dever, a mentira como um ideal? Ser agente duma aldrabice recoberta de boa consciência gera e nestes meios chega a generalizar a revolta. Ocorre, porém, que é vulgarmente surda, sem objectivo definido, uma vez que estes colegas não conseguem facilmente interpretar o mal-estar e o sentimento da contradição em que vivem. Então chocam entre si, desagregam as próprias famílias, esmagam os educandos, revoltam-se contra o alheamento dos pais e assim por diante, raramente pondo o dedo na ferida. Alguns, porém, longamente no-lo referiram e, inclusivamente, lamentaram as intransponíveis dificuldades pessoais e familiares em se dedicarem a estas margens ignoradas de educandos mais uns anos, a fim de contrariarem os efeitos deletérios dos mecanismos institucionais que levam o sistema escolar a triturá-los em massa, sem qualquer rebate de consciência por parte da colectividade nem das forças sociais que a entretecem. Também isto impele à fuga, pelo mal-estar que generaliza, à excepção dos poucos que logram identificar lucidamente qual é a regra do jogo e ainda têm resquícios de ética e ideal bastantes para desejarem e eventualmente conseguirem contrapor-se pontualmente à maré. Constituem excepções numericamente irrelevantes e socialmente ineficazes. O sistema continua a reproduzir a estrutura classista dominante, esmagando sob o colossal peso dele os escassos rebentos que estes marginalizados tentam que vinguem por entre as fendas do edifício.


Em conclusão, a razão de haver maus alunos que afirma que eles resultam da falta de hábitos de trabalho escolar remete, em primeira linha, a superação para o empenhamento dos próprios estudantes. Concomitantemente, porém, assinala quanto no equilíbrio do sistema tal factor, afinal, depende de agentes e estruturas alheias, a ponto de a capacidade própria do educando ficar reduzida, na prática, a muito pouco, para indivíduos excepcionais, dado que a própria dinâmica social pretende e promove a discriminação perpetuada por esta via, tornando a escola gestora fiel e eficiente dos interesses dominantes que pretendem a manutenção dos privilégios, transmitindo-os aos filhos. O mero facto de à partida o sistema presumir que os alunos devem ter hábitos de trabalho a ele adequados separa os educandos entre eleitos e réprobos, de acordo tendencialmente com a triagem das classes sociais existentes, levando, a prazo, a que a propensão seja para manter sensivelmente a mesma distribuição colectiva de estratos, qualquer que seja o empenhamento da vontade de cada discípulo individualmente. Os poucos que rompem o cerco são os que constituem excepção a confirmar a regra e, ao mesmo tempo, criam a válvula de segurança que impede que o sistema expluda por intolerável. Fornecem a prova duma certa maleabilidade, permeabilidade interclassista e, simultaneamente, confirmam a pretensa boa consciência e moralidade da ordem implantada, tornando-a mais indiscernível no que tem de contestável, de fragilidade (até indefensabilidade) ética.


Se a primeira causa de maus alunos que analisámos, dentre as atribuíveis a estes, registava 35 pontos, a que acabamos de comentar apenas já contou com 24 e a terceira, em que entraremos agora, só nos traz 13, ficando a derradeira com 2 (gráfico III). Isto revela-nos desde logo a enorme quebra de relevância que os inquiridos crêem que elas revestem umas relativamente às outras, para além mesmo das complexidades factuais que recobrem e que temos vindo a deslindar. É curioso que os intervalos numéricos são sensivelmente idênticos, cada uma das razões contando a menos cerca de um quarto dos votos da precedente. Como foram justamente quatro as proposições que apontámos aos alunos, a tendência é para a última se aproximar do zero, como efectivamente ocorre.


Uma vez que os colegas não podiam conhecer estes dados e a estrutura do inquérito, misturando ao acaso as frases, impedia considerações destas, o facto não é irrelevante, antes confirma quanto temos vindo a explicitar relativamente à condição destes educandos e ao duvidoso grau de responsabilidade que poderá ser-lhes assacado. Com efeito, os degraus descendentes de importância acompanham rigorosamente o aumento da margem de aspectos directamente sob a alçada ou atribuíveis exclusivamente aos alunos, como resultará mais evidente do que segue.


Treze inquiridos apontaram que há maus estudantes porque os discípulos andam na escola contra vontade. O parco volume dos que optaram por este motivo deriva antes de mais de ele ser o único que explicitamente aponta o empenho dos discentes, muito embora a expressão utilizada tenha outras conotações que devem ter pesado na escolha.


Desde logo, frequentar a escola naquele estado emotivo pode advir de factores por inteiro alheios aos estudantes. Sendo mutável e até mesmo variável permanentemente, o tónus afectivo que acompanha a frequência escolar é muitas vezes derivado duma imposição parental ou do meio de origem, de modo coercivo e rígido, o que raramente gera clima que permita ao aluno assumir a conjuntura e geri-la a contento dele próprio (e até da família). Onde mais vulgarmente encontramos, porém, estes estudantes arredios que se arrastam pelas aulas para manter um pretenso status do lar a que já não são sensíveis e a que não logram flexibilizar o dogmatismo escolarizante, é justamente no meio urbano, mormente dos grandes centros. Isto tende a vitimar os filhos dos novos ricos ou então os das classes mais elevadas, habitualmente criados e apaparicados em berços de oiro, com uma matriz de preguiça, improdutividade e boémia apesar de tudo incompatíveis com o rendimento escolar. Estes dois sectores, um porque se pretende glorificar por empréstimo, o outro porque apenas busca a diversão com que matar tédios, andam divorciados dos fins mais gerais a que tende a escolaridade. Qualquer deles é, em regra, mal sucedido. Para os últimos não tem importância nenhuma, o futuro têm-no garantido à partida, é uma condição hereditária, o apêndice escolar é-lhes sempre mais ou menos dispensável, pesando apenas enquanto ajude a garantir a perenidade dinástica dos privilégios. O outro estrato sente-se frustrado na tentativa de emparceirar com a gente fina que em grande parte confunde com os diplomados ou, pelo menos, entende que os engloba e, portanto, pretende integrar-se entre eles como via mais fácil de subir de estatuto social. Mas se deparámos com tais franjas em zona urbana cosmopolita, é difícil apontá-las no Alentejo ou na província. É que ali sempre tais casos são tão isolados que não chegam a constituir grupo. Até mesmo nas cidades os colegas descuram-nos, a ponto de apenas anedoticamente recordarmos um ou outro que no decorrer das conversas ou do trabalho vieram à tona. Todos entendem que isto ali é irrelevante. A que se reportarão então os registos dos inquiridos?


O problema em tais meios é outro. Não se trata de procurar caiar fachadas ou fruir proveitos marginais à escolaridade. O que ali se joga é bem no coração do sistema. É que a busca desesperada de promoção, de melhoria de vida, de garantir um futuro melhor para os filhos em comunidades muitas vezes resvés com a miséria e nalguns casos com fome, leva a que a pressão por romper caminho através do diploma se torne por vezes a única esperança de salvação. Daí que a coacção sobre os educandos devenha desconfortável, até contraproducente por excessiva responsabilização, geradora de angústia ou medo. Em qualquer caso, porém, ela incide na exigência de adequação e rendimento escolar aos educandos. Ora, nós já vimos quanto eles são alheios à cultura e padrões académicos, à partida, e como isto sobrecarrega o esforço que têm de desenvolver para lograr resultados que outros, modelados em sintonia com as exigências institucionais desde o berço, atingem quase sem repararem em tal. Nestas condições, num combate tão desigual, é normal que a vigilância familiar e comunitária aperte as malhas, para aumentar a probabilidade de a respectiva progénie lograr vencer o obstáculo. O resultado é que, quando a pressão é demasiada, devém esmagadora e o educando, em inultrapassável ansiedade, acaba por detestar tal conjuntura de vida e deseja fugir-lhe, para preservar o próprio equilíbrio emotivo. Isto, porém, origina conflitos múltiplos de vária ordem que convém clarificar para melhor se compreender o meio em que os docentes têm de laborar e o porquê das atribuiçõers que registam.


Antes de mais, os educandos rurais são em geral submissos, obedientes e têm uma forte assimilação das motivações familiatres e comunitárias. Isto redunda em afirmar que, em regra, acabam por escapar à situação-limite descrita, uma vez que eles próprios encaram a conjuntura como normal e pugnam tanto ou mais que os familiares para ultrapassar as barreiras com que vão deparando. Então como entender aquilo?


Combinam-se aqui, em tensão instável permanentemente a recriar-se, tendências e opções de sinal contrário. Por um lado, estes estudantes apostam forte na escolarização como via quase única para poderem promover-se na vida, o que os predispõe a sacrifícios quantas vezes heróicos e inexistentes noutros meios mais favorecidos, onde o comodismo acaba por ser um valor de muito peso. Quando, porém, as circunstâncias, os levam ao esmagamento (por esgotamento, doença, reprovação apesar do empenhamento...) ficam divididos. Continuam agarrados desesperadamente à boia da escola, agora cada vez mais factor de sofrimento e frustração. Mas, à medida que estes lados negativos pesam mais, tendem a sobrepujar aquela ligação positiva de partida e a levá-los a romper com a instituição, com a aposta nela e no que promete. Neste entretanto, vão-se mantendo. Aqui atingimos o cúmulo da ambiguidade: estes educandos querem desesperadamente escolarizar-se mas desejam violentamente fugir-lhe. Permanecem contra vontade não porque a vontade esteja contra mas porque a afectividade o está. Não continuam, porém, forçados, mas antes porque decidem cerrar os dentes e insistir. É mesmo neste contexto que mais empenham a vontade própria, tentando resistir à maré de desgostos e sofrimento. É neste incómodo mal-estar que mais vezes encontramos alunos na região transtagana. É nele que a força de querer, afinal, mais se nos revelou, tanto por parte das famílias que persistiam até ao limite da resistência, incentivando os filhos a teimarem, como nestes que, convictamente, embora com uma certa descrença realista, tratavam em geral de reduplicar o estímulo que recebiam, mesmo quando quase só a convivialidade com os colegas era o recurso gratificante que restava antes do esbarrondamento final e do consequente abandono definitivo da escolaridade.


Não é, assim, por acaso, que os inquiridos apontam hesitantemente este factor como criador de maus alunos. Com efeito, ele opera fortemente assente na vontade própria e o grau de resistência é variável fundamentalmente de indivíduo para indivíduo e não tanto dependente de elementos alheios. Como, porém, o mal-estar, o permanecer contrafeito, dividindo a pessoa por dentro, não é suportável indefinidamente, acabando, a prazo, por destruir inelutavelmente quaisquer defesas que o sujeito lhe erga diante, é óbvio que a variabilidade do factor não é inteiramente dependente do educando, mormente se tivermos em conta que a afectividade responde a conjunturas ambientais e institucionais que ele bem desejaria que fossem outras mas sobre que nada pode. Assim, o andar contra vontade não é aqui tanto ver-se coagido por imperativos alheios a uma frequência mal tolerada pelo estudante, mas, ao invés, é constatar o esmagamento a que ele é votado pelo funcionamento cego das estruturas sociais em que opera o sistema educativo e para as quais não se encontra lenitivo nem alternativa, por muito que o aluno em tal esteja empenhado, pelo seu envolvimento integral para obter um diploma. Sendo, à partida, uma razão mutável, largamente dependente da força de vontade do educando, o frequentar a escola a contragosto gera maus alunos, afinal, muito mais porque a instituição escolar, no fundo, opera de tal modo alheada das condições, cultura, interesses e expectativas daqueles que tem por função servir neste meio ambiente, que alimenta estruturalmente o mal-estar, utilizando-o como um factor mais de discriminação, gerador de insucesso a prazo, de modo a não deixar passar no crivo senão os poucos que logrem aculturar-se aos padrões cognitivos, relacionais e activos que lhe constituem a cartilha dogmática de reprodução da ideologia dominante e respectivos estratos sociais geradores.


Relativamente à derradeira razão referida pelos inquiridos no leque das atribuíveis aos discípulos, a que aponta a falta de capacidade intelectual destes como origem de maus alunos, já vimos como os dois votos que recolhe representam mais uma recusa que um acatamento desta atribuição. Ora, tal atitude é significativa de quanto os professores repudiam justificações que remetam para instâncias inamovíveis, fatais e independentes da intervenção pessoal, do próprio ou alheia. É importante notarmos como esta seria a matriz para quantos eventualmente apostassem ainda em factores pretensamente de natureza, até geneticamente determinados (como ocorre com os argumentos racistas relativos às diferenças étnicas no âmbito da inteligência), o que agrada sempre às classes privilegiadas, emprestando-lhes a garantia da sanção do inelutável ao estadão de vida e estatuto social que detêm. A teoria da origem divina do poder, há séculos tornada indiscutível e que doravante caiu em desgraça é um afloramento extremo desta tendência. Jamais o privilégio ou a soberania hereditários lograram pedestais firmes, sempre requereram reforços ideológicos de várias fontes, desde o religioso ao da filosofia empírica, ao dos argumentos científicos oficiais. Neste contexto, e enquanto o sistema escolar é um dos pilares da ordem estabelecida muito mais que um agente criador e transformador da cultura e sociedade onde intervém, seria de esperar, coerentemente, que os professores apontassem com muito mais veemência factores invariáveis, independentes da vontade humana que justificassem a discriminação social que a instituição aprofunda, reproduz e consagra, ao ignorar as abissais diferenças e potencialidades de partida dos alunos dos meios pobres relativamente aos oriundos dos estratos abastados e ricos, dos rurais perante os urbanos, dos do interior e da província frente aos do litoral, mormente citadino e assim por diante. Pois não é o que ocorre, como verificamos, do lado dos professores. Nisto, aliás, convergem com a atitude generalizada da classe noutros países onde questões idênticas foram inquiridas. Com efeito, aqui decaíram os argumentos de antanho que pretendiam que à partida estava fixado o destino e o grau intelectual de cada um. Cremos mesmo que o resultado seria idêntico, neste particular, se os inquiridos foram de qualquer outra região.


Estão definitivamente ultrapassadas as interpretações generalizadoras de perversa boa consciência quando em massa os educandos vão sendo esmagados e abandonados no caminho por um sistema preconceituoso, cego de dogmatismos. Afirmar que isto é assim e deve continuar a sê-lo porque os alunos em causa são carentes de inteligência, seria entender esta como um dado acabado à partida cuja plasticidade é tão reduzida que aqueles que a não detêm a um determinado nível desde que nascem, não atingem rendimento escolar bastante e devem retirar-se. À letra, isto é igual a um atestado de atraso mental crónico inultrapassável. Apenas aqui faria sentido tal arrazoado. Como evidentemente lidamos antes com pessoas normais, com saúde mental e afectiva, aquilo não seria mais que um insulto disfarçado de intelectual. É uma última confirmação de quanto a instituição e o sistema social constituem, na opinião dos inquiridos (e aqui decerto partilhada universalmente pelos docentes), os grandes mentores de maus alunos que são a regra daquilo que o modelo escolar gera por estrutura. Entendendo-os do ponto de vista da aprovação ou não, no termo do nono ano, e já não contando com a larguíssima maioria que foi ficando pelo caminho por abandono ou insucesso, os sobreviventes contam entre eles menos de 10% que jamais fizeram a experiência duma reprovação (em 1985). Temos de concordar que é violento. Um outro sublinhado disto advém do único inquirido que recusou indicar uma razão de terceira ordem para haver maus alunos (ver quadro VI).


Com efeito, dado que todas as anteriores ocorrem no meio transtagano com forte interdependência mútua, bem como conjuntamente em grande parte decorrem das razões institucionais denunciadas, os dois aspectos podem entender-se como uma grande unidade complexa geradora das dificuldades dos educandos a um ponto tal que qualquer outra matriz diante disto se revela despicienda, sem relevância. Terá sido porventura o que entendeu o colega que se limitou a reportar duas razões para existirem maus alunos. Para ele não haveria mesmo terceira, uma vez que teria de ser repetitiva das que já anotara ou então iria recair em matrizes que ele eventualmente repudiaria, como seria decerto esta, pelas razões referidas.


Aqui chegados, porém, importa questionar o que se esconderá por trás dos dois colegas que, contra tudo, registam afinal que a incapacidade intelectual dos educandos é geradora de maus alunos. O número é tão pequeno e irrelevante que evidentemente nos não importa descobrir o que em concreto os respondentes tiveram em conta ao assinalarem este factor, mas antes tudo aquilo que pode levar alguém a optar, apesar de tudo, por este factor.


Em primeiro lugar há, de facto, estudantes que são retardados mentais, mesmo ao nível do ensino secundário, como os encontrámos psicologicamente marginais, inadaptados intelectualmente, no superior. Muito raros embora, estes provêm de duas origens, pelo menos (e excluimos os que requerem ensino especial e que obviamente não ultrapassam níveis de aprendizagem escolar rudimentares). Descobrimo-los oriundos de franjas sociais da classe alta que se não demite dos respectivos anéis e brilhantes e a que desdoura uma progénie intelectualmente débil. Constatámos e foram-nos narrados episódios burlescos de chantagem e compra de avaliações, nalguns casos hílares, noutros baixas e grosseiras. O facto é que por tais meios que rondam o foro criminal vão ocorrendo tentativas de corrupção mais ou menos encapotadas, pressões pessoais e ameaças que aqui e além vingam e então topamos com os rebentos alarves e definitivamente ignaros em anos de escolaridade elevada onde normalmente jamais teriam chegado. Estes filhos degenerados de gente-bem, na província e em meio dominantemente rural, tendem a concentrar-se nas cidades mais representativas, como ocorre nas do inquérito em análise. Uma outra fonte de tais estudantes é a franja social que, sentindo-se espezinhada e desprezada, responde a isto com forte complexo de inferioridade, o que a torna genericamente agressiva. Quando tal é o padrão familiar ou ambiental dominante, os filhos, mesmo débeis mentais (desde que não pronunciadamente), tornam-se renitentes, inflexíveis, às vezes trapaceiros (não hesitam no recurso a qualquer meio para burlarem o processo, mormente nas avaliações), desde que continuem singrando e afirmando-se. Então igualmente os podemos encontrar em níveis escolares para que não estão dotados ou por questões de humanidade (os docentes vão tendo pena e compensando a persistência deixando-os ir passando indevidamente) ou porque ludibriaram mesmo uma série de pessoas de boa fé, que não estavam de pé atrás e descuraram a vigilância da limpidez de recursos. Sinais disto encontrámo-los aqui ou além, uma vez que os estratos sociais de origem são identificáveis em todos os lugares.


Em conclusão, podem efectivamente encontrar-se educandos na zona limiar entre a normalidade e o atraso mental que vão singrando na escola, por mais excepcional que a situação seja em concreto. Pode haver ocorrido aos colegas que apontaram tal item terem enfrentado qualquer caso destes.


Há, porém, uma outra fonte de inadequação intelectual muito mais deletéria e que implica conotações inteiramente outras que as excepcionais que até aqui vimos anotando. A mais onerosa nestes meios é esta, ao que pudemos constatar e colher dos colegas da região. Trata-se do facto de que a plasticidade e o envolvimento concreto do intelecto têm limites, e um dos maiores é o de as capacidades individuais deste tipo se desenvolverem na estreita dependência da estimulação ambiental. Ora, em meios pobres, ainda pejados de crendices, superstições e dogmatismos cegos, é inviável desenvolver o espírito crítico em que cada vez mais se faz assentar o fito do desenvolvimento curricular. Igualmente, quado a vida decorre e se pauta pela garantia da sobrevivência e não há disponibilidade para outros voos, tudo se concentra na actividade concreta de que provêm os recursos para alimentar o dia a dia e isto não permite aceder a faculdades intelectuais mais elevadas como a reflexão abstracta e a criatividade formal. Ora, quando estas potencialidades se não estimulam e desenvolvem a partir do período em que principiam a poder sê-lo, vão ficando atrofiadas e de ano para ano tornam-se mais dificilmente recuperáveis. Então, o que ocorre com o professor que se confronta com turmas genericamente vítimas deste processo é que tem programas para trabalhar com elas que implicam graus de operacionalidade intelectual a que ainda não acederam os educandos. Ele enfrenta aqui uma alternativa sem saídas: ou avança no programa e este tornar-se-á inassimilável aos discípulos ou trata de ajudá-los a desenvolverem as capacidades bloqueadas e pára nas matérias. Qualquer das vias implica perdas, mas como esta última, que seria a escolha pedagógica, conduz à responsabilização disciplinar e infracção ao dever legal da profissão, o docente não tem mais que permanecer na primeira e tentar remendar como puder o que o tecido social lhe abandona rasgado na sala de aula. É uma luta inglória contra um factor que, à partida tido por inato e, portanto, invulnerável e inamovível, se revela afinal, por este pendor, como inteiramente dependente e ao arbítrio das estimulações que as situações comunitárias vividas ofereçam ao educando (neste aspecto, provém do aluno apenas a matriz, geneticamente condicionada, do crescimento e correspondente desenvolvimento e maturação de potencialidades, período por período).


Ora, esta dificuldade é geral nas escolas transtaganas, da província e do interior. Escapam-lhe mais as urbanas em que o grosso da população estudantil não é rural. Por esta via reencontramos, pois, o fio cujas múltiplas laçadas estamos sistematicamente surpreendendo, numa coerência notável e não menos notavelmente discriminatória destas terras e gentes ignoradas e perdidas, cujas condicionantes e estruturas de partida jamais são tidas em conta pelo sistema escolar, remetendo-as tendencialmente assim a maior ignorância e isolamento ainda. É óbvio que, dada a abundância de casos destes naquele meio e nos estabelecimentos inquiridos em concreto também, é muito mais provável que os registos que apontavam para o factor intelectual de maus alunos afinal se prendessem a esta experiência que implica, apesar de tudo, um incomum porque moldável entendimento da inteligência, contra o que primeiro reportámos, mais vulgar, que a conota como característica da espécie (“o homem é um animal racional”) e, por conseguinte, basicamente inata e independente da vontade e das circunstâncias do desenvolvimento dela.


De toda esta análise do que os inquiridos pensam provocar maus alunos temos uma confirmação final no modo como os resultados parciais se ordenam pelas prioridades (gráfico III). Em primeiro lugar, o facto de os dois colegas que apontaram a falta de capacidade intelectual dos alunos o terem feito no terceiro nível de relevância indica desde logo, relativamente ao sentido mais comum de tal item, quanto o secundarizam e, apesar de tudo, lhes causa engulhos o reportá-lo. Também não será indiferente à escolha em tal posição a ambiguidade de sentidos discerníveis por trás da referida razão. De qualquer modo, mesmo se o que entenderam pressupor foi, como mais provavelmente terá ocorrido, o derradeiro que analisámos, então o último lugar que lhe foi conferido sublinha quanto antes dele haverá de factores a ter em conta e anular para que este devenha, por fim, aniquilável.


Mas se naquela proposição as ambiguidades se reflectiram assim, nas que mais prioritariamente chamavam à pedra os reflexos duma instituição espelho duma sociedade estratificada e segregadora de largas maiorias que vivem permanentemente fora do festim do poder, do prestígio e dos privilégios, o perfil é outro e convenientemente adequado a deixá-lo transparecer. Efectivamente, quando reparamos nas distribuições relativas tanto à afirmação de que os alunos não têm interesse pelas matérias como à de que andam na escola contra vontade, verificamos que os votos se espalham muito uniformemente pelas três prioridades, com uma ligeira tendência para se concentrarem ou na primeira ou na terceira. Ora, isto deriva, obviamente, da ambiguidade de sentidos que discriminámos em cada uma destas razões. Os que sentiram que antes de mais punham em relevo o reflexo deletério dum factor institucional-social dos educandos, optaram certamente por lhe dar prioridade, tratava-se de apontar as vítimas ao escândalo e à rebelião pública. Os que, entretanto, foram mais sensíveis ao facto de que apesar de tudo estavam com isto acoimando alunos já de si esmagados, então inibiram-se para os não virem a sobrecarregar mais ainda de responsabilidades e, neste caso, considerando o relevo que a seus olhos apesar de tudo o factor reveste, optaram pela derradeira prioridade. No meio, evidentemente, ficariam os indecisos quanto a qual das tónicas sublinhar.


Resta, finalmente, o perfil completamente diferente da razão que sublinha a falta de hábitos de trabalho escolar, decrescendo regularmente do primeiro ao terceiro nível de relevância. O que aqui pesou, certamente, foi o aspecto decisivo que reveste este factor para vencer de vez o obstáculo escolar institucionalmente naquele meio implantado. Sendo o que notoriamente mais depende do aluno, é também o que mais eficazmente o pode salvar e onde mais o professor igualmente pode investir para colmatar lacunas, sem correr o risco de desviar-se do papel que lhe é imposto. Assim, faz sentido que, espalhando-se ainda pelas três prioridades, os totais de cada uma decresçam com a quebra da relevância. O que está em causa é demasiado importante, uma chave tão imprescindível que é de não ter muitos escrúpulos por sobrecarregar os discípulos. Pelo contrário, é aqui que tudo acabará por ser jogado, tudo será ganho ou perdido. Trata-se duma aposta definitiva.O perfil da distribuição corresponde-lhe, dando prioridade ao que efectivamente se reconhece tê-la, com o peso relativo que no contexto das demais razões lhe foi atribuído globalmente.


Como derradeiro item a que os inquiridos responderam no que se reporta às razões, segundo eles, de haver maus alunos, resta-nos o referente à falta de acompanhamento e de estímulo da família (qudro VI, razão 10). Ao todo, 19 assinalaram-no, 2 como primeira prioridade, 8, como segunda e 9, como terceira. É curioso apontar desde logo, antes de mais, que o total de opiniões as coloca exactamente a meio das somas dos factores relativos aos alunos, entre os montantes do segundo e do terceiro (24 e 13, respectivamente, como referimos). Depois, o perfil da trajectória da distribuição, agora aumentando regularmente à medida que desce o grau de relevância, exactamente ao invés do factor referente aos educandos que acabamos de comentar (gráfico III). Qualquer destes aspectos merece analisar-se.


Relativamente ao total de vezes que os inquiridos referiram que há maus alunos por falta de acompanhamento e de estímulo da família, o que em primeiro lugar ressalta é que é o número de anotações para este item único relativo ao meio de origem reflecte, no fundo, por corresponder à média dos quatro referidos aos educandos, que os professores sensivelmente atribuem pesos idênticos a esta matriz e àquela, o que sugere que as encarem mais como o anverso e o reverso da mesma medalha do que duas fontes autónomas de dificuldades escolares. É, com efeito, o que pudemos confirmar à saciedade no terreno e que a pesquisa mundial por múltiplas vias igualmente vem afirmando. Já atrás analisámos o bastante para se compreender a estreita interdependência entre o grau de escolarização dos progenitores e as probabilidades de sobrevivência escolar dos filhos. Esta interdependência opera, entretanto, nos dois sentidos: quando a família ou um dos pais é diplomado (e tanto mais quanto mais elevado o grau académico dele) os descendentes aproveitam disto, beneficiando em estreito paralelo com o que colhem no lar; quando, ao invés, nasceram de analfabetos pré ou pós-escolares ou então de indivíduos com quase nula escolarização, isto prejudica-os, inadaptando-os ao ambiente da instituição e concomitantemente não lhes garantindo nenhum recurso paralelo permanente exterior à aula para complementá-la, desdobrá-la ou então estimulá-los para quanto nela vai ocorrendo.


Isto implica que, se o inquérito colhera dados noutro ambiente, provavelmente o paralelismo iria manter-se, mas então, se fora em área urbana cosmopolita, a dominante recairia na sintonia entre o bom aluno e a origem familiar altamente escolarizada, constatando, como excepção, a franja dos menos numerosos maus estudantes convergente com lares sem escolaridade (carência que, aliás, nestes meios citadinos, tende a ser compensada pela convivialidade dos educandos com aqueles que à partida se encontram mais dotados e apoiados, aprendendo muito por empatia mútua). No contexto alentejano, porém, é a inversa que predomina, como, aliás, ocorreria em todas as escolas da província e do interior rural e serrano. O paralelismo confirma-se, só que a dominante é a negativa: após o maior volume de atribuições de responsabilidade à instituição, ficam em paralelo os alunos e as respectivas famílias como fautores de maus estudantes. Estes, com efeito, são aqui a regra (em 1985), como o é a desistência e o abandono escolar, como ainda as reprovações e o baixo rendimento generalizados. Indubitavelmente que a carência de acompanhamento e de estímulo familiar adequados à boa integração no padrão cultural do sistema afecta a quase totalidade dos educandos nestes meios.


Importa, porém, clarificar algumas ambiguidades. Antes de mais não se trata de desinteresse ou deslaçamento de relações interpessoais, como muitas vezes ocorre nas franjas de mau aproveitamento e comportamento marginal de filhos de gente-bem nas grandes cidades. Nestas, com efeito, aparece uma mancha de estudantes falhados devido a alheamento familiar que não provém da impreparação parental mas antes da demissão, ou por irresponsabilidade, ou por hiperactividade ou por doença emocional duradoira (psicoses, neuroses, esgotamentos...). Nestes casos as inadaptações dos educandos derivam tanto de carências afectivas insaciadas como do abandono familiar, ambos envenenando-se na mesma fonte. Aliás, situações destas podem ocorrer tanto em lares de classes elevadas como dos estratos mais baixos da escala social. Perante o desinteresse equivalem-se nos efeitos a preparação com a impreparação escolar dos progenitores, como é óbvio. Isto, porém, ocorre em casos isolados que felizmente estão muito longe de constituir regra, mesmo no coração lisboeta onde a vida mais solicitações, dispersão e tensão tende a desencadear, sem esperança de inversão nem de acalmia.


Ora, no contexto transtagano muito mais raros são fenómenos destes e não deparámos até com nenhum a nível das franjas sociais mais elevadas e escolarizadas. É um estrato de discípulos praticamente inexistente ali. Não só não há abandono da progénie como, ao contrário, há um empenhamento explícito e muitas vezes constringente, por excessivo, na escolarização dos filhos, como porta aberta a um porvir mais gratificante que o herdado de antanho. É isto que permite compreender uma atribuição tão elevada de pontos a este factor por parte dos inquiridos. Doutro modo, ele seria ignorado, se apenas se reportasse a casos de desinteresse familiar completamente irrelevantes na região. O peso que ao factor é atribuído advém do já delineado contexto em que ao enorme investimento por um diploma corresponde um igualmente abissal desfasamento relativamente aos padrões culturais escolares. A falta de apoio não é, portanto, voluntária, mas uma impossibilidade: a família não está à altura de prestar ao educando o serviço que ela bem desejaria mas para que se encontra inerme por inteiro. Isto obriga-nos a analisar outro aspecto que a particular distribuição pelas prioridades sugere. Com efeito, não é decerto por acaso que nesta razão de haver maus alunos os números sobem regularmente à medida que desce o grau de prioridade. É que os inquiridos constatam aqui o que pudemos múltiplas vezes verificar, a saber, que estamos perante uma faca de dois gumes. Assim como os progenitores altamente escolarizados, quando apoiam decididamente os filhos, lhes facilitam a carreira académica guindando-os a altos níveis de rendimento e a um sucesso normalmente garantido, assim também quando são analfabetos (factuais ou funcionais), se acompanham demasiado perto o itinerário escolar da progénie impedem que esta se aculture aos novos modelos, atrasam os educandos e inibem-nos, levando-os a interiorizar de modo dramático, angustioso, o conflito entre nos padrões familiar e institucional, muitas vezes gerando impasses explosivos ou esmagadores, conforme as personalidades envolvidas. Então como desempatar isto? É fundamental ou não o acompanhamento e estimulação familiar? Aqui diríamos quase que é imprescindível que tal não ocorra, pelo menos a determinados níveis e modalidades.


Convém, por conseguinte, clarificar o que se passa. Desde logo, é indiscutivelmente positivo que os progenitores tenham empenho em escolarizar os filhos e os apoiem no esforço pelo bom aproveitamento. A partir daqui, porém, tudo pode produzir efeitos contrários. Se pretendem, impreparados, acompanhá-los na aprendizagem, apenas logram aprisioná-los nos padrões valorativos e culturais de origem, em muitos domínios incompatíveis ou, pelo menos, com incidências concretas outras que os da comunidade escolar. Quando, mesmo não os tentando acompanhar no itinerário que terão de palmilhar solitários se os diplomas parentais lhes ficarem pelo caminho, apesar de tudo os pais se lhes grudam aos calcanhares, com uma vigilância ansiosa e um policiamento asfixiante, então, por empatia, aumentam-lhes o medo e a angústia, quebram-lhes a serenidade, tornam-nos descontroladamente emotivos, levando-os a perder a lucidez, a falhar por excessivo sentido da responsabilidade e tensão, acrescendo deste modo os demais factores de fracasso, inclusive retardando a descoberta e assimilação de novas sínteses pessoais do aluno para compatibilizar os padrões culturais em conflito. Nestes termos, se o factor de maus alunos constituído pelo alheamento familiar opera caso falhem os dois primeiros vectores de solidariedade com o educando (empenhamento na escolaridade, apoio ao esforço do aluno), o que em verdade não chega a ocorrer senão de modo insignificante em todo o Alentejo (e decerto na província por inteiro), já os dois últimos (acompanhamento da aprendizagem e vigilância) funcionam em sentido contrário e, o que é mais grave, advêm frequentemente no terreno do inquérito (e isto cremo-lo igualmente generalizável às regiões afins).


Ora, quando os colegas nos respondem com tão forte insistência, apesar de tudo, anotando o alheamento familiar, mas insistindo tanto mais quanto menor prioridade lhe atribuem, estão, no fundo, reflectindo a ambiguidade com que o item lhes aparece no terreno. Em primeira linha estão-nos constatando que os progenitores não conseguem seguir a par dos discípulos, nas matérias curriculares, no discernimento ético, nos padrões relacionais adequados à instituição. Não os acompanham nem estimulam a este nível por manifesta e invencível impotência. Mas se tal não é referido antes de mais como primeira prioridade (como afinal sabemos da sociologia escolar que se confirma que é, em termos de factor primordial de sucesso escolar), é porque os inquiridos se dão conta de que, apesar de tudo, estes educandos, ao fim e ao cabo, até estão fortemente apoiados no lar, muito embora apenas a nível do projecto de escolarizar-se (e já não dos conteúdos que reveste) e do interesse e solidariedade com o esforço e outras prévias condições afectivas e ambientais gerais de enquadramento. Porque tudo isto existe de sobra e até com risco de excesso é que não faz sentido referenciá-lo como razão de primeira prioridade. É que o que desta causa deriva como imprescindível antes de mais está, ponderado tudo, garantido, apenas a sequência que habitual e coerentemente desencadeia em famílias altamente escolarizadas aqui falha porque o meio é academicamente inculto (embora muitas vezes com uma riquíssima cultura popular hereditária e recriada permanentemente). Por outro lado ainda, a maior incidência das respostas na segunda e terceira prioridades acentua, para além disto, que a carência afinal escapa às vontades dos implicados, uma vez que deriva duma falha estrutural da herança do lar e do meio, insuperável por mera iniciativa individual e muito menos a curto prazo. Seria preciso uma revolução social, económica, política e cultural para pôr termo à lacuna de partida, em termos de tecido social e de vida colectiva. Obviamente, isto ultrapassa o poder de qualquer um como o de qualquer comunidade, até mesmo o da Nação inteira porque tal transmutação demora gerações. Uma transformação cultural é um fenómeno complexíssimo que envolve a personalidade inteira de cada membro nela envolvido bem como a dinâmica dos grupos e formações sociais que a protagonizam ou onde se reflecte e tal processo escapa quase por inteiro à intervenção voluntária de quenquer, como de qualquer instituição ou movimento, mesmo colectivo ou de massas.


A prudência, pois, aconselhou os colegas inquiridos a remeterem o factor em análise, pese embora a força que lhe reconhecem e que o total sublinha, para os graus de relevância menores. Assim, ele obrigatoriamente terá de ser encarado como derivado, posterior a outros que adquirem maior relevo e força. Para além disto, porém, o que estes votos denunciam é ainda a ambiguidade decorrente do equilíbrio instável que os dados do terreno nos revelam quotidianamente e que consiste no baloiçar entre o abandono e o excesso da presença familiar, contradição que aqui está dentro de cada relacionamento, de cada indivíduo. No fundo, a hesitação entre colocar o factor com forte peso e obter este pelo somatório das referências de menor prioridade também reflecte quanto se faz sentir a falta dum apoio e estímulo familiar adequados à assimilação dos programas e padrões consagrados escolarmente, mas igualmente quanto esta exigência pode devir contraproducente quando inadequada, inabilitada e exageradamente ansiosa ou sobreprotectora.


De tudo ressalta que, afinal, também aqui o mais relevante escapa aos interessados e agentes envolvidos, a parentela e os educandos. Efectivamente, o que deles depende e podem investir, empenham-no até exacerbadamente. O resto decorre duma condição social precária que os marginalizou (e continua marginalizando) relativamente à cultura erudita privilegiada (senão exclusiva) na escola, pelo que se encontram desarmados para levar o envolvimento até onde seria desejável para produzir os frutos por que aspiram e que os de melhor sorte obtêm até sem nisto repararem. É o que finalmente justifica que tão de perto se interliguem os votos nas razões dos alunos e nesta da família. Em ambos os pendores, afinal, constatamos que nos meios isolados da província e do interior o que mais relevo reveste é quanto deriva da organização estratificada da sociedade, do privilegiamento académico da cultura urbana, erudita e do escol das classes dominantes, o que vai garantindo e reforçando indefinidamente a manutenção e reprodução deste estado de coisas, impermeabilizando os acessos aos estratos superiores com o forçar à aculturação quem deles se pretenda aproximar. Aliás, mesmo os que a consigam será deste modo sempre através do revestimento dos respectivos padrões e valores, o que, apesar de tudo, é afinal uma nova forma de os consagrar, reforçar e eternizar acriticamente. Mesmo quando excepcionalmente parecem perder, as classes dominantes, ao fim e ao cabo, voltam ainda a ganhar e reduplicadamente, senão como estrato fechado só para indivíduos determinados, como estrutura, estatuto e justificação de quem de suas benesses compartilha.

Evidentemente que não deparamos com tais ambiguidades e complexidades em meios urbanos do litoral. Aqui a norma é a da linearidade dos relacionamentos. O mais que aparentado com isto encontrámos em escolas de periferia lisboeta, em que predominam franjas operárias e trabalhadores de serviços, nalguns casos com resquícios de agricultura em empresa familiar (por exemplo, em Alverca), foi uma exigência de perfeccionismo para vencer na competição, aqui muito violenta e muitas vezes deletéria de actividades de grupo, relações humanas e até de perfis de personalidade. Em todos os casos, porém, até porque o contexto convivial escolar oferta numerosos filhos de quadros técnicos e outros progenitores de formação académica superior, isto redunda em altos níveis de aproveitamento. Não conhecemos aqui nenhum aluno em que tal conjuntura se reflectisse negativamente no rendimento escolar. Os efeitos deletérios com que nos confrontámos neste contexto diziam respeito ao equilíbrio da pessoa, nestes jovens precocemente atirados para a cova dos leões, sujeitos permanentremente a uma tensão desgastante e a uma sobreocupação exclusivista e especializada demasiado temporã, cujos custos emocionais a prazo ameaçam destruir a abertura à vida e o saborear espontâneo e descontraído dos eventos de cotio. A neurose, a frigidez afectiva e a impotência vêm a caminho em tais casos, mas a escola rotulará de génios estes desequilibrados. A menor presença do aguilhão familiar também aqui redundaria num ganho de maturidade e felicidade para os educandos, muito enmbora à custa de menor brilhantismo escolar. Com efeito, a instituição, em tais momentos, opera do modo mais deseducativo, ao manter-se sobranceiramente cega e surda perante uma competição selvagem, em muitos sectores tecnológicos, económicos, industriais e científicos instalados, e que tritura quantos vai apanhando nos dentes da roda fria e por ora invulnerável dela. Mas que poderá a escola, quando são os próprios pais que jogam inpunes os filhos nos dentes da fera?


Felizmente casos extremos são uma excepção ainda rara, mesmo no meio da capital onde mais condicionantes o podem gerar. Cremos bem que no resto do País tal fenómeno será despiciendo. O problema é se no futuro não iremos, com a progressão industrial e económica em geral, cair gradualmente mais ou, pior ainda, em massa, nesta armadilha. Pelo menos por agora isto ainda é desconhecido na província e em todas as regiões onde a ruralidade impera. Aqui os obstáculos são doutra ordem e colocam-se a partir dum horizonte de desenvolvimento social muito mais recuado (do ponto de vista histórico e genético dos processos colectivos). Os professores de cada um dos meios têm de confrontar-se, por conseguinte, com realidades extraordinariamente diferenciadas e que obedecem a lógicas aparentemente idênticas, o que agrava ainda mais as dificuldades de se assumirem enquanto educadores e de lograrem, em tal projecto, resultados eficazes e gratificantes. De qualquer modo, não podemos deixar de reparar como a instituição escolar aqui opera a discriminação: no Alentejo, exclui o aluno como reprovado, o que afecta indirectamente o professor que se sente fracassar; em Lisboa premeia o perfecccionista, guindando-o aos lugares do topo, o que confirma e apoia o docente, deixando-o satisfeito com ele próprio e muito convicto de que está operando do melhor modo ao arrastar potencialmente estas vítimas indefesas ao desequilíbrio crónico, a prazo. Uma vez mais constatamos que esta posição é muito mais fácil ao educador de aguentar, para além de recobrir muito poucos educandos-problema, do que aquela, sempre culpabilizante, e ainda por cima atingindo uma larga maioria dos discípulos. Também aqui resulta beneficiada a região e os estratos sociais à partida mais dotados e são prejudicados e mais onerados os mais desprotegidos e esquecidos. Esta lógica é permanente, qualquer que seja o ângulo ou aspecto por que foquemos a análise. E eis como, dizendo de outrem, os professores, afinal, dizem deles próprios: encontrando os demais, encontram-se a si mesmos.


Mas, para melhor elucidar isto, vejamos como reconhecem o aluno.






CAPÍTULO II


Reconhecer o aluno

Análise das respostas dos inquiridos relativas ao modo como eles crêem que os discentes responderiam ao inquérito




a) O aluno assume-se

Análise das respostas em que se crê que o aluno se auto-responsabilizaria


As respostas dos colegas inquiridos não coincidem com as comentadas até agora quando lhes perguntamos a que razões é que julgam que os estudantes atribuem o fraco rendimento escolar dos maus alunos. Para comodidade da análise, desagregaremos as dez proposições que já conhecemos nas três grandes matrizes correspondentes a atitudes diferenciadas que se presumem nos educandos. A primeira de que aqui daremos conta reporta-se aos quatro motivos que directamente põem em causa os discentes; a segunda agrupará os três factores que responsabilizam os professores e deles falaremos na alínea seguinte; finalmente, a terceira agrupará as duas alusões à instituição escolar mais a única relativa à família e tratá-las-emos no termo do capítulo.




QUADRO VII



(1.ª)

%

(2.ª)

%

(3.ª)

%

Total

%










0

2

25

3

37,5

3

37,5

8

100

1

2

66,5

0

0

1

33,3

3

99,9

2

1

12,5

3

37,5

4

50

8

100

3

5

26,3

7

36,8

7

36,8

19

99,9

4

6

35,2

5

29,4

6

35,2

17

99,8

5

11

64,7

1

5,8

5

29,4

17

99,9

6

6

27,2

6

27,2

10

45,4

22

99,8

7

19

46,3

14

34,1

8

19,5

41

99,9

8

2

12,5

12

75

2

12,5

16

100

9

7

31,8

8

36,3

7

31,8

22

99,9

10

0

0

2

20

8

80

10

100



Quadro VII – Opiniões dos professores inquiridos nas escolas de Évora e Beja acerca das razões a que acham que os estudantes atribuem o mau rendimento escolar dos maus alunos, graduadas como 1.ª (mais importante), 2.ª e 3.ª (menos importante), dentre o leque das seguintes:

1 – Falta de capacidade intelectual dos alunos;

2 – Os professores não dominam bem a matéria;

3 – Os conteúdos e a forma como estão organizados os programas;

4 – Os alunos não têm hábitos de trabalho escolar;

5 – Os professores não sabem ensinar;

6 – Os alunos andam na escola contra vontade;

7 – Os alunos não têm interesse pelas matérias que têm de estudar;

8 – Os professores não têm boas relações com os alunos;

9 – As condições em que funciona a escola (n.º de alunos por turma, funcionamento dos directores de turma, ocupação de tempos livres, etc.);

10 – Falta de acompanhamento e de estímulo da família.

O zero na primeira coluna indica ausência de resposta.




Os inquiridos crêem que os alunos apontariam como razão mais comum (quadro VII) a de não terem interesse pelas matérias de estudo (total: 41), seguida pela de andarem na escola contra vontade (22 pontos), ficando após o apontamento de que eles não têm hábitos de trabalho escolar (17 registos), restando, por fim, a falta de capacidade intelectual (3 votos).

O que primeiramente ressalta desta distribuição é que a linha geral dela não diverge da que os professores referiram como sendo a opinião deles. Genericamente, portanto, eles crêem que não haveria grande discrepância no modo de ver dum e doutro corpo da escola. É o que resulta da incidência largamente prioritária nos dois primeiros factores indicados relativamente à escassa notação nos dois outros. No total, enquanto 40,6% das opiniões atribuem aos alunos as razões do mau rendimento escolar, 47,4% indicam que o mesmo ocorreria se fossem os educandos os inquiridos (quadro VIII). A diferença é, pois, muito pequena e nem sequer se alargaria notoriamente se atribuíssemos ponderações diferentes conforme a prioridade de cada resposta, uma vez que apenas esta última percentagemsubiria então para 50%.



QUADRO VIII



Professores

%

(% T. P.)

Alunos

%

(% T. P.)








Alunos

74

40,6

(41)

83

47,4

(50)

Professores

16

8,8

(9)

41

23,4

(24)

Escola

73

40,1

(42)

41

23,4

(23)

Família

19

10,4

(8)

10

5,7

(3)

Totais

182

99,9

(100)

175

99,9

(100)



Quadro VIII – Totais das opiniões dos inquiridos desagregadas por áreas de itens (alunos, professores, escola, família), quando se referem ao que eles próprios crêem que ocasiona o fraco rendimento escolar dos maus alunos (professores) e quando se reportam ao que crêem que os alunos acerca do mesmo indicariam (alunos). As colunas entre parêntesis registam as percentagens encontradas ao ponderarmos com peso 1,2 e 3 as respostas ao inquérito, respectivamente, de 3.º, 2.ª e 1.ª prioridade (totais ponderados).



Há, contudo, uma série de pormenores característicos nas distribuições que convém compreender porque nos vão desvendar o perfil que dos educandos se formam os docentes.


É elucidativo que ao factor de que os educandos denunciariam o desinteresse das matérias se atribuam 41 pontos (quadro VII e gráfico IV). Praticamente um total idêntico ao dos demais três em análise juntos. Pelo que nos foi dado constatar, tanto pelo trabalho directo com discentes como com os professores, a acusação de que os currículos não lhes interessam para nada é uma constante entre os alunos e, curiosamente, confirmámos isto tanto na planura alentejana e regiões afins, como entre os arranha-céus lisboetas ou os fumos da respectiva cintura industrial. Estamos aqui perante algo de mais grave e fundo, quando provém do eco dos educandos, do que ocorreria se perspectivado por outro ângulo. Acumulam-se por trás desta concentração múltiplos desajustamentos de sentidos vários e, nalguns casos, contrastantes.


Desde logo e no que se reporta à província e interior do território em geral, isto é o afloramento do conflito da cultura urbana cosmopolita, consagrada em exclusivo pela escola, com os padrões da ruralidade que já atrás analisámos quanto baste. Se, porém, fora apenas este pendor de desajustamento o que aflorara na votação, ele decerto não teria razão para ocorrer em zonas urbanas litorais, contrariamente ao que se verifica. Efectivamente, se o inquérito nesta parte incidisse em colegas de escolas alfacinhas, portuenses ou coimbrãs cremos bem que não seria muita a divergência relativamente a este item, tão constante e monocórdica é a queixa de desajustamento curricular. Há vários outros níveis de arbitrariedade desmotivante por trás das escolhas programáticas, atingindo no geral todos os alunos, qualquer que seja o meio de origem. Em primeiro lugar, para além da lógica dedutiva subjacente à organização de cada matéria e que já comentámos suficientemente (e neste aspecto o modelo desajusta-se de qualquer aluno, seja qual for o meio originário), há uma completa ignorância e desprezo das motivações predominantes em cada período etário de desenvolvimento dos discípulos, tanto na opção pelos conteúdos científicos como nas indicações de objectivos a colmatar, como ainda nas indicações didácticas, mormente ao nível das estratégias e recursos. É espantoso que a cegueira se mantenha indefinidamente em tais domínios, com os responsáveis, incluindo os docentes, indefectivelmente preocupados apenas com o que decorre das exigências sociais, assentes nos padrões da adultez (cognitivos, relacionais e laborais), e não haja maneira de descobrirem que os estudantes têm expectativas e carências características de cada estádio de desenvolvimento e que são estas que dão o colorido e a força particulares às interiorizações de motivos partilhados com a comunidade de vida. Isto levou a que, nos cursos que monitorámos pelas escolas relativos a este domínio, o que íamos analisando caísse como uma bomba, uma mensagem do além, desencadeando a estupefacção e, felizmente também, em todos os casos, um enorme entusiasmo por explorar o filão e pô-lo a render. Ora, esta situação institucional e funcional de alheamento generalizado vitima os estudantes onde quer que seja e, muito embora a não logrem diagnosticar, eles permanentemente e em todo o lado nos gritam o afloramento do mal-estar que fatalmente lhes provoca.




GRÁFICO IV








Gráfico IV – Respostas dos inquiridos aos itens em que presumiram que os alunos se auto-responsabilizariam, conforme foram referidos como razões de 1.ª, 2.ª ou 3.ª prioridade para o fraco rendimento escolar dos maus alunos




Mas há igualmente uma outra vertente comum cujo sentido é claramente inverso deste e que importa denunciar. É que, por influência do esforço de renovamento pedagógico, da procura do equilíbrio da relação educador-educando, as indicações para uma busca de reforço positivo, de empatia, de exercício da autoridade e disciplina compartilhadas derivaram para uma leitura e prática tendentes a minorar e desvalorizar quanto é esforço, espírito de sacrifício, desconforto, dedicação ao trabalho. O resultado é que os educadores cada vez mais têm dificuldade em conotar positivamente valores deste jaez, o que redunda numa lei de facilidade como critério do que é certo ou errado, a ponto de que a preguiça, o divertimento fútil e a superficialidade acabam por tornar-se normativos, um ideal a propugnar pelos educandos. Obviamente que, quando, orientados pela lei do menor esforço, estes se confrontam com os programas (os actuais ou os mais adequados do mundo), a tendência é para o repúdio: eles dão, de facto, muito trabalho e requerem muita disciplina e uma boa e exigente gestão do tempo e energias. Tanto quanto se deixaram impregnar por um ambiente que confundiu a busca do mais adequado com o mais fácil (e na prática até pode ser o contrário, por muito que em geral aquela correspondência se verifique, mormente a nível do pôr em acto faculdades intelectuais que dependem de maturação biológica), estes alunos contestam todo e qualquer currículo, uma vez que o único que lhes agradaria e corresponderia à lógica do prazer era o que transmudasse a escola num mero parque de diversões, em festa permanente. Obviamente que tal atitude é compartilhável indiferentemente pelos estudantes de qualquer região do País e igualmente em qualquer parte é injustificável e condenável. É toda esta amálgama de razões que se acoberta por trás do coro de lamentações que universalmente ouvimos e de que na notação do inquérito em análise os colegas nos dão conta.


Quanto às 22 opiniões (gráfico IV) de que os alunos refeririam andar na escola contra vontade, para além de reflectirem o desconforto que no Alentejo e na província em geral o confronto com os padrões escolares provoca, o que seria acompanhado de perto pelos professores de áreas urbanas típicas, embora para franjas numericamente reduzidas de estudantes por imposição parental em busca de estatuto social ou de o não deixar perder ou usurpar, como atrás reportámos, para além de tudo isto, a quebra numérica relativamente à razão anterior aponta uma outra vertente da experiência transtagana que pudemos largamente constatar. Os educandos, vimo-lo, aderem em regra desesperadamente à tentativa de escolarização como derradeira tábua de salvação antes do retorno ao tractor ou ao monte, para eles sinónimos da fatalidade hereditária que, pobretanas, os condenará até à morte. O que os inquiridos nos pretendem referir ao presumir que os estudantes indicariam isto não é que estes não queiram andar na escola mas que gostariam que ela fosse outra e, conseguintemente, que frequentam contrafeitos o que ela é. Por outro lado, isto implica consciência do que também múltiplas vezes encontrámos, a saber, a busca generalizada doutras alternativas de saída, dado o malogro que a escolaridade de facto largamente constitui (e a emigração, miragem primeira, continua sangrando povoados inteiros, deixando a fronteira semeada de aldeias-fantasma). A não ser assim, o número que neste item encontramos deveria ser muito mais elevado e nunca reduzir-se a metade do primeiro atrás comentado. A não terem pesado vectores como estes, a tendência seria para a equiparação das respostas, uma vez que aquela primeira implica necessariamente esta, a não intervirem outros aspectos de sinal contrário (apego obsessivo à escolarização) como de facto intervêm. Cremos, aliás, que a configuração de paralelismo seria a tendência se o inquérito colhera os dados na área urbana litoral, justamente por aqui não operarem linhas de força como estas com a relevância com que as encontramos pelo Alentejo além.


Próximo deste factor encontra-se, no somatório, o que refere que os alunos confessariam a falta de hábitos de trabalho escolar, com 17 registos (gráfico IV). Acreditar que tal ocorreria revela a lucidez destes colegas e o quanto a empatia das relações humanas que logram cultivar com os educandos lhes permite apreender, em geral, como eles efectivamente são e se comportam. Com efeito, um número tão elevado de pontos para este item que põe em causa grandemente a eficácia do empenho, até o brio dos discípulos poderia crer-se ingénuo ou irrealista. Decerto o seria em regiões privilegiadas, onde os alunos são mais orgulhosos e impertinentes, cheios de autoconvencimento quantas vezes vazio e até mesmo despudorado, petulante. Acolá, porém, toda a nossa experiência confirma que corresponde à verdade. Os discípulos são em geral humildes, hospitaleiros e revelam uma inesperada disponibilidade e amabilidade que torna muito francas e transparentes as relações humanas entre eles e principalmente com os docentes. Ora, neste contexto, a preocupação destes por ajudá-los a estudar corresponde estreitamente à solicitação (diríamos faminta) dos educandos por informações, apoios e demonstrações que lhes permitam atingir a mestria nesta chave fundamental para o sucesso. Pude constatar o entusiasmo com que turmas inteiras se envolveram em tarefas deste domínio a fim de conseguirem finalmente dominar a regra do jogo, para eles difícil, da escolarização, por vezes com sacrifícios violentos que não vejo como encontrariam paralelo, por exemplo, em qualquer escola lisboeta, mesmo periférica (aqui o peso do factor é, como vimos, diminuto, mas mesmo nos casos individuais em que adquire relevo não deparámos com alunos muito empenhados em jogar forte para obtê-lo). A autoconsciência e a libertação de falsos pruridos são uma constante do discípulo da província com formação de pendor rural. A franqueza e a lisura ainda ali são valores de peso que a massificação, o anonimato e as defesas requeridas para neles se autopreservar (mormente a dissimulação, o auto-apagamento expressamente voluntário, a astúcia e a duplicidade) ainda não lograram anular. É disto que certamente o relativamente elevado peso de pontuação é reflexo. E só não é mais elevado porque de facto outros factores de mais vulto o antecedem, condicionam e vitimam mais do que a falta deste instrumento fundamental de habituação aos requisitos do sistema. Aliás, não podemos ignorar que ele se adquire com a persistência e o gradual e repetido ajustamento de comportamentos e que o forte empenhamento geral destes alunos pode atingir, a prazo, aquele objectivo. Acontece é que para muitos ele ainda não vai ser bastante, o abismo cultural é demasiado e nem assim lograrão transpô-lo, baqueando perdidos algures pelo caminho.


O último item refere-nos que três alunos registariam a incapacidade intelectual para as tarefas escolares (gráfico IV). Isto, continuando diminuto, é todavia mais do que a opinião dos professores tolerou que a tal factor se cometesse. Que quererá tal dizer? Apenas o que é um dos efeitos mais demolidores do sistema escolar: há alunos que se convencem de que são intelectualmente não dotados, condenando-se fatalmente assim ao descalabro. É evidente que tal convicção os deixa em paz de consciência e sem complexos de culpa. Se o intelecto não dá mais, nada resta a fazer, é um facto consumado. Quem dá o que pode, a mais não é obrigado, diz o povo. Nesta lógica, o educando liberta-se de responsabilidades, ele não tem culpa da inteligência que tem, com que nasceu dotado. É uma forma de libertar-se da angústia e de desculpar-se do fracasso perante a família e o meio que nele investiram esperanças que murcham. Nesta vertente, os efeitos até são salutares enquanto evitam o esmagamento pessoal e as sanções comunitárias. Contudo, ao retirar do próprio o controlo do processo torna-o um joguete de condicionantes pretensamente invariáveis e de natureza, determinadas fatalisticamente. Por um lado é o próprio que se autodemite de agir e enfrentar os obstáculos, mas, por outro, é remeter responsabilidades a instâncias que jamais poderão responder por coisa alguma, deixando de fora, por inteiro impunes, as que verdadeiramente ocasionam e reproduzem tal estado de coisas, justamente o sistema escolar e a sociedade que reflecte passivamente, nos seus mecanismos mais discriminatórios, cegos, impossíveis de fundamentar quanto mais de defender e propugnar como ideal educativo, como implicitamente acontece ao correr de cada dia (programa latente). Evidentemente que, deparando nós com alunos que funcionam dentro de tal lógica, como em toda a província ocorre, não é de estranhar que os inquiridos o tenham reportado, de modo suficientemente notório, no inquérito. Tratando-se, porém, duma alienação, embora promovida pelo sistema, não colhe, felizmente, a maioria e daí o número quase irrelevante que no contexto das respostas reveste. Claro que não cremos que tal situação ocorresse nas zonas privilegiadas. Aqui certamente nenhum aluno confessaria tal, e muito menos os poucos retardados mentais das famílias-bem que ali encontramos. Os professores andam também informados de que tal é a situação e é provável que não cressem que algum aluno apontasse tal razão para o mau rendimento escolar.


Relativamente aos perfis de cada distribuição convém reparar (gráfico IV) que a prioridade da razão relativa ao desinteresse pelas matérias curriculares surge bem reforçada pelo regular e grande acréscimo de registos à medida que subimos da terceira à primeira prioridade atribuída a tal factor (8, 14 e 19, respectivamente). Aliás, mais relevante isto é quando notamos que dos quatro é o único que tem tal distribuição, sendo, por outro lao, aquele que maior número de votos colheu em absoluto no primeiro e segundo escalões, mesmo em relação a todas as dez razões do inquérito. Isto confirma com mais força ainda do que ocorreu aquando da mera explanação da opinião própria dos professores que estes sentem que o peso desta causa afecta e é consciente nos educandos. Ao invés, o segundo motivo, o de os alunos andarem na escola contra vontade, se do total, praticamente metade do anterior, já concluíamos que tinha por certo relevo muito menor para os educandos, ao que crêem os inquiridos, resulta confirmado pelo facto de a tendência dos totais parciais ser inversa, crescendo das duas primeiras para a terceira prioridade (6, 6 e 10, respectivamente). O facto de os professores acreditarem que os alunos convergiriam mormente no derradeiro escalão sublinha ainda a ambiguidade com que esta razão intervém: por um lado, a vontade dos estudantes agarra-se à escolaridade; por outro, a afectividade espezinhada detesta-a e espicaça-os a fugir. Permanecer a contragosto mas por opção deliberada é o que a maior parte vive naquela região. Os alunos, logicamente, não iriam decerto colocar isto como primeiro vector mas, por outro lado, não ignorariam o mal-estar generalizado e permanente que os aferroa. A maior incidência na terceira prioridade indicia que também aqui os colegas abordados estavam por dentro da realidade, deixando transparecer o estado de espírito dominante que recolheram dos discípulos.


Contrastando com as distribuições anteriores, a falta de hábitos de trabaçlho escolar recolheu uma votação uniformemente espalhada pelos três grupos de relevância (6, 5 e 6, respectivamente). Tal resultado reflecte uma particularidade constatável nestes educandos e de que já vimos que os professores tomam nota, na vertente do peso decisivo que aquela carência reveste para garantir a sobrevivência escolar. Pois agora o que ressalta, para além disto, é que eles anotaram um outro aspecto perceptível do modo como esta lacuna é assumida pelos alunos. Com efeito, estes, quando se dão conta do primado de adquirirem hábitos adequados ao que visam na instituição, jogam forte neles e mantêm-se lúcidos quanto à eficácia determinante que detêm. Quando, porém, ainda não penetraram em tal domínio, mantêm uma incrível obtusidade em compreenderem do que se trata, é como se fora algo estranho e intraduzível que pressentem, que ouvem insistentemente os professores referirem mas, não logrando experimentá-lo na carne, não chegam a integrá-lo adequadamente nem sequer ao nível da compreensão, é qualquer coisa de mais ou menos misterioso, porventura mágico. Ora, esta diversidade de situações e as intermédias dos que principiam a ajustar-se adequadamente às exigências do labor escolar levam a que se compreenda porque, afinal, nos aparece neste item a opinião, por parte dos professores como todo, de que os alunos se distribuiriam equitativamente pelas três prioridades. É que os mais lúcidos apontariam tendencialmente, quando escolhessem este factor, a relevância máxima, enquanto os que o não conseguiram ainda entender mas sofrem permanentes alertas para dele curarem tenderiam mais para o derradeiro nível, situando-se no meio os que se encontram em transição pessoal de padrões de trabalho.


Muitos colegas nos deram conta, de facto, ao falar deste obstáculo, da estratificação que provoca nos educandos, o que é explicável por extrema falta de indivíduos de referência adentro da convivialidade estudantil para os discípulos disporem de modelos vivos dos estratos escolarizados com que possam sintonizar-se por empatia, num processo de osmose quase inconsciente. Todos sabemos que no ambiente urbano cosmopolita, mesmo em escolas periféricas, auele feixe de convívio existe em proporção vasta e é um dos melhores recursos de que o estudante oriundo de franjas descolarizadas pode deitar mão para conseguir integrar-se no meio e adquirir os hábitos a ele adequados. Mesmo em escolas de capitais de distrito, no Alentejo e província em geral falha este recurso (são diminutos os filhos de diplomados universitariamente, até mesmo ao nível médio e técnico). O efeito, na razão em análise, é uma extrema dificuldade em dar-se conta do que é ou não mais relevante para ser bem sucedido. Daí que a presunção dos inquiridos seja uma vez mais perfeitamente coerente com esta realidade, ao espalhar os pontos presumíveis dos alunos equitativamente pelas três prioridades.


A distribuição dos registos atribuídos à incapacidade intelectual dos alunos acentua também a gravidade desta opção quando eventualmente ocorresse por escolha dos educandos. De facto, apesar da pequenez do número, aqui a escolha foi para os extremos (2, 0 e 1, respectivamente), com maior relevo para a primeira prioridade. Isto é o resultado do conhecimento que os inquiridos têm do autoconvencimento dos discípulos que se desculpabilizam com este factor.

Efectivamente, em geral a leitura que dele praticam incide na vertente fatalista e do condicionamento genético inamovível que ele habitualmente reveste na cultura dominante. Não atingiu ainda este estrato de educandos a perspectivação do desenvolvimento intelectual pelos períodos etários e menos ainda a da dependência dele do enquadramento e estimulação ambiental de que muitos professores estão informados e onde investem fortemente para alterar possibilidades e limitações que por outras vias vitimam os alunos. Ora, é neste contexto de sentidos que se compreende que a presunção do voto dos estudantes penda mais fortemente para atribuir à razão em análise a primeira prioridade. Esta, aliás, seria a adequada se efectivamente nos confrontássemos, de facto, com débeis mentais ligeiros, o que se não confirma em tais meios (não encontrámos senão um único caso, em Moura, nos milhares de contactos estabelecidos, ao contrário do que nos ocorreu na região lisboeta). A não ocorrer o registo ali, então ele tenderia a incidir no polo oposto, agora por outra ordem de razões. É que a incapacidade mental nos meios populares é um motivo de desprestígio, para muitos é uma vergonha, até mesmo chega a culpabilizar os progenitores. Aqueles que concomitantementem ficarem convictos de que tal é um factor de maus alunos a apontar e de que ele é de algum modo vergonhoso, uma mazela a encobrir, esses acabarão por remetê-lo para a derradeira prioridade, onde obviamente revestirá menor peso e ficará mais recatado, será uma denúncia mais discreta. De qualquer modo não deverá, em nosso entender, jamais ter-se em conta como defensável a hipótese de que estes educandos optariam por tal em virtude de estarem alertados para a vertente culturalmente dependente, susceptível de aprendizagem, do desenvolvimento do intelecto humano. Quando conhecemos o meio, tal hipótese seria inteiramente utópica. Não afirmaríamos o mesmo relativamente aos discípulos das zonas costeiras urbanas mais privilegiadas, mormente nos anos terminais do unificado, onde já encontrámos a assunção e debate de temáticas destas, embora excepcionalmente. Para além de tais considerações, porém, é de ter em conta que o número é tão baixo, em qualquer dos extremos, que pode, no inquérito, em concreto, ser devido a factores aleatórios por inteiro incontroláveis. O que analisámos apenas faz sentido, como é evidente, tendo por referência não apenas o grupo inquirido, demasiado restrito para poder ser representativo doutrem que não dele próprio, mas, para além, toda a realidade das comunidades escolares nos diferentes meios e com as diferenciações culturais com que nos foi dado trabalhar e conviver larga e intensamente de há longos anos a esta parte. De qualquer modo, não deixa de ser curioso e certamente não fortuito o facto de os indicadores numéricos do inquérito tão estreitamente se ajustarem a vectores, tendências e padrões que pudemos testemunhar ao vivo em cada estabelecimento e em cada terra.


Convém aqui anotar a inesperadamente elevada quantidade de falta de respostas, nesta parte do questionário (8 ao todo, espalhando-se pelas prioridades com os números parciais de 2, 3 e 3, respectivamente). Aqui há uma nítida diferenciação da atitude dos inquiridos quando se lhes pediu o que opinavam eles próprios das razões geradoras de maus alunos (qudro VIII : 182 respostas para 175 da segunda perspectiva). E se lá encarámos a falta de resposta como estreitamente ligada à recusa de indicar o factor intelectual pela conotação fatalista que reveste, aqui não nos parece que por trás disto haja nada de paralelo. O que ocorre é que apanhámos no grupo inquirido um sector de professores que são uma larguíssima franja por terras transtaganas e só admira que apenas em número de três se reflectissem nos resultados do inquérito. Eles constituem, entretanto, o fruto mais frustrado e dolorido do desterro das colocações. Já vimos quanto a planura alentejana é o vazadouro malquisto dos restos de todos os concursos, o lugar para onde são pontapeados quantos docentes concorram a todo o território e não encontrem vaga em nenhum outro poiso. Muito poucos ali vão parar por escolha própria, a regra maioritaríssima é a de que não têm outro remédio, mormente fora das áreas urbanas, nas escolas mais isoladas. Ora, no geral, estes colegas acabam com graves problemas familiares, submetidos a tensão emocional permanente, não logrando prestar assistência e apoio aos filhos e ao lar; por outro lado, sentem-se como peixe fora de água, não sabem conviver nem saborear a cultura do meio onde foram cair, entram em conflito mais ou menos aberto com eles próprios e com o ambiente.


Nestas condições, o mais estranho é que tão poucos, afinal, fiquem sem resposta relativamente ao que os alunos responderiam. Efectivamente, o que primariamente os números indiciam é que justamente estes itens ficaram sem resposta porque os inquiridos a não tinham, ignoravam inteiramente o que é que aqueles alunos hipoteticamente responderiam. Nas condições subjectivas e familiares em que um leque tão vasto de colegas ali labora, nalguns casos abarcando praticamente a totalidade do corpo docente que muda todos os anos quase por inteiro em determinadas escolas, não admira que alguns fiquem inteiramente perplexos quando se lhes pergunta pelo que pensam os alunos. Não chegam a ter tempo, nem psiocológica e culturalmente estão aptos a colher de modo suficientemente seguro semelhante informação. Que esta é a razão e não outra qualquer confirma-o o facto de um dos três que tiveram de se remeter ao silêncio neste capítulo acabar por conseguir, apesar de tudo, referenciar uma razão, no primeiro escalão, decerto por se lhe antolhar das mais óbvias. É por isso que não temos número igual nas três prioridades.


Perante isto poderíamos questionar-nos acerca do brio profissional, da deontologia destes colegas que andam um ano inteiro a leccionar (o inquérito ocorreu no termo dele) e nem sequer chegam a conhecer os alunos o bastante para responder ao que se lhes pedia. Será porventura o reparo dominante de quem conviva prioritariamente com escolas e colegas das regiões preferenciais. Para quem sofreu na carne as condições em que encontrámos os professores do Alentejo a laborar, mormente os mais isolados das escolas pequenas, o problema é outro e realmente inverso: como é possível que no fim apenas três fiquem sem dados bastantes para se definirem? Deveria ocorrer o fenómeno em muiito mais larga escala, em princípio, dada a violência dos estrangulamentos existenciais de que por todo o lado tomámos conhecimento, agravada pela falta de instalações, equipamentos e recursos generalizada, e atendendo ainda ao pressuposto curiosamente dominante na cultura urbana nacional de que o docente é um privilegiado parasitário, permanentemente descartando-se de responsabilidades e que precisaria de vigilância estreita e intransigente (as repressões ministeriais de greves, de experiências pedagógicas, a surdez perante organizações sindicais e os comentários doutros licenciados, engenheiros e demais sectores de alta formação académica dão o tom e encontram eco generalizado em largas franjas sociais). Se efectivamente este último fora o sentido profissional dos colegas da região, não duvidamos de que o resultado do inquérito seria totalmente outro.O que ocorre é que tudo opera ali ao contrário.


Se em Lisboa encontrámos e trabalhámos com muitos professores instalados, comodistas e demissionários ou descrentes, confirmando os dados universais da pesquisa relativamente ao empenhamento docente por fases etárias e no que particularmente respeita aos anos prévios à reforma (e sabemos que nos grandes centros é esta a faixa dominante nos corpos docentes), já no Alentejo o que permanentemente ressalta (nalguns casos é exclusivo) é a franja da juventude e primeiro período da adultez, aqui como universalmente cheia de idealismo, abnegada, com projectos e sonhos tão generosos quanto escassos de meios para ganharem corpo. Ora, isto produz pelo menos um efeito positivo largamente gratificante. É que, contra ventos e marés, e onde outros certamente em massa baqueariam, estes logram criar relações pedagógicas vivas, até atendimento de casos, avançam com trabalhos de projecto, revelam uma vontade indomável de vencer, produzindo educação de qualidade. É quase um quixotismo. Foi, porém, o que por todo o lado encontrámos e ajudámos a incentivar, fascinados nós próprios com o entusiasmo neste universo de desesperos. Ora, é isto o que justamente explica porque, afinal, tão poucos acabem por ficar tão alheados do mundo dos alunos que não consigam aventar hipóteses sobre o que eles pensarão. Com efeito, pela nossa própria experiência, isto é efectivamente real: em toda a parte, e mesmo quando as condições pessoais eram as mais desesperadas e aflitivas, sempre encontrámos nos colegas uma acuidade e lucidez, um cuidado e atenção aos educandos (até a cada um destes individualizadamente) como jamais nos foi possível constatar no concentracionarismo dos estabelecimentos alfacinhas, onde o anonimato é a lei, a massificação, a regra do jogo, e o acatamento de tais alienações, a atitude mais natural e deontológica do mundo. Certamente que o número deveria, apesar de tudo, ser outro se colhêramos os dados nas escolas perdidas pelas terreolas da charneca e não em duas capitais de distrito. Sabemos (e já o anotámos) que nestas últimas há um estrato já representativo de professores residentes, definitivamente fixos, que evidentemente não têm dificuldades em dar conta deste aspecto do inquérito e que não encontram paralelo naqueloutros estabelecimentos. Fica, entretanto, claro, que o que os números em análise indiciam não é uma irresponsabilidade, bem ao contrário. Aquilo é o fruto abortivo duma esperança desesperada que não desarma mas que não logrou ir mais longe nas condições em que empenhou o sonho. Por estranho que pareça, nos milhares de encontros de trabalho e de convívio que durante anos tivemos o privilégio de cultivar, não registámos um único em que qualquer colega, por mais intolerável que lhe fosse a vida e as circunstâncias, assumisse a atitude de demitir-se e deixar correr quando estavam em causa educandos. Pode ser difícil de compreender ou de aceitar uma realidade destas. Factos são factos, porém, e não lográmos anotar sequer uma excepção para consolo de cépticos ou acalmia de consciências de asas murchas.






b) O aluno projecta-se

Análise das respostas que referem que o estudante responsabilizaria o professor


Após analisarmos como os professores crêem que os educandos assumem as próprias responsabilidades nos itens do inquérito que os põem em causa, importa conferir o modo como julgam que eles abordariam os respeitantes aos docentes enquanto fautores de maus alunos (quadro 7, razões 2, 5 e 8). Relativamente à hipótese de referirem que os professores não dominam bem a matéria, ao todo crêem que ela ocorreria 8 dos inquiridos. A afirmação de que os docentes não sabem ensinar recolheu 17 pontos. Finalmente, a de que não têm boas relações com os alunos foi apontada 16 vezes (gráfico V).




GRÁFICO V









Gráfico V – Respostas dos inquiridos aos itens em que presumiram que os alunos responsabilizariam os professores, conforme foram referidos como razões de 1.ª, 2.ª ou 3.ª prioridade para o fraco rendimento escolar dos maus alunos



Destes números sobressai primeiramente a tendência geral para serem relativamente elevados. Com efeito, eles ficam apenas abaixo das duas primeiras causas atribuíveis aos alunos e situam-se muito próximo dos totais referentes à instituição que analisaremos na alínea seguinte. Isto demonstra quanto os inquiridos (e os professores em geral) presumem que os educandos tenderão a projectar sobre eles as responsabilidades, fugindo de tormar nas próprias mãos o destino escolar deles mesmos. Isto corresponde à expectativa geral das pessoas quando há problemas na vida: sabemos que é mais fácil bater a penitência no peito dos outros que no próprio, cada qual tende para a autojustificação, foge habitualmente a culpabilizar-se. Isto é pendor geral constatável até na vivência de cotio. Nada, porém, comprova nem permite que se verifique em toda e qualquer franja social, mormente tratando-se de manchas populacionais com perfis específicos muito delimitados. Aqui podem ocorrer excepções à dominante geral. Já vimos que tal é justamente o caso relativamente aos professores que, entre nós com onde tal quesito foi inquirido, se demonstram avessos a projectar, mormente sobre os educandos, as responsabilidades dos fracassos, contrariamente ao que seria de esperar. Apesar disso (quadro VIII), 8,8% apenas é que se auto-responsabilizam, contra a expectativa de verem 23,4% dos discentes fazerem-no. Claro que teremos igualmente de afirmar aqui que, no geral, eles também não caem na armadilha de presumir que os alunos o farão, doutro modo seria nesta área que convergiriam as respostas e já vimos que não. Mas o facto de, apesar desta dominante, ainda assim um vasto leque ter entendido que seria de registar itens destes revela que há uma sensibilidade notória à expectativa comum de que ocorra um processo de transferência de culpas-causas. Será que, de facto, os alunos tendem efectivamente a praticá-lo ou farão excepção neste particular ao processo social, à semelhança dos professores? Terá alguma correspondência factual esta leitura que do corpo discente é praticada pelos docentes?


Em termos gerais temos de confirmar que a experiência nos comprova que os educandos são de longe mais vulneráveis àquele processo, mormente quando em grupo (nos conselhos de turma, em secções associativas ou em trabalhos de projecto), pelo que a probabilidade de passarem culpas cremos que seria de facto maior do que ocorreria com docentes. Nesta perspectiva, o facto de os números serem intermédios (como reportámos) não estará porventura desajustado. Acresce que tal fenómeno é compreensível nesta faixa dos escolares uma vez que eles partilham fortemente das tendências sociais ambientes de que faz parte o processo em causa. A menos que uma atitude crítica se exerça em tal domínio, a tendência será a de reproduzir o padrão comummente vivido no meio de origem. Ora, é pouco provável que os alunos tenham possibilidade alguma vez de o pôr em questão, pelo que o automatismo de autodefesa operará decerto acriticamente e de modo mecânico entre eles muito mais do que no sector docente. Este, com efeito, é obrigado pela formação, pelas imposições funcionais, pela organização e participação escolar, a questionar-se de modo muito mais preciso e crítico acerca das responsabilidades que a cada um competem nas vitórias e fracassos da aventura educativa. É isto que o leva, no fim, a não operar de acordo com o padrão socialmente dominante da projecção, mormente de culpas, para se assenhorear exclusivamente de vitórias. O simplismo deste modelo comportamental seria deseducativo permanentemente se os educadores o não ultrapassassem de modo que as atitudes correspondam melhor à realidade e às transformações desejáveis das personalidades envolvidas na relação pedagógica. Também em virtude destas razões parece de confirmar que a expectativa de os alunos culparem os professores das dificuldades próprias não é exagerada, ao nível com que nos aparece no inquérito.


Há, porém, outros pendores que nos importa relevar para compreendermos com precisão o que está por trás dos números. Estes estudantes, oriundos dum meio predominantemente rural e com fortes resquícios da família moira, com um patriarcalismo rígido e uma tradição dogmatizada intolerante, tendem a aparecer-nos numa de duas atitudes: ou são submissos e ingénuos e então todo o mal que lhes ocorre a eles próprios o tendem a atribuir ou se rebelam contra a opressão ambiental e ancestral e mais facilmente irão ajustar contas com outrem. Quando acorrem à escola, tal indicia preferencialmente que pretendem promover-se, alterar a ordem implantada e, conseguintemente, que recairão mais provavelmente no segundo padrão. Por aqui também se reforça a justeza da atribuição hipotética que os inquiridos registaram. Convém, contudo, não obliterar que este vector dos educandos é recente, muito excepcional no contexto das comunidades e que, em contrapartida, é de longe predominante em toda a região, como na província em geral, a atitude de acolhimento da tradição e da autoridade. Ora, esta vertente tenderá a reduzir as projecções sobre outrem dos próprios fracassos, dada a passividade que é lema, em tal contexto, na educação do lar. Por este ângulo, portanto, o número de vezes em que os discípulos atribuiriam aos professores a responsabilidade por haver maus alunos decresceria. O facto de os inquiridos terem, afinal, ficado pelo meio termo parece, no fundo, corresponder a esta bipolaridade e à dispersão real dos educandos, bem como ao peso relativo das várias vertentes que pendem para um ou outro lado. Adivinharemos isto melhor ao discriminarmos as respostas caso a caso.


O que antes de mais sobressai (gráficoV) é a convergência de dois itens, o que afirma que os professores não sabem ensinar (17 registos) e o que lhes assaca más relações com os alunos (16 votos), ficando a meio caminho destes o terceiro que os acoima de não dominarem as matérias (8 escolhas apenas). É claro que a distância deste para aqueles decorre em primeira linha do facto óbvio de que os estudantes não estão normalmente em boas condições para se pronunciarem sobre a preparação curricular dos docentes. Em princípio, tal razão não atrairia a atenção de discípulos e ficaria certamente a zero se não houvera outro entendimento para ela a que os oito colegas que, apesar de tudo, a indicaram, devem ter sido sensíveis. Efectivamente, se os discípulos ignoram a preparação académica dos professores, não ficam cegos à insegurança e ao modo como é manipulado o conhecimento na sala de aula. Pelo contrário, são habitualmente muito vigilantes relativamente a estas características. E se tal ocorre nos meios urbanos costeiros por motivos que têm a ver com a usurpação do poder na aula, em busca dum clima relaxado, divertido e irresponsável, no meio transtagano as razões predominantes que encontrámos são outras. Caso o não foram, aliás, na maior parte dos casos os docentes nem lograriam leccionar, tão impreparados, inexperientes e novos de idade são na maioria. Aqui as preocupações maiores apontam diferente rumo. Trata-se de garantir eficazmente a escolarização que surge aos educandos como um privilégio verdadeiramente excepcional. Ora, nestes termos, o interesse deles é por explorar ao máximo os recursos ao dispor, a principiar pelo docente que lhes coube em sorte. Não têm outro meio, no que a este respeita, senão tratar de o conhecer neste domínio tanto quanto lhes for viável. Não ignoram, a partir daqui, que muitos deles (nalgumas escolas são maioria) não têm habilitação própria, outros foram estudantes um pouco mais adiantados com que conviveram em anos anteriores, finalmente ainda alguns mais trabalham os currículos com receitas fossilizadas, imutáveis e intraduzíveis. Como em geral estes alunos requerem um profundo processo de aculturação para assimilarem desde a comunidade escolar às matérias, conceptualizações e linguagens, a despistagem daqueles aspectos dos professores antolha-se fundamental para poderem saber com o que podem contar. É justamente nesta perspectiva e não tanto na do julgamento ou inculcação da preparação curricular do docente que é viável e adquire forte pertinência a eventual denúncia pelos alunos deste factor de mau aproveitamento. Ele é, de facto, em toda a região, um dos maiores cancros da escola (em 1985). Os inquiridos não o ignoram nem até que ponto isto preocupa os estabelecimentos, os pais e os educandos. É por isto ainda que tal item acaba por ser anotado, embora em posição numericamente humilde em virtude da dificuldade que nele sempre se revela de ser identificado, fora das coordenadas referidas, pelos estudantes.


Onde, porém, a incidência relevante ocorre é que importa pôr a nu pressupostos situacionais que, doutro modo, a ignorarem-se, induzirão em erro quem repare apenas nos números em bruto. Quando os professores anotam que os discípulos se queixariam de que eles não sabem ensinar (17 vezes), reportam-se a uma reslidade outra que a que encontraríamos se tais hipóteses se referissem a alunos de grandes centros. Aqui, o que presumiríamos ao referir que os educandos apontariam tal, seria que eles se dariam conta das deficiências de comunicação, da inadequação de métodos e estratégias, do desajustamento entre o grau de exigência e o nível de desenvolvimento dos membros da turma e assim por diante. Efectivamente, saber ensinar passa pela assimilação e utilização equilibrada de competências deste jaez. São sempre elas as que estão em foco quando numa escola lisboeta os alunos se rebelam e exigem medidas numa disciplina ou noutra (verificámo-lo no D. João de Castro, no D. Pedro V, no D. Dinis...). Seríamos tentados a transpor o modelo para a província e para o Alentejo em particular. Ora, o que nos foi dado constatar revela uma realidade e uma consciência outras, cujas tónicas nada têm a ver com isto mas se reportam a dificuldades muito mais primárias. Aquelas são as dos meios cultos, escolarizados e têm a ver com os requintes da docência, com as afinações já de alta precisão da relação pedagógica. Nos meios rurais e do interior ainda se não atingiu a garantia da eficácia mínima, quanto mais agora pensar em refinamentos como os referidos! O que os educandos alentejanos chamam à pedra ao referirem que os professores não sabem ensinar é, antes de mais, que não logram transpor a ponte cultural que os separa da escola no currículo em causa. Eles requerem uma tradução de linguagens, por vezes mesmo literalmenmte como ocorre com os barranquenhos (e outros raianos) que não falam o português normalizado mas uma língua intermédia relativamente ao dialecto espanhol da região afim. Mesmo em terras mais isoladas da fronteira, a língua-base tem tão fortes conotações e diferenciações locais que requer atenção para a comunicação ser viabilizada. Para além disto, o particular código escolar é-lhes estranho, como o são os padrões relacionaise de trabalho: também não sabe ensinar aqui aquele que não cria condições para serem adquiridos novos hábitos e valores conviviais, novas destrezas, normalmente finas, requeridas no laboratório, na oficina, nas artes visuais ou nos tecidos. Estes alunos não têm, com efeito, fora do espaço escolar (nem antes nem depois) outras oportunidades nem recursos para aprender ou adestrar-se em tais domínios. Ora, tudo isto difere do que cada um desenvolveu no seu mundo infantil, do que o lar lhe estimula, do que a comunidade originária lhe aponta ou coloca ao dispor.


Geralmente os professores ignoram ou esquecem este abismo de divergências, oriundos como são em regra de meios escolarmente privilegiados. Resultado: falam e trabalham para as moscas porque não criam pontes de tradução entre os dois mundos. Quando isto ocorre não são os apuramentos metodológicos ou didácticos, nem a adequação às potencialidades etárias que resolvem o problema. Aliás, nem mesmo o bom domínio das matérias que tende até a agravar a situação, com o docente a comunicar e encenar maravilhas para ele próprio (com diaporamas, filmes, fotografias, videogravações...) como nos foi dado ocasionalmente verificar: em Reguengos, por exemplo, o recurso à série televisiva “Dallas” por um colega, para clarificar os valores nas relações humanas, redundou em que os educandos transformaram o incorrigível e perverso “JR” no seu herói-modelo! Os discípulos encaram tudo como turistas embasbacados, até gostam por vezes do espectáculo, mas não apreenderam nada em aspecto nenhum. Então, ou se consideram destituídos intelectualmente ou têm obrigatoriamente de apontar que isto é ensinar mal, nem que seja na incómoda posição de perfilar com o dedo solitário que o rei vai nu, a meio das vénias do academismo consagrado que o dê por muito bem ataviado. Aliás, neste contexto, quanto mais o docente se recobrir de ouropéis mais despido ficará normalmente perante educandos que se encontram em conjunturas como as referidas e que são de longe as dominantes nas escolas da província. O facto de os inquiridos o referirem revela até que ponto os professores estão lúcidos e atentos à dificuldade, muito embora em grande parte desarmados para a enfrentarem a contento de ambas as partes. A mera mudança de escola anual a que praticamente todos andam sujeitos é bastante para liquidar de vez qualquer hipótese de mútua sintonização: quando principiam a vislumbrar o que o meio e os educandos deles requerem são transferidos e voltam ao princípio, para retomarem o ciclo ano a ano, como um pesadelo de que nunca mais acordam.


No que se reporta aos 16 que referiram que os professores não têm boas relações com os alunos como uma razão que estes apontariam, também nesta região o sentido disto diverge profundamente do que ocorreria nos grandes centros litorais. Nestes, o mau relacionamento conota-se com a distância fria e alheada ou com a atitude tirânica de rígido autoritarismo, na leitura discente. Curiosamente, jamais descortinámos um educando destas regiões que igualmente rotulasse assim a falta de regras, geradora da balbúrdia e da inoperância da relação ensino-aprendizagem. Esta, em contrapartida, é permanente na consciência docente, a ponto de constituir o factor mais constante, quando não superado, de abandono da carreira por parte dos que se deixam enredar em tal modelo. Ora, as relações mestre-discípulo em todo o Alentejo são tão amistosas, a comunicabilidade e hospitalidade tão constantes, que, em primeiro lugar, o que estranharíamos seria a referência a tal factor, tanto mais que se reporta aqui ao que os alunos apontariam hipoteticamente.


Os inquiridos conhecem bem a situação e quanto são esporádicos os relacionamentos que, segundo o critério escolar e citadino atrás sugerido, consideraríamos maus. O que os leva à atitude contabilizada é outro aspecto da realidade comunitária dos estabelecimentos da região. Estes educandos procuram em geral ansiosamente uma disponibilidade e uma atenção que praticamente nenhum professor está em condições de lhes dar, atenta a instabilidade e desenraizamento destes. Há um choque permanente entre a carência, a expectativa de apoio, a fome de aculturação do aluno e a pobreza de recursos, a indisponibilidade, a inexperiência, a involuntária distracção e o permanente esgotamento da generalidade dos docentes. A disparidade decorre da incompatibilidade dos interesses dos dois sectores. Os alunos, por um lado, apostados a fundo na escolaridade e confrontados com dificuldades praticamente inultrapassáveis agarram-se à boia de salvação, a única de que dispõem num meio pobre de recursos e de diplomas – o professor. Este, por seu lado, carenciado afectivamente, contrafeito em ambiente estranho, com colocação provisória e transitória, com o corpo numa localidade e o coração quantas vezes a centenas de quilómetros dali, não consegue jamais dedicar-se, enquadrar-se, vivenciar-se com os educandos e a comunidade onde por acaso foi esporadicamente cair. A imaturidade e a inexperiência dele cavam ainda mais o fosso entre as margens. Deste estado de coisas deriva, porém, uma inesperada compreensão e tolerância mútuas que tornam a convivialidade escolar nestes meios muito pacífica, amistosa. Cada parte acolhe e aceita as limitações a sofrimento da outra e oferece-lhe o lenitivo de que é capaz, carente embora e impotente para colmatar tanto vazio.


Quando se reporta, neste contexto, a má relação com os alunos, está-se apontando antes de mais para isto que em termos humanos é dos mais extraordinariamente ricos e densos laços que jamais vimos cultivados. O que ocorre, desgraçadamente, é que frustram e desesperam tanto mais quanto melhor qualidade atingem quantos nele se entrelaçam. O relacionamento é mau por insuficiente, mísero, o que ultrapassa o querer e o poder de educadores e educandos, e não porque nele próprio perverta ou esmague qualquer dos intervenientes, bem pelo contrário. O lenitivo que mutuamente encontram e partilham para quantos sonhos vão murchando é ainda esta solidariedade, esta compreensão angustiada que entre eles cultivam. Vai-os ajudando a aguentar e persistir. Esta situação ambivalente, contraditória, é tão característica e comum que mesmo em escolas já com forte faixa docente de implantação local quase ninguém oblitera que aquele é o drama dos desenraizados e chega a haver mesmo o cuidado de criar programas especiais para os enquadrar e distrair, mormente em serões e fins de semana (compartilhámos de muitos). É evidente que é tudo isto que a opinião dos inquiridos neste quesito chama implicitamente à pedra.


É óbvio também que nos grandes centros jamais passaria pela cabeça de alguém que tal é o perfil dominante da relação pedagógica na generalidade dos estabelecimentos da província e mormente dos mais isolados e votados ao abandono. Os alunos como os professores que por lá labutam sofrem-no na pele, porém, e apenas porque o mau relacionamento pode ter conotações inteiramente outras e habitualmente as reveste é que se compreende também aqui, afinal, que tão pouco peso lhe atribuam os inquiridos.


Não temos dúvidas de que nisto seriam seguidos por quantos vivem por dentro realidades e angústias como as denunciadas. Há um forte pudor a inibir que se apontem experiências afinal tão significativas para os delas comparticipantes, quando no fim há quase a certeza de que não serão compreendidas e que a interpretação que lhes darão, mesmo sem mau intuito, lhes faltará ao respeito. As ditas más relações são, ao fim e ao cabo, sagradas para os que as lá vivem e nelas de algum modo vão morrendo juntos, o mais devagar que lhes é possível, de mãos dadas, com toda a força que lhes vai restando, nestas vidas adiadas de ano para ano, indefinidamente.


Interessante é questionarmos o que nos revelam os perfis das distribuições por prioridades. Todas são diferentes. E se entre a queixa de os professores não saberem ensinar e a de manterem más relações com os alunos não encontramos prioridades pelos totais, já o mesmo não ocorre pelas distribuições parciais. Efectivamente, enquanto os números atribuídos àquela lhe colocam a tónica na primeira relevância (11, 1 e 5, respectivamente – gráfico V), com uma tendência secundária mais ligeira a convergir para os dois extremos, já no motivo da relação pedagógica a incidência recai na posição intermédia com os topos igualados (2, 12 e 2, respectivamente). Não é decerto fortuito.


O maior peso de não saber ensinar fica então sublinhado, como normalmente ocorre na prática, dado que é o factor mais claramentee verificável por qualquer educando, cuja lesão é mais gritante, muito embora o aluno apenas o logre caracterizar pela negativa (como, aliás, vem formulado no quesito). Neste sentido, igualmente nos parece decorrer desta facilidade de identificação a outra tendência registada para ele ser designado na terceira prioridade: é que, para quantos creram que os estudantes privilegiariam factores de maus alunos na faixa dos relativos aos discípulos ou à instituição, ainda assim não ignoram certamente quanto estoutro, no âmbito dos professores, é comum nas preocupações e denúncias e daí o acabarem aqueles cinco por anotarem-no em tal posição. No que se reporta à distribuição relativa ao quesito de os professores não terem boas relações com os alunos, o facto de a dominância convergir na prioridade intermédia é uma confirmação da ambiguidade e contradição que este factor reveste em concreto no terreno. Assumindo um peso muito grande na determinação do porvir de cada educando, ele entretanto não pode colocar-se à dianteira, uma vez que, do ponto de vista afectivo e da solidariedade mútua, o relacionamentro é bom, apenas falha na capacidade formativa no domínio curricular, justamenta o (praticamente) único relevante escolarmente e decisivo para a sobrevivência do projecto estudantil. O meio termo é uma solução de compromisso significativa e que indicia quanto os inquiridos também aqui afinal estarão atentos à realidade comunitária com que lidam.


Finalmente, no que releva de os professores não dominarem bem a matéria, a distribuição parcial é gradualmente crescente (1, 3 e 4, respectivamente – gráfico V). Isto resulta, a nosso ver, da dificuldade universalmente reconhecida de os educandos serem capazes de julgarem em tal domínio, como atrás referimos. O relevo dos vectores que eles melhor controlam (ansiedade, rigidez), sendo manifestações derivadas que permitem inferir por hipótese aquilo, não é, evidentemente, seguro para permitir nem atribuições muito elevadas ao item (como vimos, o total é o mais baixo deste grupo), nem conferir àquelas grande peso. Uma constatação hipotética pode sempre vir a ter explicações por matrizes diversas e inesperadas. Daí os colegas tenderem a presumir nas respostas dos alunos uma distribuição prudencial, arrumada predominantemente nas prioridades mais baixas. Isto revela, afinal, uma perspectiva acerca dos educandos que os figura como eminentemente lúcidos e ponderados. Corresponde ao conhecimento que temos dos docentes da região mas igualmente nos parece surpreender de perto o que aqueles estudantes são. Efectivamente, sempre os encontrámos serenos, avisados e atentos. O empenho com que se afincam na escolaridade não os leva jamais à rebelião, quando muito resmungam surdamente contra a dita madrasta que os tolhe. Isto chega a ser encarado por alguns professores, aliás, como uma indisciplina intolerável. Surpreendemos aqui o efeito da tensão permanente, do desgaste, por um lado, e o hábito desprevenido de jamais ser posto em cheque, por outro.


A paisaggem humana e os números seriam bem díspares em qualquer escola de grande centro. Nestas os contrastes são nítidos entre estudantes assimilados ao sistema e franjas em ruptura, entre os que acatam cordatamente os padrões escolares e os que os contestam ou subvertem. A problematização é a norma e a tensão dialéctica entre discípulos, como entre docentes e discentes, associações e órgãos gestores é o pano de fundo de cada ano lectivo. A parcimónia alentejana (e do estudante de província em geral) não medra, em regra, aqui, na dinâmica dos grupos naturais nem menos ainda na massa amorfa e irracional dos milhares de alunos que cada estabelecimento acumula até transbordar. Do mesmo modo os colegas não ignoram que tal é a situação nas escolas das zonas privilegiadas (e por eles normalmente preferidas), mormente nas cinturas periféricas onde predominam as indústrias e os dormitórios operários. É por esta razão e dado que a tensão permanente é muito desgastante quando se prolonga anos seguidos, por mais hábitos e defesas que uma pessoa organize, que alguns professores acabam por optar por uma calma escola de dominantes provincianas, embora não muito distante da grande urbe. É o que ocorre, por exemplo, com faixas significaativas de docentes das escolas de Alverca, Vila Franca de Xira, Torres Vedras e outras, em que os colegas em causa preferem a deslocação quotidiana a partir de Lisboa, a enfrentarem os problemas relacionais de estabelecimentos, por vezes ao lado da própria casa, onde teriam colocação imediata se os escolhessem. A acusação de incompetência é atirada à cara dos professores, com ou sem razão, com muito mais veemência, constância e quantidade neste contexto de massas anónimas e irresponsáveis do que naqueloutro em que a proximidade mútua e os laços interpessoais garantem ainda elevada familiaridade, fortemente gratificante para todos os membros da comunidade escolar. Como reencontrar isto, por exemplo, numa escola lisboeta, mesmo do centro, onde apesar de tudo os alunos estão à partida moldados pela cultura escolar a partir do próprio lar? O sobredimensionamento impede-o por inteiro e a única vantagem, nesta perspectiva, é a de nestes estabelecimentos se diluir o conflito de valores e de padrões que nas periféricas se agrava e por vezes explode mesmo em crises pessoais agudas. Aqueles inconvenientes do âmbito relacional não os encontrámos na província nem no inteior em geral e é isto mesmo que a presunção dos inquiridos acerca dos alunos deixa transparecer, por trás duma distribuição tão baixa e uniformemente crescente à medida que decresce a prioridade do item referente à impreparação curricular do docente. Entre quem se dá bem há destas gentilezas, polidezes que confirmam o apreço mútuo em que se têm.


Tal é o clima nas escolas transtaganas, tão divergente do que vivemos, por exemplo, em qualquer uma das da megalópole lisboeta, por muito que nossas relações pessoais com cada aluno e cada turma fossem excelentes, até mesmo entusiásticas.






c) O aluno desculpa-se

Análise das respostas que presumem que os discentes atribuiriam o mau rendimento escolar à instituição ou à família



Resta-nos conferir como os inquiridos crêem que os discípulos encarariam os factores de maus alunos relativos à instituição e à família (quadro 7, razões 3, 9 e 10). O quesito sobre os conteúdos e a forma como estão organizados os programas foi registado 19 vezes, o das ondições em que funciona a escola, 22 e o da falta de acompanhamento e de estímulo da família, 10 somente (gráfico 6).



GRÁFICO VI








Gráfico VI – Respostas dos inquiridos aos itens em que presumiram que os alunos responsabilizariam a escola ou a família, conforme foram referidos como razões de 1.ª, 2.ª ou 3.ª prioridade para o fraco rendimento escolar dos maus alunos




De salientar, desde logo, a distância a que os colegas presumem que se situaria o total respeitante ao último relativamente aos referentes ao sistema escolar. Isto decorre da extremada coesão do lar rural, da estreita interdependêencia dos respectivos membros e da submissão e tradicionalismo, com forte respeito pela autoridade parental e dos anciãos em geral, que dominam ali os padrões educativos. O aluno desabrochado em tal meio identifica-se demais com ele para podermos aguardar grande distanciamento e menos ainda capacidade crítica bastante para relevar a carência de apoio familiar. Por outro lado, é notória a solidariedade do lar e da comunidade próxima com a aposta da escolarização e, se mais não dão, é porque mais não podem. Qualquer professor se dá conta disto que quase não oferece excepção neste meio ambiente. Mais ainda os estudantes se apercebem desta permanente presença dos ausentes. Tudo conjugado conduz, evidentemente, a aguardar uma representatividade baixa ao quesito em causa, como ocorre. Por outro lado, aos alunos não é facilmente compreensível a equivocidade do acompanhamento familiar, o contraditório dos efeitos onde pode desembocar, como ocorre com os professores. Também isto tende a impeli-los a não colocarem a família em questão e é toda esta convergência de propensões que nos inquiridos aflora como expectativa dum peso reduzido em tal factor. Pelo quadro VIII se verifica tal pendor, com 10,4 % das respostas dos inquiridos a apontarem a família, contra 57% que o esperariam dos alunos.


O volume de votos dos dois itens que põem em causa a instituição, se bem repararmos (quadro VII), embora não supere o predomínio dos factores relativos aos alunos, está-lhes muito próximo, entre o segundo (que conta igualmente com 22 pontos como o do maior agora em análise) e o terceiro. A importância atribuída àqueles itens coloca-os, pois, à frente dos relativos aos professores e, já vimos, também do referente à família. Se bem que não fique notoriamente em primeiro lugar como área das razões de haver maus alunos que os inquiridos presumem que seriam indicadas pelos educandos, resulta emparelhada claramente com a relativa aos estudantes, mormente quando temos em conta que o item aqui mais votado, o do desinteresse pelas matérias de estudo, é a charneira entre os dois campos. Com efeito, como já vimos, o desajustamento dos currículos aos motivos dos discípulos é que redunda em inculpar, por um lado, os conteúdos e a forma dos programas e, por outro, o desagrado pelas rubricas a estudar. Sendo o anverso e o reverso da medalha, o quesito mais votado é ambivalente, atribuível tanto aos alunos como à instituição. No restante, ambas as vertentes se equiparam.


O peso atribuído à escola no mau rendimento dos alunos decorre da constatação quotidiana que estes não podem deixar de fazer do desajustamento mútuo. Já caracterizámos isto suficientemente. Importa agora anotar apenas que não é viável para os educandos tomarem uma consciência clara do que neste âmbito ocorre. Constatam um mal-estar, uma permanente dificuldade de acesso ao que escolarmente lhes é imposto, mas o salto para a caracterização é-lhes em geral impraticável. Em primeiro lugar, a cultura ancestral bebida no lar não é apercebida como tal mas antes como norma universal e dogmática. Por estranho que pareça, isto tem o condão de fechar os olhos aos educandos relativamente às divergências e contradições entre os dois universos. Ao contrário, eles entendem-nos como constituindo um só, único e, ainda por cima, coerente e internamente integrado. Isto resulta de viverem permanentemente prisioneiros do modelo cultural de partida, como é comum a todo o meio rural, aqui ou em qualquer parte do mundo, sem alternativas nem aberturas nem mesmo confrontos de vulto. Vivem mergulhados numa mundivisão de perenidade, repetitiva, eterna e segura, em que as próprias mudanças (ciclo das estações, ritmo dia-noite...) são circulares, de eterno retorno, em que se altera tudo para que tudo fique na mesma. Este padrão do tempo organiza o espaço e a pessoa e tudo então devém uno e imutável, mesmo na permanente transformação.


Ora, é segundo este modelo que a vida inteira e em particular a experiência escolar vai ser focalizada, acolhida e encaminhada. Qualquer estudante com tal idiossincrasia terá extrema dificuldade em dar-se conta de fracturas culturais, contradições valorativas, diferenciações de dominâncias. O mais grave, porém, é que, quando finalmente as constata, se encontra desarmado por inteiro tanto de modelos de compreensão como de padrões de actuação e relacionamento para integrá-las. O desnorteamento é o efeito desta penúria, o que aprofunda a estranheza mútua dos dois universos e mais dificulta transpor o fosso. Tudo isto é agravado por uma refracção particular da instituição de que estes alunos são vítimas. É que o facto de a escola ser socialmente acolhida como a porta do porvir e de isto ser legal e soberanamente ratificado e promovido como uma evidência, desdobrado ainda por todos os poderes intermédios que em coro homogéneo o repetem e, mais ainda, o sublinham por uma actuação coerente em conformidade, tudo isto encaixa perfeitamente na habituação de obediência e acatamento incondicioanl da autoridade dominante na cultura e educação rurais. O resultado é que o aluno fica mais amputado ainda da possibilidade de aperceber-se e assumir as divergências e rupturas enquanto tais. Pelo contrário, ele tenderá a aculturar-se sem se aperceber das contradições, interiorizando-as e rasgando-se por dentro, cortando-se das próprias raízes sem delas renegar por não se aperceber de que as vai destruindo. Apenas resta que ele não se irá sentir bem na escola apesar de querer permanecer nela e normalmente não logra desempatar esta contradição. O efeito é a atribuição de culpas a factores fortuitos e anódinos que possam operar como bodes expiatórios ou então a aspectos mais visíveis de desarticulação que nem por isso têm de ser obrigatoriamente os mais relevantes no problema.


É de tudo isto que resulta uma atribuição de pesos sensivelmente iguais ao vector alunos e ao vector instituição nas presunções de escolha dos inquiridos. É óbvio que tal não ocorreria assim se os professores não conhecessem os alunos que têm, até onde são submissos e o que lhes alcança a lucidez e as fronteiras que não transpõe. Quanto aos estudantes do litoral urbano, nós e o País conhecemos permanentemente, até pela comunicação social, em que grau responsabilizam a instituição e o poder pelo fracasso escolar e até onde silenciam a própria assunção da respectiva quota parte de autoria (relativamente a este estrato é que menos assintonias culturais ocorrem e mais abundantes recursos, equipamentos e instalações em regra são canalizados).


No que respeita a cada aspecto em particular, o facto de o maior número convergir sobre as condições em que funciona a escola e a incidência já ser menor na crítica aos programas confirma de imediato o que acabamos de referir (gráfico VI). É, com efeito, mais fácil a estes alunos apontar aspectos que se viabilizam e tornam por isso mais identificáveis do que analisar um currículo e surpreender-lhe as mazelas. Por muito que os inquiridos tenham transposto para os educandos a própria sensibilidade aos factores, estes pequenos cambiantes deixam entrever quanto, afinal, estiveram atentos e lúcidos perante a realidade discente com que laboram. Importa, porém, aqui anotar um outro dado que acentuará esta tendência dos estudantes.


É universal a constatação de que o mais apreciado e onde o currículo latente mais actua é na convivialidade discente. Isto mesmo confirmámos no terreno, em todo o lado, entre nós. Ocorre, porém, que na região transtagana (e cremo-lo válido para toda a província), quanto mais falha a componente curricular e institucional explícita, mais a esperança de sobrevivência tende a recair de modo exclusivo acolá, o que sobrevaloriza a camaradagem a extremos noutros meios inexistentes. O aluno em riscos de afogar-se tem sempre como última tábua de salvação o deitar mão ao colega ao lado, habitualmente vizinho e amigo de infância (as turmas aqui são constituídas por locais de origem, sob pena de não se conseguir organizar o estabelecimento, dadas as distâncias das moradas e os transportes disponíveis). Ora, em tais condições, reveste particular importância a existência ou não de meios para este encontro interpessoal que, aliás, se tem no colega o centro infinitamente predominante, se alarga contudo para além, mormente ao director de turma e professores. Quando aqui chegam, os discípulos confrontam-se com a mais confrangedora falta de condições na escola – desde salas de convívio, até instalações com mais privacidade onde se acolher, trabalhar, desabafar, até mesmo locais para labor habitual, como bibliotecas (com espaço e tempo para utilizá-las). Tudo, ao contrário, é muito incómodo, frio, devassado, nada acolhedor nem convidativo. Que admira que estes alunos convirjam na denúncia das condições da escola? É o que a presunção dos inquiridos recobre ao colocar esta razão na dianteira. É curioso notarmos a diferença de conteúdos quando o mesmo é referido no contexto dos grandes centros. Aqui as tónicas são colocadas na superlotação de turmas e estabelecimentos, na degradação de instalações e equipamentos, no anonimato dos relacionamentos frios e raramente funcionais. Acolá, uma vez mais, está-se a um nível e com solicitações muito anteriores, basilares frente a estas que pouco relevo, aliás, adquirem quando a adequação educando-escola ainda não se operou.



A distribuição pelas prioridades do quesito relativo à família é de 0, 2 e 8, respectivamente (gráfico VI). Isto sublinha quanto este item, já pouco volumoso de registos, ainda diminui de peso em virtude deste regular crescendo de atribuições ao irmos da primeira à última relevância. Ninguém presume que os alunos apontem o lar ao nível mais decisivo, o que implica não apenas o reconhecimento do estreito vínculo que unifica o feixe dos laços íntimos, mas também até onde ele se encontra interiorizado nos educandos. Com efeito, a família rural, mesmo quando das urbes do interior que do contexto se embebem, não divergindo notoriamente das dos povoados campestres, ao relevar o estreitamento entre consanguíneos, ao impor uma disciplina forte, ao cultivar a tradição e o respeito dos progenitores e dos maiores, corre permanentemente o risco de tornar-se asfixiante, atrofiadora, o que ocorre inelutavelmente quando surge a novidade, a escolha divergente, o padrão cultural alternativo. Ora, é isto que justamente terá de advir ao avançar a escolaridade do aluno, dadas as diferenças que a experiência académica introduz na mundividência e correlativos padrões comportamentais, mormente ao nível relacional e axiológico. Neste contexto, seria de aguardar o conflito e que, perante ele, pelo menos uma franja entrasse em rebelião ou ruptura com a família. Ora, embora sempre haja casos pontuais em que tal é constatável, não é a regra. Entende-se porquê. É que os íntimos estão muito empenhados, às vezes mesmo exageradamente, na carreira do seu estudante. Esta atitude comum dificulta muito o deslaçamento, a divergência, a auto-afirmação pela diferença, pelo menos tanto quanto ela possa ferir quem tanto investe em prol do educando. Daqui derivam situações constrangedoras em que a definição própria vai sendo protelada, a indecisão predomina, em busca dum tempo para maturação que normalmente não dá o fruto que se aguarda. Isto não facilita nada a vida a estes alunos e é mais um factor perturbador que os impele ao fracasso e abandono, por muito que tenha origem e se alimente justamente da intenção contrária.



É por isto que não seria de presumir que algum destes discípulos atribuísse primeira prioridade à família como factor de maus alunos. Seria para eles violento demais, iníquo mesmo, até desrespeitoso tanto dos vínculos costumeiros como dos sacrifícios que o empenhamento comum requer de todos. A hipótese de aparecerem em segunda ou terceira prioridade, com forte predomínio desta, alguns registos do factor familiar decorre porventura disto mas igualmente doutros dados.



Não é fácil aos estudantes desta região darem-se conta do peso decisivo do apoio e acompanhamento do lar, mormente dos progenitores. O que, entretanto, constatam, mormente nestas escolas de cidade onde ombreiam os filhos do escol urbano com os de vilas, aldeias e montados, é a diferença de recursos ao dispor de um e outro dos sectores. São realidades tão comezinhas como poder contar ou não com explicadores, ter ou não em casa uma pequena biblioteca de apoio às tarefas escolares, encontrar ou não no lar um interlocutor para as dúvidas ou até para a conversa, o desabafo, o equacionamento explícito de qualquer evento. Num lado, tudo isto tende a encontrar-se com relativa facilidade e abundância, enquanto no outro escasseia ou é por inteiro inviável. Ora, se estes educandos não logram descortinar facilmente os fossos culturais entre os padrões escolares e os familiares e ambientais, se não desvendam até onde é decisiva a comunhão de valores, linguagem, modelos relacionais e até de trato entre a casa e a instituição educativa, se não vislumbram até que ponto o incitamento, encorajamento e desdobramento pelo lar das tarefas académicas constituem um factor multiplicador de eficácia sem paralelo, se não distinguem a solidariedade afectiva e com os projectos estudantis que os íntimos com eles cultivam daqueloutras modalidades de com eles fazer corpo e palmilhar o mesmo trilho de conhecimentos e currículos, já relativamente àquelas diferenças de condições mais palpáveis referidas, que os empobrecem relativamente a outros colegas mais benquistos da fortuna, não têm dificuldade em constatá-las e lamentá-las. Embora a família não tenha qualquer culpa deste estado de coisas, é no âmbito dela que tal discriminação ocorre. Daí o lamento esperado, configurado nos valores presumíveis da segunda e terceira prioridade do item em análise.



Se tal quesito fora colocado a alunos dos grandes centros, a configuração pontual seria decerto tendencialmente inversa da que aqui encontramos, com dominância de registos na primeira prioridade, para além de o volume em cada um ser eventualmente mais elevado. Com efeito, as discrepâncias entre condições familiares, mormente em escolas periféricas, são gritantes e tornam-se evidentes com muito mais facilidade que na província onde os extremos geralmente se não encontram ou ficam muito delidos. Por outro lado, no urbanismo do litoral, não vigoram os factores de coesão, disciplina e tradição dos meios rurais, pelo que as famílias se deslaçam em muito maior número, bem como a intimidade mútua é muito menor. As queixas não sofreriam aqui de quaisquer constrangimentos de preservação do mundo íntimo. Por outro lado, é muito mais comum o abandono dos filhos ao deus-dará e não apenas nos estratos socialmente mais baixos, dos arrabaldes, zonas degradadas, bairros de lata ou dormitórios, mas igualmente e muitas vezes mais gravemente em franjas com punhos de renda e excesso de comodidades e recursos, onde o egoísmo alcança por vezes extremos de ferocidade polida e muito engravatada. Todos conhecemos os alunos desta fonte, irresponsáveis e boémios, estadeando fartura, preguiça, tédio ou violência, numa mistura habitualmente envernizada, cheia de contradições, fruto duma vida oca e duma afectividade vazia, abandonada e estéril, senão mesmo perniciosa quando devém explosiva. Mancha felizmente limitada no espectro discente, ela entretanto é regularmante de maus alunos.



Os motivos são habitualmente evidentes para os colegas todos, até mesmo para eles próprios. Igualmente são mais facilmente isoláveis os casos daqueles que provêm dos sectores pobres, escolarmente inabilitados, e que não podem contar com apoio no lar, que mais não seja pelo contraste de padrões linguísticos, relacionais e valorativos com os demais. A maior dificuldade deles em dar conta do que lhes é requerido no contexto escolar, a estranheza que neste revelam e o recurso aos colegas mais adequadamente adaptados, como auxiliares privilegiados para lograrem ir singrando, são deles as manifestações mais comuns e constantes que ressaltam a docentes e discentes. Tudo isto aponta para a presunção de mui diversos números parciais e totais a este quesito do inquérito se o fizéramos incidir em tal tipo de área.



Relativamente ao item das más condições de funcionamento da escola, a distribuição pelas prioridades é equilibrada (7, 8 e 7, respectivamente) e o mesmo ocorre com o dos conteúdos e forma dos programas (5, 7 e 7). Se o primeiro reflecte nesta distribuição a força que as circunstâncias da convivialidade e cooperação em cada estabelecimento revestem para a integração do aluno, ao acentuar as primeiras prioridades, igualmente deixa transparecer quanto este factor, afinal, é ambíguo relativamente a outros aspectos contemplados noutros quesitos ou mesmo no âmbito da instituição, uma vez que o perfil do segundo, nestas distribuições parciais, surge muito mais sobreponível àquele que os totais, com grande paralelismo. Vemos melhor aqui, pelo peso ligeiramente inferior atribuído à primeira prioridade no item dos programas, que no fundo terá sido o facto de os inquiridos terem sido sensíveis à dificuldade de os alunos se pronunciarem com segurança em tal domínio o que, afinal, impediu que ambos os quesitos tivessem acabado com idênticas notações e distribuídas de igual modo. Isto constitui o afloramento de várias vertentes da experiência escolar dos estudantes, bem como do modo como os professores os encaram.



Em primeiro lugar, não é tão nítido para o educando como para o docente o que a instituição constitui e menos ainda enquanto factor de maus alunos. Os inquiridos deixam-no claro ao apontarem (quadro 8) 40,1% os itens da escola e ao aguardarem apenas 23,4% se foram os alunos a responder. Com efeito, os discípulos têm e dificilmente ultrapassam uma leitura sincrética do estabelecimento em que se escolarizam, raramente logram uma visão institucional e menos ainda do sistema educativo como um todo (a este nível jamais encontrámos algum, mesmo no patamar universitário, que o abarque de modo minimamente completo e objectivo). Sabemos, aliás, quanto os próprios professores têm dificuldade em se representarem estes planos mais englobantes da realidade escolar. Ora, tal obstáculo confirmámo-lo, a nível discente, como comum a qualquer região e não como específico do Alentejo. Por outro lado ainda, dada esta primeira dificuldade, o estabelecimento em que se ficou inscrito reveste o papel padronizador de tudo o mais, operando a generalização de modo por vezes inteiramente inadequado e sem qualquer correspondência na reslidade, qualquer que seja o âmbito em que o educando se pronuncie. Encarando a escola como um bloco indiferenciado e homogéneo, ainda por cima centrando os referenciais dela no quadro em concreto frequentado, é óbvio que será difícil a qualquer estudante posicionar-se analiticamente em tal domínio, bem como graduar-lhe a relevância como factor de maus alunos. A hesitação dos inquiridos que lhes acaba por espalhar as opções destes itens pelas três prioridades revela quanto, aqui também, os docentes andarão bem próximo dos educandos. Cremos, porém, que há outro elemento a interferir nestes perfis.



É que os colegas abordados dão-se conta, como os demais, da extrema ambiguidade da relação destes discentes com a escola que já caracterizámos. Por um lado agarram-se-lhes desesperados, por outro não se lhes conseguem quase nunca adaptar, querem-na e detestam-na simultaneamente. Nesta conjuntura, como perfilar de que modo estes acabarão por responsabilizar a instituição pelos maus alunos? A incerteza levou decerto igualmente àquele tipo de distribuição. Aliás, dada a bipolaridade de sentimentos de atractivo e repulsa acaba por instalar-se em muitos, cremos que a precaução relativamente elevada de respostas a estes itens que os inquiridos julgam que os alunos dariam pode neste particular não corresponder à capacidade de posicionar-se de que os educandos realmente disporiam. Com efeito, este aspecto tende a deixar o indivíduo com um conflito interno e incapaz de pronunciar-se, caindo então em comportamentos desviados (é uma forma de fuga ao conflito) que no caso redundariam em aumentos, por exemplo, dos outros itens do inquérito. Não será, aliás, por isto, que o peso relativo destes quesitos se situa um pouco inseguramente entre os primeiros? Condiz, pelo menos. E não podemos ignorar que os professores em toda a região transtagana (como nas escolas pequenas que em regra as da província são) têm uma relação habitualmente muito próxima dos discípulos que lhes permite aperceberem-se facilmente, com muita precisão, do que com estes ocorre. Até de variações familiares, como de emoções quotidianas extremamente volúveis tivemos frequente notícia, em muitos casos, e rigorosamente actuais em cada contacto. Bastante provável é, apesar de tudo, a convergência entre o que ocorreria efectivamente e o que crêem disso estes colegas.



É óbvio que estas considerações não fazem, uma vez mais, sentido num contexto citadino cosmopolita. Aqui nem o mestre conhece pessoalmente os discípulos (nem sequer os outros docentes, na generalidade das escolas), nem os alunos podem cultivar a franqueza, transparência e proximidade de relações com os colegas e os professores, mergulhando mais vulgarmente na massa anónima. Apenas, em regra, a família e os amigos íntimos do discente quebram a frieza e as distâncias e emprestam rosto humano às tarefas escolares (estas é que não chocam os padrões educativos de origem, antes neles se entrosam e os aprofundam, o que lhes facilita enormemente a carreira estudantil). A própria visão institucional destes educandos é meramente instrumental, a escola é um meio para vencer na vida, e, quando muito, reveste alguma característica funcional, relevando ora as relações que se criam e perduram utilmente pelos anos fora, ora a experiência significativa e privilegiada de trabalho com determinado professor que se eleva a modelo pela existência além e pouco mais. O estabelecimento, ademais de não ter perspectivação institucional sistemática, ainda fica esvaziado de conteúdos e sentidos vitais, perdendo por inteiro a dimensão humana e humanizante possível e legal. Tal ausência superam-na em regra espontaneamente, pela riqueza e consonância do ambiente externo de vida com os requisitos académicos. Em tal contexto, portanto, não é de presumir que os colegas que fossem inquiridos respondessem reproduzindo perfis de distribuição como os comentados. Aqui mais facilmente se geram conformismos ou repúdios, em atitudes mais deliberadamente extremadas, do que hesitações e indefinições como as que em todo o lado topámos pela charneca transtagana.



Acabada a anáslise dos grandes traços que se nos deparam ou sugerem por trás de cada resposta e respectivos quantitativos, resta-nos conferir se entre eles há ligações, causalidades, isomorfismos ou correspondências de qualquer tipo. Encetaremos doravante uma análise tendo em conta discriminações mais finas, visando tal fito.











CAPÍTULO III



Quem fala de quê

Análise das respostas segundo as faixas etárias dos inquiridos e análise dos inquéritos do grupo de Educação Física







a) O peso das idades

Análise das respostas de cada faixa etária em cada variável do inquéritos



Importa, primeiramente, verificar como os inquiridos se distribuem por idades em cada uma das outras variáveis, a fim de analisar se tais especificações adquirem significados a relevar, agora diversificados por escalões etários dos professores. Antes de mais, confirma-se que há homogeneidade na distribuição por sexos, sendo as colegas uniformemente mais numerosas, em cada nível, que os homens, se excluirmos o único isolado com menos de 20 anos (quadro IX).





QUADRO IX


Homens

%

Mulheres

%

Total

%

Menos de 20 anos

1

100

0

0

1

100

20 a 30 anos

6

37,5

10

62,5

16

100

30 a 40 anos

12

38,7

19

61,3

31

100

Mais de 40 anos

6

46,2

7

53,8

13

100

Total

25

40,9

36

59

61

100



Quadro IX – Distribuição dos professores inquiridos nas escolas de Évora e Beja por escalões etários e sexos





O facto de em cada faixa a diferença se confirmar, sendo as casas mais significativas as dos vinte e dos trinta anos, dum pouco mais de 60%, garante que a colheita aleatória dos dados se conforma de perto à distribuição real dos corpos docentes, permitindo confiar mais nos resultados e no que sugerem neles ir aflorando. Aqui importa reparar como se reflecte a ascensão gradual da mulher na sociedade, através da ocupação de lugares no unificado/secundário, muito mais lenta, aliás, na província e no interior em geral e, particularmente, no Alentejo, do que nas regiões privilegiadas. As escolas também ali cresceram muito ao correr dos anos. Aflora isto mormente no facto de os professores mais velhos constituírem o grupo mais reduzido e, concomitantemente, aquele em que as mulheres mais equiparadas em número aparecem relativamente aos homens (6 e 7), para depois a diferença crescer fortemente nos escalões mais novos, os dos vinte e trinta anos (6 e 10 no primeiro; 12 e 19 no segundo). O facto de se tratar de estabelecimentos de criação ou expansão recentes leva também a que os respectivos corpos docentes sejam relativamente novos, com forte predomínio das faixas etárias mais jovens, no que contrastam fortememte com o que ocorre nos grandes centros em que a antiguidade dos estabelecimentos leva a que o maior número recaia nos mais velhos que ali permanecerão até à reforma. Já vimos como para o mesmo efeito concorre o fenómeno da constante migração tendencial dos professores da província em busca das áreas cosmopolitas: à medida que abandonam estas escolas dão lugar aos mais novos, numa corrente contínua que se tem mantido constante há muitos anos.



É curioso verificar igualmente o que ocorre com os cursos com que estão habilitados os inquiridos, agora repartidos por idades (quadro X). Constata-se uma clara mudança de prioridadesà medida que descemos dos escalões mais velhos para os mais novos dos professores. Conferimos já como o peso relativo entre os três ramos em que os dividimos no inquérito (letras, ciências e outros) pende fortemente para o tronco tradicional dos dois primeiros vectores, com predomínio do literário, uma vez que somados atingem quase o dobro do total do terceiro onde se agrupam os diplomados de formação técnica, de investigação, das artes liberais e da educação física.





QUADRO X


Letras

%

Ciências

%

Outros

%

Total

%

Menos de 20 anos

0

0

0

0

1

100

1

100

20 a 30 anos

4

25

2

12,5

10

62,5

16

100

30 a 40 anos

13

41,9

9

29

9

29

31

100

Mais de 40 anos

6

46,2

5

38,5

2

15,4

13

100

Total

23

37,7

16

26,2

22

36

61

100



Quadro X – Distribuição dos inquiridos nas escolas de Évora e Beja por escalões etários e cursos de habilitação





Ora, principia logo por o único colega com menos de vinte anos pertencer justamente aos habilitados doutra zona que não as duas ancestrais. Depois é notório o regular crescendo deste terceiro sector à medida que descemos nas idades (2, 9 e 10, respectivamente, para cada escalão etário). Reparemos igualmente que é o único a subir na idade dos vinte aos trinta anos, quando os dois tradicionais sofrem uma queda vertical. A mudança do peso relativo deste sector de habilitados nota-se ainda melhor se os compararmos escalão a escalão. Com efeito, entre os mais idosos são francamente minoritários tanto ante os de ciências como os de letras (2 para 5 e 6, respectivamente). Já na casa dos trinta anos se equiparam àqueles e apenas estes últimos os superam (9 para 9 e 13 dos derradeiros). Finalmente, ultrapassam decididamente qualquer deles, mesmo o somatório de ambos, na casa dos vintenários (10 para 2 e 4, pela mesma ordem).



Várias notas são de salientar perante isto. Antes de mais, o facto de que os volumes totais atrás comentados podem induzir em erro se não forem relativizados e complementados pela noção da mudança em curso e do respectivo rumo. Com efeito, o peso da tradição na composição dos corpos docentes está sofrendo uma inflexão muito forte, tanto por efeito dos novos currículos do ensino secundário como por simultânea pressão das mudanças sociais, económicas e políticas, em forte aceleração posteriormente ao 25 de Abril de 74 (as franjas mais novas de professores já provêm deste período de bruscas transformações no tecido social, na cultura e modelos de poder do País). Ora, a esta luz verificamos a acelerada corrida do sistema escolar e dos docentes ao terceiro leque de habilitações, correspondente aos novos rumos e solicitações da vida colectiva, doravante aberta ao confronto com economias e países altamente industrializados, de elevada produtividade e com factores humanos e culturais refinadamente elaborados, complexificados e dúcteis, como jamais entre nós se criaram. A brusquidão decerto será ainda maior nas regiões privilegiadas onde a indústria e o comércio ditam a lei e a concentração demográfica oferece meios para dar carne aos projectos. Trata-se dum aspecto notório da corrida contra o tempo, em busca das oportunidades desperdiçadas, na tentativa de acertar o passo, mormente com a Europa actual, na faixa connosco mais de perto relacionada. Isto diminui o risco da reprodução monocórdica, cega aos novos ventos, que a dominância dos sectores docentes de letras e ciências (o currículo tradicional) tendem a eternizar, cindindo-nos do trajecto da história. É óbvio que o efeito é ainda artificial, superestrutural, produto dos ajustamentos do sistema a nível curricular e não já proveniente da maturação do processo social que, sendo colectivo, é manifestamente mais lento e contraditório até encontrar a respectiva via com as tónicas que a caracterizarem. A definição disto está ainda e sempre em curso, com fortes ambiguidades a múltiplos níveis. O facto de estarmos por ora neste pé aconselha a ser-se prudente com extrapolações, uma vez que a escola nunca logrará divergir notoriamente nem durante muito tempo das dominantes que acabarem por prevalecer na vida colectiva. Isto deve moderar um eventual triunfalismo que poderia decorrer do facto de em breve podermos vir a contar, porventura, com um lote maioritário de professores das áreas novas, mormente tecnológicas, científicas e artísticas, a promoverem um País modernizado e uma cultura e sociedade outras, num horizonte relativamente próximo (bastaria deixar ir-se reformando a geração dos docentes mais idosos). Ora, isto seria um logro.



Jamais a escola terá poder para fermentar, por ela apenas, a colectividade e menos ainda para determinar o rumo da história. Com efeito, o sistema educativo é uma alavanca relativamente frágil de mudança e muito mais forte de reprodução e conservação, ainda por cima situada num contexto sistemático de forças, poderes e pressões que pouca margem de manobra autónoma lhe deixam por fim. Tudo isto para concluir que, a prazo, o que predominará inelutavelmente na instituição é o que acabar por impor-se de modo mais duradoiro na vida colectiva da Nação. Aqui apenas foi jogada uma pedra do sistema num sentido determinado e que, mesmo assim, fica logo à partida com eficácia enormemente reduzida no contexto total dos corpos docentes, uma vez que continua decididamente minoritária (e já nem falamos do desprestígio e do complexo de inferioridade generalizados entre os colegas dos vectores oficinais e das técnicas e artes, o que mais agrava ainda a asfixia). De qualquer modo convém não ignorar que circula sangue novo nas veias e que ele vem penetrando nos canais prioritariamente pelo feixe dos professores de idades mais baixas, o que é uma garantia (mesmo não definitiva) de alguma perenidade, bem como um intento de, a prazo, inflectir as prioridades do desenvolvimento curricular. Pode vir ou não a ser bem sucedido. Até lá, os dados foram lançados e estas são as linhas de força que incarnam e as regras do jogo em que o porvir lhes está sendo decidido.



Uma primeira forma de reduzir, logo à partida, o eventual efeito transformador da educação pelo facto de à escola serem chamados docentes de áreas até agora a ela praticamente alheias consiste em deslocá-los, na docência, do campo curricular deles e levá-los a dar programas para que afinal não estão habilitados. Já explicámos bastante quanto esta praga enferma a região alentejana e a província em geral. Aqui vamos triá-la por idades a fim de podermos surpreender se os projectos de mudança não ficarãojá em grande parte gorados no ovo (quadro XI).





QUADRO XI


- 20 anos

%

20/30 anos

%

30/40 anos

%

+ 40 anos

%

Total

%












Matemática

0

0

2

18,2

6

54,5

3

27,3

11

100

Electrotecnia

1

33,3

0

0

1

33,3

1

33,3

3

99,9

Geografia

0

0

1

33,3

2

66,6

0

0

3

99,9

Inglês

0

0

3

33,3

4

44,4

2

22,2

9

99,9

Contabilidade

0

0

0

0

1

50

1

50

2

100

Mecanotecnia

0

0

0

0

1

100

0

0

1

100

Fís.-Química

0

0

1

100

0

0

0

0

1

100

Educ. Física

0

0

4

50

4

50

0

0

8

100

Const. Civil

0

0

1

100

0

0

0

0

1

100

Port./Francês

0

0

1

10

5

50

4

40

10

100

História

0

0

0

0

3

75

1

25

4

100

Secretariado

0

0

2

50

2

50

0

0

4

100

Filosofia

0

0

0

0

1

100

0

0

1

100

C.Naturais

0

0

1

33,3

1

33,3

1

33,3

3

99,9



Quadro XI – Distribuição das disciplinas leccionadas pelos inquiridos, nas escolas de Évora e Beja, por escalões etários dos docentes





Confirma-se, efectivamente, em parte este receio. Com efeito, se dois do escalão mais idoso leccionam electrotecnia e contabilidade, não havendo aqui nenhuma distorção, ela principia logo no leque dos trintanários em que, embora todos laborem na respectiva área, entretanto quatro são de educação física, a qual, não sendo de letras nem ciências no currículo clássico, também não representa ainda o alargamento e permeabilidade sócio-escolar aos novos rumos decisivos que atrás delineámos. Pior é, entretanto, nesta questão, o que ocorre com os dos vinte anos, uma vez que dos dez habilitados noutros domínios, apenas três (um em construção civil e dois em secretariado) operam em campos inovadores, mantendo-se também quatro igualmente na educação física. Quer dizer que apenas sete laboram onde deveriam, restando três, praticamente a terça parte, deslocados para currículos em que não têm habilitação específica. Confirma-se, portanto, a hipótese de torpedeamento da inovação à partida. Isto, porém, é significativo a vários níveis que rapidamente passamos em revista. Desde logo, estamos perante um desfasamento entre mercados de emprego e procura apta para eles. Não apenas pelo facto de na escola tais colegas não lograrem horário na área em que se habilitaram, mas pelo mais significativo de terem de socorrer-se da função docente para laborarem, uma vez que o normal seria aplicarem-se a tarefas compatíveis com a preparação académica que detêm. Estamos, portanto, perante quadros à procura de lugar de encaixe e que o não encontram ainda no estádio actual da economia e do País (1985).



É característico dum período de transição em que a brusquidão de certas mudanças que actuam como pontas de flecha depara pela frente com a resistência e lentidão doutros sectores e sistemas colectivos. A escola opera então aqui como válvula de segurança que descomprime e cria tempo a esta franja de especialistas e peritos, até que a maturação social ocorra e eles encontrem o campo de trabalho para que se encontram habilitados. Grande parte destes colegas está apenas de passagem na docência, aguardando melhores e mais adequados dias.



Por outro lado, porém, revela-se até onde a transição escolar é desequilibrada: criam-se novos currículos, abrem-se áreas inéditas, mas os alunos e famílias continuam ao compasso de antigamente a inscrever-se nas alternativas mais ligadas à tradição. Daí que as áreas técnicas (e pior ainda os cursos técnico-profissionais) continuem os irmãos pobres da instituição. Nestes termos se compreende como possam aparecer mais candidatos à leccionação do que turmas e horários disponíveis em tais currículos e que o problema se torne crítico entre os mais novos, forçados a aceitar qualquer trabalho para iniciar vida, mesmo o mais inadequado à preparação com que chegam.



Importa agora confirmar como as várias situações profissionais se distribuem pelos escalões etários (quadro XII).





QUADRO XII


20 anos

%

20/30 anos

%

30/40 anos

%

+ 40 anos

%

Total

%

Efectivo

0

0

0

0

15

60

10

40

25

100

Profissionalizado

0

0

1

100

0

0

0

0

1

100

C/ habilit. própria

0

0

4

33,3

6

50

2

16,7

12

100

C/ habilit. suficiente

1

12,5

4

50

3

37,5

0

0

8

100

Em profisssionalização

0

0

7

46,7

7

46,7

1

6,7

15

100,1

Total

1

1,6

16

26,2

31

50,8

13

23,1

61

99,9





Quadro XII – Distribuição dos inquiridos por situação profissional e escalões etários





É interessante verificar como o único colega com menos de vinte anos foi cair nos detentores do mínimo para leccionar, os dotados apenas com habilitação suficiente, como era de esperar, dada a tendência de os mais novos se colocarem em posições mais recuadas na carreira. Este pendor é visível notoriamente no leque dos vinte aos trinta anos onde ninguém é ainda efectivo e o estrato mais numeroso abordado foi o dos profissionalizandos (7 elementos). É, aliás, também aqui que encontramos o maior grupo com habilitação suficiente (4), muito embora praticamente igual ao dos que já entraram na casa dos trinta (3). É ainda interessante reparar que o único profissionalizado ainda não efectivo dos inquiridos é do leque dos vinte anos, evidentemente porque ainda não conseguiu efectivar-se, como todos os dos trinta ou quarenta e mais anos de idade que já passaram pela situação dele. Com efeito, a mais notória diferença entre as duas primeiras faixas e as duas mais idosas é a do grupo de efectivos que constituem o grosso destes dois derradeiros grupos (15 e 20 membros, respectivamente). Aliás, a concentração nesta posição à medida que sobe a idade é notória se repararmos que na classe dos 30/40 anos eles praticamente são metade (15 para 31), enquanto na dos 40 ou mais já constituem a quase totalidade (10 para 13). No mesmo sentido converge o facto de o estrato com habilitação suficiente se quedar na penúltima faixa etária, não havendo já ninguém em tais condições na derradeira.



Tudo isto confirma um facto universal, que a ascensão na carreira se vai operando com o tempo, como é normal, e que as situações mais indefinidas e instáveis ocorrem no princípio e, portanto, incidem nas idades mais baixas. É igualmante nestas que encontramos em toda a parte a maior impreparação académica e de experiência. A única peculiaridade com que aqui deparamos e já referimos é o facto de a faixa mais idosa não ser a mais numerosa, como ocorre nas escolas mais antigas e de meios estabilizados e mais privilegiados. Isto deve-se à expansão recente da escolaridade na região inquirida e à criação de novos estabelecimentos que ainda não tiveram tempo de implantar e fixar os respectivos corpos docentes, conservando-os até à reforma. Já vimos igualmente que isto é impedido por o meio ambiente não ser preferido pela generalidade dos docentes que o buscam apenas como momento de passagem para os grandes centros e o litoral norte e estremenho em geral, tidos por zonas mais compensadoras ou gratificantes pela quase totalidade da classe. À excepção deste particular, tudo o mais confirma o que em todo o lado ocorre com o jogo entre a posição profissional e a idade.



Resta constatar de que modo se distribuem as opções dos inquiridos relativamente à continuação ou não na profissão, em cada leque etário (quadro XIII).





QUADRO XIII


(1)

%

(2)

%

(3)

%

Total

%

Menos de 20 anos

1

100

0

0

0

0

1

100

20 a 30 anos

12

75

1

6,3

3

18,8

16

100,1

30 a 40 anos

26

83,9

0

0

5

16,1

31

100

Mais de 40 anos

9

69,2

0

0

4

30,8

13

100

Total

48

78,6

1

1,6

12

19,6

61

99,8



Quadro XIII – Distribuição dos inquiridos por idades relativamente à resposta à seguinte questão: “se lhe aparecesse um outro trabalho em que lhe fosse garantida a mesma remuneração, que faria:

1 – Continuava a ser professor?

2 – Não hesitava em aceitar esse novo trabalho?

3-Só aceitaria se apresentasse certas vantagens?”





Verificamos que o único que optaria incondicionalmente por mudar de trabalho anda na casa dos vinte anos, confirmando a maior tendência para a instabilidade nas idades mais baixas. Os restantes distribuem-se regularmente pelas outras duas alternativas, o que demonstra quanto o apego à profissão marca profundamente os professores, qualquer que seja a idade e a situação na carreira. A ligeira maior propensão para mudar no escalão dos vinte anos é igualmente acentuada pelo facto de ser igual a um quarto dos que permanecem o número dos que aceitariam mudar condicionalmente (3 para 12) enquanto ao nível dos trinta tal franja representa menos dum quinto daquela (5 para 26). De qualquer modo, os números e as diferenças são tão baixos que não são significativos, podendo dever-se perfeitamente a factores aleatórios. Como indícios, porém, convergindo na tendência geral comummente confirmada, não deixam de ser interessantes. Aliás, um outro pormenor do quadro sublinha mais tal paralelismo com a pesquisa. É que os mais idosos estão inesperadamente dispostos a abandonar condicionalmente, em quantidade imprevista (4 para 9, quase metade dos que pretendem permanecer). Esta disponibilidade para a mudança nos que em princípio deveriam estar mais fixos e estabilizados compreende-se em virtude da conjugação de vários factores.



Em primeiro lugar, estes colegas em geral são o resto dos tempos em que a escola era para um pequeno escol de eleitos ante quem aqueles exerciam mais papel de iniciadores ao ritual mágico da classe dominante do que propriamente de educadores. O dimensionamento dos estabelecimentos era diminuto e, entre os privilegiados pelo crivo de acesso mesmo às escolas técnicas que as inquiridas então eram, os docentes, porque raros entre a raridade, gozavam dum prestígio, duma auréola social que hoje a explosão de alunos e o enorme alargamento do corpo de professores fez tombar na vulgaridade. O desprestígio da função que a generalização acarreta não podia deixar de sentir-se. O fenómeno é constatável em todo o lado mesmo além-fronteiras e tem feito renascer teorias elitistas e contra a degradação do ensino que mais não são do que capas moralizantes ideológicas para compensar ou inflectir as causas do mal-estar que a democratização da cultura provoca. Trata-se de doirar uma reivindicação de privilégio (por preservação ou restauração) que já não encontra fundamento ético nas consciências nem tem coragem de assumir-se naquilo que efectivamente a move, nem no objectivo que prossegue de facto, escondido por trás das palavras, da simulação de justeza e da busca da qualidade. Deve estar a agir por dentro da insatisfação que ressuma daqueles números este processo de queda do pedestal com a mudança dos tempos, de destruição da própria imagem, de perda do nome com a dispersão no relativo anonimato dos actuais corpos docentes, muito mais numerosos, como, na sociedade, da proliferação de diplomados. A este fracasso da procura de prestígio e consideração vem juntar-se outra ordem de dificuldades: a mudança de papéis dos professores, com a ameaça permanente de desactualização e inadequação às funções dos que lá haviam assentado arraiais. Com efeito, mormente no contexto da formação de professores e das iniciativas de formação permanente do sector, constatámos sempre o afloramento disto. Os primeiros cursos em qualquer escola em regra atraíam apenas colegas eventuais e a profissionalizar-se. Logo após, contudo, corria toda a gente, mesmo em vésperas de reforma, à medida que os novos valores, quadros de referência, estratégias e recursos começavam a ser mobilizados pelos que haviam participado. Os antigos no estabelecimento sentiam que estavam rapidamente a ser ultrapassados, havia muitos conhecimentos de que jamais haviam tido notícia, opções diferenciadas, conceitos inovadores que nunca lhes haviam ocorrido e assim por diante. Vinham, ouviam e mantinham-se por norma calados e expectantes, por vezes angustiados e perdidos. Em tal estado de espírito, testemunhas dum mundo que acabou, inermes para afinar o passo pelo que principia, como admirarmo-nos duma vontade envergonhada de fuga? Alguns, aliás, várias vezes nos confidenciaram que tudo aquilo era bom para os novos, o tempo deles já havia passado e fora pena que tão tarde lhes chegassem tais pistas e perspectivas.



Se a franja dos que protestam contra a vulgarização dos diplomas e a massificação dos escolares se encontra, com estes fundamentos, em todo o lado, dentro e fora de nossas fronteiras, ao que confirmam os estudos a tal vector dedicados, já estoutro lado, o da desactualização, do desencanto não o descortinamos fora do âmbito provinciano de isolamento. Com efeito, nos grandes centros, as ideias circulam com maior amplitude e geralmenmte não apanham de surpresa este estrato de colegas. Ao contrário, é muitas vezes entre eles que se criam e divulgam as novas linhas de opção, estratégias e metodologias. Aliás, é mesmo porque vulgarmente são grupos deles que lideram o processo educativo e a adequação da instituição ao que a cada momento lhe é requerido que não acatam bem a desmultiplicação de títulos académicos e diplomas. Eles acham-se compartilhantes dum escol inconfundível, aqui de facto com provas dadas irrefutáveis. Como admitir confundi-los com o amorfismo do rebanho? Ora, este aspecto é praticamente inexistente, inviável nas escolas isoladas e, em geral, da província. O anacronismo é o efeito que tal condicionamento generaliza, vitimando por igual todas as faixas etárias destes corpos docentes. O segundo vector de desagrado pela profissão opera, pois, fundamentalmente nos estabelecimentos do último tipo e não nas áreas privilegiadas.



No respeitante às opiniões dos inquiridos sobre o porquê de haver maus alunos, verificaremos de seguida como se distribuem por escalões etários as escolhas da razão mais importante (quadro XIV). Um pormenor interessante que sobressai é o de que nenhum dos colegas atribuiu primeira prioridade às duas causas iniciais, a da capacidade intelectual dos alunos e a de os professores não dominarem a matéria. Isto é, de algum modo, acalmar à partida os dois intervenientes imediatos na relação pedagógica, colocando-os de lado, para não assacar culpas, desde logo, a nenhum deles, ou, pelo menos, para não cerrar as portas definitivamente à melhoria, remetendo-se ao caso consumado.



Já vimos quanto seria assim, no entendimento dominante, se a falha fora do intelecto. O mesmo praticamente ocorreria com a impreparação curricular do docente, uma vez que, mantendo-se em exercício, seria obviamente impraticável estudar e preparar-se com eficiência para leccionar concomitantemente. Este cuidado é revelador da atenção com que estes professores encaram as relações humanas na escola, correspondendo de perto ao grande investimento que nelas operam os educandos, bem como ao clima geral muito amistoso, colaborante e sereno que em todos os estabelecimentos alentejanos (comum, aliás, à província inteira) nos foi dado, como já vimos, confirmar.



QUADRO XIV


- 20 anos

%

20/30 anos

%

30/40 anos

%

+40 anos

%

Total

%












1

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

2

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

3

1

6,3

5

31,3

7

43,8

3

18,8

16

100,2

4

0

0

0

0

5

50

5

50

10

100

5

0

0

0

0

4

100

0

0

4

100

6

0

0

1

20

3

60

1

20

5

100

7

0

0

5

41,7

4

33,3

3

25

12

100

8

0

0

1

33,3

1

33,3

1

33,3

3

99,3

9

0

0

3

33,3

6

66,6

0

0

9

99,9

10

0

0

1

50

1

50

0

0

2

100

Total

1

1,6

16

26,2

31

50,8

13

21,3

61

99,9



Quadro XIV – Distribuição da escolha da razão mais importante do mau rendimento escolar, por escalões etários dos inquiridos, dentre o leque das seguintes (coluna 1):

1 – Falta de capacidade escolar dos alunos;

2 – Os professores não dominam bem a matéria;

3 - Os conteúdos e a forma como estão organizadas as matérias;

4 – Os alunos não têm hábitos de trabalho escolar;

5 – Os professores não sabem ensinar;

6 – Os alunos andam na escola contra vontade;

7 – Os alunos não têm interesse pelas matérias que têm de estudar;

8 – Os professores não têm boa relação com os alunos;

9 – As condições em que funciona a escola (n.º de alunos por turma, funcionamento dos directores de turma, ocupação dos tempos livres, etc.);

10 – Falta de acompanhamento e de estímulo da família.





Em virtude disto, não cremos que os números fossem sobreponíveis se colhêssemos respostas nos grandes centros. As relações humanas aqui, com efeito, são infinitamente mais distantes, a pedagogia é meramente funcional e fria em geral, ninguém chega a conhecer verdadeiramente ninguém. Nestes termos, os pruridos que se adivinham por trás da contenção que estamos analisando não teriam grande razão de ser neste outro universo.



Um aspecto curioso respeita aos itens deixados em branco ou com um único registo por parte dos colegas mais idosos. Nesta primeira prioridade, ficam sem votos deles os factores: os professores não sabem ensinar (n.º 5), as condições em que funciona a escola (n.º 9), e a falta de acompanhamento e de estímulo da família (n.º 10). Com apenas uma anotação aparecem: os alunos andam na escola contra vontade (n.º 6) e os professores não têm boa relação com os alunos (n.º8). Se neste último são acompanhados pelos dois anteriores escalões etários já no antecedente apenas apresenta resultado idêntico o grupo dos vinte anos. Relativamente aos outros três quesitos que nenhum deles apontou, apenas o de que os professores não sabem ensinar (n.º5) é deixado em branco igualmente pelo grupo dos vintenários. Tudo indicia uma tendência de os mais idosos se diferenciarem no sentido, em primeiro lugar, de não porem em causa a condição docente. Para eles, como já vimos, ser professor é algo tão sublime, tão importante que torna praticamente impensável acoimá-lo ou sequer suspeitá-lo de ser factor de maus alunos. Isto leva o leque de colegas em causa a atribuirem apenas um voto no conjunto dos três itens relativos a tal vector e justamente àquele que se reporta ao saber ensinar. Um caso único não é, obviamente, significativo. Entretanto não cremos que tenha sido fortuito ele justamente recair naquele e não em qualquer dos outros quesitos. Com efeito, onde ouvimos estes colegas fazerem reparos à classe foi sempre relativamente à torrente de gente nova e à banalização que arrasta, à falta de qualidade que ali campeia. É claro que tudo isto é fruto do mal-estar e do indisfarçado rancor que sentem por gradualmente andarem a ser descidos do pedestal e por este vir sendo destruído sem recurso. O bode expiatório, até porque indefeso, é quem principia inexperto e hesitante. Aquela anotação isolada sugere-nos claramente um afloramento desta atitude. Por outro lado, tanto as condições de funcionamento da escola como a responsabilidade familiar são colocadas de lado. A lógica é a mesma e por isso não consegue ser acompanhada pelos outros leques etários. Se o professor era uma entidade superior quase mítica outrora, com muita aura de sagrado (historicamente oriundo desta fonte, dela se nutriu multissecularmente), o santo dos santos intocável era a escola e o que nela operavam os mestres da sabedoria. Como assacar-lhe culpas, mesmo em termos de condições de funcionamento? Aliás, elas reverteriam em grande parte sobre os mentores do estabelecimento, mormente professores, o que justamente tende a surgir como intolerável a esta franja de colegas. Ora, se isto é assim, então que é que a família pode ter a ver com tudo? Se a escolaridade é o ádito para o universo sublime do que é superior, a família deve reduzir-se à insignificância dela, se lhe não pertence, ou então apenas celebrar o ritual da consagração e confirmação, se deste mundo compartilha. Em qualquer das hipóteses não tem nada que ser chamada a tal pelouro. Isto, aliás, confirma indirectamente o alheamento em que estes colegas vivem perante as descobertas das ciências da educação e dos aspectos decisivos para o bom rendimento escolar que elas têm vindo gradualmente a pôr a nu. As escolhas deste grupo convergem no reforço destes sentidos. O elitismo por que ele tende a pautar-se aflora no quesito mais vezes referido (5 votos), o de que os alunos não têm hábitos de trabalho escolar. O que para outros é uma preocupação e funda questionamentos sobre a justificação das prioridades escolares, para estes é antes a falta dum sinal de eleição para a porta estreita por onde quem ascender ao olimpo terá de passar, com a marca de qualidade de entes superiores. Aqui não constitui tanto uma dúvida ou um lamento, é antes uma exigência dum distintivo do clube dos eleitos.



Relativamente ao escalão dos 20 a 30 anos ressalta das distribuições de escolhas a fuga generalizada também aos itens que põem em causa professores ou alunos. Com efeito, nestes apenas há uma referência ao de os discípulos andarem na escola contra vontade (n.º 6) e outra ao de os docentes não terem boa relação com os educandos (n.º 8). Ao mesmo nível colocam a família. O grosso das respostas reportam-se aos programas e ao desinteresse pelas matérias a estudar (n.º3 e 7, com 5 pontos) que já vimos que se interligam necessariamente, como duas faces do mesmo factor. E a seguir a esta matriz vem a das condições de funcionamento da escola (n.º 9, com 3 pontos). É novamente uma fuga nítida a pôr em xeque os dois elementos da relação pedagógica, como é compreensível numa franja insegura neste domínio (é aqui que se colocam quase todos os problemas de disciplina na sala de aula), que sente mais do que compreende que neste domínio tem um calcanhar de Aquiles e que, por outro lado, não pode deixar de constatar e apreciar a bonomia e hospitalidade do ambiente relacional destas escolas, com predomínio do empenho dos alunos em tal fito. Evitar atribuições de primeira prioridade em tais vectores mais não é que uma medida prudencial neste caso. Por um lado, há um certo pudor, nalguns casos algum complexo de inferioridade para admitir que se é um professor inexperto nas relações humanas, inseguro aí e no âmbito programático, metodológico e das próprias competências pessoais a desenvolver no domínio educativo. Todos nos envergonhamos de expor em público as nossas misérias. É a vulnerabilidade que está em causa e o bom senso aconselha que nos não exponhamos demasiado senão poderemos ser feridos ou abatidos. Por detrás de toda a contenção que encontramos neste leque estão decerto considerações destas. A maturidade e equilíbrio com que é assumida revelam-se na recusa de passar culpas, no intuito igualmente de deixar os estudantes ilesos. Estes, com efeito, também são afastados das razões prioritárias das dificuldades. A inexistência desta projecção em tal leque de professores, os mais novos dos corpos docentes, é um forte indício de saúde emocional e de autenticidade pedagógica, um fundado motivo de esperança. Isto, aliás, condiz com o que a pesquisa desta área em geral vem constatando relativamente à generosidade, entusiasmo, empenhamenmto e calor humano que caracteriza os primeiros escalões etários de docentes.



É claro que algo divergiria decerto se o clima relacional que encontram na escola fosse outro, mormente o anonimato das grandes cidades e fora do contexto rural. Aqueles traços parece manterem-se, ao que a investigação constata, mas já não haveria porventura tanta diplomacia, tanto cuidado em preservar condições. É que no ambiente urbano cosmopolita pouco haveria a resguardar em termos de dados prévios para o relacionamento pedagógico, atento o distanciamento, a massa, aqui esmagar tudo, sobrepor-se a todos e ditar a lei cujas excepções são muito escassas e problemáticas.



No grupo predominante, o dos 30 a 40 anos, a distribuição é muito mais dispersa, apenas os dois primeiros itens ficam em branco. A dominância vai agora para as características mais comuns à classe nesta região (não é por acaso que estes são o estrato mais numeroso, a pedra angular dos corpos docentes), colocando à frente os quesitos relativos à instituição (programa – 7 pontos; condições da escola – 6), logo depois os dos alunos, com números muito próximos, e os dos professores. A família, nesta primeira prioridade, é apontada apenas também por um inquirido. Anotando como é desta franja que decorre a tónica geral da comunidade escolar, convém reparar em quanto isto diverge das escolas de grandes centros onde tal deriva do estrato mais idoso, o dos colegas mais promovidos na carreira profissional que ali pontificam inexpugnavelmente.



Compreende-se melhor, depois disto, que nestas últimas escolas a abertura à mudança, ao divergente, não colha acatamento senão por via da protagonização, iniciativa ou, pelo menos, ratificação dos mais velhos (e sabemos quanto a idade pesa na perda de flexibilidade, de abertura ao inovamento, de gosto e energias para mudar), e que naquelas, ao invés, a dominante seja, mesmo em extremos de efeitos deletérios, a permanente transformação, a instabilidade, o estar em trânsito imparável (tanto de pessoas como de modalidades de organizar, agir e conviver no estabelecimento). A chefia aqui tende a recair numa faixa bastante mais nova e disponível do que nas escolas de antiga tradição das urbes macrocéfalas litorais, prisioneiras dos próprios privilégios, onde avulta o de disporem dos mestres mais expertos e estabilizados de todo o sistema institucionalizado. Por outro lado, o equilíbrio e adequação que confirmámos entre o posicionamento desta franja e a apreensão realista dos múltiplos vectores relevantes do terreno é um fundamento de esperança e uma garantia de porvir de qualidade no que deste factor humano depende.



Analisemos agora o que ocorre com a distribuição das escolhas de segunda prioridade (Quadro XV).







QUADRO XV


- 20 anos

%

20/30 anos

%

30/40 anos

%

+ 40 anos

%

Total

%

1

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

2

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

3

0

0

3

21,4

10

71,4

1

7,1

14

99,9

4

0

0

3

37,5

3

37,5

2

25

8

100

5

1

50

0

0

0

0

1

50

2

100

6

0

0

0

0

3

100

0

0

3

100

7

0

0

3

30

5

50

2

20

10

100

8

0

0

0

0

1

100

0

0

1

100

9

0

0

5

33,3

6

40

4

26,7

15

100

10

0

0

2

25

3

37,5

3

37,5

8

100

Total

1

1,6

16

26,2

31

50,8

13

21,3

61

99,9



Quadro XV – Distribuição por escalões etários dos inquiridos, da razão de importância intermédia do mau rendimento escolar, escolhida dentre as seguintes (coluna 1):

1 – Falta de capacidade intelectual dos alunos;

2 – Os professores não dominam bem a matéria;

3 – Os conteúdos e a forma como estão organizados os programas;

4 – Os alunos não têm hábitos de trabalho escolar;

5 – Os professores não sabem ensinar;

6 – Os alunos andam na escola contra vontade;

7 – Os alunos não têm interesse pelas matérias que têm de estudar;

8 – Os professores não têm boa relação com os alunos;

9 – As condições em que funciona a escola (n.º de alunos por turma , funcionamento dos directores de turma, ocupação dos tempos livres, etc,);

10 – Falta de acompanhamento e de estímulo da família.





Notável é, em primeiro lugar, que nem ao nível das razões de peso intermédio qualquer dos inquiridos tenha apontado alguma vez as duas primeiras, o que reforça significativamente quanto atrás sublinhámos relativamente ao cuidado em manterem em aberto condições para o bom relacionamento pedagógico comum a todas as idades.



O único docente com menos de vinte anos desta vez já se atreveu a confessar o que decerto no próprio caso era uma evidência, pese embora todo o pudor e vergonha: os professotres não sabem ensinar (n.º 5). Nisto apenas é acompanhado por outro colega dos mais idosos, porventura num afloramento da mesma despeita que atrás já caracterizámos. Continua, porém, tal factor a não ter quase nenhuma representatividade na panorâmica de conjunto, pelos motivos já conhecidos. Menos significativo ainda é o item 8, os professores não têm boa relação com os alunos, que apenas colheu, mesmo como prioridade de segunda ordem, uma referência no leque dos 30 aos 40 anos. É de tal modo evidente o bom clima das relações humanas que obrigatoriamente teria de redundar nisto. E mesmo o que o apontou certamente lhe atribuiu a conotação geral atrás delineada de os relacionamentos não atingirem os aspectos que seriam indispensáveis para garantirem o rendimento escolar, por muito amistosos que se desenvolvam de facto e praticamente sem excepção.



No grupo dos vintaneiros, entretanto, a inibição perante as próprias dificuldades redunda aqui na completa exclusão de todos os quesitos relativos aos professores (n.º 2, 5 e 8). Nem um único aponta qualquer deles como factor de mau rendimento escolar. Já referimos quanto a insegurança, a inexperiência, bem como a transitoriedade da quase totalidade destes colegas lhes tendem a tolher uma denúncia impudica em que teriam de expor as próprias misérias e feridas. Daí, certamente, a fuga a apontar tais itens, mesmo a este nível de importância secundária. Os atingidos de complexo de inferioridade, debaixo do fogo cerrado das reservas dos alunos e, eventualmente, dos colegas, não têm igualmente outro padrão de resposta que não esta fuga e negação da realidade. Ambos os tipos os encontrámos em campo, muito embora com larguíssimo predomínio do primeiro, muitas vezes com traços francos de humildade e sadio realismo. Foi, aliás, porque tal dominou que nos foi viável o trabalho com os milhares de professores que participaram dos cursos que monitorámos por toda a região. Os complexados têm dificuldade em integrar-se e acorrem menos porque o mero comparecer já corre o risco de desdourar a imagem de ouropéis com que pretendem e intentam camuflar-se perante os demais. Como, porém, a grande massa dos corpos docentes interveio nos sucessivos dias de labor levados a terreiro em todo o lado, não nos restam dúvidas de que o equilíbrio emocional e relacional predominam entre eles.



Neste grupo dos vinte anos, a razão de importância intermédia que sobreleva às demais é a das condições de funcionamento da escola (n.º 9, 5 pontos), seguida pela dos programas (n.º 3), pela do desinteresse dos alunos pelas matérias (n.º 7) e pela da falta de hábitos de trabalho (n.º 4), todas com três registos cada. A convergência destes itens, todos mutuamente afins, como já analisámos, reforça os estreitos laços que entre eles entretecem, em virtude da dependência dos quesitos relativos aos educandos perante os referentes à instituição. Não é, pois, ocasional, tal distribuição de votos deste escalão etário dos inquiridos. Aliás, o conjunto das posições acaba por fazer incidir a opinião deste leque de idades nos quesitos que justamente menos envolvem os directamente empenhados na relação pedagógica. Continua também aqui a fazer-se sentir o cuidado extremo em não tocar na zona melindrosa, em preservar e resguardar o mais vulnerável em principiantes que são quantos se situam nesta faixa, uma vez que têm habitualmente grandes dificuldades em equilibrar o relacionamento com os discípulos, bem como integrá-lo com a abordagem programática. Se por este último pendor os colegas deste grupo se diferenciam dos demais escalões etários, no derradeiro item que apontaram equiparam-se-lhes (n.º 10, 2 pontos aqui para 3 de cada um dos outros). Este facto revela quanto é comum aos docentes a sensibilidade ao problema familiar dos alunos, bem como à ambiguidade que neste meio revela – solidariedade ao nível afectivo e relacional com a escolaridade dos educandos e concomitantemente impreparação académica do lar para lhes acompanhar o itinerário estudantil pelo curso fora. É o que sugere o facto de simultaneamente todos os leques etários o apontarem, mas continuar uma certa reserva (apesar de já estarmos perante o quadro de razões de premência intermédia), uma vez que os totais continuam bastante baixos.



O estrato dos 30 aos 40 anos também aqui se mantém liderando o perfil dominante dos inquiridos. É fortemente predominante o vector das razões institucionais (n.º 3 e 9, com 10 e 6 pontos, respectivamente), logo seguido pelo dos alunos no item que directamente decorre daquelas (n.º 7, com 5 pontos) e, finalmente, os restantes relativos aos educandos empatados com o da família (n.º 4, 6 e 10, respectivamente, todos com 3 registos). A dominância destes colegas na determinação dos perfis globais mantém-se, pois, a este segundo nível de premência das razões do mau rendimento escolar, reforçando tal posição já constatada no quadro dos quesitos apontados como de primeira importância. Duas notas curiosas que este grupo apresenta são, primeiro, que ninguém daqui apontou que os professores não sabem ensinar (n.º 5), conservando a atitude intermédia e equilibrada entre o mais novo que decerto constatou aquilo nele próprio e a despeitada e acusatória do mais idoso que entende apontar a dedo as dificuldades dos jovens que apenas o tempo e o empenhamento vão permitindo limar (e que, de facto, constatámos que em geral assim estão operando no terreno). Em segundo lugar, é aqui que encontramos a única referência a não haver uma boa relação professores-alunos. Até pela parcimónia de tal registo se indicia que não é tanto um mau relacionamento mas antes uma inadequação dele que mesmo neste caso isolado decerto se pretende apontar.



Finalmente, o grupo de mais de 40 anos deixa em branco o factor n.º 6, os alunos não têm interesse pelas matérias, e o n.º 8, os professores não têm boa relação com os educandos. Para esta franja, de facto, nenhum deles fará muito sentido. Aquele porque, se a escola é o pórtico de entrada na classe superior, o argumento em prol do respeito pelos motivos de partida dos educandos é um absurdo: ou bem que há uma iniciação ou então não há razão para a escola. A lógica elitista desemboca aqui, evidentemente. De facto, ou o educando vem à instituição para que esta confirme e ratifique o que ele já por direito de nascimento (aqui camuflado como revestimento cultural de padrões académicos) detém e então tudo se resumirá a uma mera consagração, como ocorre com a generalidade dos filhos dos estratos mais privilegiados, ou então, ao invés, o ádito escolar é a prova de fogo de quem queira assimilar tal cultura, sem o que continuará banido do reino dos deuses. Ora, esta última exigência implica necessariamente que não se acatem os padrões iniciais do educando, ele vem à escola exactamente para se moldar a outros e se acorre à instituição será porque pretende substituir aqueles por estes. À partida, pois, não há sintonia entre ambas as matrizes motivacionais nem sequer deverá haver, doutro modo a discriminação dos aristocratas deviria inviável. Ora, em grande parte ela é que constitui subconscientemente a pedra de toque desta franja de colegas dos estabelecimentos da região. Igualmente não faria sentido referir a falta de bom relacionamento com os educandos, não apenas porque o clima do encontro em todo o lado é excelente, mas principalmente porque, para a generalidade destes professores, a relação é a que deve ser do ponto de vista do escol a que o discípulo pretende vir a aceder, também ela é padronizada segundo o modelo elitista, com idêntica conotação de representativa das pessoas de eleição, e o aluno apenas tem de aclimatar-se-lhe, moldar-se em conformidade, se pretender talhar carreira como estudante. Na mesma ordem de ideias se compreende porque apenas um deles acoima os programas de responsáveis pelos maus alunos (n.º 3). É em igual linha de coerência que fundamentalmente se situam os registos seguintes que referem que os alunos não têm hábitos de trabalho escolar (n.º 4, 2 pontos) e que não têm interesse pelas matérias (n.º 7, 2 igualmente). São mera constatação de facto, neste contexto, e não tanto diagnóstico a requerer terapia. Para estes colegas, a escola e eles próprios, fundamentalmente, estão correctos, procedem acertadamente, é sobre o discípulo que impende o dever de transformar-se para se adequar às pessoas de categoria superior. Então o mau aluno deriva apenas ou de invencível rigidez dos modelos de partida ou de recusa deliberada de aculturação aos diferentes que a instituição lhe ministra. Em qualquer das hipóteses está tudo bem e não há nada conseguintemente a mudar do lado docente nem escolar. Justamente porque a dominante continua sendo esta linha de pensamento é que os pontos são tão baixos e indecisos, contrariamente ao que ocorria no leque etário precedente, muito mais conforme com um projecto transformador da escola (de que é o principal obreiro e o próprio objecto da mudança em grande parte, em virtude da rápida expansão actual dos corpos docentes) e com uma divulgação democrática da cultura às grandes massas da população.



Onde ambos os grupos convergem é no apontar da família (n.º 10, 3 pontos), embora também aqui os sentidos tendam a divergir por certo. É que, para os trintenárioss há a referida ambiguidade do apoio familiar, perspectivada sob o ângulo do potencial aproveitamento deste em prol da optimização do rendimento escolar dos educandos. Ora, quando os mais velhos o apontam tenderão mais a pretender confirmar-nos que a extracção popular de discípulos redunda num desajustamento alargado, o que, na perspectiva elitista, é normal e de esperar, não requerendo qualquer alteração pedagógica ou institucional: aqueles que saltarem a barreira integrarão a aristocracia, os demais rdeverão manter-se ao nível do rebanho. Onde a tónica pontual é colocada por este grupo é no item 9, as condições de funcionamento da escola (4 pontos). Neste contexto, tal dominante, ainda muito pouco marcada, apesar de já estarmos em razões de peso intermédio, deixa adivinhar quanto este apontamento ressuma de queixa do estrato de colegas idosos contra as mudanças que a explosão escolar, tanto de alunos como de docentes, introduziu no universo doirado dos bons velhos tempos deles, onde não havia balbúrdias, as pessoas se conheciam e respeitavam, eram muito afins e diferentes do mundo circundante, cultivavam relações e gostos próprios de gente finamente requintada. Esta torre de marfim está em desmoronamento e daí a lamentação. O mau funcionamento no critério destes pode, inclusive, constituir, assim, o que de melhor há para os outros, uma vez que constitui o preço transitório da democratização tendencial do ensino e da cultura erudita a toda a gente.



Vejamos agora se tudo continua concordante no âmbito das razões colocadas em terceiro lugar (quadro XVI).





QUADRO XVI


- 20 anos

%

20/30 anos

%

30/40 anos

%

+ 40 anos

%

Total

%

0

0

0

0

0

1

100

0

0

1

100

1

0

0

1

50

0

0

1

50

2

100

2

1

50

0

0

0

0

1

50

2

100

3

0

0

1

12,5

5

62,5

2

25

8

100

4

0

0

3

50

1

16,5

2

33,5

6

100

5

0

0

0

0

1

100

0

0

1

100

6

0

0

0

0

4

80

1

20

5

100

7

0

0

2

15,4

8

61,5

3

23,1

13

100

8

0

0

1

33,3

2

66,6

0

0

3

99,9

9

0

0

4

36,4

5

45,5

2

18,2

11

100,1

10

0

0

4

44,4

4

44,4

1

11,1

9

99,9

Total

1

1,6

16

26,2

31

50,8

13

21,3

61

99,9



Quadro XVI – Distribuição por escalões etários das escolhas dos inquiridos referidas em terceiro lugar, dentre as razões seguintes de mau rendimento escolar:

1 – Falta de capacidade intelectual dos alunos;

2 – Os professores não dominam bem a matéria;

3 – Os conteúdos e a forma como estão organizados os programas;

4 – Os alunos não têm hábitos de trabalho escolar;

5 – Os professores não sabem ensinar;

6 – Os alunos andam na escola contra vontade;

7 – Os alunos não têm interesse pelas matérias que têm de estudar;

8 – Os professores não têm boa relação com os alunos;

9 – As condições em que funciona a escola (n.º de alunos por turma, funcionamento dos directores de turma, ocupação de tempos livres, etc. );

10 – Falta de acompanhamento e de estímulo da família.

O zero na primeira coluna significa ausência de resposta.





Desde logo, o colega com menos de vinte anos confirma o pendor anterior, agora apontando que os professores não dominam bem a matéria, como é comum a toda esta franja pouco habilitada. Igualmente nisto é acompanhado por um dos mais idosos que o aponta a dedo por certo na atitude atrás delineada.



No grupo dos vintaneiros ficam em branco os quesitos n.º 2, os professores não dominam bem a matéria, n.º 5, os professores não sabem ensinar, e n.º 6, os alunos andam na escola contra vontade. Confirmam naqueles o recuo pudico ante as próprias limitações que já anotámos nas prioridades causais anteriores. No último demonstram o reconhecimento do empenhamento geral dos educandos na escolaridade. O próprio facto de serem novos e com pouco domínio da situação os leva a não surpreenderem facilmente a outra vertente desta aposta dos discípulos, a de concomitantemente viverem em geral contrafeitos, mal ajustados e desencantados no âmbito da comunidade escolar.



Com um registo apenas aparece-nos o quesito 1, falta de capacidade intelectual dos alunos, atitude acompanhada igualmente por um voto dos mais idosos. Enquanto no primeiro evocamos o testemunho dos colegas mais novos queixando-se da inaptidão intelectual geral dos estudantes, proveniente dum meio ambiente pobre de estímulos e duma família intelectualmente pouco desenvolvida, operando em geral ao nível do pensamento concreto, já no segundo vislumbramos mais o outro pendor, o da qualificação sem apelo da falta de intelecto como condição inata, geneticamente determinada e conseguintemente sem possibilidade de recurso nem alternativa, leitura dominante nas franjas docentes que optam e se posicionam segundo a coerência duma posição elitista da função do sistema escolar. Em qualquer hipótese, porém, a parcimónia do número é antes de mais significativa da larga rejeição de tal matriz de mau rendimento escolar pela quase totalidade dos inquiridos que nisto decerto são fiéis porta-vozes da classe inteira dos professores.



Insignificante do mesmo modo, a este terceiro nível de premência, é a denúncia dos programas (n.º 3, 1 ponto), cuja escassez não é seguida pelas demais faixas etárias. Compreende-se isto desde logo em virtude de haver nas prioridades anteriores um regular crescendo neste item (3 votos como razão intermédia, 5 como principal). Por outro lado, esta quebra resulta de o estrato dos vintenários ser o mais dificilmente colocado para se dar conta do alcance do quesito em causa. Tem um deficiente domínio dos programas, pouca experiência de trabalho com eles, muita hesitação quanto a metodologias e estratégias para o rendibilizarem. Tudo isto tende a empurrá-los para a atitude um pouco hesitante e indefinida que os números sugerem, mesmo no declínio brusco à medida que descemos de grau de premência.



O último item que apenas lhes mereceu um voto foi o de os professores não terem boa relação com os alunos (n.º 8). Aqui surpreendemos novamente a confissão envergonhada das próprias fraquezas já referida e no sentido delineado de parca adequação ao que seria desejável. De qualquer modo, é evidente o predomínio da inibição sobre a confissão, se bem que neste domínio tudo corra habitualmente de modo tão amistoso que necessariamente muito pouco teria sempre de registar-se, qualquer que seja a faixa etária.



Os quesitos mais significativos, com 4 pontos cada, são o n.º 9, as condições de funcionamento da escola, e o n.º 10, a falta de acompanhamento familiar. O primeiro converge com o sentimento dominante dos inquiridos em atribuir a razões primariamente institucionais o mau rendimento estudantil. Amaior incidência neste e não no dos programas revela uma vez mais quanto os mais novos têm dificuldade em apreender este e, em contrapartida, lhes é muito mais apreensível a manifestação exteriorizada no estabelecimento. O quesito da família referido com tanto peso relativamente aos totais desta franja revela, porque estamos perante o derradeiro nível de premência, por um lado, quanto entendem que a responsabilidade maior não será, afinal, do lar e, por outro, que seria muito bom, decisivo porventura, que o fosso entre a cultura escolar e a popular não continuasse tão intransponível. Isto, aliás, como atrás explicámos, prende-se ao primeiro item que aqui recolheu um voto, a falta de capacidade intelectual. A força que é atribuída à família nesta derradeira instância aponta a sensibilidade da franja ao factor do estímulo e enquadramento ambiente, decisivo para o desenvolvimento das operações formais da inteligência, e que nos meios rurais escasseia enormemente ao nível das faculdades mais elevadas do pensamento e da criatividade.



Entre os extremos, este grupo aponta os dois derradeiros itens relativos aos alunos, a falta de hábitos de trabalho escolar (3 pontos) e o desinteresse pelas matérias (2), no que uma vez mais converge com as tónicas do total dos inquiridos e dos docentes da região, tanto quanto os lográmos desvendar nos contactos ao correr dos anos com eles cultivados.



Os trintenários inquiridos têm agora no topo das opções o quesito da falta de interesse dos alunos pelas matérias (8 pontos), logo seguido, com registos iguais, dos dois relativos à instituição, programas e condições de funcionamento (5 votos cada), o que confirma novamente que é esta franja que impõe a tónica das escolhas, qualquer que seja o nível de premência das razões apontadas. Em nenhum dos quadros há desvios significativos neste grupo, contrariamente aos outros dois, como temos vindo a constatar. Logo a seguir, empatados, referem que os alunos andam na escola contra vontade e que há falta de acompanhamento e de estímulo da família (4 registos cada). Não é ocasional a coincidência destas escolhas, uma vez que interdependem no sentido de que por muito que os educandos queiram estudar, o ambiente é-lhes estrangeiro e por conseguinte provoca-lhes constrangimento. Ora, isto evitar-se-ia caso o lar operassa na base de padrões valorizados escolarmente (equilíbrio e diálogo do oral e do escrito, apreço pela linguagem literária e pela terminologia técnica de cada área curricular, intercomunicações escritas – por cartas, recados, avisos...). É disto sinal não apenas a coincidência do número de escolhas como o volume relativamente elevado destas. Como estamos no nível da derradeira prioridade, não é possível confundir este indicador como referindo razões principais. Daí a margem maior de liberdade para reportar outros sentidos, como nos parece claro no caso em análise. Como últimas e pouco significativas referências, os trintaneiros apontaram, primeiro, a falta de boa relação com ao alunos (2 pontos) e, depois, que os professores não sabem ensinar (1 apenas) e a carência de hábitos de trabalho dos estudantes (1 igualmente). Aflora nisto quanto já anotámos relativamente à contenção nos quesitos que dificultem o cultivo da relação pedagógica e que ponham em causa o que directamente depende da vontade livre dos intervenientes. Os três itens em análise revestem no terreno as ambiguidades já identificadas, cabendo-lhes parte de aspectos dificilmente controláveis por educadores ou educandos individualmente (o relacionamento adequado ao que aqui seria requerido para frutificar em pleno implica disponibilidades de tempo, de afectividade e de familiarização com a cultura ambiental que justamente quase nenhum professor logra atingir, por exemplo), enquanto, por outra vertente, algo depende sempre do empenhamento pessoal para serem contornadas as limitações de enquadramento. Estamos numa zona de fronteira entre o que excede cada um e o que lhe fica entre mãos, meramente dependente da própria vontade e liberdade. Isto permite coerentemente manter apontadas razões desta ordem e concomitantemente justifica que não abundem tais escolhas. Quantos entendem (e são larga maioria) que os reais problemas que devêm insolúveis têm origem estrutural, acabam recusando, mesmo como última prioridade, referir qualquer item deste vector. Os que, apesar de tudo, ainda atribuem algum relevo às soluções de recurso, aos remendos que a intervenção pessoal afinal vai conseguindo, então acabam por tocar, uma vez por outra, factores como os referidos. É o que cremos que ocorreu aqui e daí a parca representatividade dos quesitos em análise. É isto que igualmente permite clarificar, afinal, porque um deles prefere, ao fim e ao cabo, não indicar a terceira razão. Ele terá sentido que, apesar de tudo, optar o levaria a trair-se quanto às escolhas fundamentais e à linha de sentido que lhes presidiu. Daí, o silêncio.



O mais notório nas opções do grupo mais idoso, a este último nível de premência, é a enorma dispersão que manifesta. Com efeito, o leque dos totais vai apenas de zero a três, revelando grande indecisão e, porventura, indiferença relativamente a esta escolha. Podemos afirmar que, no fundo, estes colegas entendem que, após referidos os grandes factores, acaba por influir no mau rendimento um pouco de tudo, com excepção dos itens relativos aos professores que deixaram em branco, o de não saberem ensinar e o de não terem boas relações com os alunos. Como estes eram os mais susceptíveis de lhes mancharem os galões, não os referem. Como o não dominar a matéria em regra atinge apenas os novatos, um deles não resistiu à tentação de dar esta alfinetada contra a grande invasão dos bárbaros que para eles é a expansão acelerada dos corpos docentes por toda a região, bem como nas escolas da província. Quanto ao resto não é viável fazer destaques, tão próximo aqui acaba por ficar tudo. O quesitto único com 3 pontos é o do desinteresse dos alunos pelas matérias. Dada a sensibilidade geral do grupo, apontá-lo à frente tende apenas a reforçar a queixa contra a banalização, a incultura (na leitura deles) com que a instituição transige, ao admitir entradas em massa, sem critérios firmes de discriminação pela qualidade (que aqui se resumiria aos gostos e preferências consagrados curricularmente na escola – quem partilhasse tais escolhas, entraria, quem não os bebeu no leite e se não aclimata, deveria ir-se embora). De qualquer modo, porém, o número não é suficiente para indicar qualquer tónica, aqui fica tudo mais ou menos por igual. Tal resultado final, por outro lado, revela quanto esta franja de professores tem uma leitura simplista do fenómeno escolar. Com efeito, para eles tudo se reduz a uma missão quase iniciática que antigamente lhes era cometida, em que ombreavam com os filhos da classe dominante de modo quase exclusivo, e tudo eram polidezes e vénias, num ritual em que as formas valiam tanto senão mais que os conteúdos. Ora, doravante constatam a falência de tal modelo dominante e tendem a enquistar-se na lógica de quem lhe adere incondicionalmente, para quem tudo o mais é o dilúvio, o fim do mundo. E o deles é-o, efectivamente. Pena é que o absolutizem, dogmatizando-o, pelo que ficam cegos e surdos a outros valores e prioridades, não conseguem introduzir cambiantes nem relativizar juízos ou atitudes. Resultado: acabam dando-nos um quadro onde tudo se mistura sincreticamente, sem ligações nem distinções, sinal do reducionismo a que o dogmatismo conduz os que lhe tombam nos laços. O desencanto destes poucos colegas, em grande parte reduzidos a sombras silenciosas, cumprindo ritualmente as imposições do poder, sem tugir nem mugir, acaba aflorando no azedume e demissionismo que o perfil de tal quadro deixa adivinhar. É o que, com efeito, mais de perto condiz com aquilo que deste estrato recolhemos ao vivo no terreno, pelo que, uma vez mais, as duas pistas convergem.



Analisemos agora como por idades se operaram as escolhas das razões mais importantes que os inquiridos crêem que os alunos fariam (quadro XVII).





QUADRO XVII



- 20 anos

%

20/30 anos

%

30/40 anos

%

+ 40 anos

%

Total

%

0

0

0

0

0

2

100

0

0

2

100

1

0

0

1

50

1

50

0

0

2

100

2

0

0

0

0

1

100

0

0

1

100

3

1

20

2

40

2

40

0

0

5

100

4

0

0

1

16,7

4

66,7

1

16,7

6

100,1

5

0

0

1

9,1

8

72,7

2

18,2

11

100

6

0

0

3

50

1

16,7

2

33,3

6

100

7

0

0

6

31,6

7

36,9

6

31,6

19

100,1

8

0

0

2

100

0

0

0

0

2

100

9

0

0

0

0

5

71,4

2

28,5

7

99,9

10

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

Total

1

1,6

16

26,2

31

50,8

13

21,3

61

99,9



Quadro XVII – Distribuição por escalões etários das opiniões dos inquiridos acerca das razões que os alunos escolheriam como mais determinantes do mau rendimento escolar, dentre as seguintes (coluna 1):

1 – Falta de capacidade intelectual dos alunos;

2 – Os professores não dominam bem a matéria;

3 – Os conteúdos e a forma como estão organizados os programas;

4 – Os alunos não têm hábitos de trabalho escolar;

5 – Os professores não sabem ensinar;

6 – Os alunos andam na escola contra vontade;

7 – Os alunos não têm interesse pelas matérias que têm de estudar;

8 – Os professores não têm boa relação com os alunos;

9 – As condições em que funciona a escola (n.º de alunos por turma, funcionamento das direcções de turma, ocupação dos tempos livres, etc.);

10 – Falta de acompanhamento e de estímulo da família.

O zero na primeira coluna significa ausência de resposta.





Os dois inquiridos que não respondem são trintenários, o que vem na linha do que atrás referimos acerca do facto de tal recusa provir da ignorância do que os alunos poderiam escolher, por incapacidade de os conhecer minimamente. Nos grandes centros o problema colocar-se-ia dominantemente aos poucos colegas mais novos, permanentemente a mudar de escola. No Alentejo, se bem que tal franja sofra dos mesmos inconvenientes, chega a lograr, apesar de tudo, mais estabilidade que os efectivos recentes, justamente os que tendem a situar-se na casa dos trinta anos. É que estes vão para a região declaradamente a título transitório, apenas tentando queimar etapas na esperança de mais depressa chegarem à escola que lhes convém. Sujeitam-se a uma efectivação distante por um ano para passarem à frente, nos concursos, de quem não queira tal sacrifício. O intuito é saltarem logo de imediato para o mais perto possível de onde querem fixar-se. O resultado é mudarem de ano para ano rumo à escola que pretendem. Não se enraízam nem têm motivação bastante para se dedicarem a sério a cada local de trabalho. Daí que nada haja que estranhar no facto de aqui encontrarmos duas respostas em branco. De qualquer modo, se chegam a ser mais instáveis que os eventuais, até porque são obrigados a concorrer anualmente (em 1985) para não perderem a vantagem da aproximação em proveito doutrem que lhes fique graduado atrás, o que não ocorre com aqueloutros que muitas vezes optam pela recondução quando se deram bem no estabelecimento (uma vez que a mudança não lhes traz vantagens garantidas por ser um risco o desconhecido e poderem piorar de ambiente), se tal é a situação, não podemos ignorar que estes dois sectores estão demasiado próximos quanto ao que a tudo isto respeita, pelo que não admiraria que a inviabilidade da resposta igualmente ocorresse com os mais novos.



O único quesito deixado por todos em branco é o relativo à família, o que revela quanto têm a noção dos laços estreitos do lar alentejano e de como os alunos jamais os poriam em causa, mormente como razão prioritária de eventuais dificuldades.



Os vintaneiros privilegiam de modo evidente o desinteresse dos alunos pelas matérias a estudar (6 pontos), no que convergem com os outros grupos que igualmentee acentuam este item, até com mais força entre os mais velhos. Nisto se confirma como os inquiridos estão atentos à probabilidade de os estudantes optarem pelo que lhes é mais óbvio e de constatação quotidiana, o divórcio entre o universo de interesses dos educandos e o dos currículos, como atrás deixámos claro. Nesta perspectiva se pode entender porque a seguir vem que os alunos andam na escola contra vontade (3 pontos), uma vez que, para além de ficarem contrafeitos em tal meio, o factor anterior indica claramente o porquê de tal mal-estar, o abismo cavado entre as motivações dum lado e doutro. Uma vez mais, este perfil de distribuição não parece indiciar que creiam que haja educandos forçados à escolaridade apesar deles próprios, mas antes que a instituição tem o condão de os dividir por dentro entre o que a consciência e a vontade escolhem e o que a afectividade e interesses próprios prefeririam em troca, aquelas cerrando os dentes na aposta dos estudos, estes empurrando para projectos mais conformes à vida real que nas comunidades de origem compartilham.



Muito menos significativa é a votação nos conteúdos e forma dos programas (2 pontos), revelação manifesta de que estes inquiridos também se dão conta de quanto a identificação deste factor é complicada para os alunos. Com efeito, muito poucos e só dos mais dotados e críticos chegarão alguma vez a dar o salto do desconforto e desmotivação que sentem para a denúncia dos currículos e respectivos critérios de escolha. Neste ontexto, surge como desproporcionada a referência a este quesito por parte do único colega com menos de vinte anos e só não é significativa por se tratar de caso único, doutro modo vincaria o que de facto constatámos entre os mais novos, que eles são de facto os mais ignorantes e incapazes de tomar consciência esclarecida do que os rodeia, mormente da mundivisão dos discípulos, decerto por a terem demasiado próxima e interiorizada para já lograrem objectivá-la, observá-la de fora e a frio.



Com igual pontuação (2) temos ainda, nos vintenários, apontada a falta de boa relação professor-aluno, ficando nisto o grupo isolado, uma vez que os demais deixam tal item em branco. Trata-se aqui, manifestamente, duma projecção desta franja de colegas, preocupada e inculpando-se de relacionamentos problemáticos. Não foram capazes de se distanciar para observar a atitude dos educandos que, de facto, é muito mais conforme com a opção dos outros grupos etários de deixarem tal quesito em branco. Com efeito, a hospitalidade geral destes discípulos é tão predominante que dificilmente os veríamos no papel de referirem como primeiro factor das próprias dificuldades a insegurança e os erros relacionais dum professor principiante qualquer. É um sadismo de que não tivemos notícia naquelas paragens. Explorar as fraquezas docentes é muito típico dos meios urbanos cosmopolitas. Acolá, ao invés, encontrámos muito mais frequentemente a comiseração, a simpatia e até a ajuda para as dificuldades poderem ser superadas (atitudes que muito excepcionalmente e só depois de expressamente solicitadas lográmos promover na região lisboeta, por exemplo). No Alentejo os alunos têm pena, por mais estranho que isto se antolhe a quem apenas conheça estabelecimentos de metrópoles cosmopolitas. É mais fácil a um professor oriundo da cultura urbana litoral e que incarnou dela os modelos e as mazelas presumir que os discípulos lhe vão explorar as fraquezas e arrastar, se possível, pela lama, do que passar alguma vez tal ideia pela cabeça dum aluno qualquer da província e, em particular, do Alentejo em que tanto ainda impera o respeito pela autoridade como princípio-chave de formação desde o berço. O que em tal quesito ocorreu foi, decerto, este jogo de transposições. Apesar de tudo, este número é, em absoluto, insignificante e mesmo entre os vintenários, diminuto.



Menos relevantes ainda são as referências que contaram apenas com uma escolha, a saber, a da incapacidade intelectual do aluno, a da falta de hábitos de trabalho escolar e a de os professores não saberem ensinar. Se esta última sofre decerto de projecção idêntica ao que anteriormente referimos, sendo fruto porventura dum colega que sente dificuldade em laborar com os educandos e agora crê que eles o constatam e refeririam num eventual inquérito, já as anteriores não cremos que decorram duma tal matriz. É mais provável, pelo que encontrámos e conversámos na região, que provenham da consciência do grau de lucidez destes alunos, no primeiro caso autoconvictos de incapacidade invencível, lendo como facto inelutável o que mais não é do que situação conjuntural socialmente condicionada e, no segundo (não saber estudar), interpretando correctamente uma das fontes primárias efectivas das respectivas dificuldades. Qualquer dos itens, porém, significa muito pouco neste grupo, enquanto presunção do que os alunos apontariam como primeiro factor de mau rendimento e este é o sentido mais relevante deste aspecto dos registos.



Os trintaneiros diferenciam-se nitidamente do estrato anterior na primeira escolha, justamente a de os professores não saberem ensinar (8 pontos), muito embora logo seguida pela predominante nos demais grupos etários, a do desinteresse pelas matérias (7 votos). Aquela prioridade implica a expectativa, por parte deste leque etário, de que os alunos procedam a uma projecção daquilo que seria eventualmente de responsabilidade própria sobre quem, não pertencendo ao universo deles, se lhes encontra mais perto, os docentes. Não cremos, em primeiro lugar, que haja aqui fantasmas pessoais a induzir medos que redundem em tal produto final, como ocorrerá prioritariamente no grupo anteriormente analisado. Com efeito, neste último prepondera a insegurança lectiva, enquanto os trintenários, geralmente efectivos, são experientes e seguros, pelo que não sofrem, em regra, de tais receios. Aqui o que ocorre é a expectativa decorrente do senso comum, da história, da etnologia e da pesquisa geral segundo a qual qualquer formação social, como atrás já referimos, tende a defender-se descartando-se das próprias responsabilidades e descarregando-as sobre um bode expiatório que lhe esteja à mão. Nos rituais animistas ou religiosos pode ser mesmo o animal de sacrifício ou o homem-deus que desculpabiliza e perdoa; aqui, porém, como no teatro do quotidiano, é a formação social comparticipante do processo que falhou. Logo, será o professor. Se a investigação, como anotámos, infirma tal pressuposto no que respeita à autoconsciência dos docentes (e nós próprios aqui mesmo o voltámos a constatar), não cremos que o mesmo tenha qualquer probabilidade de ocorrer relativamente aos educandos, não apenas em virtude de as idades serem baixas e o conhecimento próprio e a autocrítica, por conseguinte, muito limitados, mas ainda porque neles predominam os padrões socioculturais de relacionamento e atitude e eles convergem todos em tal projecção. Aliás, os nossos próprios contactos e intervenções em problemas e conflitos professores-alunos revelaram permanentemente este passar de culpas como ponto de partida e só num segundo momento foi viável aceder a comportamentos mais equitativos e realistas. É isto, pois, que certamente subjaz à elevada pontuação recolhida pelo item de os docentes não saberem ensinar, neste leque etário, o único a aperceber-se e a atribuir peso de vulto a tal processo, ficando isolado dos outros grupos, tolhidos pelas próprias limitações para se aperceberem disto. Os vintaneiros andam cheios de medo deles mesmos para poderem olhar limpidamente para os educandos e acolherem-nos tais quais são, apreendendo-os na realidade que os tipifica; os mais idosos, desencantados, andam mais de olhar turvo pelo que entendem ser uma despromoção própria, em virtude da invasão geral do respectivo pelouro por quem eles querem crer que o não merece e, portanto, perseguem o mais leve indício de incompetência, incapacidade, impreparação ou insegurança e, no fim, não têm atenção disponível para darem conta certa de como efectivamente operam os educandos nem os colegas. Em tudo andam colando rótulos do próprio despeito (aqui, por isto mesmo, apenas registam 2 pontos na razão n.º 5). Já, porém, no quesito relativo ao desinteresse pelas matérias convergem todos os escalões etários com forte incidência. Não é de estranhar isto, uma vez que não é mais que dar conta do que os próprios discípulos constantemente alardeiam e que, aliás, é uma constante do País e não apenas da região, como reportámos. Nós ouvimos as mesmas queixas quanto aos currículos a alunos de escolas do centro lisboeta, da periferia, dos arrabaldes, bem como das cidades e das vilas transtaganas: o coro é uniforme e homogéneo quanto a este particular. Não será fácil, entretanto, compreender porquê.



Com efeito, já vimos quanto os critérios de escolha curricular dependem da cultura urbana mais típica. Isto deveria satisfazer os filhos da classe dominante que neles foram criados e os respiram o dia inteiro. Ora, tal efectivamente não ocorre. As razões são várias e convém dar conta delas para compreendermos a variedade que se acoberta por trás duma aparente situação comum vivida e manifestada por alunos e professores. Resumindo o já exposto, em primeiro lugar, a lógica subjacente aos programas, de carácter permanentemente dedutivo, não tem em conta a génese do saber nem coincide com ela, uma vez que esta é dominantemente indutiva, tanto histórica como individualmente. Por outro lado, nunca se tomou em conta no desenvolvimento curricular o que é exigível nem desejável a cada nível etário do educando. Finalmente, jamais o poder definiu currículos como guiões, estímulos, sugestões, numa atitude ancilar promotora de iniciativas, criatividades e liberdades. Pelo contrário, sempre quis impor-se por tal via sem alternativas nem margens de opção, o que, obviamente, contradiz em concreto a vivência e realidade dos filhos das classes dominantes que justamente aprenderam no leite que o poder são eles, a decisão é deles e sempre foram encaminhados familiarmente para sucederem em tais funções aos progenitores.



Em tal pendor a escola surge-lhes contra natura e as crises académicas que periodicamente tendem a estoirar nas grandes metrópoles pautam-se permanentemente por gritos libertários e reivindicações de “imaginação ao poder!” (Maio de 68). Para os filhos do urbanismo não é nos conteúdos mas nas formas revestidas pelo currículo que a discórdia predominantemente se instala. Para os da ruralidade habituados à autoridade e à sacralidade impositiva da tradição, as formas coactivas curriculares, ao marginalizarem-nos porventura, não os espantam nem revoltam, reproduzem no fundo os padrões da família campestre que os enformam. É antes nos conteúdos que se descobrem estrangeiros. E assim , por razões em grande parte contrastantes, acabam todos por encontrar-se na mesma atitude crítica com que os docentes em todo o País, finalmente, se têm de confrontar.



No grupo dos trintenários advêm a seguir as condições de funcionamento da escola (5 pontos). Já vimos quanto este aspecto é, no âmbito institucional, o mais fácil aos educandos de denunciar. Confirma-se novamente o realismo da compreensão deste escalão etário, o que ressalta ainda mais se repararmos que atribuíram apenas 2 registos ao item relativo aos programas que sabemos que é dificilmente identificável pelos alunos. Na área ainda dos relativamente significativos pelo montante de votos resta o da falta de hábitos de labor escolar (4 pontos), o que igualmente converge com a constatação dos muitos discípulos que se queixam de não saber como estudar e pedem ajuda a tal nível. Isto que é uma realidade quase inexistente na região cosmopolita (os educandos na periferia resolvem-no habitualmente pelo convívio com os colegas mais aptos a defenderem-se bem escolarmente), constitui uma constante aflitiva em todo o Alentejo, como vimos, e cremos que será partilhado por todas as escolas da província, com mais gravidade nas isoladas em terras pequenas, fronteiriças e da serra. Foi nestas que constatámos as situações mais agudas. Os trintaneiros, uma vez mais atentos, não o deixaram escapar e é o que o número atingido no quesito deixa adivinhar. Os demais registos são dum ponto apenas, o que os torna de facto irrelevantes neste contexto, e referem-se à incapacidade intelectual, ao não domínio da matéria e ao frequentar a escola contra vontade. Não cremos que se diferencie qualquer deles dos sentidos que atrás explicitámos relativamente a tais registos.



Curioso no grupo dos mais idosos é a enorme concentração da escolha. Com efeito, quase metade referem o desinteresse pelas matérias a estudar (6 para 13) e, por outro lado, os restantes concentram-se em apenas mais quatro itens, ficando em branco exactamente metade das alternativas de escolha, cinco. Isto demonstra, desde logo, como esta franja conhece bem com quem trabalha, como seria de esperar de quem se fixou definitivamente e desde há muito no estabelecimento. As peias que os prórpios fantasmas lhes levantam não chegam, portanto, a encegueirá-los, provocando apenas desvios pontuais em aspectos a que são particularmente sensíveis ou onde se tornaram vulneráveis, como os explicitados atrás. A convergência naquele factor, por outro lado, é a explicitação do mais óbvio e que se não revela problemático: os alunos queixam-se, eles anotam-no. Tudo simples e linear, por conseguinte. A confirmá-lo vêm os demais registos com dois pontos, o das condições de funcionamento da escola e o de andarem nesta contra vontade, qualquer deles acessível ao estudante e na prática igualmente por ele referido repetidamente, nos sentidos já múltiplas vezes atrás descritos. A excepção aqui, porque cremos reportar-se mais a uma projecção, a uma pequena vingança de despeitados, é a referência a que os professores não sabem ensinar. Mas novamente convergente com aquelas é o ponto único atribuído à falta de hábitos de estudo de que docentes e discípulos vários se queixam por toda a região. Este leque etário é conhecedor e atento mas predominantemente ao imediato, epidérmico e não ao problemático, abscôndito, em termos de factualidade ou de sentidos. Há um certo primarismo, um simplismo em todo este perfil de distribuição que, aliás, condiz de perto com o que da faixa destes colegas vislumbrámos ao vivo no trabalho desenvolvido com eles no terreno.



Vejamos agora como se distribuem pelos escalões etários as presunções das escolhas dos alunos feitas pelos inquiridos, ao nível das razões de importância intermédia (quadro XVIII).





QUADRO XVIII



- 20 anos

%

20/30 anos

%

30/40 anos

%

+ 40 anos

%

Total

%

0

0

0

1

33,3

2

66,6

0

0

3

99,9

1

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

2

0

0

1

33,3

0

0

2

66,6

3

99,9

3

0

0

1

14,3

3

42,9

3

42,9

7

100,1

4

0

0

3

60

2

40

0

0

5

100

5

0

0

0

0

1

100

0

0

1

100

6

0

0

0

0

6

100

0

0

6

100

7

1

7,1

4

28,6

6

42,9

3

21,4

14

100

8

0

0

2

16,7

8

66,7

2

16,7

12

100,1

9

0

0

4

50

2

25

2

25

8

100

10

0

0

0

0

1

50

1

50

2

100

Total

1

1,6

16

26,2

31

50,8

13

21,3

61

99,9



Quadro XVIII – Distribuição por escalões etários do que os inquiridos crêem que os alunos indicariam como razões de importância intermédia de mau rendimento escolar, dentre o leque das seguintes:

1 – Falta de capacidade intelectual dos alunos;

2 – Os professores não dominam bem a matéria;

3 – Os conteúdos e a forma como estão organizados os programas;

4 – Os alunos não têm hábitos de trabalho escolar;

5 – Os professores não sabem ensinar;

6 – Os alunos andam na escola contra vontade;

7 – Os alunos não têm interesse pelas matérias que têm de estudar;

8 – Os professores não têm boa relação com os alunos;

9 – As condições em que funciona a escola (n.º de alunos por turma, funcionamento dos directores de turma, ocupação de tempos livres, etc.);

10 – Falta de acompanhamento e de estímulo da família.

O zero na primeira coluna significa ausência de resposta.





Aos anteriores não respondentes acresce agora mais um vintaneiro, o que já era previsível pelo que atrás expusemos. Igualmente se mantém a dominante sobre o desinteresse dos alunos pelas matérias, com a curiosidade de se vir juntar aqui o voto do único inquirido com menos de vinte anos que a nível de importância intermédia já não deixou operar qualquer projecção ou transferência e registou o que simplesmente recolheu dos educandos. Também aqui os trintenários fogem à regra por a este item conferirem o segundo lugar em proveito da falta de boa relação com os discípulos (este: 8 pontos; aquele: 6). Curiosamente, é igualmente apontado 6 vezes que os estudantes andam na escola contra vontade. A própria ligação dos três quesitos no número de votos que recolhem deixa entender o parentesco de sentido que devem revestir para este escalão etário e que só não será contraditório se for lido de acordo com os pressupostos dominantes anterioremnte caracterizados: o relacionamento não chega onde seria desejável para ajudar a superar os obstáculos, o que redunda na eternização destes, pelo que os alunos persistem desajustados dos conteúdos curriculares que não logram interessá-los, o que, por sua vez, cria um permanente mal-estar que os leva a andar na escola contrafeitos, mal ajustados, com um incómodo insuperável, por muito que invistam voluntariamente em sentido contrário.



Quanto aos vintenários, igualaram com o item dominante (desinteresse das matérias) o das condições de funcionamento da escola (4 pontos cada), aproximando destes a falta de hábitos de trabalho escolar (3 votos). Quanto àquele, está na lógica de apontar o que de mais facilmente identificável salta à vista dos alunos, área em que provavelmente as escolhas destes tenderiam a convergir. Este, porém, embora, como anotámos, os educandos no-lo refiram sob a forma de ignorarem como estudar, não é, entretanto, muito plausível que os colegas deste leque se tenham apercebido de tal e traduzido naquele quesito. Mais nos parece que eles transpuseram para o inquérito as queixas permanentes que nos cursos nos fizeram desta carência crónica dos discípulos com que laboravam. É que estes inquiridos apresentam um grau de ansiedade tal e uma tendência para a autoculpabilização tão acentuada que não raro não se apercebem do que para outros mais distendidos e calmos é habitualmente óbvio. Aquilo que reportam como presunção de que os estudantes afirmariam não terem hábitos de trabalho escolar como origem do mau rendimento deve, a nosso ver, ser interpretado neste sentido: estes inquiridos constatam com veemência tal falta e atribuem a consciência dela aos alunos sem se darem conta sequer de que estes não a apreendem sob tal forma mas como dificuldade de encontrar uma maneira adequada de estudar. Ora, este simples desvio é o bastante, normalmente, para aquele quesito não ser apontado pela generalidade deles, uma vez que requer uma capacidade crítica e de discernimento que, como atrás anotámos, não ocorrerão presumivelmente em número significativo de casos. Pelo menos não em tantos que justifiquem o relevo que este escalão etário lhe atribuiu afinal na sua escolha. Por tudo isto cremos mais que aqui imperou antes a projecção do diagnóstico próprio e não tanto a expectativa do que ocorreria com o educando.



A nível já das votações irrelevantes para o conjunto ocorre, primeiro, a falta de boa relação com os alunos (2 pontos) onde, uma vez mais, vislumbramos o produto dos próprios medos e não tanto a constatação dos limites a que se confinam os relacionamentos e que os alunos efectivamente lamentam, esperando sempre ingloriamente por mais. É que, se fora isto, então deveria ser apontado muito mais vezes, como ocorre no escalão dos trintaneiros onde os problemas pessoais nas relações já não existem e, portanto, não interferem nas escolhas e, por outro lado, permitem um olhar mais límpido e disponível para surpreeender a realidade tal como salta de dentro dos outros, aqui dos educandos. Com um registo apenas apontaram o mau domínio da matéria e os programas – igualmente por um efeito de projecção de si noutrem, como já atrás apontámos, dada a dificuldade, para qualquer estudante, em ver claro em tais domínios, por excelente que porventura seja.



Os trintaneiros, para além das dominantes já reportadas, apontam em posição modesta os factores relativos à instituição, os programas (3 pontos) e as condições de funcionamento da escola (2). Dado o realismo que ressalta deste leque como atitude dominante, é de encarar estas referências, tanto pela escassez numérica como pelo facto de o quadro se reportar à relevância de peso intermédio, como retomando o sentir daqueles que, atentos aos mais lúcidos discentes, confirmaram que por vezes eles apontam a crítica a tais alvos. Indício de que estamos perante isto e não já com uma projecção noutrem das próprias ideias advém ainda do facto de serem mais os que acoimam os programas que os críticos do funcionamento. Com efeito, de nossa própria experiência com esta franja de alunos resultou idêntica perspectiva (aliás, a insignificante diferença numérica acima registada nada significa comparada à clareza da experiência dos contactos directos, no que a este pormenor respeita). Enquanto o aluno médio ou fraco se prende mais com os aspectos constatáveis das condições da escola, mais imediatamente apreensíveis, os que superaram este nível, embora excepções, entram deliberadamente na crítica programática e até na sugestão ou proposta de conteúdos, recursos e incidências. Como raridade não significa inexistência e a nós próprios foi notório este fenómeno, não temos dúvidas de que ele não iria escapar ao leque etário de colegas mais descontraídos e atentos. É disto, certamente, que aqueles números nos falam. Na mesma linha porventura convergem os dois que referiram a falta de hábitos de trabalho escolar.



Com um voto apenas surgem-nos o item de que os professores não sabem ensinar, onde aflora de novo o presumível passar culpas que atrás descrevemos, e o da falta de acompanhamento e de estímulo familiar que, neste contexto, é decerto o afloramento da noção de que alguns educandos têm lucidez e capacidade bastante de discriminação para, a este segundo nível de premência, já se atreverem a dar conta de que fará sentido chamar à pedra uma carência tão decisiva como esta.



Os mais idosos principiam, a este nível de importância dos factores de mau rendimento escolar, a ficar indecisos e dispersos. Os itens apontados têm entre 1 e 3 pontos, o que dificilmente permite diferenciá-los, podendo as distâncias, obviamente, ser por inteiro fortuitas. Há apenas uma ligeira preponderância da lógica de sentido que se prende com o desinteresse pelas matérias (3 pontos) e se desdobra pela denúncia dos programas que àquele se liga (3 igualmente). No restante, confundem-se as várias linhas de projecção e de conhecimento de facto características deste escalão etário e sempre com pontuações irrelevantes tanto pela dispersão como pelos totais insignificantes. É o caso do factor 2, os professores não dominam bem a matéria (2 pontos), porventura uma projecção vindicativa; do n.º 8, os docentes não têm boa relação com os alunos (2 votos), que igualmente é mais ajuste de contas que lamento por uma insuficiência; do item 9, condições de funcionamento da escola (2 registos), confirmação do que os discípulos mais facilmente detectam; e do 10, falta de acompanhamento e de estímulo da família (1 apenas), concomitantemente registo de facto, noção da consciência dos alunos e medir de distâncias dos bem nascidos perante os demais (tendência elitista deste grupo). É curioso que toda a franja deixe em branco questões como a falta de hábitos de trabalho e o frequentar a escola contra vontade. Mais uma vez o imediatismo das constatações, a superficialidade da abordagem do universo do educando (que, obviamente não é digno doutro olhar por parte de quem lhe é superior e tem de manter as aparências, a sobranceria, como deriva da pretensão aristocrática propugnada por este estrato), os cega perante dados que mesmo para quem chega de fora (como foi sempre o nosso caso) se tornam a breve trecho iniludíveis e permanentes, como a queixa dos alunos por não verem como estudar, preparar uma matéria ou dar conta adequadamente dum conhecimento ou uma aprendizagem.



Resta-nos, finalmente, analisar como ocorre a distribuição pelos escalões etários dos inquiridos das escolhas presumíveis dos alunos de razões cuja relevância ficaria em terceiro lugar (quadro XIX).





QUADRO XIX



- 20 anos

%

20/30 anos

%

30/40 anos

%

+ 40 anos

%

Total

%

0

0

0

1

33,3

2

66,6

0

0

3

99,9

1

0

0

1

100

0

0

0

0

1

100

2

1

25

1

25

2

50

0

0

4

100

3

0

0

0

0

5

71,4

2

28,6

7

100

4

0

0

2

33,3

1

16,7

3

50

6

99,9

5

0

0

1

20

3

60

1

20

5

100

6

0

0

2

20

7

70

1

10

10

100

7

0

0

1

12,5

5

62,5

2

25

8

100

8

0

0

2

100

0

0

0

0

2

100

9

0

0

2

28,6

3

42,9

2

28,6

7

100,1

10

0

0

3

37,5

3

37,5

2

25

8

100

Total

1

1,6

16

26,2

31

50,8

13

21,3

61

99,9





Quadro XIX – Distribuição por escalões etários das respostas dos inquiridos sobre o que os alunos escolheriam como razão do mau rendimento escolar colocada em terceiro lugar, dentre o leque das seguintes (coluna 1):

1 – Falta de capacidade intelectual dos alunos;

2 – Os professores não dominam bem a matéria;

3 – Os conteúdos e a forma como estão organizados os programas;

4 – Os alunos não têm hábitos de trabalho escolar;

5 – Os professores não sabem ensinar;

6 – Os alunos andam na escola contra vontade,

7- Os alunos não têm interesse pelas matérias que têm de estudar;

8 – Os professores não têm boa relação com os alunos;

9 – As condições em que funciona a escola (n.º de alunos por turma, funcionamento dos directores de turma, ocupação dos tempos livres, etc.);

10 – Falta de acompannhamento e de estímulo da família.

O zero na coluna 1 significa falta de resposta.





Mantêm-se aqui os mesmos não respondentes. O colega mais novo retorna à projecção dos próprios fantasmas, referindo o factor de os professores não dominarem bem a matéria. O mais relevante, neste quadro de distribuição das escolhas presumíveis ao terceiro nível de importância das razões do mau rendimento escolar, é que tanto os vintenários quanto os mais idosos ficam extraordinariamente indefinidos, espalhando os votos ao acaso por quase todos os itens, sem concentração significativa em sentido nenhum. Os extremos tocam-se, portanto, e decerto por simétricas razões: ambos os grupos apreendem com dificuldade o universo dos educandos, como já anotámos. Com efeito, as pontuações nos dois casos variam apenas de 1 a 3 e dispersam-se por um leque muito largo de quesitos, ficando em branco apenas um no grupo dos mais novos e três nos outros. A incapacidade (que vários indícios anteriores deixavam suspeitar) de penetrar com finura e objectividade na sensibilidade do discente, a interferência de fantasmas pessoais e de projecções redundam, neste quadro final, num caos desconexo, totalmente arbitrário, em que as respostas perecem ter resultado do puro acaso, dum preenchimento às cegas. Por aqui, porém, se confirma indirectamente quanto atrás fomos reportando relativamente aos primeiros afloramentos destas características que já ali foram introduzindo inflexões que falavam mais de quem as produzia do que daquilo a que ele pretendia referir-se.



Ao invés disto e confirmando igualmente a diferenciação que já nos outros quadros se vinha perfilando, os trintenários continuam com um perfil distributivo claramente definido. Com efeito, a convergência maior agora é no facto de os alunos andarem na escola contra vontade (7 pontos), mas conserva-se em segundo lugar o desinteresse pelas matérias (5), agora empatado com os conteúdos e a forma dos programas (5 igualmente), reforçado, por seu lado, no vector institucional, pelas condições de funcionamento da escola, com o terceiro total (3). O trio mais pontuado é interdependente, como já várias vezes referimos, redundando a desmotivação pelo currículo num frequentar contrafeito da escola e na denúncia das matérias programáticas por parte dos mais lúcidos. Igualmente, em vitude de nos situarmos aqui ao nível da relevância de terceiro grau, é de presumir que alguns alunos mais lograriam apontar ainda a outra razão institucional, as condições de funcionamento da escola, que nos surge agora equiparada em registos à do acompanhamento familiar e à de os professores não saberem ensinar (3 pontos cada). Justamente por não estarmos perante escolhas de primeira nem segunda prioridade, estes colegas abrem o leque das opções prováveis dos educandos, o que decerto corresponde muito de perto ao que seria o comportamento de facto deles atendendo a que normalmente desceriam do que é mais óbvio, na perspectiva discente, ao mais dúbio e arriscado mas que se lhes antolhasse de maior premência. Os restantes registos já não têm alcance (2 e 1 pontos, respectivamente) e reportam-se à falta de domínio da matéria pelos professores e de hábitos de estudo dos discentes.



Toda a sequência convergiu claramente para relevar o papel dominante nestas escolas alentejanas da franja docente dos trinta aos quarenta anos, que não apenas dá a tónica de juízos, atitudes, mas de algum modo lidera o processo educativo em curso nos estabelecimentos (em 1985), até por ser a mais numerosa, como resulta do inquérito e constatámos na prática. Perante isto, os mais novos e os mais idosos são duas fracções que operam em grande parte por arrastamento, com fortes indefinições internas, inseguranças e projecções inadequadas (por medo ou por decepção, conforme respectivamente pertencem ao primeiro ou ao segundo grupo). Em qualquer caso, esta situação torna a comunidade escolar transtagana (e da província em geral) muito saudável, com dominância de relações realistas, respeitando objectivamente as pessoas, mormente os educandos, e predominando fortemente a atitude de mútuo acolhimento e hospitalidade aberta, caracterrística comum a todos os grupos etários docentes.











b) O toque de alvorada

Análise das respostas dos inquiridos de Educação física





Triadas situações e opiniões por referência às idades dos colegas, passaremos a questionar o que se passa num grupo específico que até aqui abandonámos na sombra, o de Educação Física, enquanto eventualmente nele aflore o que andará ocorrendo numa área curricular que principia a mobilizar a atenção de pedagogos e legisladores e na literatura francesa já soi apelidar-se a das disciplinas de despertar, “disciplines d'éveil”. Aqui cabem componentes como, para além daquela, a da música, a da dança, a do desenho e pintura, a da modelagem (esta última está entre nós limitada, fora do ensino superior e especializado, por ora, à rede pré-primária e jardins de infância ainda não viciados por preconceitos escolarizantes).



Importa reparar nesta menor irmã, quase enjeitada, do currículo, de que só encontrámos representantes, entre os inquiridos, na educação física. Desde logo, não foi por acaso que tal aconteceu: nas outras disciplinas ou não há professor, por elas nem existirem nas escolas, como é facto em quase todo o País, ou então há um para o estabelecimento inteiro (com a música há casos destes), o que o torna por completo despercebido no meio da comunidade discente e docente. Estamos perante o ramo mais pobre e descurado do currículo escolar entre nós, tanto que quase não vinga senão pontualmente, ou em estabelecimentos isolados, em então em níveis determinados de escolaridade especializada. Mesmo a educação física, secundarizada por inteiro na pré-primária e nula quase na primária, só logra implantar-se de modo generalizado a partir do preparatório (2.º Ciclo), mas, mesmo assim, apenas em escolas com instalações e equipamentos para tal (ginásios e balneários principalmente), o que também aqui a inviabiliza em muitos locais, mesmo com construções recém-acabadas mas onde nem sequer se projectou à partida nada para tal disciplina (e já nem falamos das restantes desta área potencial do desenvolvimento curricular).



Curiosamente, a insensibilidade à importância de tal vertente, numa educação equilibrada desejável para os dias de hoje, é mesmo maior por parte da cultura dominante do que propriamente do legislador e dos educadores: basta reparar que desde há anos é legalmente viável implementar a opção profissional de dança no complementar e a vocacional a partir do sétimo ano unificado e nenhuma escola promoveu tais alternativas, encaminhando-se actualmente por aí (1985) apenas as dos antigos cursos dos Conservatórios que a tal já se dedicavam desde a criação. A porta legal e institucional continua aberta, aguardando a maturação da consciência comunitária para algum dia vir a ter clientes-educandos em tais alternativas. Que é que tudo isto significa?



Entramos aqui no que se nos antolha constituir a alienação mais profunda do nosso sistema escolar, do ponto de vista das linhas de inspiração globais dos currículos vigentes. Com efeito, até este momento caracterizámos de perto um primeiro nível de alienação dos programas perante o que a modernização do País urgentemente requer para quebrar grilhões de dependência económica, tecnológica e científica, que cada vez mais nos tenderão a enredar e asfixiar, a partir do estrangeiro, à medida que nos aumentarem os intercâmbios de investimentos, os comerciais e os financeiros e os anos passarem sem nos colocarmos em paralelo com eles em poder, nos domínios para tal decisivos.



Ora, isto requer, do ponto de vista da educação escolar, que se alargue urgentemente o leque, as alternativas do vector curricular da tecnologia e investigação, de modo a equilibrá-las na concepção e implementação prática com a vertente clássica das letras e ciências, a nível do preparatório e secundário, bem como que se lhes inaugure a sensibilização e iniciação nos primeiros escalões da escolaridade. Este primeiro desajustamento à conjuntura contemporânea poderia, aliás, não ser negativo, caso apenas nos ajudasse a libertar-nos dos mitos do cientismo e tecnocracia que esmagam hegemónica e indefensavelmente toda a cultura ocidental hodierna, incluindo a nosssa, a partir do estrato social do poder político-económico-cultural. Mas justamente por ser também esta a nossa contraditória situação, nem sequer aquele benefício de nos poupar a uma alienação humana de custos gravosos e pior hipoteca sobre o porvir acaba por ocorrer. Vivemos no culto do bezerro de oiro e nem sequer o dominamos em grau e com estruturas que possam garantir-nos autonomia bastante para dele fruirmos, o relativizarmos e substituirmos quando for o caso. Para lograrmos a liberdade requerida para tal, teremos ainda muito que investir em tal rumo, de modo a sacudirmos dos ombros o jugo do subdesenvolvimento que hoje nos humilha perante a Europa e o mundo e nos mantém ajoelhados aos pés de amos e senhores, rogando esmolas e clemência.



É condição prévia para levantarmos cabeça e podermos encarar de frente a história vindoira, ultrapassarmos os estrangulamentos que nesta conjuntura nos aprisionam, e não é dos menores a nossa geral inermidade e desorganização no âmbito do conhecimento e aptidão científica e técnica, em todos os estratos sociais, mormente os activos, os criadores directos de riqueza na produção e troca de bens e serviços. Aliás, a própria libertação do cientismo, positivismo e tecnocracia, enquanto dogmas culturais alienantes porque gravemente reducionistas do humano integral (irredutível à mera exterioridade perceptível ou cientificável), só será exequível a partir do momento em que o prestígio e os pretensos frutos doirados que a industrialização nos coloca ao dispor deixarem de ser utopias, sonhos que projectamos no país de maravilhas dos outros para serem realidade nossa, desmitificada e reduzida à pobre dimensão de todas as empresas humanas: ambígua, servindo tanto para bem como para mal, inelutavelmente traidora e infinitamente distante da aspiração de infinitude que nos animou ao buscá-la e construí-la. Apenas a efectivação do projecto nos deixará as mãos e o entendimento bem libertos para o julgarmos a frio e sem contemplações, nas potencialidades que nos colocará ao dispor, nos riscos a que nos arrastará, nas perversões inevitáveis que nos obrigará a sofrer. Aí então teremos finalmente todas as condições materiais e psicológicas para nos podermos posicionar eticamente perante os mitos a que por ora invencivelmente andamos queimando incenso, sem darmos conta de que são nossas próprias mãos que vamos reduzindo a cinzas. Para nos libertarmos, temos urgentemente de transmudar o sonho na realidade nua e crua que dele pudermos gerar. Então os factos poderão falar e nós impormo-nos a contento a eles, sem mais jogos de fantasmas como aqueles que por enquanto nos enredam em imaginários sublimados, sem alternativa nem viabilidade de apelo.



A partir deste momento, porém, o que tentaremos surpreender é uma outra alienação mais radical e, por isto mesmo, mais fuida e inexpressa. Os países altamente industrializados dão-nos conta cada vez mais de que o currículo escolar, fortemente marcado pela vertente científico-tecnológica, tende a desumanizar as novas gerações, pelo que se lhes antolha urgente prestar atenção ao que ocorre na área das disciplinas de despertar. Por este vector pretendem atingir uma componente de formação que não é orientada pelo fito de criar quadros superiores administrativos e políticos, como decorria do currículo clássico de letras e ciências, nem pelo objectivo de armar a indústria, a agricultura e o comércio de tecnologia com rentabilidade e produtividade interminavelmente maiores e competitivas, como as disciplinas do sector oficinal, científico e tecnológico garantem. Doravante isto deveio robotizante, mecaniza os educandos, esvazia-os de sensibilidade e de autonomia valorativa. Eles tornam-se frios, calculistas, de vistas curtas, até pérfidos, relacionalmente impotentes, ignorantes deles mesmos, sem interioridade pessoal, inconscientes da subjectividade e dos afectos, bem como de quanto e como destes depende a própria felicidade e realização, bem como as doutrem. Estes peritos criados na era da automação pela escola industrializada inventam bombas de hidrogénio ou de neutrões, tecnologia para a guerra ABC, centrais nuclares, redes informáticas mundiais e depois levam tudo à prática na maior inconsciência das dimensões humanas e históricas envolvidas e eventualmente aniquiladas por aquilo definitivamente. Eles são apenas cientistas, técnicos sábios – já se perderam há muito de ser homens. Quanto a devirem sujeitos, protagonistas de iniciativa e liberdade e por elas responsáveis, ignoram por inteiro o que seja ou implique tal itinerário: nenhum deles é um Eu, mas uma coisa entre outras, e já reduziram toda a humanidade a esta mesma dimensão zero.



Ora, amanhã podemos ser, por obra deles justamente, tornados nisto mesmo – o pó das coisas, morta definitivamente a vida na Terra. É disto que se dão conta sofridamente quantos apelam e agrupam as disciplinas de despertar como terceiro vector de formação, cada dia mais urgente de implementar-se: trata-se doravante duma vertente curricular em que o educando confronta as duas tradicionais consigo próprio e com o carácter humano universal de que ele partilha como sujeito que é e deve assumir-se, a fim de poder gerir a história vindoira consciente, lúcido, com conhecimento de causa do que arrisca para si e para todos em cada opção que tomar. As disciplinas aqui pretendem justamente despertar a interioridade da pessoa, levar o educando a descobrir-se como um Eu que se constrói em solidariedade e permuta com os demais, numa cadeia rumo a um Nós universal, inexequível em plenitude, mas tão inadiável quanto indefinidamente aproximável.



Esta pista pedagógica assenta numa redescoberta da afectividade em profundidade, o que obriga a uma abordagem por via da sensibilidade, se modo a viabilizar a reordenação interna de cada pessoa que pelos sentimentos é movida e com eles enforma de conteúdos vivenciados a razão que então os pode ordenar com conhecimento de causa. Esta já não opera como reprodutora inconsciente e acrítica de mentalidades, costumes e atitudes, antes submete-os à triagem da lógica e da vivência pessoais de cada um dos envolvidos. Tudo parte, pois, duma recentração no coração da personalidade, cujo impulso provém do afecto. É a estratégia no âmago da educação, sem a qual toda a dialéctica da razão interior ao sujeito ficaria, à partida, inviabilizada e, conseguintemente, o próprio aprofundamento da personalidade integral de cada um, truncado.



O facto de ser um nível de problematização do desenvolvimento curricular demasiado distante das nossas realidades escolares actuais não implica que nos seja por inteiro alheio a priori. Com efeito, tanto nas reconversões didácticas dos programas vigentes isto se tem contemplado em muito lado, pontual ou duradoiramente (com professores que lhe apreenderam o sentido e alcance e se assumem como pontas de flecha da reequilibração do modelo educativo propugnado escolarmente), como ainda em múltiplas realizações de trabalhos de projecto, por vezes envolvendo estabelecimentos e comunidades ambientes em larga escala e por longos meses, a grande linha de inspiração é chamar à primeira fila as motivações pessoais e locais (vertente afectiva), instrumentalizando em proveito delas os recursos de saber, de espaços, de equipamentos e de peritos que os estabelecimentos envolvidos logram empenhar em tal rumo (diálogo pensamento-acção, pela mediação da sensibilidade triada nas relações mútuas entre educadores, educandos e formações locais). Ora, em tudo isto aflora sempre, em maior ou menor grau, a apetência de integrar uma dimensão outra no trabalho curricular, que de modo mais ou menos consciente e explícito todos pressentem que lhe escapa nas abordagens dominantes e de cotio da rotina escolar.



Curiosamente (e não é por acaso), a educação física é quem nestes ampreendimentos é persistentemente chamada a responder pela parte de leão. Ninguém duvida de que é a disciplina em que mais imediata é a adesão a tais iniciativas, tanto por parte de educadores como de educandos, bem como é aquela que melhor consegue fazer perdurar uma mobilização generalizada para as tarefas projectadas, sem quebra dum clima afectivo geral positivo nas relações pedagógicas. É de tudo isto que importará dar conta, bem como da forma como os professores deste sector convergem ou divergem dos demais, relativamente às múltiplas variáveis que temos vindo a analisar. Esta derradeira abordagem visa descortinar eventuais elementos de alerta para um campo da prática escolar que, se de momento reveste nas preocupações nacionais um grau de prioridade relativamente modesto, não cremos que a prazo se não torne no grande problema de cuja solução eventualmente dependerá, no limite, até a nossa sobrevivência, como colectividade senão mesmo como humanidade.



Não é, pois, numa perspectiva míope, de egoísmo disciplinar, limitando a educação física ao actual irrisório quintalejo curricular, de alcance ainda mais diminuto se a focarmos no contexto das funções distractivas ou para-militares que no antigo regime lhe foram prioritária e mesmo exclusivamente cometidas e continuam a ecoar, que nos importa reflectir sobre as especificações que os colegas deste grupo apresentam no inquérito em análise, como nas intervenções nas escolas e nos empreendimentos e cursos que conjuntamente temos vindo a compartilhar. O que importa fundamentalmente surpreender são as esperanças e desesperos que através deles se estão jogando no sistema escolar entre nós, solitários representantes que na prática continuam sendo duma vertente formativa de que cada vez mais depende o equilíbrio de cada educando e do todo da humanidade e da história. É em tal perspectiva que passaremos a interrogar as atitudes destes colegas.





QUADRO XX


Professores

%

Évora

4

50

Beja

4

50

Total

8

100




Homens

4

50

Mulheres

4

50

Total

8

100




20/30 anos

4

50

30/40 anos

4

50

Total

8

100





Quadro XX – Distribuição dos inquiridos de Educação Física pela escolas, por sexos e pelas faixas etárias





Recordando o que já atrás deles reportámos, são oito os professores que na abordagem aleatória acabaram por ser atingidos, quatro de cada sexo e também quatro de cada uma das escolas intervenientes. Estes aspectos garantem-nos à partida bastante equilíbrio e a possibilidade de estabelecer múltiplos paralelos entre eles e com os restantes colegas. O número relativamente elevado da representação deste grupo disciplinar não é desequilibrado em relação ao resto do corpo docente destas escolas. É que há educação física para os educandos de todos os níveis de ensino destes estabelecimentos. Assim, é bastante numeroso, em termos relativos, este sector, comparado com quantos não tenham abrangência tão vasta (e são praticamente todos os demais). Por outro lado, estes oito colegas são todos habilitados em educação física, o que torna o corpo homogéneo, quase privilegiado no contexto da escola e da região em que abundam, como vimos, agentes de vários ramos de actividade do meio que vêm dar uma ajuda num ou noutro horário, por falta de quem os leccione, ou então a transferência de formados num curso para responder por aulas doutros, em virtude de estes não terem candidatos bastantes. O curioso é que jamais conhecemos um único caso em que tal ocorresse com os docentes de educação física, nem no sentido de irem leccionar áreas alheias, nem de os destas virem aqui desempenhar actividades lectivas. Já, porém, é mais vulgar topar com professores de habilitação incompleta ou meramente suficiente: dos oito inquiridos, quatro estão neste caso. Nisto convergem com a praga comum aos demais grupos em toda a charneca bem como no interior em geral. Dos restantes abordados, três são efectivos e um estava fazendo a profissionalização. Quanto à idade, distribuem-se equitativamente entre os vintenários e os trintaneiros, quatro em cada faixa.





QUADRO XXI


Professores

%

Efectivos

3

37,5

Profissionalizados

0

0

C/ Habilit. própria

0

0

C/ Habilit suficiente

4

50

Em profissionalização

1

12,5

Total

8

100





Quadro XXI – Distribuição por categorias profissionais dos inquiridos de Educação Física





A homogeneidade deste grupo é, concomitantemente, sinal de força e de fraqueza. É que isto garante de facto aos docentes fácil entendimento mútuo, o que se repercute em melhor harmonia e integração do trabalho com todos os educandos da escola, podendo ultrapassar-se aqui o factor negativo persistente em muitos outros sectores que consiste em cada docente orientar-se num rumo próprio, não sendo viável o diálogo dentro da mesma área curricular, o que redunda em desnorteamento generalizado dos educandos, divididos entre opções incomunicáveis quando afinal laboram em iguais programas. Em educação física não nos apercebemos, mesmo nos estabelecimentos em que empreendemos projectos arrojados que os envolveram em massa, sinais de que dificuldades deste teor tolhessem os movimentos destes colegas. Sempre lograram operar e intervir unitariamente.



Isto constatámo-lo mesmo quando, em estabelecimentos lisboetas, o grupo assumira sistematicamente a função de animador permanente da comunidade escolar, papel altamente ingrato em unidades sobredimensionadas, em que a massificação e o anonimato preponderam, com proliferação de grupos desviantes incorrendo em actividades do foro disciplinar e criminal. Por exemplo, acompanhámo-los na Esc. Sec. D. Dinis, no biénio 78/80 em que, no decorrer deste último ano, houve mais de dezoito assaltos ao estabelecimento, batendo o máximo nacional, a polícia teve de intervir para capturar cadastrados infiltrados nele em pleno funcionamento lectivo, a actividade de passadores de drogas era constante bem como a de prostituição, ao que persistentemente depunham múltiplos alunos, mormente do turno da noite. Seria decerto praticamente inviável a qualquer outro grupo manter uma intervenção concertada consensual de modo permanente, durante anos inteiros, tanto para dinamizar o Conselho Pedagógico como a vida interna de todos os utentes desta casa. O núcleo de educação física, entretanto, operou-o inquebrantavelmente sempre, com indiscutível determinação e eficiência, a todos os níveis. É óbvio que isto jamais resultaria se entre eles houvera colegas sem qualquer preparação para tal ou emprestados ao grupo por outros onde fossem excedentes. Se um professor de português ou de matemática completasse o horário com uma das turmas de desporto jamais seria exequível implementar unanimemente, ao correr de meses e meses, um festival gímnico ou uma competição inter-cursos numa modalidade qualquer. As sensibilidades e prioridades divergiriam e, não tardaria, cada docente puxaria para sua banda como sempre tende a ocorrer em grupos onde tais expedientes se revelam inevitáveis, o que encontrámos em todas as escolas transtaganas e é norma no interior, na província e sempre que a população discente é diminuta em cada ano de frequência, dificultando a elaboração de horários completos por área curricular. Nestes termos, pois, a homogeneidade em educação física opera como uma condição prévia de qualidade e eficiência que o grupo pode e tem posto a render em prol de todos, em muitos estabelecimentos.



Por outro lado, porém, isto decorre da fraqueza congénita do estatuto curricular que a tal disciplina é atribuído. Efectivamente, ninguém aceita um horário lectivo completado com educação física, primeiro porque, se se encontra habilitado para outra área, sente geralmente como desprestigiante ir leccionar uma componente tida habitualmente como não tendo nada de sério, de importante, um mero apêndice curricular que funciona como válvula de diversão para aligeirar o sistema. O próprio facto de aqui só muito recentemente se haver introduzido avaliação formalizada resulta da convicção longamente dominante de que nos encontrávamos perante uma disciplina de segunda ordem, de parco interesse e quase nula formatividade, tanto que poderia sem prejuízo palpável prescindir-se dela que ninguém notaria a diferença. Ainda agora tal mentalidade é dominante no que se reporta aos efeitos legais do que nesta área o aluno aprende e desenvolve. Efectivamente, o aproveitamento aqui é apenas inultrapassável para educandos que pretendam seguir escolarmente alternativas do campo da motricidade humana. É notório quanto, mesmo neste âmbito, a revalorização desta componente curricular obrigatória continua ambígua. De facto, é completamente alheia ao legislador bem como à mentalidade comum, mesmo entre os que repensam e se empenham na reformulação do ensino, toda a vertente formativa potencial que esta disciplina contém na perspectiva do despertar integral da personalidade do educando. Encegueirados tanto pela tradição de displicência atribuída a esta componente como pela secundarização e instrumentalização política permanente dela durante o anterior regime (transformou-a quase apenas numa actividade para-militar, mais um braço da Mocidade Portuguesa dentro da instituição), todos eles e a colectividade em geral nem sequer suspeitam quanto de fundamental para o equilíbrio dos alunos e da comunidade se desperdiça com entendimentos tão reducionistas e desviados da vocação mais radical desta disciplina. Aliás, por causa de ser tal a atitude preponderante em que ficam contextuados os colegas de educação física, eles próprios tendem a compartilhá-la e a deixar encurralar-se por perspectivas de trabalho míopes, empobrecedoras, gorando também pelas mãos deles a possibilidade real que detêm de introduzir no currículo, embora solitários e vulneráveis, a terceira vertente curricular das disciplinas de despertar, cada dia mais inadiáveis para o nosso reencontro como pessoas, como povo, como humanidade.



Isto conduz-nos a uma outra razão porque ninguém acata ser transposto para este grupo. É que, apesar de tudo, os professores dão-se todos mais ou menos conta de que neste campo formativo a regra do jogo é diferente, estarão em causa aspectos educativos para eles em grande parte obscuros e, conseguintemente, sentem-se inaptos e desarmados para virem aqui a terreiro. Descobrem-se inabilitados, mesmo quando crêem que o trabalho na disciplina não é levado a sério nem, se calhar, deveria sê-lo, ao que julgam. Até para divertir eles não se encontram à vontade neste domínio. Pressentem, de algum modo, a existência vaga duma vertente curricular que escapa aos valores, à lógica, bem como à deontologia que decorrem tanto dom vector clássico de letras e ciências quanto do da era industrial da tecnologia, oficinas e laboratórios. É o medo do incógnito o que os afasta. Também por aqui a educação física acaba abandonada, pequeno resto duma pedagogia outra, fresta donde mal se logra entrever o que poderá um dia vir a ser um educando em corpo inteiro, assumindo-se na integralidade de pessoa que hoje não logra jamais descobrir ser por mediação da escola que lhe impomos. Por esta razão, os colegas deste grupo encontram-se então, de algum modo, colocados à margem, isolados, são outra coisa que o restante corpo docente. Em tal sentido, diminui-lhes ainda mais o campo de manobra e a viabilidade de alguma vez operarem eficazmente como fermento na massa, rasgando aberturas precursoras dum novo e desejável reequilíbrio curricular e pedagógico, por muito que, honra lhes seja, muitos deles militantemente não desarmem, um pouco por toda a parte onde nos foi dado em comum trabalhar, e onde se vêm denodadamente batendo na primeira fila das tentativas de reconversão didáctica, comunitária e institucional.



Será igualmente improvável deparar com um professor de educação física a leccionar outra área. Não encontrámos jamais um único caso também. É verdade que, dado abrangerem a totalidade dos alunos, não se manifesta aqui a dificuldade doutros grupos em elaborarem dentro deles horários completos. Neste há-os em número excessivo até. Não cremos, porém, que tal seja toda a explicação da excepção ao que todos os dias verificamos nas escolas alentejanas. Para isto convergem duas ordens de razões, também elas sinal de fraqueza e isolamento institucional e cultural do grupo. A primeira é que a generalidade dos colegas e dos conselhos directivos consideram que a habilitação para educação física é tão específica e exclusiva que os docentes dela são por inteiro destituídos de conhecimentos e aptidões para poderem responder com seriedade por qualquer outra disciplina. De algum modo, todos tendem a crer que, se tal ocorrera, seria um caos porque estes colegas levariam tudo a brincar, desrespeitando a nobreza e importância do que se lhes entregasse em mãos, para além de não disporem de qualquer tipo de cultura geral prévia que lhes viabilizasse minimamente a possibilidade de responderem cabalmente pelo que lhes ficasse à conta. Contrabalançando esta leitura pela negativa há uma outra de sinal inverso com que deparamos quando os professores nos alertam, por exemplo, para o facto de os mais lídimos colegas de educação física serem exímios em aspectos relacionais e cognitivos tão distantes dos dos demais docentes que não faria sentido misturar os dois campos, não teriam nada a ver um com o outro. Isto é o melhor fruto da suspeita de que porventura deparamos aqui com um modelo outro de pedagogia e educação, mas com a nota particular de que se não antolha como articulá-lo com o resto.



É óbvio que, quando opera de facto como disciplina de despertar, esta área corre o risco de provocar permanente estranheza e acaba uma vez mais votada ao ostracismo, apesar da melhor boa vontade e reconhecimento com que tal é feito. De facto, como articulá-la com o que quer que seja se ela é a única a funcionar com tais objectivos, estando os currículos actuais destituídos praticamente doutras alternativas que visem idêntico fito formativo? Se nem institucionalmente uma integração real ocorre, nem sequer há sensibilidade ainda à premência de a instaurar, como operá-la no terreno, quando os factos no-lo requeiram e nos faltem por inteiro padrões de referência para o quê e o como concretizá-lo? A solidão é irremediável, a inermidade, completa. Esta não é uma das menores fraquezas do grupo de educação física, ao contrário. Aqui é no coração daquilo que nos poderia ofertar de mais significativo e libertador que é atingido e na prática silenciado, enclausurado no próprio tugúrio, voz clamando num deserto onde não logra ainda despertar eco plausível.



É por causa de tudo isto que acaba por ocorrer que metade do grupo apenas tenha habilitação suficiente (quadro XXI). Se estivéramos numa escola rural, duma vila isolada, não era de estranhar. Em capitais de distrito tal percentagem é manifestamente exagerada relativamente à generalidade dos demais grupos. Terá sido o acaso que nos distorceu a colheita? Não o cremos, até porque é uma constante da educação física e não apenas nas regiões do interior (encontrámos casos iguais em estabelecimentos do centro lisboeta, como o D. João de Castro, onde constituem praticamente afloramento único entre todos os grupos). Isto resulta primeiro duma prática comum no antigo regime em que, de duas, uma, ou se subalternizava esta disciplina a ponto de qualquer pessoa poder ficar-lhe com um horário lectivo ou então ela militarizava-se e era desempenhada por graduados das Forças Armadas e num paralelo estreito com a Mocidade Portuguesa, dando continuidade para o serviço militar obrigatório. A abertura da área a quem tenha habilitação suficiente é muito vasta, uma vez que ela não requer grande especificidade, ao contrário doutros grupos disciplinares. O curioso neste primeiro factor é que, sendo genérica e diminuta a preparação destes docentes, em geral recobre mais uma ou outra das demais disciplinas lectivas carenciadas de professores da escola. Pois nenhum destes colegas tem horário misto com tais componentes, para as quais estaria afinal tão habilitado como para educação física. Aliás, os horários feitos de aulas remanescentes de várias áreas curriculares afins é solução comum e sem alternativa em todas as escolas, em maior grau no interior e província, pelas razões já muitas vezes aduzidas. Novamente constatamos a marginalização no tratamento de excepção que é dado a estes colegas: apenas leccionam educação física, por muito que a respectiva habilitação suficiente lhes permitisse responder por outras componentes curriculares. Penetraram no universo do estranho, foram automaticamente segregados. No caso, evidentemente, para bem da qualidade possível do trabalho que poderão prestar, mas confirmando o enquistamento do grupo dentro do sistema escolar no perfil que actualmente reveste (em 1985).



Em segundo lugar, porém, o largo recurso a professores com habilitação suficiente deriva da conjunção de dois factores de enorme peso no ambiente transtagano e da província em geral. Em primeiro lugar, a enorme expansão da escolaridade para que nos últimos anos vem despertando uma população até há pouco analfabeta, desinteressada, de ruralidade rotineira mais ainda na mente que já nas práticas económicas, requer um explosivo alargamento dos quadros docentes do preparatório e secundário (ensino unificado), como força ao brusco alargamento do leque e número de instituições de ensino superior, para o qual não há instantaneamente capacidade de resposta. Daí ter de aproveitar-se quem em cada caso e lugar em melhores condições, por mais pobres que à partida se apresentem, se logre encontrar. Por outro lado, é nos grupos mais abrangentes de estudantes, como a educação física, que a dificuldade se agudiza, uma vez que implicam um mais vasto número de horários lectivos disponíveis. Isto explicará a maior parte do fenómeno em análise que leva a um peso tão desmesurado de colegas de habilitação suficiente nesta área. Não podemos, contudo, obliterar um efeito que aqui se repercute a prazo e que decorre da insensibilidade da cultura dominante às disciplinas de despertar em geral, bem como da secundarização consuetudinária, do desprestígio e desconsideração tradicionais da educação física no contexto do currículo e da prática escolar: é que isto levou a que cronicamente houvesse poucos e mal definidos centros de habilitação e formação destes docentes, eles próprios colocados de algum modo à margem do sistema, como algo de insólito e de estatuto problemático. Consequência: formaram poucos agentes habilitados para o ensino; situam-se, de poucos que são, nos centros privilegiados de Lisboa e Porto, longe das grandes solidões da província, do interior, das serranias beiroas e transmontanas e também do Algarve, pelo que os diplomados que formam não são destas regiões nem nelas pretendem radicar-se, para além de constituírem obviamente um número diminuto para as carências actuais. Aqui surpreendemos o factor da subalternidade curricular nos efeitos em cadeia, desde a escola inquirida à de formação de formadores, configurando no meio um ambiente cultural e geográfico, tudo confabulando em idêntico resultado: exagerado número de professores com habilitação suficiente apenas, no único grupo que poderia intervir como disciplina de despertar, com um mínimo de extensão e eficiência, no actual currículo escolar português (1985).



Há, entre os inquiridos, um colega profissionalizando-se a par com três já efectivos. Tal poderia levar-nos a crer que nos encontramos perante um pequeno resto estabilizado. Com números tão baixos, claro que tal pode ser, em concreto, o caso. Não corresponde, entretanto, à tendência geral atrás descrita que também aqui não cremos sofrer excepção. É que os oito colegas de educação física são todos de idades na casa dos vinte e trinta anos. Ora, esta disciplina é obrigatória há muitos decénios nas escolas inquiridas. Se algum destes professores se tivesse radicado em qualquer dos estabelecimentos não estaria decerto nos primeiros anos da carreira, como ocorre com todos eles. Já teria tempo de passar há muito para outros esclões etários. Não é o caso. Daí ser muito mais provável verificar-se com estes o princípio geral, comum a todos os grupos nesta região, de irem ali efectivar-se ou profissionalizar-se para mais depressa conseguirem ficar definitivamente na escola que pretendem, por norma num centro cosmopolita do litoral. Curiosamente, o que disto resulta e, de facto, verificámos em quase todas aquelas terras, é que os mais duradoiramente fixos destes colegas acabam por ser os menos habilitados, todos os anos ignorando se terão ou não trabalho e sempre novamente chamados em Outubro para os horários pendentes a que cronicamente faltam candidatos. A continuidade precária e sempre sobressaltada acaba garantida por aquele pequeno grande resto dos colegas de habilitação suficiente que, deste modo, se transformam nos principais responsáveis pela manutenção do fogo sagrado, onde quer que ele tenha vindo a despontar. A eles devemos a gratidão por, de facto, em condições de trabalho tão contingentes como irrecuperavelmente são as deles, apesar de tudo andarem a promover justamente aquilo, tanto quanto a preparação e o que vão aprendendo com os colegas mais expertos e empreendedores lho permitem. A maior parte das tradições que se mantêm nestes estabelecimentos, no domínio de projectos de animação escolar, comunitária e da relação escola-meio, tem, na prática, vindo a assentar nestes ignorados párias da classe docente que, ano a ano, retomam em mãos o sonho e lhe vão emprestando a carne e o sangue duma abnegação dedicada.



QUADRO XXII


Professores

%

Mantém-se

7

87,5

Muda

1

12,5

Muda sob condição

0

0

Total

8

100



Quadro XXII – Respostas dos inquiridos de Educação Física à pergunta: “se lhe aparecesse um outro trabalho em que lhe fosse garantida a mesma remuneração, que faria?”



Vimos atrás que dos inquiridos apenas um optaria incondicionalmente por outra profissão, caso ganhasse o mesmo. Trata-se dum destes colegas (quadro XXII). Podemos compreender agora melhor os porquês desta atitude divergente tão isolada. Para além das razões genéricas invocadas nas quais estes colegas comungam com os demais professores dos motivos que os levariam a fugir da docência, acresce aqui, primeiro a contingência do trabalho de quem apenas tem habilitação suficiente, depois tudo o que esmaga, marginaliza e deprecia quem labora na educação física. Estes, com efeito, nem sequer auferem a vantagem do prestígio que outros em idêntica situação logram pelo facto de serem aceites como docentes e com que melhor penetram depois no mercado de trabalho, como excelente carta de apresentação que aquilo é. Por outro lado, a frustração derivada do estatuto de menoridade curricular do grupo, da indefinição dos respectivos objectivos pedagógicos no contexto do desenvolvimento programático geral, a desarticulação desta vertente com as demais ou então o reducionismo dela seja a funções lúdicas, seja ao extravasar de agressividades sublimadas no desporto, seja ao simples desenvolvimento físico abstraído da totalidade da pessoa, tudo isto é de molde a levar a desanimar qualquer um. O mais estranho é que justamente apenas um dentre os mais laboralmente inseguros manifeste tal disposição. Poderemos afirmar que pesará para tal a combinação de dois factores positivos: em primeiro lugar, a função muitas vezes de bandeirante que o grupo assume nestas escolas, liderando a dinamização pedagógica e comunitária geral de forma organizada e sistemática, ao correr dos anos, em proveito de todos e do ambiente convivial; em segundo lugar, a maleabilidade programática com que se pode leccionar aqui e que garante grande liberdade de movimentos e larga margem para iniciativas e experiências, contentando assim tanto aqueles que se sentiriam espartilhados por currículos rígidos com controlos avaliativos periódicos, mormente o dos exames nacionais, como quantos têm espírito aventureiro e sonhos inovadores e dificilmente encontram terreno mais propício para se empenharem do que aqui. Se isto é atractivo, porém, a ineficácia em que, a prazo, as intervenções de melhor qualidade e com visão mais aprofundada e englobante da totalidade do educando e até da missão formativa da escola acabam por ficar bloqueadas, em certos casos tem levado ao desânimo e à desistência alguns dos melhores profissionais deste sector.



Há anos, uma colega, única efectiva então numa escola do centro lisboeta, justamente muito empenhada na dinamização da comunidade e assumindo a prática da educação física numa pedagogia totalizante da pessoa, como momento de iniciação e descoberta da íntima conexão e simbiose da interioridade com a corporeidade em cada sujeito, desanimada pelos parcos resultados que obtinha, pelo isolamento em que a intervenção dela acabava no contexto do estabelecimento, pela dificuldade em ser inclusive compreendida e desdobrada pelo próprio grupo, cheio de colegas inabilitados e confusos no meio da massa amorfa da multidão dos utentes escolares, a meio do ano lectivo concorreu a uma bolsa no estrangeiro, pediu licença ilimitada e confessou-nos abandonar de vez a actividade e o País porque já não aguentava mais tal estado de coisas, rasgava-a todos os dias por dentro. É curioso que isto ocorreu quando o Conselho Directivo a considerava uma das melhores profissionais de todo o corpo docente e , por outro lado, o Conselho Pedagógico tinha nela um dos primeiros sustentáculos e mentores das linhas de rumo que tomava, em ordem à permanente melhoria do serviço educativo e cultural que no estabelecimento se prestava. Aliás, o prestígio daquela colega entre todos os professores era manifesto, respeitado e mesmo levava a solicitá-la e acolhê-la tanto no trabalho como na convivialidade espontânea. Pois nem com tal acatamento a situação se lhe tornou tolerável e levou-a ao abandono definitivo. É notório que aqui operou e pesou mais o irremovível obstáculo (que persiste e decerto continuará por longos anos) da surdez colectiva, cultural e institucional à urgência da terceira vertente curricular a implementar legal e praticamente na escola portuguesa, a das disciplinas de despertar. Esta colega profeticamente apregoava-o e executava-o com brilhantismo tão convincente que lhe grangeara o lugar entre colegas e órgãos gestores de que dispunha, mas não conseguia encontrar eco bastante na comunidade de utentes e menos ainda no equilíbrio dos programas legais para todo o esforço dela não redundar em completa inoperância, ficando esboroado em nada, dissolvido na tropeada amorfa das massas.



É evidente que tudo se torna mais fácil de aguentar quando uma pessoa se pauta por objectivos menos ambiciosos e mede realistamente até onde, a cada momento da maturação do processo social e da cultura dominante, será de aguardar resultados que nos não deixem em grave frustração, que esta, a prazo, é que devém demolidora, intolerável. Será, efectivamente, o que terá ocorrido com os demais destes inquiridos e com a generalidade dos colegas deste grupo com que temos vindo a trabalhar e que continuam aderindo à profissão docente, em sintonia com a generalidade da classe.





QUADRO XXIII




(1.ª)

%

(2.ª)

%

(3.ª)

%

Total

1

0

0

0

0

0

0

0

2

0

0

0

0

0

0

0

3

2

25

3

37,5

0

0

5

4

1

12,5

1

12,5

1

12,5

3

5

0

0

0

0

0

0

0

6

0

0

1

12,5

2

25

3

7

1

12,5

1

12,5

3

37,5

5

8

1

12,5

0

0

0

0

1

9

2

25

2

25

0

0

4

10

1

12,5

0

0

2

25

3

Total

8

100

8

100

8

100

24



Quadro XXIII – Distribuição das razões atribuídas em 1.ª, 2.ª e 3.ª prioridade, pelos inquiridos de Educação Física, como responsáveis pelo mau rendimento escolar dos maus alunos, dentre o leque das seguintes:

1 – Falta de capacidade intelectual dos alunos;

2 – Os professores não dominam bem a matéria;

3 – Os conteúdos e a forma como estão organizados os programas;

4 – Os alunos não têm hábitos de trabalho escolar;

5 – Os professores não sabem ensinar;

6 – Os alunos andam na escola contra vontade;

7 – Os alunos não têm interesse pelas matérias que têm de estudar;

8 – Os professores não têm boa relação com os aalunos;

9 – As condições em que funciona a escola (n.º de alunos por turma, funcionamento dos directores de turma, ocupação dos tempos livres, etc, );

10 – Falta de acompanhamento e de estímulo da família.



Ao examinarmos os quadros das atribuições causais do rendimeno escolar dos maus alunos feitas pelos oito inquiridos de educação física não poderemos obliterar que um número tão diminuto jamais poderá oferecer ditribuições significativas generalizáveis, aplicando-se aqui com muito maior peso quantas reservas ao inquérito em geral já explicitámos. Teremos de utilizar os indicadores exclusivamente como indícios sugestivos de conjunturas e situações existenciais e de vivência deste sector de professores, cujas informações factuais teremos de colher na fonte da nossa experiência directa com eles no trabalho no terreno. Por outro lado, porém, dentro desta parcimónia com que teremos de encarar os números, eles serão tanto mais interessantes quanto mais se revelem convergentes entre si e divergentes relativamente às tendências mais gerais analisadas atrás. Com efeito, será quando surpreendermos estas características que mais provável é depararmos pela frente com um afloramento menos fortuito ou individualmente condicionado e mais atinente a qualquer faceta relevante e diferenciadora do grupo ou da respectiva sensibilidade ou função. É, pois, por aqui que tentaremos surpreender vestígios que devenham eventualmente reveladores da franja em análise.



O primeiro aspecto que ressalta do quadro XXIII é um nítido extremar aqui da recusa de atribuições que recaiam nos professores. Efectivamente, se nas duas primeiras hipóteses de causalidade, a falta de capacidade intelectual dos alunos e a ausência de domínio das matérias pelos docentes, estes colegas compartilham com os restantes inquiridos da recusa geral de as indicar, aqui a qualquer nível de prioridade, já destes se diferenciam, em primeiro lugar, por não registarem nunca que os professores não sabem ensinar (n.º 5) e, depois, por apenas um deles referir, como razão de primeira ordem, a falta de boa relação com os alunos (n.º 8). É nítido o intuito de colocar a classe fora de questão, mas também de a não perspectivar em paralelo com os educandos. Com efeito, estes são apontados em todos os quesitos deles, excepto no primeiro que lhes põe em causa a capacidade intelectual, vulgarmente entendida, como explicámos, enquanto faculdade fixa, independente da vontade e do meio ambiente, e que por isto foi por todos os inquiridos praticamente arredada, como já constatámos.



Subjazem a esta atitude certamente vários factores típicos desta franja e que a diferenciam dos demais grupos curriculares. Em primeiro lugar, isto é uma projecção das condições lectivas e relacionais com que em educação física se trabalha. Com efeito, aqui é de norma não haver grandes problemas de motivação e envolvimento activo de mestres e discípulos em todas as actividades e iniciativas, num clima geral de empenhamento afectivamente positivo, às vezes entusiástico, nalguns casos extravasando dos directamente intervenientes para a comunidade escolar inteira (foi o que constatámos sempre que se programaram campeonatos e festivais). Ora, a verdade é que mais nenhum grupo curricular tem condições nem jamais logrou semelhantes efeitos nos educandos nem nos estabelecimentos. O facto de isto ser comummente partilhado entre os colegas de educação física tê-los-á a todos arredado sequer de crer na responsabilidade de quaisquer docentes na ocorrência de maus alunos, quando não é, evidentemente, razão bastante para alargar a aposta na inocência desta franja a todas as áreas programáticas.



Em segundo lugar, porém, e porque estamos em escolas de capitais de distritos alentejanos e perante um grupo, apesar de tudo, com metade dos elementos profissionalizados ou em vias disso, há, decerto, ponderando as escolhas, uma forte consciência da missão pedagógica e institucional que lhes incumbe, bem como do ideal de intervenção potencial tendente a reequilibrar toda a formatividade do nosso sistema escolar, atitude que nos foi dado constatarem praticamente todos os colegas mais habilitados da região (e mesmo da Grande lisboa, como casos do tipo dos já resumidos atrás deixam claramente indiciar) e que, a partir deles, atinge muitos dos outros e chega a mobilizar estabelecimentos por inteiro, como já referimos. Ora, em tais condições, estes professores são muito críticos relativamente a duas ordens de factores, prioritariamente: a da cegueira da cultura dominante que continua a alimentar um desenvolvimento curricular que lhes tolhe os movimentos, reduz sistemática e concertadamente o alcance das iniciativas e o potencial formativo de todo o trabalho (e por aqui eles remeterão as responsabilidades ao meio-família e à instituição e respectivos mentores, mormente órgãos tutelares de soberania); e a da incapacidade por seguidismo, conformismo, apatia, carência de rebeldia, de poder contestatário e de iniciativa, por parte dos estudantes que se deixam carneiralmente ir na onda sem levantarem um dedo para entalar uma dúvida na engrenagem.



Por esta via não podem assacar culpas aos professores, uma vez que, sofrendo na pele a frustração dos projectos em que investem, ao apontarem-nos condenar-se-iam igualmente, o que era contraditório. A esperança remetem-na inevitavelmente para a maturação cultural por uma de duas vias, ou a da transformação da mentalidade colectiva que tornará por reflexo as famílias em fermento da desejável reequilibração curricular e pedagógica, ou então a da rebelião das massas estudantis que periodicamente tendem a explodir, rebentando com os espartilhos institucionais, de modo a viabilizarem, na terra de ninguém que então se cria, a sementeira do homem novo tornado finalmente pessoa, sujeito dele próprio, responsável e respondendo perante si mesmo, a comunidade e a história, finalmente liberto da função de joguete a que até agora em grande parte o sistema o tem vindo a escravizar e reduzir.





GRÁFICO VII








Gráfico VII – Quantidade de itens por que se distribuíram as respostas dos inquiridos de educação Física quando opinaram sobre o que ocasionaria o fraco rendimento escolar dos maus alunos





Um outro aspecto curioso que a distribuição reveste é o de que a dispersão das respostas decresce regularmente à medida que se vai da primeira para a terceira prioridade: seis itens são contemplados naquela, cinco na intermédia e quatro na última (gráficoVII). Decorre disto, desde logo, que é inviável apontar qualquer tendência de convergência de opiniões quanto à razão que mais fortemente imperará na criação de maus alunos. Com efeito, com oito inquiridos a espalharem-se por seis opções diferentes, o panorama é o de um registo em quatro das escolhas e de dois nas restantes. Já nas razões de grau intermédio e mais ainda nas de menor peso a concentração pode significar algo de mais sugestivo.



O que isto permite entrever é uma acentuada dificuldade destes inquiridos em darem conta dos porquês do que ocorre fora da sua área. É que, por norma, em educação física não se coloca o problema do aproveitamento dos alunos tanto porque tradicionalmente não havia avaliações neste grupo como pelo facto de que os critérios actuais por que se pauta para classificar em grande parte divergem estruturalmente dos dos demais, levando-os a não terem de enfrentar o tipo de dificuldades de rendimento escolar características dos outros programas curriculares. Quando o obstáculo não chega na prática a colocar-se-lhes e eles são chamados a pronunciar-se acerca dos dos outros, como admirarmo-nos da hesitação, da dúvida? É que, de duas, uma: ou transpunham para a escola inteira o que são razões de queixa do esbanjamento de potencialidades formativas (que a tal se reduz, por norma, na disciplina deles, a falta de rendimento escolar mais notória), ou então teriam de arriscar colocando-se na pele dos restantes colegas e de experiências de que não partilham para seleccionar o que mais peso revestiria. Na primeira hipótese estariam cometendo um erro cuja evidência lhes não escapou, como a dispersão de opiniões indicia. Restava-lhes a outra via que decerto seguiram e cujo resultado dubitativo aflora na desconexão das escolhas. Já nas outras duas prioridades vai diminuindo esta reserva, porventura por efeito combinado de peculiares razões. Por um lado, à falta de referenciais mais seguros para se definirem, estes iinquiridos decerto foram julgando credíveis os próprios motivos de queixa, com tanto mais força quanto mais a prioridade foi declinando, tornada pano de fundo de todos. Por outro lado, a diferenciação entre grupos ter-lhes-á parecido cada vez menor, acabando por crer que todos convergirão à medida que se tenham em conta factores de mais baixo peso específico e, porventura por isto, de abrangência geral mais alargada. Quer dizer, à medida que deram primado ao sentir e experiência dos outros não lograram convergir, manifestando-se claramente o subjectivismo arbitrário das opções. Tanto quanto julgaram que havia um campo comum partilhado por todos e no qual se reconheciam solidários com os demais, principiou a aflorar a convergência das escolhas, diminuindo gradualmente o leque da dispersão e tendendo a concentrar-se em determinadas alternativas (embora o número reduzido torne sempre isto, evidentemente, irrelevante em termos generalizáveis).



GRÁFICO VIII






(1) - Os conteúdos e a forma como estão organizados os programas; Os alunos não têm interesse pelas matérias que têm de estudar.

(2) - As condições em que funciona a escola;

(3) - Os alunos não têm hábitos de trabalho escolar; Os alunos andam na escola contra vontade; Falta de acompanhamento e de estímulo da família.

(4) - Os professores não têm boa relação com os alunos.



Gráfico VIII – Totais das respostas dos inquiridos de educação física sobre as razões do fraco rendimento escolar dos maus alunos.





O resultado deste padrão optativo é uma distribuição que acaba por confirmar tanto o que acabamos de referir quanto os perfis globais atrás delineados, relativos à totalidade do inquérito (gráfico VIII). Efectivamente, os itens mais votados, agora no conjunto das três colunas, com cinco pontos cada, são os conteúdos e a forma como estão organizados os programas (n.º 3) e ainda a falta de interesse dos alunos pelas matérias a estudar (n.º 7), convergindo igualmente neles a maior concentração de registos numa só das prioridades, uma vez que ambos foram apontados três vezes, o primeiro na segunda e o segundo na terceira (quadro XXIII).



Já atrás reportámos quanto a generalidade dos inquiridos tendia para se orientar por aquelas alternativas, uma colocando em causa a instituição e o desenvolvimento curricular e a outra, o reflexo disto na desmotivação dos educandos. É desde logo evidente que os colegas de educação física são fortemente sensíveis ao primeiro destes quesitos, tanto pela luta que de há muito empreendem contra a subalternização e marginalização a que são votados tradicionalmente, como mais fundamentalmente ainda, nos decénios mais recentes, pela consciencialização da inadiabilidade de propugnarem a reconversão do equilíbrio do desenvolvimento curricular em ordem a instaurar uma área imprescindível de disciplinas de despertar de que a educação física seria um dos elementos e o mais largamente radicado já no actual sistema escolar. Curiosamente, porém, este grupo não tem, por hábito, razões de queixa relativamente à motivação dos educandos, uma vez que é justamente nele que em todo o lado se constata um empenhamento discente generalizado. Porque o referem então? Para além do já aduzido, importa reter que isto não é certamente estranho ao sentimento que muitos comprovam de que, à medida que se vem revalorando a área de educação física nos novos currículos (imposição da avaliação, criação de programas ministerialmente definidos, abertura da opção curricular de desporto...), tudo isto, se por um lado corresponde às aspirações de tratamento equitativo desta área, partilhadas por todos os docentes dela, por outro vem sendo acompanhado da recuperação pelo sistema do que aqui havia de específico, divergente, de fermento dum eventual modelo outro de currículo e de padrão pedagógico. A promoção e o reconhecimento estão a ser feitos justamente à custa da mensagem mais original que daqui se vinha infiltrando, na tentativa de reconverter a escola e o perfil educativo truncado e castrador que nela predomina. O acatamento e o estatuto de maioridade concedido gradualmente ao grupo, portanto, não se vem operando pela reconversão do sistema, pela abertura dele a novos universos de sentido e formação, mas antes pela domesticação e enclausuramento desta área nos limites, miopias e alienações que a instituição promove na cultura e no País.

Assim é que se tornou a classificação e avaliação opressivas, intervindo como nas demais áreas enquanto polícia do sistema, braço do poder dentro da escola, garantindo-lhe subserviência e uniformidade, impedindo o afloramento do inédito, do inesperado, do único enquanto divergente ou além das margens de tolerãncia da ordem implantada. De igual modo, a impositividade programática quebra a criatividade, a estimulação do imaginário, a descoberta por dentro de cada um, a aventura dos projectos tentados com os demais. As disciplinas teóricas (ou a componente teórica da área) em nada se acabam por distinguir na prática das demais matérias cognitivas do currículo escolar e uma vez mais desviam e ignoram a totalidade da pessoa que potencialmente subjaz a esta opção educativa. Podendo ser tudo diferente (e na didáctica cada professor pode reconverter sempre estes pendores), a verdade é que o contexto em que laboram, as dominantes da instituição, os hábitos e tradições pedagógicas implantados, insensivelmente mas de modo eficaz e praticamente incontornável, acabam por encurralar toda a gente nas talas limitativas (e até inconscientes) dos efeitos, nos educandos e na cultura, do modelo escolar tradicional. Por tudo isto, estes inquiridos não podiam decerto ignorar que doravante cada vez mais a desmotivação vai atingindo o território deles, até há bem pouco uma área privilegiada de descontracção, sublimação, festa e competição, quando não um jardim secreto onde um ritual iniciático autêntico era viável para o desvendamento da interioridade abrangente e recuperadora da personalidade inteira, com o corpo vivido e experimentado em todas as dimensões de ser e de poder, a desabrochar um sujeito integral.



Sabemos que este é o resultado habitual do confronto entre o divergente e o dominante, quando este, nas formações socioculturais, se abre à integração daquele. Sempre com isto lhe anula o ferrão agressivo e ameaçador, reconvertendo-o num vigilante útil da ordem estabelecida, com o que frustra quantos sonhavam com a instauração dum mundo outro. O trajecto produz, porém, uma insensível alteração no equilíbrio dos factores e realidades sociais previamente vigentes, fermentando-os e moldando-os anonimamente a novas solicitações, valores e agentes que nele doravante passam a ter voz activa. Por isto, nunca é neutro nem inteiramente ineficaz o processo de domesticação e recuperação dos projectos inovadores. Apenas as transformações por esta via são tão graduais, tão lentas que não damos facilmente por elas, o que permite que ocorram pacificamente, sem conflitos de monta, evitando revoluções, guerras e confrontos sociais, embora a um preço de duas faces: os mentores dos inovamentos gritam inelutavelmente a traição dos sonhos que os animaram e a morosidade das mudanças arrasta-se por gerações, eventualmente dura séculos. Ao invés, quando há rupturas colectivas e se cai num processo revolucionário, as transformações ocorrem em catadupa, a curto prazo, mas em contrapartida o desajustamento comportamental, ético, institucional e cultural é de tal ordem que se geram traumas colectivos fomentadores de conflitos, agressões, guerras civis e, quando menos, de graves desequilíbrios pessoais e comunitários, a lesarem vastas franjas populacionais. Sempre, entre ambos os modelos, se tem balouçado a história dos povos, sem jamais se poder garantir qual das vias ou que equilíbrio entre elas poderia alguma vez redundar exclusivamente em vantagem para todos.





QUADRO XXIV


(1.ª)

%

(2.ª)

%

(3.ª)

%

Total

1

0

0

0

0

0

0

0

2

0

0

1

12,5

0

0

1

3

2

25

0

0

2

25

4

4

1

12,5

0

0

2

25

3

5

1

22,5

0

0

0

0

1

6

0

0

2

25

0

0

2

7

2

25

3

37,5

1

12,5

6

8

0

0

0

0

0

0

0

9

2

25

2

25

1

12,5

5

10

0

0

0

0

2

25

2

Total

8

100

8

100

8

100

24



Quadro XXIV – Distribuição das razões atribuídas em 1. ª, 2. ª e 3 .ª prioridade, pelos inquiridos de Educação Física, como as que os educandos indicariam serem responsáveis pelo fraco rendimento escolar dos maus alunos, dentre as seguintes:

1 – Falta de capacidade intelectual dos alunos;

2 – Os professores não dominam bem a matéria;

3 – Os conteúdos e a forma como estão organizados os programas;

4 – Os alunos não têm hábitos de trabalho escolar;

5 – Os professores não sabem ensinar;

6 – Os alunos andam na escola contra vontade;

7 – Os alunos não têm interesse pelas matérias que têm de estudar;

8 – Os professores não têm boa relação com os alunos;

9 – As condições em que funciona a escola (n.º de alunos por turma, funcionamento dos directores de turma, ocupação de tempos livres, etc.);

10 – Falta de acompanhamento e de estímulo da família.



Ao examinarmos como os inquiridos de educação física presumem que os educandos escolheriam o que provoca maus alunos, desde logo surpreende a quantidade de divergências relativamente ao leque das próprias atribuições (quadro XXIV). Com efeito, deparamos agora com um registo nos itens 2 e 5 (os professores não dominam bem a matéria e não sabem ensinar), ficando em branco apenas o primeiro, relativo à incapacidade intelectual dos discentes, e o oitavo, relativamente à má relação do professor com os estudantes. Em termos percentuais, entretanto, bem como relativamente aos totais de cada aspecto focado nos quesitos, as divergências são irrelevantes, só parecendo de vulto na área dos relativos aos professores (e família), justamente porque as atribuições aqui são diminutas (e por isso insignificantes), como se pode verificar pelo quadro XXV.





QUADRO XXV




Professores

%

(% T. P.)

Alunos

%

(%T. P.)

Alunos

11

45,8

(38)

11

45,8

(46)

Professores

1

4,1

(6)

2

8,3

(10)

Escola

9

37,5

(46)

9

37,5

(40)

Família

3

12,5

(10)

2

8,3

(4)

Total

24

99,9

(100)

24

99,9

(100)



Quadro XXV – Totais das opiniões dos inquiridos de educação Física desagregadas por áreas de itens (alunos, professores, escola, família), quando se referem ao que eles próprios crêem que ocasiona o fraco rendimento escolar dos maus alunos (prof.) e quando se reportam ao que crêem que os alunos acerca do mesmo indicariam (al. ). As colunas entre parêntesis registam as percentagens encontradas ao ponderarmos com peso 1, 2 e 3 as respostas ao inquérito, respectivamente, de 3,ª, 2.ª e 1.ª prioridade (totais ponderados).





Continuando embora a contenção relativamente ao pôr em xeque os docentes (quadro XXIV), é notória também aqui a permeabilidade já atrás reportada em todo o grupo inquirido à expectativa de que os alunos farão decerto alguma projecção de responsabilidades para esta área de quesitos, chamando à pedra os próprios mestres. Por outro lado, aqui não temos agora a concentração gradual das escolhas à medida que descemos de prioridade, uma vez que as opções se dispersam, respectivamente, por cinco na primeira e terceira e quatro na intermédia, o que torna definitivamente irrelevantes as diferenças quando tomadas coluna a coluna, tão fortuitas se revelam. Neste caso, pois, não operou o recurso à sensibilidade do próprio grupo e aos índices comuns por ele partilhados com os demais no contexto da instituição. Compreende-se porquê.



Não é praticamente possível a estes colegas, já de si marginalizados no sistema e também nos estabelecimentos, mesmo quando bem acolhidos e mormente até quanto mais elevados nas funções próprias que lhes cometerem, uma vez que acabam laborando em papéis sem paralelo, darem-se conta do que ocorre entre os alunos na relação com a escola em geral e com os outros docentes em particular. Adivinhar o que eles refeririam como causas dos maus discentes, quando estes em regra não o são em educação física, é solicitar uma dupla transposição, primeiro para a subjectividade dos educandos e depois para os indícios derivados mormente do confronto deles com a instituição e o trabalho noutras áreas. Para quem, estruturalmente, por estatuto e tradição escolar, como pela situação de facto mais comum, está colocado fora dos circuitos em que se cruzam, são ponderados, se entrechocam as informações e os eventos que permitiriam elucidar aquilo, é de aguardar uma acentuada hesitação e indefinição, como decorre do quadro em análise. Isto é tanto assim que a máxima e única concentração de pontos num item é de três na segunda prioridade do sétimo quesito, relativo à desmotivação dos alunos pelas matérias (quadro XXIV). Sendo fruto da inultrapassável dispersão, é ainda um reflexo final muito vago da fuga para a solução de recurso quando nada mais resta a que deitar mão. Efectivamente, aquela foi uma razão privilegiada, como atrás analisámos, quando apontaram as que consideravam como mais geradoras de maus alunos. É um resto de projecção da própria escolha para o âmbito dos discentes, por manifesta falta de dados para outras alternativas.



Mas adivinhamos logo um diferente motivo: é o que os educandos mais apontam nas próprias queixas, teria de ser aquilo por onde os professores se permeabilizariam melhor a sobrepor a sensibilidade deles e a doutrem. Que mais não será do que isto indicia-o o pormenor de aqui este quesito já não ser acompanhado pelo dos conteúdos programáticos (n.º 3), com que o vimos operar, constituindo as duas faces do mesmo vector desmotivante. A ter havido projecção prioritariamente, isto não ocorreria por certo, nem a concentração naqueloutro acabaria tão baixa. Em todo o caso, porém, tal indicia já que os inquiridos estiveram, apesar de tudo, atentos aos educandos e aos indicadores escassos e dbbios que neste aspecto deles poderiam apreender. A análise a partir doutro ângulo confirmar-nos-á isto, acentuando quanto o relacionamento e proximidade educador-educando conseguem chegar longe e marcar fundo nas actividades deste grupo, meta desejável e tanto mais imprescindível quanto mais a civilização acentuar o mecanizar da humanidade, enquanto grande finalidade da vertente das disciplinas de despertar, num equilibrado desenvolvimento curricular a promover.





GRÁFICO IX




(1) - Os alunos não têm interesse pelas matérias que têm de estudar

(2) - As condições em que funciona a escola

(3) - Os conteúdos e a forma como estão organizados os programas

(4) - Os alunos não têm hábitos de trabalho escolar

(5) - Os alunos andam na escola contra vontade e Falta de acompanhamento e de estímulo da família

(6) - Os professores não dominam bem a matéria e Os professores não sabem ensinar



Gráfico IX – Totais das respostas dos inquiridos de Educação Física quanto às razões presumíveis que os discentes indicariam para o fraco rendimento escolar dos maus alunos





Observando os totais de cada quesito somadas as três prioridades, obtemos então uma distribuição em pirâmide nítida e que desta vez apresenta já diferenças acentuadas e sugestivas (gráfico IX). No topo, com 6 registos, encontra-se o item do desinteresse dos alunos pela matéria de estudo (n.º 7), precisamente o que, solitário, já mais votos colhera numa única prioridade. Depois, com 5, ficou o das condições em que funciona a escola (n.º 9), seguindo-se-lhe, com 4, o dos conteúdos e forma dos programas (n.º 3) e a seguir, já com 3 votos apenas, o da falta de hábitos de trabalho escolar (n.º 4). Ficam na base, com 2 registos, em paralelo, o do apoio familiar (n.º 10) e o da frequência da escola contra vontade (n.º 6) e, com 1 apenas, outros dois quesitos, referentes a professores, o de não dominarem a matéria (n.º 2) e o de não saberem ensinar (n.º5).



Reencontramos, pois, aqui as prioridades que em geral a totalidade dos inquiridos atribuiu aos alunos decorrentes do que estes mais comummente denunciam como razões de queixa contra o que lhes ocorre na vida estudantil, o desinteresse pelas matérias curriculares e as más condições de funcionamento da escola. Já vimos atrás como isto é o reflexo directo daquilo que é mais óbvio em todos os estabelecimentos do País, pela recolha do testemunho imediaro e constante dos educandos sobre os programas que estudam e pela constatação do que mais fácil é de observar no quotidiano da generalidade das escolas, a falta de meios que oferecem para o trabalho a desenvolver. Cremos, porém, que, por mais que isto convirja com as tónicas do inquérito como um todo, há nestes resultados o afloramento de aspectos outros que de perto concernem a educação física e emprestam a tais escolhas conotações que não são comuns aos demais grupos disciplinares.



É que a descentração que aqui é pedida a estes inquiridos, para tê-los levado a produzir tal somatório, obrigou-os implicitamente, por certo, a comparar a motivação dos educandos constatada na área deles com a ocorrida na generalidade das outras. Já vimos como no seu próprio grupo o desinteresse não é regra e surge fundamentalmente enquanto sequela negativa larvar da integração no sistema desta disciplina, obrigando-a a partilhar de algumas facetas opressivas da escolarização. Para se haverem sensibilizado a ponto de ombrearem com as atribuições dos demais inquiridos tiveram, primeiro, de andar bem atentos à comunidade escolar e às tensões que a marcam e dividem, o que parece ser um traço característico dos grupos disciplinares da vertente do despertar, aqui e além-fronteiras, certamente por estarem permanentemente vocacionados e empenhados em assumir a dinamização e aprofundamento dos laços e iniciativas dos utentes dos estabelecimentos. O cuidado e atenção deste sector com a animação comunitária, dentro e fora dos muros escolares, com efeito, em lado algum os surpreendemos compartilhados a nível igual pelos demais grupos nem, quando as colaborações se entrosaram, descobrimos estes tão intimamente mergulhados e inspirados nos respectivos currículos e menos ainda nas didácticas adoptadas. Bem ao contrário, quando na educação física tudo deriva directamente, sem cortes, das escolhas de conteúdos e dos métodos para os dominar e pôr a render, nos demais grupos que cooperam nos projectos destes trata-se de actividades circum-escolares extraprogramáticas, trabalhadas para além e à margem das aulas normais e sem qualquer ponte com o que nestas ocorre, nem em termos de rubricas científicas ou práticas, nem do padrão de relação pedagógica em que são desenvolvidas. Para estes, trata-se de abrir um parêntesis, para aqueles é a criação do próprio discurso disciplinar. Ora, porque isto é patente em todo o lado e mais ainda quando mais dinâmicos, empreendedores são os grupos de educação física e mais autênticos e ambiciosos na tentativa de levarem ao limita a exploração das potencialidades formativas da respectiva área curricular, é que se tornou viável por certo aos inquiridos poderem apontar, tudo somado, uma razão de topo presumível dos educandos como a da desmotivação que de modo algum é vulgar na disciplina deles. Para quem esteja de fora isto poderá antolhar-se artificioso. A verdade, porém, é que há períodos em que se demonstra de tal modo gritante a discrepância das capacidades de motivar dos vários vectores dos programas que os próprios alunos acabam por dar-se conta de tal (e já vimos como eles têm evidentemente dificuldade em chegarem à crítica metodológica e programática, por serem territórios que à partidaea por princípio ignoram). Efectivamente, durante anos, recebemos testemunhos e cartas de alunos que, relativamente à nossa própria experiência docente na filosofia, história, psicologia e introdução à política, justamente denunciavam a distância entre os intuitos que com eles partilhávamos de tudo recentrarmos no coração da pessoa, onde cada um em concreto vibrasse, e a prática normalmente contraditósia disto mesmo que nós e eles acabávamos por implementar a contragosto e sem vislumbrarmos como inflectir isto. Entretanto, sempre que nos organizávamos para uma intervenção circum-escolar, aí tínhamos de imediato o entusiasmo a sublinhar e alimentar as mais variadas tarefas indefinidamente, mesmo quando incidiam igualmente em temáticas daquelas áreas curriculares (por exemplo, na efectivação de semanas culturais, de jornais de parede ou de colóquios...). O enigma desafiou-nos a todos durante anos e continua no terreno a negacear ante quantos, em todo o lado, têm ao menos uma vez a oportunidade de se confrontar com os efeitos da intervenção autêntica duma pedagogia de despertar e pretendem com ela interligar-se.



Isto obriga cada um a refazer-se por dentro, a reinventar-se como educador, muito para além do tradicional professor, até lograr dominar estratégias que, a partir do seu programa e ângulo particular de intervenção, consigam assumir a pôr a caminho o todo da personalidade do educando, sem lhe abolir a interioridade, a qualidade de sujeito que deve tomar-se em mãos e posicionar-se perante tudo, a principiar pelos conteúdos curriculares e pela relação pedagógica.



Igualmente quanto às condições de funcionamento da escola, os inquiridos de educação física se colocam em posição particular. É que eles são quem habitualmente mais sofre de carências que afectam o desenvolvimento do próprio trabalho, como atrás reportámos, a ponto de não existir esta área curricular em muitos estabelecimentos. Como, porém, presumir que tal seria denunciado pelos educandos? Não cremos que os professores lhes atribuíssem tal registo nem sequer por transposição do que eles próprios sentem, uma vez que, onde há educação física, decorrem as actividades que as instalações, espaços e equipamentos permitem, por mais reduzidos e inadequados que à partida sejam, o que impede que os educandos se possam aperceber do condicionamento negativo que constituem para o rendimento escolar. Em docentes tão atentos e íntimos dos alunos como estes por norma são, não iriam arriscar presunção por ali tão infundável, decerto. Cremos que para este resultado convergiram outros factores.



O primeiro é o de que estes colegas, pela própria empatia que cultivam com os educandos, destes recolhem as queixas genéricas contra as carências de instalações, equipamento, recursos e funcionamento da escola em geral, o que é tanto mais comum a este grupo disciplinar quanto muitas vezes lidera justamente as iniciativas para a melhoria de cada estabelecimento, a nível dos Conselhos Pedagógicos e Directivos. Por outro lado e em virtude destas funções e das de animador comunitário privilegiado que igualmente desempenha por norma, vê-se obrigado a implementar múltiplas actividades e projectos de incidência interdisciplinar. Por qualquer das vias acaba por compartilhar das dificuldades e limitações dos demais grupos curriculares, bem como daquilo que as provoca. Muitas vezes a intervenção do sector ordena-se justamente a eliminar ou contornar os obstáculos: recordo um conselho pedagógico em que o grupo de educação física propunha uma outra ocupação dos recreios da escola, mesmo em aulas da própria disciplina, em virtude de haver problemas de insonorização nas salas dum pavilhão inteiro em que funcionavam laboratórios de línguas e era adjacente aos espaços em causa. Finalmente, se nos grandes centros urbanos, pejados de solicitações, as actividades de tempos livres revestem pouco interesse e atraem parcos efectivos, isto já não é assim nas escolas alentejanas e do interior e província em geral, onde escasseiam iniciativas culturais e solicitações de diversão ou jogo. Aqui, os programas de lazer chegam a mobilizar escolas inteiras e ainda muitas instâncias do meio empenhadas na dinamização cultural. Verificámo-lo em toda a parte, a ponto de se criarem condições para institucionalizar isto num estabelecimento, a preparatória de Serpa, onde se organizou, a par do horário lectivo normal, um outro, com professores, alunos, espaços e projectos, para estas actividades. Ora, é neste vector que os colegas duma disciplina de despertar maximamente se reconhecem e descobrem em autenticidade a escola com uma educação do teor que resultaria dum currículo reequilibrado e assumido por todos na integralidade das respectivas potencialidades.



A experiência desta situação é comum na região transtagana e, obviamente, não será alheia aos inquiridos e à opção de privilegiarem as condições de funcionamento da escola como uma razão presumível dos educandos. É que estes, quando experimentaram a diferença da pertinência, da eficácia e da gratificação das aprendizagens feitas pela via lectiva estandardizada e cogente, por um lado, e das operadas no contexto dos projectos de tempos livres, por outro, não têm mais dúvidas de por qual optariam se lhes fora dada a escolha. E praticamente todos eles, em maior ou menor escala, naquelas regiões, tiveram já várias oportunidades de estabelecerem o confronto. Daí ser normal prever que o não obliterassem se foram convidados a pronunciar-se acerca das razões geradoras de maus alunos.



Quanto ao item que ficou em terceiro lugar, o dos conteúdos e forma dos prograamas (n.º 3), aqui como para a generalidade dos inquiridos prepondera a transposição do juízo que sobre tal quesito os professores em geral fazem, bem como a proximidade do da desmotivação dos alunos pelas matérias a estudar, cujo reflexo se repercute aqui, tal como, quando se tratou de conferir quais os motivos que os docentes escolhiam por eles próprios, o efeito inverso igualmente ocorreu, como atrás conferimos, dado que as matérias programáticas e a motivação tendem a operar como duas faces da mesma moeda. A única perspectiva diferenciadora que opera na experiência dos colegas de educação física é a da potencialidade mobilizadora dos respectivos currículos e modos de intervenção e a distância a que isto fica, na prática quotidiana de cada escola, das outras disciplinas. De qualquer modo não se vê como os alunos se poderiam dar conta de tal na perspectiva dos conteúdos e forma dos programas, até porque à partida os ignoram e, após os haverem trabalhado, não lhes é muito viável comparar áreas nem, menos ainda, descortinar outras alternativas que dentro de cada uma seriam exequíveis, por manifesta falta de informação bastante. Em qualquer hipótese, esbarramos sempre com obstáculos que, do que a experiência directa com os discentes nos revela, em qualquer tipo de escola e região, apontam para o facto de esta presunção de causas que os educandos refeririam não poder ocorrer na prática e derivar fundamentalmente do facto de estes inquiridos se confundirem atribuindo aos alunos o que é próprio deles mesmos, sem repararem no que os distingue e impede aqui de caminharem a par. A partir deste nível, a pirâmide das convergências de atribuições presumíveis dos alunos deixa, pois, de permitir supor qualquer traço característico que nos leve a surpreender melhor a área das disciplinas de despertar, pela mediação da educação física.



Vimos como os indícios sugerem traços da marginalização e enquistamento interligados com o desprestígio com que na instituição este vector curricular é encarado, como programa sem importância de que até se pode prescindir sem perda de maior e que, por outro lado, quando existe, é mais como brincadeira, área de diversão, compensação e sublimação, operando como válvula de escape das demais e sem função autónoma nem dignidade e imprescindibilidade que eventualmente a pudessem por si justificar. Isto predomina e conduz o grupo da área a isolar-se, cortando a permeabilidade aos mais próximos. Permite, porém, mais homogeneidade interna que tende a ser aproveitada em intervenções combinadas na actividade lectiva, na escola e na comunidade envolvente, habitualmente com mobilização e eficácia que não sofrem contestação nem dos órgãos de gestão nem da generalidade dos utentes e que não têm paralelo nem fácil acompanhamento por parte de qualquer dos demais grupos docentes, o que se torna por vezes gritante quando empreendem em conjunto projectos interdisciplinares. Por outro lado, não é uniforme a assunção das potencialidade formativas deste grupo curricular, dado institucionalmente lhe virem sendo cometidas funções instrumentalizadas para garantia do clima relacional da comunidade escolar em geral, como as de extravasar tensões, sublimar agressividades e quebrar a monotonia e secura do restante currículo, através de actividades lúdicas, agonísticas ou de mera distracção e desgaste de energias, tudo isto em detrimento da sua virtualidade sensibilizadora para a descoberta da integralidade e unidade dinâmica da pessoa, através da vivência e activação do corpo próprio em todas as dimensões e posicionamentos. É, aliás, quando se projectam para esta vertente que os colegas de educação física maior estranheza e rejeição desencadeiam em redor, até quando contraditoriamente são afectivamente mais bem acolhidos porque, justamente, mais ninguém logra aqui acompanhá-los, nem menos ainda ratificá-los a partir e por dentro das outras áreas curriculares, pela razão óbvia de que não conseguem reformular-se nem reconverter-se em termos de lá poderem também integrar e desenvolver algo que deste aspecto da formação seja em concreto pertinente para os educandos. Aqui a educação física atinge o apogeu da solidão, o que é evidentemente agravado pelo facto de ser o único grupo legalmente integrado no currículo que pode por inteiro assumir-se como disciplina de despertar e que o vem tentando operar, com maior ou menor profundidade. Daqui, aliás, deriva a enorme motivação e convivialidade com que sempre labora em todas as escolas, no que constitui permanente excepção ao que ocorre na vida restante dos estabelecimentos. Fermento ignorado, quando devirá esperança?











Concluir iniciando...





Os perfis da atribuição causal do rendimento escolar pelos professores tendem a diferenciar-se notoriamente em função de várias linhas de fractura das condições de trabalho a que cada franja está sujeita. Por outro lado, as múltiplas especificações que viemos constatando permitem-nos surpreender e alinhar mais o que ocorre com os docentes na respectiva vida profissional do que nos revelam posicionamentos destes perante o fenómeno estreito das dificuldades escolares dos alunos. Este último quadro torna-se, assim, fundamentalmente sintomático e, como tal, virtualmente ilustrativo dos sonhos, frustrações, tendências, potencialidades e desânimos do professorado.



As linhas de fractura fundamentais com que nos deparámos reportam-se, primeiro, aos vectores curriculares, onde, por um lado, encontramos os colegas de letras e ciências da vertente tradicional dos programas e, perante eles, os do sector tecnológico, laboratorial e oficinal correspondentes às novas exigências científico-tecnológicas da industrialização, das economias contemporâneas mais ricas e produtivas. Aqueles preponderam em número, em estabilidade e em garantia de trabalho no ramo da própria habilitação. Estes encontram-se divididos e inseguros, a leccionar ocasionalmente, por empréstimo, programas dacolá, são em número menor e mesmo assim excedem a procura duma sociedade e cultura neste particular ultrapassada pelo legislador e pela abertura institucional nos anos que correm (1985), mormente no ambiente rural e tradicionalista da província e mais ainda no transtagano. Do mesmo tipo é uma terceira fractura, a das disciplinas de despertar que entre nós se encontram na prática reduzidas à educação física, dada a escassez doutras nos estabelecimentos a nível do país. O abandono a que se encontra votada ainda esta vertente educativa no quadro curricular e a insensibilidade geral da cultura dominante, das comunidades, dos peritos mesmo e dos órgãos do poder relativamente à função, sentido, relevância e peso que no contexto duma pedagogia equilibrada, libertadora e integralmente abrangente da personalidade dos educandos esta região curricular deveria revestir, leva ao isolamento e descaracterização deste sector, grandemente recuperado pelo sistema e vítima consequenta das mazelas dele, apenas esporadicamente conseguindo abalançar-se a tentar explorar até ao fim as respectivas potencialidades para descer ao âmago da pessoa e restabelecer-lhe a unidade dinâmica, pela redescoberta e vivência de si através da corporeidade e respectivos poderes-actos em funcionamento.



Uma seunda perspectiva de fraccionamento é a da localização da escola, fundamental a vários níveis. Em primeiro lugar, pela diferenciação que estabelece entre os corpos docentes do interior e os dos grandes centros urbanos litorais com predomínio para Lisboa e Porto, e, depois, pelo que de divergente ocorre mesmo dentro da província entre escolas isoladas em pequenas vilas e as das cidades mais notórias, mormente as capitais de distrito. Dada a tendência geral do professorado de fugir para as grandes metrópoles, por aproximações sucessivas, os corpos docentes das escolas rurais são os mais carenciados em habilitações, experiência e estabilidade, o que redunda em prejuízo da eficiência pedagógica, desenraizamento e ignorância dos alunos e respectivas comunidades, bem como em indisponibilidade para empenhar-se por inteiro e convictamente nas tarefas pedagógicas. Por outro lado, isto conduz a que os corpos docentes do interior sejam de dominantes etárias nas casas dos vinte e trinta anos, o que os diferencia largamente dos dos grandes centros em que predominam os colegas efectivos definitivamente fixos no estabelecimento até à reforma, constituindo o grosso do sector. Ora, se estes oferecem maturidade, segurança e experiência acumulada, aqueles, ao invés, acentuam a capacidade de iniciativa e o empenho nos inovamentoe e projectos de pesquisa com os educandos e o meio. Por outro lado ainda, as escolas do interior são em regra de dimensão reduzida relativamente às lisboetas ou portuenses, o que permite e garante relações pedagógicas mais próximas e íntimas, o cultivo dum clima afectivo amistoso, hospitaleiro para estes estranhos que são os professores que lá vão cair e todos os anos em alta percentagem mudam. Aqui não há as tensões e entrechoques, os protestos estudantis que periodicamente estalam no anonimato massificado dos estabelecimentos das grandes urbes. Para esta diferenciação muito contribui ainda o forte investimento na escolaridade como meio de promoção que em geral as comunidades e os estudantes transtaganos e do interior protagonizam, o que os leva a encararem de modo tendencialmente positivo toda a experiência escolar, gerando solidariedades e cumplicidades sadias entre docentes e discentes que são impensáveis no cosmopolitismo dos grandes centros.



O fraccionamento por escalões etários do professorado confirma a liderança do processo escolar, no que respeita aos modos de pensar e agir dominantes, pelos trintaneiros, apoiados de perto pelos vintenários, sendo praticamente irrelevante e cheia de ambiguidades, incertezas e indefinições a posição dos poucos colegas de escalões mais idosos, nestas escolas de província. Outra seria obviamente a situação em escolas de preferência e fixação duradoira dos docentes, nas grandes cidades litorais, em virtude da hegemonia aí incontestável dos mais velhos e estabilizados definitivamente, mais distantes dos educandos, menos idealistas, mais seguros, informados e eficientes.



Onde todos se tendem a encontrar sem as fracturas dos condicionalismos diferentes é na adesão generalizada à profissão, dado universal entre nós igualmente confirmado de forma esmagadora. Por muito que os sacrifiquem as carências, imposições e inseguranças de toda a ordem, os professores em geral acabam sendo-o por vocação e dedicadamente. Isto é das revelações mais significativas e inesperadas que a análise aqui põe a nu, dado que uma parte substancial dos colegas integrantes dos corpos docentes das escolas alentejanas, bem como das Beiras Alta e Baixa e de Trás-os-Montes, são-no com habilitação meramente suficiente, o que lhes não dá garantias laborais de tipo nenhum, levando-os em geral a terem de procurar, mais dia, menos dia, outra via profissional. Pois nem assim o indicador dos inquiridos nem quanto do contacto directo com oss colegas no terreno recolhemos apontam qualquer inflexão quanto a este gosto generalizado pela docência que a todo o professorado finalmente unifica. Tal é, por isto mesmo, um dos maiores motivos de confiança no porvir da educação entre nós. Com efeito, quando, apesar de todas as adversidades e mazelas nos diminuem e vitimam, deparamos com este pequeno resto no íntimo de cada um, tão resistente e tão fundamental para a qualidade e desenvolvimento do labor pedagógico no País como em toda a parte, então a esperança não poderá morrer e a confiança de que o tempo fermente a massa deverá renascer, segura de que realistamente assenta numa pedra angular bastantemente poderosa para garantir a aposta no porvir. O professor poderá obrigar a sair das próprias mãos, em grande parte, outro amanhã. Empenhado em gerá-lo a contento, resta melhorar-lhe permanentemente as condições, criar novos recursos. E a humanidade vindoira poderá ser inesperada, mais à medida do sonho feito realidade.





FIM