RECANTO DE IRONIA E BOM-HUMOR
País
Um país é mesmo assim.
À frente marcha a bandeira,
A banda, atrás, faz chinfrim,
Os bandalhos são terceira
Fatia deste festim
E depois os bandoleiros
Aflautam o cornetim.
Os bandidos, cães rafeiros,
Fecham o cortejo, ao fim.
Pelas bermas, os papalvos
Abrem as bocas: são alvos!
Manada
Ri porque tu riste,
Chorei porque choraste,
Mais nada?
Despiste
Que baste
De sermos animais de manada.
Criança
Ser criança é aquele estado
Em que se é catapultado
Ao posto mais avançado
Duma civilização.
E, em dezoito anos de vida,
A notícia recolhida
Da Terra e de sua lida
São familiares que a dão.
Ou aquela, por acaso,
Que à televisão deu azo...
- Mais que indígena silvestre,
Criança é um extra-terrestre.
Aluno
Se um aluno me chegara
Inteiramente formado,
Inteiramente seguro,
Meu fito que semelhara?
Era a luz ter apagado,
Dar escuridão no escuro?!
Tanto mestre que refila
Será que isto é que perfila?
Abaixo
Vivemos à falsa-fé.
Onde será que não me encaixo?
É sempre bom estar de pé
Para deitar alguém abaixo?!
Engano
O amor, no engano das lavras,
Falha leiras comezinhas,
Nada partilha aos serões.
Começa em grandes palavras
Continua em palavrinhas
E termina em palavrões...
Violino
Sendo o amor sempre o lamento
Dum longínquo violino,
É o rangido violento
Das molas da cama em hino.
Vence
A umas mulheres as vence
A gentileza ou talento;
A outras, a valentia
Que contra muros convence;
A outras, moeda em aumento;
A bondade também guia;
Até mesmo a estupidez
Vence alguma alguma vez;
Por fim, o fútil estilo
Dalguma irá consegui-lo...
Tantos os trilhos do amor
São que não há contador.
Sem contar contrafacções:
Somam milhões e milhões.
Aventura
O tempo que uma aventura amorosa ganhe
Assim a perfila:
Principia no champanhe,
Finda no chá de camomila.
Sopa
À mulher que for amada
Até os cornos se perdoa,
À que não se ama nem nada,
Nem sequer a sopa boa!
Apaixonar-se
Apaixonar-se é a receita
Que, contra o tempo, usa o velho.
Tal virtude a tal se ajeita
Que jovem fica de artelho
Enquanto àquilo se aplica...
- Até que estala a pelica.
Fora
Quando por baixo estiveres
Como por fora de tudo,
Escolhas o que escolheres,
Ninguém quer tal cabeçudo.
Fanático
Se a um fanático disseres
Que sempre o queijo da Lua
Te alimenta a solidão,
Logo de prato e talheres
Desponta na tua rua
A querer tal refeição.
Nunca admite outro sentido
Em quanto for dito ou lido.
Monótono
Tão monótono há-de ser
Como o espírito dum homem
O rabo duma mulher
Onde tantos se consomem.
Estômago
Quando alguém apaixonado
Do estômago ouvir o ronco,
Corpo de alma separado,
Fim da unidade no tronco,
Toda a lírica ilusão
De imediato cai ao chão.
Nivela
Quão mais brilhante a luz for,
Mais tudo é de igual jaez:
Nivela o espírito o amor
Com qualquer estupidez.
Pedir
Carinhosa e compreensiva
É minha lista primária.
É pedir muito a uma diva
Várias vezes milionária?
Risco
“Ama os demais como a ti”?
Que grande risco lhe empresto!
Não vejo o que resta ali
Se no fundo eu me detesto.
Físico
Físico prazer do amor,
Se apenas do amor é o guia,
Nos instantes do tremor
É só curta epilepsia.
Entre
Muita gente distinguir
Entre amor e diversão
Não sabe, viajante a rir
Que crê gostar dum torrão
Apenas porque, se calhar,
Lá comeu um bom jantar.
Ópera
É tal ópera o amor,
Aborrece quem está
A seguir lento o cantor,
Mas depois voltamos lá.
Chego
Amo e chego antes da hora;
Amo ainda e chego ao fim;
Já não amo e, na demora,
Chego atrasado ao festim.
Enfim
Tanto quanto o amor é um jogo
Onde jogo o melhor ócio,
Casamento é o desafogo
De enfim ter o meu negócio.
Carta
A melhor carta de amor
Que duma mulher emana
É a que escreve com pudor
Àquele homem que ela engana.
Asneira
Um amor, na pasmaceira
De quanto dele enodoas,
Não vai passar duma asneira
Vinda de duas pessoas.
Música
O amor em música clássica
É sempre de tom maior.
Na romântica, mais básica,
Chora sempre em tom menor.
O amor moderno por guia
Tem a fraca melodia
E tão mais instrumentada
Que não se ouve quase nada.
Velame
Amor, desfraldado ao vento
O velame a todo o pano,
É o que, após o casamento,
Por norma se chama engano.
Criado
Fui criado a respeitar
Os mais velhos. Então quem,
Sendo eu mais velho do lar,
Devo agora respeitar?
Não respeito mais ninguém!
Heróico
O lado heróico do amor
É a coragem que contém,
O que, como é de supor,
É o lado imbecil também.
Estranheza
A estranheza do segredo
É porque o amor começa
Com garras de gato tredo
E depois se desvaneça,
Com o tempo decorrido,
Num rato meio comido.
Minutos
Não ser à primeira vista
Pode, mas em dez minutos
Logo a mulher faz a lista
Dum homem, dos atributos,
E se irá ou não cair
De amor por ele a seguir.
Mediocrezinhos
Alguns mediocrezinhos
Não gostam de ver mulher
Criadora de mil ninhos
Onde quer que campo houver.
Donzelas
As donzelas admiráveis
Admiro-as com o tacão
Trilhos batendo infindáveis...
E após finda a admiração.
E, na solidão da estrada,
Tudo aquilo fica em nada.
Tijolo
O amor é mesmo um tijolo:
Ou constrói teu lar num horto
Ou afunda, moído, um bolo
No rio, o teu corpo morto.
Reine
Não há paixão onde o amor
Por si próprio reine mais
Poderoso no que for
Do que a do amor que tenhais.
Sempre andamos mais dispostos
A sacrificar quenquer
Que amemos de olhos bem postos
Do que o nosso bem perder.
Mesmo que seja o repouso,
Cortar no meu? Não, não ouso!...
Ergue
Ergue o amor sempre uma ermida
Na colina onde se visse.
O amor sempre é ser vencida
A razão pela tolice.
Mesma
A vanguarda dum amor
É por norma a conveniência
E, a rectaguarda ao supor,
Vejo-lhe a mesma evidência.
Espírito
Espírito às raparigas
Dá-lhes um primeiro amor.
O rapaz, menos de intrigas,
Menos parvo é de supor
No segundo que tiver
Com uma outra qualquer.
Charco
Bebido à medida,
Um amor diverte.
Charco de bebida,
Farta o mais solerte.
Espírito
Se algum espírito aos parvos
Um amor ao fim lhes der,
Anda mas é a tirar-vos
Todo o espírito que houver.
Crédito
Um grande amor é uma conta
De crédito a levantar
Dos mil modos a que monta,
De modo que há-de chegar
Fatalmente em sua rota
O dia da bancarrota.
Importante
Menos importante é amar
Qualquer alma de mulher
Do que o corpo dela a par.
Aquela, imortal ao ser,
Hei-de ter tempo de sobra
Quando o eterno a vida cobra,
Para amá-la como for.
Mas o corpo, com que amor?...
Imprensa
Sabemos que amor existe
Pelo crime passional
Que a imprensa diária registe
Por seu bem e nosso mal.
Enganar
Num amor principiamos
Por nós a nos enganar
E por enganar findamos
Outrem que nos venha a amar.
Escolar
O escolar sempre se ocupa,
Em segredo, em qualquer acto,
Com o que a jovem preocupa
Dentro de seu internato.
Elas, do fogo ao calor,
Eles, por trás dos saberes,
Elas falarão do amor,
Eles falam das mulheres.
Morrer
O amor, da pressão
Que nele se tome,
Vai de indigestão
Morrer, não de fome.
Mentiras
Que é que foi sempre um amor
Senão a mais dolorosa
Como a mais voluptuosa
Das mentiras a propor?
Eficácia
O amor vai querer a par
Da eficácia o aparelho:
Útil ao mancebo é amar,
Quase indecoroso, ao velho.
Espécie
A espécie se compromete
Com um casal cujo amor
Um ao outro ambos remete.
Servida, vai sem pudor
Virar costas ao que ganhem
- E que então eles se amanhem!
Legítimo
Porque é legítimo amar
Sempre simultaneamente
Bach, Beethoven, Mozart
E, concomitantemente,
Infiel amar seja, a par,
Algumas contemporâneas
Marias, mesmo Betânias?
Civilizados
Os civilizados
São mais descorteses
Que quaisquer selvagens,
Já que indelicados
Podem, sem reveses
Em quaisquer clivagens,
Ser, sem ter receio,
De os rachar ao meio
As grosseiras peças
Dos corta-cabeças.
Todos
Filósofos e teólogos,
Todos eles professores,
Não passam de vãos ideólogos
A quererem ser mentores.
A certeza com que fica
O que com eles tropeça
É que bebem de igual bica:
Todos doidos da cabeça!
Gosto
Porque não gosto dos ricos?
Pela vitimização:
É sempre a perseguição
O terreno que, aos salpicos,
Salpica a conversação.
Que debicam estes bicos?
Coitados! Nem têm pão!
Vivem num mundo tão reles!
Tenho tanta pena deles!...
E tão estúpidos são
Que nem que é dar-lhes a mão
Vêem quando algo lhes tiro
Para os descalços que afiro.
Derradeiro
Porque é que o que procuramos
Sempre está no derradeiro
Lugar onde o rebuscamos?
- Porque, mal dele me abeiro
Escondido em tal lugar,
Deixo então de procurar.
Dura
A ideia feliz
De estarmos de férias
Dura, em tal cariz,
Por umas galdérias
Primeiras semanas,
Depois, só te enganas:
É a vida normal
Num lar outonal.
Alminhas
Que se veja,
Não há prendas trocadas
Nem gozo nenhum se apura.
Porque será que vão a igreja
Para ficarem aquelas alminhas ali sentadas
A levar uma descompostura?
Prefere
A turba prefere o prato
Com sabor do cozinheiro,
Da mezinha ao desacato
Do médico mais arteiro.
Eleitor
Mesmo se um eleitor jura
Que ouvir só quer a verdade,
Nenhum quer tal realidade,
Tão intragável a apura.
Estranhar
Ao lavrarmos um acordo
Com um qualquer imbecil,
Não é de estranhar que a bordo
Entrem actos que remordo
Por de imbecil serem mil.
Anda
Um homem anda na rua
Com a mulher à cabeça,
Ora vestida, ora nua,
Conforme a ordem da peça.
Sabem que é que aconteceu?
Confunde-a com um chapéu!
Não é um tolo, que o convénio
Dos sábios diz que ele é um génio...
Diante
Se pagarmos por igual,
Seremos todos iguais,
Todos diante da lei?
Podes roubar, afinal,
Se ao tribunal pagas mais
Que os mais contra ti da grei...
Se todos podem pagar,
Vence quem vencer o par.
Público
O público funcionário
Não foi feito de verdade
Para, num mundo tão vário,
Andar com velocidade.
Calmos
É o céu aquele lugar
Onde os mais calmos supões
Que acabarão por ganhar
Por inteiro as discussões.
Importo
“Não me importo de ficar
Mais velho” – diz, saboroso –
“Mas diabos levem se, a par,
Acabar ficando idoso!”
Fim
Para mim é o fim da infância
Quando o número de velas
Apresenta discrepância
Entre anos e o bolo delas.
Idade
A idade é um número apenas
Totalmente irrelevante.
Só se alguém for, nestas cenas,
A garrafa de espumante.
Velho
Quando alguém se sentir velho
Como coisa fascinante,
Quanto mais velho e revelho
Mais velho quer ser adiante.
Crescido
Que é que algum crescido alcança?
Nem sequer muda de clima!
Um crescido é uma criança
Mas com camadas por cima.
Velhos
Os velhos tempos bons eram
Porque jovens ignorantes
Fomos de quão ignorantes
São os jovens que os viveram.
Crime
Quem sofreu numa prisão
E o crime não cometeu,
Pode cometer então
O crime que não foi seu?
Tempo
Eu ao tempo descobri-o,
(A escoar-se não senti)
Todo enfatuado de brio,
À medida que o perdi.
Trejeitos
A política trasfega
Muitos trejeitos soezes:
Sempre que nela se nega
Afirma-se duas vezes.
Acaso
O facto de eu existir
Ao sabor do acaso vário
Era a tristeza sentir
Dum efeito secundário.
Menino
O menino da mamã
Protegido em real coche,
Em vez duma vida sã,
Vai viver a de fantoche.
Falecido
Um falecido, a vantagem que tiver
E desmedida
É a de não correr
Perigo de vida.
Saco
Às vezes ficamos burros,
Que é quem, podendo pensar,
Não pensa, é uma vida aos murros,
Feita saco de os levar.
Portagem
Há quem olhe para a vida
A jorrar sempre em repuxo
Como traidora avenida:
Paga portagem de luxo.
Caixote
“É bem mais forte do que eu”?!
- E tu não passas dum bicho
Que no brejo apareceu
Como um caixote de lixo?
Abandona
Aquele abandona o lar,
É do cão de estimação;
Outro vai-se divorciar,
Quer acredites ou não,
Por um motivo cimeiro:
- É por mor dum candeeiro!
Comprimido
“Comprimido cor-de-rosa
E aqui vai felicidade”
- E assim com todo o amor goza
Esta nossa Humanidade!
Mora
Por trás de cada infeliz
Mora sempre um preguiçoso,
Alguém que nunca aprendiz
É nem na dor nem no gozo.
Infantil
Ser feliz o que realiza
É infantil arqueologia.
A riqueza, no que visa,
Dela não dá nem um dia:
Não tem a moeda o perfil
De qualquer sonho infantil.
Cozinhar
“Cozinhar é fácil!”
- Andam-me a gritar.
Mas muito mais fácil
É não cozinhar...
Base
É do relacionamento
O alicerce a honestidade,
Da integridade o elemento
Mais a inteira lealdade.
É difícil encontrar
Todas as três num humano.
Qualquer cão é que as quer dar
E no-las dá sem engano.
Rir
Rir é mesmo um bom remédio,
Mesmo um tratamento inteiro,
De antibióticos nédio,
De esteróides curandeiro.
A psicose nacional
É por ele reduzida
E aplica a pomada ideal
Da alegria de seguida.
Esperto
Quem é esperto teme a fama,
Que a fama tem de pagar,
Não vá, como ao porco a grama,
Para a matança engordar.
Máquina
A máquina de lavar
Fez bem mais pela mulher
Do que todo o estrondear
Dum feminismo qualquer.
Rir
O rir é lindo, todo ele,
E o melhor de rir até,
Na risada que me impele,
É rir sem saber porquê.
Gumes
Toda a comunicação
Dois gumes implica a par:
Ligam a televisão
Para a mente desligar.
Frutos
Frutos do capitalismo,
Filhos do privilegiado,
Têm tudo com que cismo,
Nada têm do imo ao lado.
De champanhe o coração,
Têm almas de cartão.
Espanca
Aquele que quer dinheiro
De dinheiro por prazer
É da ganância o fueiro,
Espanca o mundo que houver.
Polícia
É a polícia gafanhoto,
Mas gafanhoto de farda,
Cai sobre o campo do ignoto,
Mais vale que o campo lhe arda.
Desencontrado
De desencontrado gela
Quanta vez o amor vivido:
O jovem procura a bela,
A bela, só o bom partido.
Humor
O que o bom humor integre
Quantas vezes é um tabefe!
Nada pode mais alegre
Ser que o bom humor do chefe...
Oferta
Quando alguém me oferta muito,
Procuro então descobrir
Que é que atrás do dom gratuito
Me quer tirar a seguir.
Qualquer
Qualquer homem, um qualquer,
Que esconderá na mão cheia?!
Um homem só quer viver...
Sem nenhuma grande ideia!
Tempo
Dantes havia momentos
De coração inteiro,
Agora não há tempo para os sentimentos,
Andam todos a ganhar dinheiro.
Óculos
Liberdade é, para muitos,
Óculos para macaco:
Ninguém lhe sabe os intuitos,
Logo a vendem a pataco.
Burocracia
A burocracia
Não tem convicções
Nem princípios via
Na turva mania
De tais discussões.
Manter o lugar
É que é o principal:
Como antes andar,
As mãos sempre a untar,
De luvas sapal.
Só se valoriza
A dedicação
Que a si próprio visa,
Tendo por divisa
O chefe de então.
Quem dá de comer
É do chefe a mão:
Nunca o esquecer
É que faz colher
Por dez, um milhão.
Penduram
A verdade do homem é um prego
Do qual todos penduram o chapéu.
Por isso acordam do falso sossego
Todos de cabeça ao léu.
Costumes
Costumes da ditadura:
Servir, curvar-se, saber a quem engraxar,
De que se rir a tempo, antes da purga que o depura,
Quem cumprimentar
E a quem se meça
Ao acenar
Ligeiramente com a cabeça.
Para isto, tudo, então,
Calcular
Com antecipação:
Fica ao lado do Presidente
Ou à distância,
É, dentre os eminentes um eminente
Ou uma insignificância?...
Trepam
As revoluções são assim:
Os bandidos trepam ao topo,
Traficantes e cambistas alcançam, por fim,
O poder, seu eterno escopo,
Findamos rodeados de inimigos rapinantes
Bem pior que dantes,
Animais entre animais,
Entregues aos chacais.
Para quem tirámos as castanhas
Do lume?
Tudo se resume
Aos que, sem escrúpulos, são tudo manhas...
Tínhamos um outro sonho em mente
E, afinal, de repente...
Distinguir
Do País o imenso átrio
Um critério de distinguir atento rege-o:
- Um, solitário, combate pelo solo pátrio,
Todos os mais, pelo privilégio.
Pena
Ninguém está disposto a arrepender-se,
Dá muito trabalho...
Cada qual só tem pena do que dele verse,
De mais ninguém: perante mim, só eu valho.
Quem quiser conversar que converse,
Que lá pegar no malho
Que de seu sagrado eu alguém disperse,
Não, nem um negalho!
Correm
Os idealistas
Correm aos comícios
A aspirar o cheiro da liberdade,
Enquanto, por trás, os patrícios
Realistas
(Que são gente
Que se tem por muito inteligente)
Partilham à vontade,
E sempre em nome da paz,
O petróleo e o gás...
Porque é que sonhar é tão difícil, tão,
E manter ao mesmo tempo os pés no chão?
Causa
Os homens não querem apenas viver,
Mas viver para um ideal,
Uma causa grandiosa qualquer
Que lhes sirva de fanal.
É por este recanto
Que, de resto,
Faz todo o sentido
Que seja mais fácil encontrar um santo
Que um homem honesto
E bem sucedido.
Procuram
As gentes procuram o amor?
Os homens julgam que a mulher é uma presa
De valor,
De guerra um troféu,
Vítima que pretendem ilesa,
Sem labéu,
E eles são o caçador.
As mulheres procuram o príncipe montado,
Não num cavalo branco,
Mas num saco de oiro, escarrapachado
Dono do estanco.
De idade indeterminada,
Até um velho imundo,
Não importa nada!
É o cheiro
Do dinheiro
Que rege o mundo.
Venderão
Se o mundo for feito num oito,
Tudo venderão a pataco:
A uns irão dar o biscoito,
Aos mais, do biscoito o buraco.
Matou
Alguém matou um cão,
Mostraram-no na internet,
Fica o mundo inteiro numa enorme convulsão.
Morreram dezassete
Emigrantes queimados num vagão,
Estrangeiros, como lhes compete:
“Morreram estes” – desinteressam-se – “ outros virão...”
E cada dia cena idêntica se repete.
Será que vivemos mesmo num mundo-cão?!
Cem
Quem tem cem carneiros
Tem razão.
Não a tem a meias com outros meeiros,
Tem sempre inteira, inteira razão.
Quem diz cem diz um milhão
Ou outros números parceiros...
Segundo
Se viver segundo o coração,
Sou anormal,
Se contar a verdade, não,
Não acreditam em tal.
Quando mentimos,
Então está bem, anuímos!
Monte
A vida não é um navio branco
De brancas velas,
É um monte de bosta no estanco,
A enganar com balelas
Quem ali se abate,
Uma vez que o enrola em cor de chocolate.
Burro
Burro é quem,
Entre dois fardos de palha,
Morre à fome porque não vê bem
Qual escolher que lhe valha.
Indício
Um indício bem seguro
De que há vida inteligente
Cosmos além é que apuro
Que ninguém quebrou o muro
De nos contactar, demente.
- Não há dúvida, asseguro,
Que é de quem é inteligente!
Noutras
A vida noutras estrelas
Poderá ter-se extinguido
Porque os cientistas delas,
Mais avançados que os nossos,
Já devem ter conseguido
Pulverizar-lhes os ossos.
Encontrar
Na pessoa inteligente
Encontrar felicidade
É duma tal raridade
Que é um milagre, se presente.
Momentos
Há dois momentos na vida,
Criança e velho, em que os tons
Da felicidade haurida
São da caixa de bombons.
Medo
Felizes, só por instantes.
Temos medo de viver
Um grande amor que vier
Bater às portas uivantes.
Imos muito habituados
Mais a sofrer do que a ser
Felizes em muitos lados.
Então, pois, toca a sofrer!
Idiota
Procuro por todo o lado
Tudo de que sou raiz.
Só o idiota chapado
É totalmente feliz.
Vantagem
Felicidade vantagem
Sobre o dinheiro tem grada:
Seja qual for a triagem,
Ninguém a pede emprestada.
Separa
Para haver tranquilidade,
Separa sexo de amor.
Romântico amor se invade
Nossa vida, é um terror.
Há-de nos fazer sofrer.
Mais sossegado viver,
Só com tudo separado
...Mesmo se sou já um finado!
Teorias
Terás antes de ter filhos
Seis teorias de os tratar.
Seis filhos após, sarilhos
Terás sem teoria a par.
Implica
Se receber um presente
Implica retribuição,
Não diverte mais a gente,
É negócio de leilão.
Mais
As pessoas importantes
São mais que tudo, na prática,
Mais mesmo do que os constantes
Pontapés pela gramática.
Gato
Diz um gato a outro gato,
Atencioso e com desvelo:
“Vais adorar este fato,
Tudo é feito dum novelo!”
Cão
Mata o caçador um pato
E o cão corre sobre o lago
A trazer-lho de imediato.
Ao lado o amigo, ali gago,
Comenta o feito espantoso:
“Eu julgo que não divago:
O teu cão finda, com gozo,
De caminhar sobre as águas!
É mesmo miraculoso!”
“Nem por isso... As patas trago-as
Dele bem secas, a par,
Que ele não sabe nadar!”
Ganha
É assim que a vida se ganha:
Abandonar a mulher
De nossa vida tacanha
Para ir sobreviver
A tantos euros por mês...
- Mas que enorme estupidez!