LONGOS RECANTOS IRREGULARES

 

 

 

Sorriso

 

Qualquer ânsia

Dum encontro nos furta

As vivências boas.

Ora, o sorriso é que é a distância

Mais curta

Entre duas pessoas.

 

 

Agarradas

 

As casas agarradas às ladeiras

Pelas unhas,

Em cunhas afiadas, em cunhas...

E tantas maneiras

De aviar o mesmo!

Tudo a esmo

Ou antes com o jeito aconchegado

De quem tem o amor ao lado.

E mais nada numa vida

Onde cada dia é mesmo a despedida.

 

Todavia, o que dali ameia

É mesmo de vida uma mancheia.

 

 

Abrandar

 

Tanto a correr

Por aí a acelerar

Andam

Que às vezes só conseguem perceber

Que conseguem abrandar

Quando abrandam!

 

 

Fracassos

 

Fracassos em cadeia,

Quando se encaram bem,

Analisam, criticam,

São mais que o fado que contra nós ameia:

Também

O carácter edificam.

 

A ciência

É a paciência

Que convém,

Toda a persistência...

- E é logo a saída um pouco mais além.

 

 

História

 

Muitas vezes esta é a história.

Ele não quer a outra, quer-te a ti,

A miúda que ele tem na memória.

Mas tu desapareceste por aí,

Afogada em desgosto,

Afogada em frenesi,

Sei lá bem em que mais...

 

Quase aposto

Que, afinal,

Dentre todas as tais

Tu és eternamente a tal.

 

Em todas as janelas

Ele anda à procura de ti nelas.

 

 

Demora

 

Maravilha-nos uma estrela.

Será da demora

De algum dia chegarmos a ela?

É que sempre a meta mais difícil se revela

A mais compensadora.

É uma misteriosa magia

Espalhada no dia-a-dia.

 

 

Bilhete

 

Trabalho árduo,

Disciplina

- O bilhete da fuga à pobreza.

 

Guardo-o

Na gabardina

De tudo o que se preza.

 

Quem quer, porém, trabalhar

E não pode?

Porque não partilhar

Mesmo o pouco que nos acode?

 

Porque é que o privilegiado,

O mais capaz,

Pouco ou nada faz

Pelo carenciado?

 

Porque é que não dá o rico

Nem de migalha

Um salpico

Mesmo a quem trabalha?

 

 

Verdadeiro

 

Verdadeiro amigo não é o que aparece

Como os mais

Na hora da dificuldade.

 

É o que aprecia a quermesse

Da nossa felicidade,

Que a celebra com arroubos tais

E tão gentis

Que o alegram mesmo quando não está feliz.

 

 

Perdoes

 

A não ser que a ti próprio te perdoes,

Irás continuar a fugir.

Does vida além o que does,

Jamais o perdão irás conseguir.

Nunca haverá lugar então

A qualquer reconversão.

 

A fuga,

Quanto mais o passo

Estuga,

Mais de espera teu compasso

Atrasa.

Ora, isto é o que em todo o espaço,

A vida te arrasa.

 

 

Precipício

 

Que bela flor

À beira do precipício

É o amor!

Quanta coragem

Desde o início

É preciso ter

Na viagem

Para a ir colher!

 

Quantos tombam

No abismo

E, do amor ao sismo,

A vida inteira arrombam!

 

 

 

Só o amor

Dá sentido e paz.

E dá valor,

Após,

À vida que faz

Cada um de nós.

 

 

Agora

 

Se quiser amar alguém,

Ame agora

E sem demora,

Que ninguém

Sabe o que irá produzir

O momento a seguir.

 

 

Varrendo

 

Varrendo dos dias qualquer

Escombro,

Uma mulher

Com a cabeça em teu ombro

Basta para a vida valer.

 

É uma cena

Bem pequena?

Pode ser...

- Mas tudo então vale a pena!

 

 

Bastante

 

Ao amor, o bastante jamais se lhe afigura

Bastante, jamais:

Todo o amor procura

Obrigatoriamente mais.

 

Queira ou não queira, no amor concito

Breve,

Ao de leve,

O Infinito.

 

 

Abdicar

 

Amar não requer

Reciprocidade.

É abdicar de si quenquer

E tornar-se para alguém

A fonte donde provém

De verdade

Todo o Bem.

 

 

Ocupa

 

Quem ama,

Se o amor lhe ocupa o centro,

É sempre ele mesmo, proclama.

Em si mesmo também,

Mesmo sem ninguém

Dentro.

 

 

Culpa

 

Não é de homens nem mulheres

A culpa do que concito

Com vigor:

Na mesa ao pôr os talheres,

Metemos sempre o Infinito

No amor.

 

 

Erro

 

O erro que tanto autocrata comete:

Só,

Na grandeza sombria do topete,

Subestima o homem lá em baixo no pó.

De tão absorto na própria vaidade,

Perdeu a oportunidade.

 

 

Atira-te

 

Tu és solteiro,

Ela é solteira

E a vida é curta.

Atira-te inteiro,

Logo à primeira,

De cabeça!

 

Furta a vida, furta,

Depressa!

 

 

Perda

 

Depois da perda dum filho

Sempre a mãe fica assombrada

Pela quebra do cadilho.

E nunca mais tem morada

Vivida

Para o resto da vida.

 

 

Quebrar-te

 

Estendi os braços,

Peguei-te ao colo,

Tão pequenina que em pedaços

Podias quebrar-te até ao miolo.

 

Minha tristeza desapareceu:

De ti precisava mais eu, enfim,

Que tu, caída do céu,

De mim.

 

 

Creste

 

Quem viveu pela verdade

Norteado,

Se creste no que aí viveu,

Ao ter-te depois falhado,

O que tal em ti degrade

Não é a cautela que te cresceu,

É que, à berma da estrada

Te abandonou sem nada.

 

É um vazio, é mais que pouco,

E quase te deixa louco.

 

 

Guião

 

Eis o guião,

Agrade ou não agrade

À caminhada:

Em pequenos, tudo tem o dobro da dimensão,

Em adultos, tudo fica pela metade

E, no termo da velhice, em nada.

 

 

Pior

 

A vida é ganha

No suor

Do que a trabalha

E o pior momento da campanha

É aguardar o alvor

Na manhã da batalha.

 

 

Sonhos

 

Ai que saudade

Da idade

Do sonho!

Como eles eram grandiosos

E milagrosos

No meio do mundo medonho!

Onde foram parar todos

Aqueles sonhos de bodos

De que já não disponho?

Que é que aconteceu?

Ou serei eu

Que já nem a mim me proponho?

Ou,

Se calhar já nem que sou

Me suponho...

 

 

Entrar

 

O céu é a linha do horizonte,

Tão fascinante

Que lhe armo permanentemente a ponte

Para ao longe entrar dentro de mim

Logo adiante.

 

Assim,

Quanto mais longínquo o longe

Mais perto o aperto,

De meu íntimo feito monge

A cultivar, fértil, o deserto.

 

Quanto mais longe o longe estiver

E mais perto de mim os pomos

Lhe colher,

Mais sou quem sou

No rumo em que vou,

Mais somos quem somos.

 

 

Nunca

 

Amar é nunca dizer adeus

Porque se diz adeus a tudo

Em nome do amor, o deus

Que, já sendo, ainda não sou, sobretudo,

De espanto tornado mudo.

 

E assim rompo com o mundo

E, sem nunca voltar atrás,

Volto ao princípio, jucundo,

A ver do que sou capaz.

 

E tudo perenemente recomeça,

Peça a peça.

 

O fito

É o Amor Infinito.

 

 

Fatal

 

O destino

É onde chegarão,

Sem tino,

A falta de sentido e orientação.

Sendo fatal,

Não sou eu, afinal.

 

Destino e liberdade

Não são contrários:

Chegar a um lugar entre vários

Pode ser uma escolha de vontade:

Não é inteiramente fatal a fatalidade.

 

Os malogrados esforços que envidam

Quantos no trilho da vida bloqueados se empanam!

Só os sábios duvidam,

Só os ousados se enganam.

 

 

Falta

 

À falta de melhor,

Há sempre um destino que se nos impõe.

É triste ser um senhor

Que de si não dispõe.

Afinal,

Nada era fatalmente fatal...

 

 

Procuramos

 

Procuramos tanto entre as casas

Os que nos tornam infelizes,

Os que não são asas

Nem raízes!

Enquanto ao lado,

Ignorado,

Nos acompanha, paciente,

Quem, entre a anónima gente,

De nós, afinal, toma cuidado.

 

 

Praias

 

Quantos se não reconhecem

Na história deles, nos espaços

Nem nos laços!

A vida deviam ser praias que aquecem

Onde o mundo inteiro se irmana

Num interminável fim-de-semana.

 

Nunca devia findar

Com tanto mundo sem lar.

 

 

Costas

 

Se memória e paixão se desencontram,

De costas de vez voltadas,

Perdidos nós entre os dois rumos das estradas,

Que bandidos nos encontram

Nas encruzilhadas?

 

Memória para um lado, para o outro o coração

Sem as camadas que aquela lhe der,

Então,

Quenquer,

Por mais que continue a viver,

Não é viver, não,

Principiou a morrer.

 

Dividido

Entre cada lado,

Desencadeou a desintegração:

É um cadáver iludido,

É um cadáver adiado,

Morto-vivo ainda a pisar o chão.

 

 

Matriz

 

A forma como gostam de nós

E como nós gostamos deles

É a matriz, de pais a avós,

De quanto amor vida fora interpeles.

 

Procuramos e procuramos

Vezes sem conta, a buscar

Quem melhor reproduza os tramos

De quem nos é familiar.

 

E talvez seja o estranho

Quem melhor

Nos interpele para o amor

Com ganho:

Vira-me do avesso

E aí eu cresço.

 

 

Parte

 

O amor é assim:

De surpresa em surpresa,

Passa a ser, com certeza,

A melhor parte de mim.

 

Eu e tu, após,

Sejam quais forem os vendavais,

Passamos a ser, cada vez mais,

Nós.

 

 

Escolhemos

 

Entre estar só

Ou ir bem acompanhado,

Escolho - mete dó! –

Por tanto ter preguiçado,

Ficar mal acompanhado.

 

Pior do que estar sozinho

É viver rodeado

De quem nos dá tanto carinho

E sentimo-nos sempre perto

De andarmos sozinhos no deserto.

 

 

Melhor

 

Melhor que dormir com alguém

É sonhar com ela

Sonhos que costure à janela

Comigo também.

 

E apaixonar-me, a seguir,

Ao vê-la a meu lado a dormir.

 

 

Forma

 

Esconder

Pode afinal acabar

Por ser

Uma forma de enganar.

 

Na política,

No negócio,

Na vida somítica

Dum amor que entrou em ócio.

 

 

Curvados

 

Da liberdade curvados pelo peso,

Quem ensinar-no-la nos há-de?

Ensinaram-nos apenas este vezo

De morrer pela liberdade.

 

Doo-me eu e tu te dóis

Neste interminável “e depois?”...

 

 

Passos

 

Toda a história sobrevivemos

E, acaso por nos enganarmos

Com os passos doutrem a darmos,

Nunca vivemos.

 

Nem viveremos:

De nosso fado o doentio tino

É apenas de nos achegarmos

Do destino.

 

Somente,

Eternamente.

 

Quem ergue a bandeira

De saltar pela outra ladeira?

 

 

Crescemos

 

Crescemos ingénuos e pobres

Mas não o percebíamos

E não invejávamos ninguém.

Dobrar o que a gente tem,

Para que é que o tu dobres?

Éramos felizes,

Tínhamos um porvir para onde íamos,

Tínhamos todos os matizes:

Teu nada onde tanto sobres,

Nosso nada a germinar raízes.

 

...Algo nos fez o juízo

Largar o paraíso.

 

 

Prenhe

 

Toda a utopia

É uma lei seca:

Ideia boa, prenhe de magia,

Mas não funciona, peca.

 

A não ser que a projectemos ao Infinito,

A atrair, interminável,

Nosso humilde, fatalmente falhado mas infatigável

Grito.

Que interminamente então nos aproxima,

Renitente,

Lá de cima.

Interminamente...

 

 

Cava

 

Tu, cava mais fundo,

Não oiças a tagarelice!

Está na terra a salvação do mundo,

Se nos dá ou não batatas,

Não na trafulhice

De políticos ou intelectuais

Pataratas,

Tão mais iguais quão mais desiguais.

 

 

Provocar

 

Amava meu marido

Mas gostava de provocar os demais,

Como num jogo sem sentido.

A gente passa, eles olham com olhos sensuais

E agrada-nos que nos olhem,

Embora com olhares que nos encolhem.

E a gente cantarola

Como num gemido

Mal contido

De amorosa rola...

 

Corremos a vida ligeira

E a gente, sem reparar, do abismo à beira.

 

 

Tínhamos

 

Não tínhamos nada

Mas éramos felizes.

Tínhamo-nos um ao outro: raízes

E estrada.

Mais nada...

 

- E éramos felizes!

 

 

Segredo

 

Todos nos olhavam,

Mas só depois ela se tornou bonita.

Segredo meu

Que eles não abarcavam:

Esta porta tem uma fechadura esquisita,

Só o amor a abriu.

 

Lembrava-me de ti,

Queria caminhar contigo para qualquer parte,

Para muito longe daqui,

Sem mais nada que acarte,

Apenas sentir, encantado,

Que estás a meu lado.

 

Ternura

Que sinto

Só de ver tua figura

De meu peito no plinto.

 

Absolutamente como crianças,

Podemos ir para uma ilha qualquer

Deitar-nos na areia,

A ouvir as danças

Do malmequer

Da lua cheia.

 

São crianças, os felizes.

Urge protegê-los,

De tão ridículos e frágeis nas matrizes,

Indefesos nos elos.

 

Connosco foi assim,

Um princípio sem fim.

 

Que faço eu,

Para onde estou a cair?

Para um abismo de Céu

Para onde não sei

Nem jamais saberei

Ir.

 

 

Vencedor

 

Da guerra o vencedor há-de demorar

Anos, fatal,

A entrar

Na vida normal.

 

Medonhos,

Estrangulam-no da guerra os cabelos:

Não sonha sonhos,

Sonha pesadelos.

 

 

Trabalho

 

O amor é um trabalho difícil e que trabalho!

Sem boda nem vestido branco,

A simplicidade dum malho

A pregar pregos, interminável,

Num banco.

 

E a gente

Na espera infindável

De que a fadiga nele se assente.

 

 

Momentos

 

Os pratos mais caros,

Conhaque, café e bolo,

Momentos raros...

E um desconsolo!

- Mas que felicidade,

Se nenhuma ali te invade?

 

Os bocados de pneu

Que te deram na prisão,

O talho de carne que, meio sandeu,

Lá cozinhaste no caldeirão,

- O que contigo partilharam,

O que com os mais partilhaste –

Que dias felizes celebraram,

Da desgraça no contraste!

 

A felicidade mora nisto,

O mais é um infecto quisto.

 

 

Sempre

 

A vida é sempre um teatro.

Da plateia,

Olhando embora por quatro,

É uma linda história o que ameia,

 

Um palco arrumado,

Actores brilhantes,

A iluminação, um sol nado

No mistério dos instantes.

 

Mas quando vamos aos bastidores,

Logo atrás da cortina,

São taliscas de tábua, trapos e fedores,

Telas inacabadas a cada esquina,

 

E nenhuma história,

Tudo escuro e sujo...

- E tudo nos leva ao bastidor sem glória

E tudo na vida é do bastidor que fujo.

 

 

Selvajarias

 

Como lograste sobreviver

Às selvajarias do mundo?

Fui muito amado na infância,

Mais do que quenquer,

E é deste amor que me inundo,

É a paz que sobrepuja qualquer ânsia.

 

É a quantidade

De amor que recebemos

A felicidade

A que nos atemos,

 

A nossa reserva

De solidez

Que interminável nos preserva

Para a próxima vez.

 

Não é do chá de malva:

- Só o amor nos salva.

 

 

Camisa

 

Podemos até viver

Numa camisa-de-forças:

É só amolecer,

Encolher

E se habituar

Ao jeito desbragado das comborças.

Podemos até sonhar...

Só que não deixa de ser

Uma camisa-de-forças qualquer.

 

 

Tormento

 

Sou um homem feliz:

Sou amado.

O maior tormento não é o que se diz:

É quando, postos de lado,

Não nos amam de raiz.

 

 

Ninho

 

Onde queria viver?

Na infância

Com a mamã, a mulher

De todo um ninho de elegância.

 

Sem mais qualquer

Ganância

De matar nem de morrer.

 

A beleza pura

Das neves da altura.

 

O ribeiro dos dias a escorrer

Ternura.

 

 

Utopia

 

Na utopia, primeiro,

Não se deve amar o dinheiro.

 

Depois, o amor onde o deponho?

No sonho.

 

Finalmente, por derradeiro,

É de arrasar o mundo inteiro.

 

- Sempre que a creia exequível

A utopia é da morte o dirigível.

 

Se apenas aproximável ao infinito

É que a tudo dou sentido com meu grito.

 

 

Vítimas

 

As vítimas prestam testemunho,

Os carrascos calam,

Desaparecem por trás do mortífero cunho,

O escuro invisível escalam,

Sem nomes nem vozes,

Tanto mais quanto mais foram atrozes.

 

Desaparecem sem deixar rasto.

Nada acerca deles

Há da notícia no repasto

A que apeles.

Onde outrora o sangue correu em rio

É agora o vazio.

 

 

Acorda

 

Acorda do sono!

Ai de quem apenas com o coro recita!

Olha que o machado que decapita

Sobrevive ao dono...

 

E em todas as épocas tropeças

Com ele a cortar cabeças.

 

 

Banho

 

Tomam banho em tinas de oiro

Cheias de leite,

O insultuoso tesoiro,

Vergonhoso deleite.

 

Vivem melhor

Com todo este despudor,

 

Mas a vida é mais repugnante,

De tão distante.

 

Não é por mor dos bens,

Da ostentação,

É por tudo pretender esmagar os ninguéns,

Romper com o rés-do-chão.

 

Ora, o que divide de vez,

Ao fim e ao cabo,

Tem sempre a tez

Do diabo.

 

 

Metro

 

Na revolução é assim:

A euforia passa depressa

E, no fim

Dos amores,

Vêm os saqueadores,

- O metro que a meça.

 

 

Quer

 

Não quer ser rico,

Tem medo de enriquecer...

Então, afinal, que quer?

Quer que outro qualquer

Com quem o prato debico

Não enriqueça

Mais que o que a ele lhe aconteça.

 

Alguém tornar-se mais rico que ele

É o que lhe arrepia a pele.

 

E é o que o faz correr

Para o mundo inteiro pobre manter.

 

 

Cosmos

 

Há todo um cosmos no mundo interior.

Quase não prestamos atenção a tal vertente,

Todos ocupados com o exterior,

Aparente.

Que admira que cada qual viva um ror

De si ausente?

 

 

Cinderelas

 

As cinderelas,

Tenho pena delas.

É que não há paraíso

Sem inferno.

Ora, quem tem juízo

Quando tudo em si é terno?

 

Elas em si nem cabem,

De tanta magia de infância

Prolongada vida fora.

Porém, não demora...

Elas, contudo, ainda não sabem,

Vivem na ignorância.

 

As cinderelas,

Tenho pena delas.

 

 

Ainda

 

Ele a telefonar,

De infeliz.

Que é que ainda pode comprar,

Que não viu, de que matiz?...

 

Já ganhou muito dinheiro,

Fortunas loucas.

Mas são sempre poucas,

Nem que fora o mundo inteiro...

 

Pode gastar, na verdade,

Um ror,

Não pode comprar a felicidade,

Não pode comprar o amor.

 

Um estudante pobre pode ter um coração,

Ele, não.

 

 

Milhões

 

Há milhões a comprar bonitas loiças

E tu com eles ali retoiças.

 

Ignoras por momentos o fastio

De teu íntimo, insuportável vazio.

 

“Onde me enganei, ao fim e ao cabo?”

- É a pergunta de que foges como do diabo.

 

 

Ordem

 

“Não vêem como nos matam,

Como a ordem do mundo nos anda a matar?

Não atam nem desatam...

Nada vos arrasa

Como nos anda a arrasar?

Pois bem, vamos experimentar

Fazê-lo em vossa casa.”

 

- E o terrorista, nosso vizinho

Do lado,

Faz-nos explodir o ninho.

 

De prevenir quem não teve o cuidado?

 

 

Pouco

 

As palavras pouco têm de comum

Com nosso íntimo fulgor,

Aí onde sou um

Comigo, com os outros, com o Cosmos e o mistério

Maior

Que o sidéreo.

Aí, nas íntimas galerias das minhas minas

Onde tento ler as sinas.

Que palavras

Para o inefável de tais lavras?

 

 

Menos

 

Na guerra, uma vida

Vale menos que uma pistola.

E julgam que está certa a medida

Que até já mentalmente nos imola!

 

A guerra é o falhanço da razão

Em encontrar a solução.

 

E até naquilo começa

A revelar como tropeça.

 

 

Gota

 

O homem deve espremer

De si o escravo

Até à última gota que tiver.

E tudo muda de travo:

Alma, roupas, o sabor dos elementos

E os pensamentos.

 

Ora, ocorre o contrário:

O homem adora ser escravo,

Em mãos e pés pregado o cravo.

Espremem então o homem do homem,

Sumário,

Até à última gota:

Quando por uma besta o tomem,

Atingiu a verdadeira cota.

 

Quando algum não aceitar esta condição,

Prestimoso,

É a maldição:

- Tornou-se extremamente perigoso.

 

 

Sapatos

 

Se o homem não for prioritário,

Então coxeia,

A vida inteira é um calvário

De vida meia:

Não há sapatos apertados,

Há pés errados.

 

 

Repente

 

O amor começa,

De repente tudo tem outra cor,

Há mais vozes, mais sons, nada tropeça

Em redor...

Não é possível compreender

Isto sequer.

 

 

Mistério

 

Quando o mistério nos atinge,

Parece que nós ficamos ausentes.

Podemos sentir tudo, nada se finge,

Podemos ser felizes, ali meio dementes,

Num cubículo estreito

Como se abarcáramos o mundo inteiro ao peito.

 

 

Comprar

 

Não se pode comprar democracia

Com petróleo e gás,

Nem ninguém a importaria

Das bananas e chocolates atrás,

Nem a proclama, convincente,

Nenhum decreto do Presidente.

 

Pessoas livres é o que se requer,

Não há democracia onde as não houver.

 

A um povo que queira ser escravo,

De democracia, nem um avo.

 

 

Apaga

 

Não se apaga o fogo com o fogo,

Mas com sabedoria:

Em água o afogo,

Com pontaria.

 

Ora, se água se incendiar,

Com que se irá o fogo apagar?

Quem a polícia policia?

Quem fará justiça

Se a justiça no crime se enguiça?

 

 

Simples

 

A gente simples é o que há

De mais indefeso.

O animal na floresta está

Mais bem protegido em seu vezo,

Do que aquela pobre gente

Do descalabro social levada na torrente.

 

 

Paisagem

 

A humanidade

Tanto pode mudar em cinco anos

Como em duzentos não mudar nada.

Paisagem, uma imensidade...

E, pelos escanos,

De escravos uma mentalidade

Bem camuflada.

 

Nada se pode restaurar

À roda da mesa de jantar.

 

Revolucionários de mesa de café

Que é que podem pôr de pé?...

 

A humanidade quer lá saber deles! Decidida,

Vive, cega e surda, a própria vida.

 

 

Medíocres

 

Não são os mais fortes que sobrevivem,

São os mais adaptáveis.

Estes, embora medíocres, que a tudo se esquivem

É que sobrevivem, incontornáveis,

E, do modo arteiro com que actuam,

A espécie humana perpetuam.

 

 

Nunca

 

Nunca, em milhares de anos,

Nada de bom foi atingido

Sobre as ruínas

Dum presente destruído.

O arcano dos arcanos

É que sempre foi requerido

A boas sinas

Um trabalho elaborado,

Lento e demorado.

 

A utopia que se nos aferra

É com paciência que lavra a terra.

 

 

Fera

 

Na ditadura,

Quando a fera descomunal foi morta,

Os pequenos monstros que dominam a figura

Do homem saltam da retorta

E revelam-se mais horrorosos

Que do grande monstro os caninos poderosos.

E ninguém tem prática da luta

Contra eles no meio da disputa.

 

 

Rios

 

Construímos pontes

Sobre os rios da ignorância,

Mas a vida tem outros horizontes:

Mudou o leito dos rios.

Que importância

Têm agora os velhos desafios?

 

 

Realidade

 

Mais que os átomos é fundamental

Do Cosmos na essência

A realidade fulcral,

Imaterial,

Da consciência.

 

 

Responsável

 

Nossa civilização

É responsável das traças

Das desgraças

Que aí vão.

 

Seríamos mais felizes

Se de vez a abandonássemos,

Retornássemos

À primeira condição,

Com os bons e maus matizes?

 

Do passado

Que jamais temos à mão

Nunca somos bons juízes:

Vemos sempre só um lado,

O da boa solução.

 

E então todo o mau caminho

Que o fez escapar do ninho?

 

 

Dizer

 

Quando alguém disser:

“Sou feliz”,

Dizer simplesmente quer:

“Tenho problemas de raiz

Que, para mim, apenas fingem

E, portanto, não me atingem.”

 

 

Tecido

 

Enamorar-se

Não é amar.

Podemo-nos enamorar

E, mal o tecido esgarce,

Odiar.

 

 

Encontre

 

A vida inteira somos a espera

De que nos encontre alguém.

Então contar-lhe-ei tudo, o fracasso e a quimera,

E a eterna pergunta: e depois que vem?

 

Uma estranha

Trouxe minha irmã para a aldeia,

Em braços,

Que a gadanha

Da morte há tempos lhe ameia

Com os derradeiros traços.

 

E lá se foi, do sino nos dobres,

Para as mansões divinas.

E a estranha enviava-me então prendas pobres

Por entre as más sinas.

 

Quando no banho um dia escorreguei,

Dela a mão desconhecida

Em que me amparei

Segurou-me a vida.

 

Apertou-me ao peito

Com ignotos gestos seus

De terno jeito:

“Meu pintainho mal afeito!”

 

- E eu vi, eu vi Deus!