LONGO SONHO DE BEM-QUERER

 

 

 

Chega

 

Todo o amor é um sonho

Para ter ao pé.

Chega, se o disponho,

Para o ser que se é.

Parecerá louco,

Mas eu sou tão pouco!...

 

 

Perfeito

 

Não é o que é perfeito,

Da perfeição no pendor,

Mas o imperfeito

Que precisa de amor.

 

O perfeito, de acabado,

Não tem outro lado.

 

Ora, no amor, o que fito

É sempre o rosto inatingível do Infinito.

 

 

Modo

 

Um amor é sempre um modo

De viver e de sentir,

Ponto de vista do engodo

De mais elevado eu ir,

 

De ir um pouco mais ao largo.

Enquanto as pedras eu brito

Da vida que tenho a cargo,

Descubro nele o Infinito

 

E eis, além de meus palpites,

Horizontes sem limites.

 

 

Alegre

 

De novo de amor alegre,

És aquilo que eu respiro,

Teu halo que em mim integre

De maravilha e retiro,

Antes que ele se me finde

Em redor no ar que ele alinde.

 

A minha fresca vontade

De me viver te vivendo

É uma tessitura que há-de

Ser a vida discorrendo,

É a natureza do ser,

É Deus nisto a acontecer.

 

Talvez se eu à natureza

Pedir muito, muito, muito,

Não seja da morte a presa,

Tal fogo-fátuo gratuito:

Violento a morte em seguida,

Rasgo a fresta para a Vida.

 

 

Declaração

 

Apenas o inexperiente

Faz declaração formal.

Para a mulher, logo crente

De que é amada sem igual,

Olhando os cachos da vinha,

É aquilo que ela adivinha.

 

O sonho no entremostrado

É que é de além o chamado.

 

 

Salta

 

Para o amor,

Horas são meses,

Dias são anos.

E, com fervor,

Salta os reveses,

Salta os enganos:

 

Qualquer ausência,

Pequena grade,

Dura, na essência,

A eternidade.

 

 

Perdura

 

Quando o amor é verdadeiro,

Sem um estímulo embora,

Perdura pelo carreiro,

Nunca mais se vai embora.

 

Entre o raio, a trovoada,

O furacão mais sanhudo,

O amor não exige nada,

Todavia espera tudo.

 

 

Intervalos

 

É o amor uma comédia

Em que os actos são mais curtos

E os intervalos, compridos.

Como ocupar a intermédia

Porção de tempo entre os surtos,

Interregnos esquecidos,

A não ser com a magia

Do que empresta a fantasia?

 

 

Rumo

 

Movem-se os amantes

Rumo aos simulacros

Dos entes amados

Para, por instantes,

Falar com os sacros

Disfarces trajados...

 

- Aqui só há o zero

Quando o Infindo espero.

 

 

Imune

 

O amor, seja por quem for

Como em quaisquer circunstâncias,

Devia imune se impor

De culpa, atrito ou ganâncias.

 

Quando amamos, para o ar

É largada uma energia

Capaz de contagiar

Gente que antes nem se via,

 

De toda a parte do mundo,

Transmudando indecisões

Deste planeta infecundo

Em sementeira de acções.

 

 

Total

 

O amor total pode ser

O tímido beijo além

Na carruagem que vem

No derradeiro correr

 

Dum comboio que não sabe

Que o mundo inteiro ali cabe

 

Num beijo de nada, fundo,

Tanto que ali funda o mundo.

 

 

Viável

 

O amor mora sempre além

Do que é viável entender.

Não o comanda ninguém,

Porém forçado também

Ninguém lhe há-de obedecer.

 

Para onde a escolha incline

É que é o que a mim me define.

 

 

Dom

 

É o amor aquele dom

De nos sentir pequeninos,

Dependentes e sem chão,

Ao acaso dos destinos.

 

De nós próprios nos afasta

E do mundo, aproximando

Cada qual da melhor casta

De seu íntimo, trepando

 

Ao que de melhor tiver,

Da meta para viver,

 

Quase à fronteira dos céus

Quase à razão que é de Deus.

 

 

Começa

 

Pelo amor começa o amor,

É o céu criado primeiro.

Paixão é mero fulgor

Mensurável, corriqueiro,

Explicável pela ciência

Da atracção, em consequência.

 

Um amor é o mar profundo,

Aqui bem perto de nós,

Posso-lhe chegar ao fundo

Na minha casca de noz,

É só navegar por dentro

Mais e mais perto do centro.

 

 

Jovens

 

Os jovens de meu país

Procuram jovens ideais.

Com menos que tal matiz

São desesperos totais.

 

Não-ideais vão aturar,

Namorá-los e casá-los,

Amar até, se calhar,

Mas doerão sempre os calos

 

Dum anjo que não desceu

Ou dum príncipe encantado

Que não veio lá do céu

Para lhes findar ao lado.

 

E sonham secretamente

Que inda está para chegar

Atrasado certamente

Um bocadinho ao altar.

 

 

Fogão

 

Não há nada neste mundo

Senão o fogão caseiro,

Amor junto dele fundo,

Arte em redor num viveiro,

E eis a vida interessante,

Poética e deslumbrante.

 

Arte e amor, as expressões

Supremas da vida aviada,

Completam-se em tais talhões,

Fora deles tudo é nada.

Um ao outro as mãos se dão,

Ao Céu nos puxam do chão.

 

 

Bem

 

O amor é um bem, dividido

Embora em milhões de partes

Sem temer ser exaurido.

Se às pessoas o repartes,

 

Quanto mais nós o ali dermos

Mais nós o receberemos,

Numa progressão sem termos,

Geométrica, que entendemos

 

Que será, por nossa dita,

Concretamente infinita.

 

 

Amada

 

 

Na mulher amada não

Está só a mulher amada,

Mas também a da ilusão

Que o homem leva de entrada.

Quando aquela esta anulou,

Então o amor acabou.

Só no sonho que procura

Um amor eterno dura.

 

 

Harpa

 

O primeiro amor,

Harpa sem estreia,

Do peito fervor,

Mal vagido ameia.

 

É um amor-senão,

Um amor-mania,

Amor-religião,

Religião-poesia.

 

O desmemoriado

Desmente o que creu,

Que esperou toldado

Expulso do céu.

 

Pois não se envergonhe

Do religioso

Respeito que sonhe

Seu primevo gozo.

 

Homem ante a meta

Todo ele é poeta.

 

 

Como

 

Ama uma mulher

Como se a odiasses.

E odeia-a, quenquer,

Tal se a tu amasses.

 

Pois é o que não é

E não é quanto é:

É o finito infindo

Pelo Infinito indo...

 

 

Pequenos

 

É só nos pequenos gestos

Que as grandes transformações

Ancoram os seus aprestos.

 

Como é sempre ao pé de nós,

Não longe, como supões,

Que mora quem ata os nós

 

Do que pode, em nosso chão,

Germinar a redenção.

 

 

Náufrago

 

Todo o homem tem um sítio

Onde se sente a afundar.

Ninguém vê, portanto omite-o,

Não vê náufrago a salvar.

 

Sabemos estar à beira

De contornar este abismo

Quando alguém de nós se abeira

E, perante o cataclismo,

 

Quanto imita o complicado,

Nos mostra, por fim, que a vida

É um desconcertante dado

Porque é simples sem medida.

 

 

Bocadinhos

 

Os bocadinhos do amor

Para sempre ficarão

Dentro em nosso coração.

A vida ganha o teor

Através destes momentos

Únicos entre os eventos.

 

Se há na vida o que consagres,

Estes serão os milagres.

 

 

Sempre

 

Precisamos de ter fé

Em que podemos mudar

Para um mundo pôr de pé

Sempre, sempre a melhorar.

 

Se o sonho devém real,

Precisaremos de imagens

De sofrer como sinal

De triunfos nas miragens,

 

Mas mais ainda de esforço,

De labor que é repetido

Para ir além do escorço

Até ao cume atingido.

 

 

Caminhos

 

Na vida todos seguimos

Por caminhos diferentes,

Pelos mais difíceis imos,

Às vezes, por entre as gentes.

 

Mas no fim o que é importante

É se nos levam ou não

A bom porto ao fim distante

Do sonho nosso pendão.

 

 

Tranca

 

É o amor quem, obcecado,

Convida o contagiado

 

A enfrentar a tranca morta,

Dia a dia, duma porta.

 

Basta-lhe ao aventureiro

Adivinhar que o tesoiro

Continua a salvo, inteiro,

Intramuros, mina de oiro,

 

E todo o mal que sofrer

É um bom agoiro qualquer,

 

Um não prometendo um sim,

- Uma esperança sem fim.

 

 

Problema

 

O problema da utopia

É devir religião:

Quando a fé ganha magia,

Os pés soltam-se do chão.

 

A partir deste momento

Solta-se do inferno o vento,

 

Arrasa tudo o que encontra:

O mundo é do caos montra.

 

“Que é que vocês têm de grande?

Nada! Nada que os comande!”

 

- Grita o fanático em cena

E arrasa a vida terrena.

 

Ao fim, nem sonho nem nada:

Só há buracos na estrada.

 

Foi assim nas religiões,

É assim nas revoluções...

 

- Quem de vez ensina então

A respeitarmos o chão?