RUA DA TOCA




Bartolomeu Valente




Lisboa, 2012











Prefácio



Rua da Toca é uma ficção onde se conjugam enlevos de infãncia com imaginários efabuladores, coloridos etnográficos em linguagens, crendices e superstições, lado a lado com alegorias de mistérios eternos do Homem, numa trama entrelaçada inextricável, para ser saboreada com o coração.


E é uma utopia dum homem e dum mundo novo, com itinerários pedagógicos para lá chegar, a desafiar o pedagogo que dormita dentro de cada um e de todo um país.


E são muitas vozes conjugadas, cada qual com seu jeito e a dar conta dum feitio, vertentes combinadas a ilustrar uma única terra-mãe, a aldeia mítica de S. Pedro.


E é um longo caminho através de encadeadas gerações, desde ignotos ancestrais até ao presente.


Lugarejo que afinal são todos os lugarejos, húmus natal que afinal ecoa em todos os Natais, S. Pedro é no fim de contas Portugal e todos os portugais que há no mundo, já que deles este é de raiz entretecido e deveras tanto mais quanto mais o ignora.


Rua da Toca é a terra inteira. E o coração dela a pulsar, de revelação em revelação. É um amanhã que desponta, encantatório e fluído, como todo o sonho.







1 – Ladrões


- Roubaro-me um tamanco! Ladrões! Roubaro-me um tamanco! - e o Marcadas baloiçava instável como pipa de carrascão livre dos barrotes, no meio do carreiro irregular, nos matagais de Costa-Má.

Era à sonoite, o lusco-fusco adensava-se com as nuvens carregadas, puxadas pela invernia do lado do Furadouro. Barafustava sozinho, parado a meio da lamiça, um tamanco de pau erguido ameaçadoramente na mão incerta, acima da cabeça, o outro calçado no pé, cinzento dos matacões de terra grudada às bandas e em riba, de modo que nem se distinguia onde era a esbranquiçada madeira dura em que o pé apoiava e onde a tira preta dobrável que o recobria, lá onde os dedos se encaixavam protegidamente. Aliás, as patorras encoiradas de terrume semelhavam tanto pela sujeira os tamancos que mais estes pareciam os cascos daquelas do que um apêndice desmontável e, pior ainda, roubável delas.


O Marcadas estava a cair de bêbado. Terminara a sagrada peregrinação das tebernas, um copo de três tinto no ti'António, outro no Xará, meta na conta, quando vender as batatas hei-de-lho pagar... No carreiro, os córregos da chuva talharam fendas, com pedras roladas a descoberto, entremeadas de raízes dos pinheiros adjacentes. Num ou noutro socalco encharcaram os torrões arrancados que para ali haviam ido de arrasto, formando, agora que as águas escoaram, lameiros perigosos para quem tenha o equilíbrio toldado pelo vinho.


- Roubaro-me um tamanco! Ladrões! Roubaro-me um tamanco! - a voz roufenha repete enfuriada a ladainha, as pernas abertas a tentar escorar o corpo que baloiça penosamente.


Continua com um tamanco na mão e outro no pé. Desequilibra-se, bate com a biqueira de pau na cara. Olha-a, espantado, tentando firmar a vista desfocada, raiada de sangue.


- Roubaro-me o outro. Ladrões! Ladrões!


Ao forçar a postura, descaiu, o pé descalço deu uma sonora topada num pedregulho de granito, ali meio a descoberto, à ilharga do carreiro. Doeu, mesmo anestesiado de álcool doeu. Dobrou-se para o dedo magoado. Encarou o soco do outro pé, furibundo:


- Ah! Ladrões! Só aqui tenho este, roubaro-me um tamanco!


A noite cerrou de vez, entrementes. Ainda se ouvia um melro tardio a repenicar o toque de recolher lá para os baixos do Merouço. A correnteza do ribeiro marulhava agreste umas centenas de metros abaixo, despenhando-se pelas pedras dum açude. Coaxavam algumas rãs, ainda vagas de frialdade. O Marcadas, nem para trás nem para diante. O casebre não era longe, mas o inacreditável daquele mistério do tamanco roubado tolhia-lhe definitivamente o passo.


Vindo dos moinhos de Fundões, um saco de farinha ao ombro, achegava-se lento e firme o Nino, o jornaleiro sem eira nem beira, hoje a mando dos do Escondidinho. Ao vago do luar que despontava meio enfarruscado, apercebeu-se da quezília do Marcadas. Descansou o saco no cômoro, por sobre umas urgueiras e carquejas que o coroavam. Passou as costas da manápula pelas bagas da testa e brincou:


- Isso é branco ou tinto? A carga é mais pesada q'a minha, um home num se inquilibra! Eh, c'um carago!


- Ladrões! Roubaro-me um tamanco! - torna o outro, na cisma avinhada.


- Num roubaro nada, ó ti'Marcadas! Tão aí os dois. Bá mas é p'rà choupana. Quer que o ajude?

- Roubaro-me um tamanco. Ladrões!


E o Nino, cheio de riso e paciência:


- Olhe que não. Atão num bê? Tá um aí no pé e o outro na mão.

- No pé... Pois – e tentava enxergá-lo atabalhoadamente. - Pois. Mas é só este. Roubaro-me o outro. Ladrões!


- O outro tá aqui na mão, olhe – insistia o Nino.


- Na mão... Mas é só este, falta o outro. Roubaro-mo, ladrões!


Não havia maneira. Enquanto assentava de novo o saco de farinha no lombo dobrado, o Nino ainda recomendou:


- Bá p'ra casa, ti'Marcadas, bá p'ra casa. Olhe que quando lá chigar tamém lá tão os tamancos. Bá p'ra casa!


E ali o deixou especado, entregue ao insolúvel mistério. Levantou-se um vendaval húmido a ramalhar as copas do pinhal, os pingos da chuva tamborilavam grossos no chão. O marulho cadenciado das rameiras era um mar bravio. Nino apertou o passo, tentando escapar à próxima saraivada que se prenunciava. Do piso enlameado já nada enxergava, os pés descalços tacteavam seguros e calejados o trilho que outros pés antes dele, há muitas gerações, foram calcando pelo matagal além, rumo aos lugarejos sombrios que se espaçavam pelos campos fora, logo adiante. Atravessou os casais onde o mugido das vacas apelava à ração e à mungidura, num ou noutro ouvia-se o chocalho de cabras e ovelhas ainda desassossegadas.


Quando chegou a Samil ia derreado. O saraiveiro desabara, ameaçando empapar a farinha que carregava, justamente à vista do portão do Escondidinho. Desembestou por ele dentro, fez a entrega combinada, recebeu a medida que ajustara como paga, esperou uma fresta de estiagem para quebrar uma mancheia de couves e refugiou-se no cortelho que por ora lhe servia de poiso.


Na madrugada seguinte, quando se dirigia às Devesas refazendo o caminho da véspera pelos córregos, Nino topou com um ajuntamento no lugar onda largara o Marcadas, enleado no inaudito problema do tamanco roubado.


- Que hoube aqui? - estranhou.


- Foi o ti'Marcadas. Demos co'ele quase morto ali caído no meio do silbado. Curtiu lá a bebedeira a noite toda, co'este frio e chuba. Taba quase morto. Diz que foi roubado.

- Roubado?!


- Os ladrões é que o atiraro lá p'ra baixo, diz ele...


- Que é que le roubaro?


- Isso é que é cómico. Diz ele que le roubaro um tamanco! Mas ele tinha um num pé e o outro ficou aqui à beira do carreiro. Tamém, quem é que ia roubar um tamanco roto cheio de lama?






2 – Circo


O que eu gostava mesmo era de o ver fazer circo com a enxada, quando, a meio da tarde, me encontrava com ele nas Laminhas, rumo ao Fundo Lugar. Contavam-me, eu era muito miúdo, que ia fazer um campo que tinha algures por lá perdido. Se ia ou não, por mim nunca o vi. Mas lá que era um espectáculo, era. Que me metia medo, também é verdade. Eu arrumava-me a um canto, rente ao muro alto do campo de cima que sempre escorria água como um fontenário, a confundir-me com as ervas, as trepadeiras e as videiras que asselvajavam aquela humidade toda, não fora ele dar comigo e virar para o torto. Guardava as distâncias, de olho atento e pernas prontas a uma corrida desvairada, se a enxada alguma vez me ameaçasse.


Ele aparecia minúsculo e trôpego, imemorialmente avinhado, que jamais o lobriguei doutro modo, a enxada pequena ao ombro, resmoneando convictamente para ele próprio. Vinha pelo meio dos trilhos dos carros de bois, a tentar não descair para os sulcos dos rodados, mas acabava sempre neles, mais passo menos tropeço. Então é que principiava a magia.


A enxada repousava sobre o ombro direito, aguentada no cabo pela mão do mesmo lado. Quando parava, a equilibrar-se, as pernas escanchadas cada qual num dos rodados, o Marcadas alçava a mão esquerda e sacava pelo cabo a enxada, rodava-a em torno do corpo, apanhava-a por trás do lado direito, girava-a pela frente, tornava a jogá-la por trás e assim encadeadamente, num corropio imparável. E nem a instabilidade do seu próprio equilíbrio lhe afectava o rigor nem a velocidade estonteante do número. Jamais a enxada lhe escapou das mãos.


Eu olhava-o, fascinado e aterrado. Ele nunca em mim reparou. Falava só como quem medita em voz alta. Interrompia a sequência, avançava dez metros, estacava e repetia. Era um ritual quotidiano, pelas congostas abaixo. Durante anos foi um alimento do meu sonho. Que importava a bebedeira? Quando principiava o sarilho da enxada, começava um outro mundo.


Estranho, deveras estranho, é que não era capaz daquilo quando sóbrio, contavam-me os antigos.


- Ficou-lhe a cisma duns pelotiqueiros que por aí passaram quando ele era petiz. Quis fugir com eles. O pai teve-o fechado na pocilga para se lhe não escapulir, quando abalaram da aldeia. Então desatou a emborrachar-se como uma esponja. Logo em miúdo. E vai morrer assim. Um artista bêbado que falhou uma vida inteira.


Eu nunca soube o que eram pelotiqueiros, coisa assim que me cheirava a marginais proibidos, na minha infância desnuda. Mas lá que o Marcadas me fez chegar o sonho, disso não tenho dúvidas. E que, bêbedo ou não, era um artista, como duvidar?


Agora que o roubaram de alguma coisa, roubaram.


- Donde é que tu bens? - criticava a minha mãe.


- Do Fundo Lugar.


- Andaste a molhar os pés no ribeiro?


- Eu?! Não!


- Atão?


- Bi o ti'Marcadas.


- Meteste-te co'ele? Olha que tens de rodear à distância. Cum bêbados nunca se sabe...


- Ele nem me inxergou, ora! Fez co'a enxada. Três bezes.


- Três?!


- Primeiro inda cá im riba, no fim das Laminhas. Taba a ber que batia no muro mas num le miscou. Òpois foi quando passou a regueira entre os campos, ele ia a cair nela mas equilibou-se, resmungou, birou a cara p'rò moinho e fez outra bez. C'uma força! A enxada nunca mais paraba e ele sempre a pregar, a pregar, num se intende nada do que ele diz. Meteu-me medo, que ele olhou p'ra mim. Mas acho que nem me biu, foi òs baldões por lá abaixo, eu acheguei-me do combro da ti'Ana da Cal e quando olhei p'ra trás taba a fazer outra bez à beira do açude. Òpois foi pelo mato acima, num foi p'ra campo ninhum.


- Toma cuidado co'ele. O binho é traiçoeiro.


- Que é que ele foi fazer prò mato? Bai sempre p'ra lá...


- Que sei eu? Acho que tem p'rà'i um casinhoto e quando tá mais tocado fica por ali horas perdidas.


- E a família? Ele num tem família?


- Ter, tem, mas já num liga a ninguém. A bida é muito cumplicada...


- E a enxada nunca le caiu?


- Sei lá!


- Eu unca bi. Ele num se pode aleijar?


- E pode algum dia aleijar alguém. Tu toma cuidado, num te metas co'ele, oubiste?


O meu terror dos ébrios impedia-me qualquer aproximação. Mas, por outro lado, ali havia uma diferença. À noite, antes de adormecer, sonhava naquele maravilhoso ensarilhamento da enxada em redor dum torso a vergar de embriaguês e lamentava a penosa subida daquele corpo devastado, pelo mato acima, do outro lado do ribeiro, rumo à solidão onde nenhuma voz humana chegava. Um dia ainda treparia ao isolamento! Mas como dizer-lhe? As palavras das crianças são parcas e poucas. Talvez os meus olhos arregalados de maravilha tenham alguma vez falado o que a boca jamais conseguiu confiar-lhe.






3 – O Circo do Bispo


Primeiro foi nos caminhos, em bando. Um miúdo em vestes brilhantes tocava caixa, um homem entroncado e barbudo, um tambor. Entre eles, um urso todo preto dançava a compasso e, quando menos alguém se precatava, corria direito ao distraído e era a debandada geral, entre gritos e saltos, de todo aquele cortejo de maltrapilhos que os seguia excitado e incontrolável, o da canalha da Farrapa, da Capela, das Figueiras, da Toca... Ainda os trilhos enlameados não tiveram tempo de secar, ainda nas regueiras escorropichava um resto das chuvadas de semanas antes, espreitava um sol bolorento entre bafientas nuvens mal dispersas – e estoirara a novidade! Ia haver circo no Bispo, corria de boca em boca. Nunca tal se vira, ali entre campos e matagais perdidos, ignorados desde sempre, que a vida passava ao lado, lá para as bandas da estrada real entre Oliveira e S. João.


Agora aquela tropa fandanga calcorreava os carreiros e caminhos de carros de bois, entre lamaçais e pedregulhos, a chamar a clientela. Como iria ser? Como não? E na cauda do urso bailarino, do tambor surdo e da caixa regateira, aquele cometa da criançada extasiada e barulhenta, timorata e atrevida a desafiar a fera, como um pregão vivo e gratuito da grande festa dos sonhos que iria acontecer. Todos eram pequenos, mesmo quando muito mais velhos: lá no meio, misturado e confundido, de olhinho a brilhar contente e passo controlado, enxada ao ombro como sempre, o Marcadas vivia finalmente. E fugia à investida do urso e apupava-o e batia os pés ao ritmo do tambor e ululava, em coro com a miudagem. Grande dia!


O urso meteu-me tal medo que me escapuli portão dentro e fiquei, de coração aos pulos, a espreitar por uma frincha o alegre cortejo de farroupilhas. Quando se foram embora pelo carreiro adiante, entre campos e cômoros onde despontavam as primeiras flores silvestres, ébrio de verdura e novidade corri ao fundo do quintal onde minha mãe mourejava a preparar terreno para a couve e a batata. Foi a primeira decepção.


- Mãe, mãe, biu? Diz que é o circo!


- Oubi, oubi... Porquê?


- Tem um urso, ele ataca quando alguém chega perto. Eu fugi p'ra me esconder.


- Aquilo num é urso ninhum, é uma pessoa na pele dele. Tudo isso é brincadeira.


- Num é, não! Tem uma corrente a prendê-lo. E anda co'a língua de fora.


- Ora, ora! E cuidas que se fosse a sério era assim? Ninguém o siguraba. E num andaba aí de língua caída.


- Atão aquilo é mintira?


- Claro! É p'rà brincadeira.


Amuei.


Mas já tinha esquecido tudo quando chegou o domingo e fomos em cortejo agitado até ao alpendre do Bispo. Estava ali uma montagem muito diferente. O que eu tinha conhecido no fim das vindimas fora o alambique, com a fornalha a estralejar de lume doirado e a serpentina e destilar nas volutas uma aguardente cristalina para uma garrafa. Agora não. Nem sinais daquele mostrengo de vapores e fogo debaixo do telheiro. Hoje estava uma multidão barulhenta e indisciplinada, sentada em várias voltas de cadeiras, arrumada às paredes, e uma fiada interminável de gente, de pé, em redor dos demais. Os risos e a gralhada eram ensurdecedores. Minha mãe puxou-me para a fila da frente, que senão o menino não via nada, ora!


Mal começou a função, silêncio como por magia. E eram ahs! e ohs! e ribombar de palmas entusiásticas, intermináveis. Só eu não entendia nada. Mas nem ligava, que o importante eram aquelas roupas a brilhar, estranhas e maravilhosas, que aos artistas os tornaram instantaneamente em fadas, príncipes e princesas, tal e qual como se retiravam dos contos e dos sonhos. Finalmente via-os, já não eram só o que a minha avó contava e recontava ao serão ou sentada à beira da cama, até o sono vir fechar-me os olhos embalados de fantasia. Fiquei tão de boca aberta para a trapezista que ela se nos dirigiu.


- Mas que linda menina!


- É um menino – corrigiu minha mãe.


- Mas que lindos caracóis! Isto vale uma fortuna. Vendes-mos, que eu troco-os pelo circo?


Eu fiz que não com a cabeça, tolhido por toda aquela beleza de princesa a faiscar da cabeça aos pés.


- Fecha a boca, rapaz! Parece que está pasmado! - era a minha mãe, a rir do despropósito.


A artista fez uma elegante pirueta enquanto um senhor muito aperaltado anunciava:


- A Felisbela vai voar no trapézio, é a nossa estrela mais formosa e arriscada. Silêncio! Não a distraiam, que requer concentração.


Lá em cima eu via-a mal, quase só se lhe adivinhavam as pernas torneadas brancas e fortes. Desinteressei-me. Não podia ver a fada madrinha. E entretanto eu espreitava o urso que devia aparecer e ser verdadeiro. Pelo menos o meu medo era-o, indubitavelmente.


E foi a segunda decepção. Quem veio foi um palhaço todo pintado, com nariz de batata e roupa às três pancadas, a rir desalmadamente. Mal reparei em semelhante mastronço desatei num berreiro de terror que deitava a casa abaixo. A plateia ria de mãos na barriga com o desconchavo, o homem tirava a punha o narigão para eu me acalmar, mas ainda foi pior. Pois onde já se viu um nariz de tirar e pôr? Aquilo era o fim do meu mundo, o monstro que ali saltava e ria tinha um descomunal e terrífico aleijão e aquela multidão estava toda maluca ao rir-se de semelhante coisa! Escancarei ainda mais as goelas, para o gáudio universal. A minha mãe chorava de riso e já nem conseguia falar para me acalmar, tão engasgada ficara com a inesperada reacção. Ainda tentou esconder-me a cara, mas qual o quê? O homem podia ferrar-me enquanto eu o não via, portanto nem pensar: eu berraria desalmadamente mas com os olhos bem arregalados em cima dele, pronto para o que der e vier. A cena só acabou com a retirada do mostrengo que nem precisou de número nenhum para ter o maior sucesso daquele espectáculo à minha custa.


Mas nem todos haviam rido. O Marcadas, não sei como, estava mesmo de cócoras ao nosso lado a murmurar o tempo inteiro: “ora essa, ora essa!”, com o ar mais preocupado e atento à minha reacção que eu jamais vira. Serenou quando me viu sereno e ouvi-o murmurar, como para ele mesmo: “não incomodem o menino, não incomodem o menino!”, fazendo que não com a cabeça. E naquele momento o Marcadas estava de costas para o redondel. Só voltou a reparar no circo quando ficou certo de que eu, finalmente, recuperara. Ninguém lhe ligou e eu ignorei-o logo que o número seguinte nos encandeou de novo os olhos.


À noite a Felisbela passou-nos por casa para levar um braçado de couves, mais um saco de batatas e feijões. Fiquei triste deveras por não tê-la visto então, era como uma traição não me terem chamado para eu poder ter só para mim a fada madrinha. Ainda por cima, fora naquela hora do lusco-fusco em que eu me pus, num recanto do quintal, à beira da ameixieira, a seguir um caracol enorme a quem decidira contar pormenorizadamente os episódios todos que me haviam maravilhado naquela jornada inesgotável. Logo então, quando eu estava a evocar aquele fascínio de rebrilhar ela, das lantejoulas, como se fora vestida de luz!


- A Felisbela gostou muito de ti. Manda-te muitos beijos, coitada! - consolou a minha mãe.


- Oh! Eu queria era bê-la. Bocês num me chamaro...


- Tinha pressa, filho. Ao menos hoje sempre debem passar um bocado milhor. Comida num les há-de faltar.


Confundiu-me o comentário. Aquilo devia ser com os outros, com os animais, sei lá. Uma fada tem uma varinha de condão e não passa fome, não é?


- A bida tá ruim p'ra todo o mundo e diz que eles num tem tido muita sorte.


- Se num tibéssemos aqui tantas bocas daba-se-les um naco de toucinho. Um bocado de pingue se calhar fazia-les jeito – murmurava o meu pai, descansadamente.


- Hoje num há precisão, que todos gostaro e agora ajudo. O pior é quando marcharem imbora.


- Aí dá-se-les um nico de cada coisa, é boa gente...


Não entendia este mundo dos grandes, decididamente. Não gostava nada de imaginar a minha fada com fome, ia contra as regras. Nessa noite nem quis que a minha avó me recontasse nenhum conto, eu já tinha demais com que sonhar. Só lhe perguntei, por mor das dúvidas:


- A Felisbela é rica, bó? Co'aquela roupa às faíscas... É linda! Habia de ber!


- É, é uma roupa muito rica... - desviou ela, condescendente, enquanto me aconchegava o cobertor ao pescoço na cama de ferro. Afastou-se com um suspiro que atribuí ao reumático, desviando-o de vez da minha mensageira do outro mundo.


Então sonhei com as lantejoulas a voarem no espaço atrás dos cabelos de fogo, numa cara de que só via um sorriso que me era dirigido apenas a mim. Ela tinha o poder dos pardais e enchia o céu das estrelas que refulgiam por ela inteira. Via-a pelas alturas e do chão voava com ela tão alto como as nuvens.


Foi um mês depois que a decepção ficou consumada. A minha mãe não mo quis dizer, mas eu ouvi no ar um comentário de alguém que me deixou apreensivo. A minha irmã é que acabou por confidenciar-me:


- A Felisbela morreu.


- É mintira!


- Foi. Diz que caiu, taba a trabalhar sem rede e olha. Inda foi biba p'rò hospital mas num aguentou.


- Não!


- Foi p'ròs lados de Obar... A gente tamém tem pena. Era tão boa família! E ela atão! É sempre assim, é o que acuntece aos milhores. Tanta gente ruim que num há maneira de morrer!...


Fiquei sem fala. Não chorei nem fiz nada. Fugi para o quintal e trepei para a minha ameixieira. As fadas também morrem. Porcaria de mundo que deixa morrer as fadas!






4 – O Cinema de ti'Delaida


Primeiro o cinema era o diabo. Podia lá ser doutra maneira! Estava-se a chegar à fim do mundo, a vermos coisas nunca vistas. O mexerico agora corria muito mais depressa, que as estradas tinham sido rasgadas e todos os lugares ficaram vizinhos. Eram mormente os jornaleiros que trocavam as novidades. A princípio ninguém acreditara. É que a primeira nova chegara pela ti'Guida do Quelho, quando trabalhava a dias na Covada. Era muito disputada, que despachava trabalho por três ou quatro. E conseguia não parar nunca, falando e cantando, sempre bem disposta, vendendo alegria e canseira por todos os poros. Só que sofria duma mazela antiga, trazida das fomes da serra, que a obrigava a viajar regularmente à consulta até Oliveira. Diziam que era fraca dos poulmões, ninguém sabia ao certo. Morava com uma irmã num casebre cedido por caridade, ao princípio, depois arrendado, que era mulher de contas certas e agora andava a apalavrá-lo para ver se o comprava.


Pois foi depois duma ida ao médico de Oliveira que, por mor do atraso com que chegou às terras do ti'Chico, anunciou, a cara branca de espanto e desnorteamento:


- Intão num querem ber? Há uma máquina de feiticho im Olibeira. Joga as pexoas numa parede e elas fico p'ra lá a caminhar e a mexer! Crujes canhoto! Eu inda num tou im mim! Ai Dês me perdoe que ê nim xei xe pequei. Aquilo é coija do mafarrico, num há dúbida! O que a gente incontra pela bida fora!


Foi um falatório. Ninguém acreditava, a mulher devia ter tomado uma droga qualquer e desatou a ver coisas. O dia inteiro cobriu-se de animação, até porque o ti'Chico, que era um homem das arábias com muito mundo corrido, jurou a pé junto que aquilo era verdade, sim senhor, mas só nas cidades grandes e lá para a estranja. Agora ali à mão, que diabo! Era novidade da grossa. As benzeduras foram correndo de casa em casa, à medida que a nova batia à porta como um fogo ateado. Durou semanas a disputa – é o diabo, não é o diabo, gostava de ver, Deus te livre, que vais p'rò inferno – até que o desgaste do tempo a esmoreceu.


Ainda correram uns anos até que outra vez a nova saltou de boca em boca, agora já todo o mundo se habituara a considerar o cinema como natural. Suspeitos, doravante, só os usos que lhe davam. Aquilo era para corromper a fé e os costumes, era a vigararia do anti-Cristo. Mas lá que existia, existia e arregalava os olhos a qualquer labrego das berças. Pois a nova era que abrira uma sala no Couto. Apenas aos sábados à noite, que não havia clientela para mais. E mesmo assim, era preciso mobilizar todos os barbeiros das redondezas, com os cartazes pespegados lá dentro e a cavaqueira de manhã à noite acerca do artista, de fitas passadas, do diz-que-diz-que. Filmes para todas as idades, de aventuras, de índios e cobois, de guerra, de brincadeira, para rir, ou então de amor.


Era uma romaria semanal de aficionados. O Lias era o mais apaixonado dos pequenos. Entrava de graça desde que levasse dois cartazes. Lá estava caído todos os sábados. E era a animação da escola a semana inteira.


- Tu num bistes? Tu num bistes?


- Eu não. Cumo foi?


- Nunca fostes ao cinema?


- Não, ora. Tu é que tens sorte, c'os cartazes. Agora a gente...


- Pois, só se tibesses dinheiro. Eu tamém taba a ber que me roubabo os cartazes. A minha sorte é que eles num deixo intrar co'eles os grandes, senão eu nunca cunseguia. Ali no barbeiro, no Beto, sabes?, já habia um ror de homes que num me querio deixar lubá-los esta sumana. Só que òpois o barbeiro disse que num les balia de nada e eu atão agarrei neles e fugi, senão inda os lebabo p'ròs dar a outro qualquer.


- E tu bais sempre?


- Bou. Só se num puder. Num perco um, caraças! Aquilo é que é o artista a dar porrada, tau, tau, tau, pam!


- Cumo é, cumo é?


- Atão, o gajo bê o ladrão a roubar-le a baca assim de madrugada, tudo muito caladinho, sabes cumo é? Tudo a dormir. Mas o artista oube, bem debagarinho e quando o mau ia a sair da cancela, trás! Que grande paulada na pinha! O gajo inté pinchou cumo uma bola! A sério!


E gargalhávamos todos, gostosos. Logo à roda mimavam a cena. Trás! Pumba! E era uma zaragata em menos dum relâmpago. Primeiro a brincar, depois a sério quando ao primeiro lhe doía, e ficava sempre um ou dois a chorar num canto, amimalhados por outros tantos para que ignorassem, era tudo a brincar, não fora por mal.


O Lias nem ouvia as aulas. Tudo era recreio, dentro e fora da sala. Só lhe brilhavam os olhos para o artista que viu e para aquele que iria ver. O mais, que maçada! Curiosamente, porém, o jeito azougado, a intrepidez copiada mil vezes do herói sempre renovado e sempre o mesmo como que lhe deram asas. Deixou de ter problemas na escola, arranjou permanentemente maneira de saber o bastante para o ponteiro não lhe azucrinar a cabeça nem a régua lhe ir às unhas. Aprendeu a passar despercebido no meio do rebanho, nem muito atrás nem muito adiante e pronto! Podia sonhar descansado que ninguém dava por ele, muito sossegado na carteira do canto.


Pois foi o Lias que nos trouxe a grande bomba ao portão do quinteiro, tão excitado que nem lograva explicar-se direito:


- A ti'Guida anda no Jurbil a dizer que bai haber cinema na ti'Delaida. A bida de Cristo. Bai ser p'rà sumana.


- Aonde? Aonde? Debaixo da ramada?


- Num sei. Debaixo da ramada num se bê nada.


- Atão é mintira.


- Num é nada. Oubi-a agora mesmo a cuntar. Eles ando a mundar o milho e ela inté jurou. Andabo lá os da Lomba naquele campo à beira do Pocelgo, sabes qual é? O que fica mais im riba, atrás do moinho? Pois. E eles diz que se bão ajuntar p'ra bir.


- Mas atão onde bai ser?


- Tu num conheces a casa dela?


- Eu cá, não. Só se for no alpendre, mas ele tá cheio de palha e tem lá canas e molhos de erba e tudo. Num pode dar, num cabe lá nada, só se a gente bisse do meio do milho.


- E pode ser?


- Eu acho que pode, mas onde é que se põe o lançol?


- O lançol?!


- P'ra que é que é o lançol?!


- Atão num percebes? No lançol é que dá o cinema.


- Ah! - mas eu não compreendia nada daquilo. Um lençol era branco, não podia acontecer lá coisa nenhuma, muito menos aquelas aventuras fantásticas que lhe punham a cabeça à roda.


- Olha, se calhar é na loja. A ti'Delaida tem lá uma loja grande, im baixo.


- Tem? Cum bancos e tudo?


- Não, Acho que tá toda atrancada cum caixas, ò menos quando ela tebe doente eu fui lá co'a minha mãe e a gente nem passaba. Inté me dero um maracujá, tu já probastes? Que porcaria! Num gostei nada.


- Bai ser aí, bais ber. Só que tem de lubar bancos, que a gente de pé num bê nada, os grandes tapo-nos tudo.


E a conversa nunca mais acabava, pela hora da merenda adiante. As ovelhas da ti'Micas estavam a retouçar no mato em frente, quando ela pousou na regueira o cajado e se sentou nas urgueiras da berma, a mastigar um naco de broa que tirou do bolso do avental preto. Ouvia a nossa excitação meio distraída, um olho no gado, outro no portão e acabou comentando, pachorrenta:


- Atão, ó Lias, foi a ti'Guida? Tamém ela. É capaz de ser berdade, é capaz. O Nino anda a dias p'rò Dornas ali por trás dos Clipes e cuntou o mesmo. Hei-de falar à Delaida quando ela bier dos Tanques. Já num debe demorar, que num tarda aí faz-se noite. Uma destas!


- Bês, bês? - murmurava o Lias. - Se o ti'Nino tamém, pronto! Tu bais?


- Eu bem queria! Agora a minha mãe, num sei... Bou-le dizer, se calhar ela bai querer ir. Isso é que era bom! Lubaba-me.


E levou-me. Não compreendi rigorosamente nada da “Vida de Cristo”. Logo à partida, no banco, sentado ao colo de minha mãe, achei que aquela parede coberta com um lençol à nossa frente não tinha qualquer interesse, pelo que me virei de costas para ver a multidão imensa, que sempre eram mais de cento e cinquenta pessoas que ali se atafulhavam apertadíssimas. Depois descobri ao fundo um homenzinho atarefado com uma enorme caranguejola cheia de rodas e de pés, com umas luzinhas lá pelo meio.


- Que é aquilo, mãe?


- Num sei, filho. Mantém-te quedo. Diz que é a máquina de fazer cinema.


- Atão é acolá.


- Chiu!


Calei-me mas não desgrudei mais a vista daquela enormidade, mais alta que um homem. Eram todos parvos, se aquilo é que fazia cinema, então deviam era estar a olhar para lá em vez de virados para uma parede vazia tapada por um lençol. Cá por mim achei que ia ser o único a ver filmes, fosse lá isso o que fosse, logo que a máquina os começasse a fabricar e a despejar ali para cima de toda a gente. De repente, as luzes foram-se abaixo. Só eu é que reparei que as da máquina, não. E então havia um corno de luz que ela tinha à frente, devia ser ali, claro, essa coisa das fitas. Só que eu não estava a ver nada, embora aquela luz mexesse por dentro dela. Seria aquilo?! Não tinha piada nenhuma!


- Olha, olha! - era a minha mãe, a tentar virar-me de frente para a pantalha.


- Num se bê nada!


- Ali, ali! Olha p'rà parede.


Quando dei por ela, já a fita corria, no meio da grande emoção que galvanizava a sala: falava tudo ao mesmo tempo, numa grande balbúrdia e cada nova cena era logo identificada, não por ela mesma, mas com alguém da aldeia.


- Olha as obelhas da ti'Micas! Ali bai ela, ah! Ah! Ah!


- Bai de mantilha, bai p'rà missa ou quê?


- Olha o gajo! É o cabalo dos Barreiros. Aí bai o Jaquim a galope! Eh, lá! Olha que tropeças e inda te estampas, carago!


Minha mãe chorava de riso e berrava nervosa para a vizinha do lado, a ti'Mília, a fazer-se ouvir por cima das casquinadas da outra:


- Tão todos magrizelas. Lebe-les lá umas castanhas a ber se arribo, comadre!


A algazarra não parou até ao fim, nem sequer nas cenas do Calvário. “Calem-se! Que isto inté é um pecado!” - gritavam as mulheres, mais escrupulosas com as crenças. Mas qualquer abrandamento era provisório, não havia muro para conter o rio da excitação.


- Olha o Calbário, balha-me Deus, o que le fizero – comentava piedosa a ti'Mília.


- É, é o Calbário e lá im baixo é a Ribeira Berde, ali mesmo ao lado da Gandra – brincou logo o ti'Rufino que estava atrás.


- Pois, e aquela gente toda acolá a monte é a feira dos binte e sete im Nogueira. Tá lá o gado e tudo. Ah! Ah! Ah!


Havia lá maneira! Aquele Cristo foi crucificado no meio de gargalhadas e surriadas infernais, para grande lamento das mulheres pias que já não atremavam se haviam de rir, se de chorar.


No meio da tremenda confusão, quase nem olhei para a pantalha. O meu primeiro filme resumiu-se a um rebanho de cabras, a um romano a cavalo, coberto de cabedal e lâminas metálicas, e a um indivíduo a suar em bica a puxar uma cruz por uma estrada acima. Tudo o mais era a gralhada a esfusiar de alegria no rés-do-chão da casa, onde noutras épocas do ano se guardavam as colheitas, a salgadeira e os pipos do vinho pisado no lagar ao canto. Quanto melhor que o cinema não era a festa de toda a gente!


Nos meses seguintes o programa continuou. Para mim, não. Para mim o mistério adensou-se por um facto insólito: começaram a aparecer pelos campos e quintais, nas eiras e à beira dos caminhos troços de película, pejados de fotogramas que eu examinava intrigado. É que eles tinham dezenas e dezenas de minifotos em negativo e que eram, cuidava eu, todas iguais. Que diabo seria aquilo?


- Isto é que são as fitas – explicava a minha mãe.


- Mas é tudo igual! - objectava eu, mostrando-lhe uns palmos delas, onde se viam um homem e uma mulher virados um para o outro. - P'ra que é que serbem tantas fetografias assim pequenininhas todas iguais? Aqui num muda nada.


- A máquina do cinema é que muda, cuido eu – tornava ela, paciente e duvidosa.


- Mas cumo é que ela faz?


- Sei lá bem!


- E eles deito as fitas fora?


- Pelos bistos.


- Mas atão acabo logo o cinema! Num se pode ber outra bez...


- Pode, pode.


- Cumo? Cumo? Eles deito isto tudo p'ròs campos...


- Eles tem lá munto mais. Metros e metros. Isso num é nada.


- Ah!


Às minhas dúvidas nem o Lias valeu. A ele só a aventura é que importava. O como daquilo tudo estava além do que tinha algum valor.


- Ó pá, importa-me lá bem! O maquinista bota as rodas a girar, trr, trr e pronto! O que interessa é que bem logo o artista e começa a história. Os grandes é que sabe òpois. E é só lá o maquinista, q'os mais sabe tanto cum'à gente. Ou inté menos. Muitos nunca foro ao cinema, calha bem...


- Pois é, mas eu gostaba de intender cumo é que a máquina faz aquilo mexer tudo. Uma fetografia é parada, num é? Cumo é que òpois...? Num pode ser, mas é. Habias de perguntar ao home da máquina.


- Ora! Ele num me ligaba nada. Inda se eu o conhecesse... Bem, eu conheço de bista, mas num tenho cunfiança, tás a ber?


Íamos nisto, a descer do Alto dos Foguetes para o largo da Capela, ambos tão intrigados que nem reparávamos em quem cruzava connosco, quando de repente me pousou uma manápula na cabeça. Olhei espantado como quem acorda estremunhado dum sonho. Era o Marcadas, inseguro, com um olho avinhado muito ternurento fixo na minha cara, um leve sorriso a abrir-lhe os beiços descorados sobre os dentes carcomidos.


- Num perguntes demais, menino, num perguntes demais. Olha que é munto perigoso, eu que o diga! Num perguntes demais!


Virou brusco para a estrada da Farrapa, deixando-nos ali especados, emparvecidos. Demos uma risada e deitámos a correr pela Rua da Toca abaixo. O Lias bufava, esbaforido:


- Que carraspana, c'um carago! Que carraspana!


Eu sorria, nervoso, mas pela primeira vez não senti nenhum medo do Marcadas. Aquele bêbado encobria outro mistério e os mistérios atraíam-me.






5 – O Baile da Ti'Delaida


Não durou muito o cinema. Aquilo era uma pouca vergonha quando acabava noite dentro, com aqueles pares de namorados pelos quelhos às escuras. Era uma coscuvilhice de comadres permanente, a deitar famas a esta e àquela. Os pais andavam às aranhas com as filhas jovens, sem ninguém atremar em como proceder. Se negavam a liberdade de ir à fita, era a guerra em casa, se a acolhiam, era a guerra fora e as raparigas difamadas. Da suspeita de mau porte aumentava-se logo um gesto, um olhar, um passo na berma para uma acusação, até ao acto consumado, mesmo quando tudo mais não fora que inocente derriço ou nem tanto. Um dia houve uma espera. O Tilós pôs-se à coca no caminho das Laminhas e quando os do Fundo Lugar se meteram por aí, ele, nada, que o não enxergavam. Foi-os seguindo de sombra em sombra e, lá para o meio, quando não há casa nenhuma nem vivalma para acudir, agarrou a moça que ia atrás pelas costas, tapou-lhe a boca e arrastou-a para o campo. A sorte foi ela ter-lhe ferrado a mão. O Tilós deslaçou-a um instante, foi quanto bastou para ela uivar um grito arrepiante e toda aquela tropa voltou atrás, caça o gajo, mata-me o filho da puta, racha-o! E o Tilós, pernas para que vos quero! Ele jurou sempre que não fora nada consigo, até naquela noite andava a regar lá para os Lameiros, nem podia saber de nada tão longe, quase em Fundões. O pior é que ninguém podia confirmar isto, que a rega solitária não tivera testemunhas. Lá que fora feita, fora, vários andaram depois a ver, era verdade. Mas a que horas, era outra coisa. Na dúvida, o povo perdoou-lhe maior açaimo, mas da suspeita e da fama de assalta-moças, não.


O brado foi tal que o cinema teria de morrer. É verdade que os clientes bem podiam deslocar-se pela estrada com luz pública. Mas dos ditos de promover a pouca-vergonha já ninguém livraria a loja da ti'Delaida. Os vizinhos deixaram de lhe falar e a família começou a virar-lhe a cara.


- Aquilo é como ter casa de passe. Ela anda a criar mulheres da bida, é o que é. Qualquer dia cai-le im casa, inda habemos de ber. Tudo se paga...


Ora, a ti'Delaida nem sequer tivera nada a ver com o cinema. Aquilo fora negócio do marido com um parente do Couto. Por acaso ele era amigo do dono da sala de lá e propusera dividir a meias os lucros. Assim viera o cinema até S. Pedro. Mais nada. Por mor dos mexericos veio ela aconselhar-se com a madrinha, a ti'Rosa do Paúl.


- A gente num tem nada a ber co'as poucas-bergonhas que p'ràí conto, que até só biemos a saber tarde demais. Agora o meu home diz que a bida tá ruim, há poucos ganhos e as fitas sempre rende algum. Mas eu tamém num me quero malquistar co'o pobo, que todos precisamos uns dos outros, ninguém sabe o dia de amanhã. E Deus me libre de desgraças!


A velhota ouvia e acenava concordante, muito calada, por trás do tear das mantas de trapos. Ia passando, destra, o novelo de trapilho por entre os fios da teia, batia duas pancadas a apertar as fiadas, com o pente, enquanto cruzava com as peanhas os liços, ficando os fios, invertida a posição relativa, abertos a nova passagem daqueles dedos engelhados e rijos, a puxar incansáveis. Já estava enrolada no toro uma grossa meia coberta. A ti'Delaida falava debruçada à janela que dava para a rua, postada na berma desta, virada assim para dentro de casa, no recanto onde o tear estava montado.


- Beja lá a madrinha. Num podemos passar as fitas de dia porque num se bê nada co'a luz. À noite, há quem se aprobeite para a pouca-bergonha. O meu home diz que atão só se fizer bailes. Eles podio ser à tarde até ò jintar. Aí era cedo, já num habia motibo p'rò falatório.


- Bocês é que bê. Mas num te esqueças q'os bailes tamém são lugares p'rò tentador.


- Mas atão sempre se pode ganhar algum. A acabar à sonoite, quem se portar mal é lá cum quem for. Já num é co'a gente. Atão num é?


- Olha q'os bailes dão lugar a munta coisa. Milhor mesmo era acabar cum tudo, morto o bicho, acababa a peçonha.


- E tamém acababa o ganho. Isto anda ruim p'ra todos. Num sei que dizer ao meu home.


- Bai por mim, rapariga. Bocês inda se bão meter im trabalhos.


Trabalhos foi o que tiveram. Os bailes começaram ao sábado, lá pela hora da merenda. Era só rapaziada nova, ao som da grafonola. Às vezes era um acordeonista, aí havia mais concorrência, que até os mais velhos adoravam umas modinhas à antiga, com os passos e as rodas do folclore. Os novos é que se punham apenas a vê-los e desdenhavam. Mas depois lá vinha o momento deles, com a música para enlaçar o par e rodar deliciosa a fantasia. Os namoricos não se fizeram esperar. Foi um fogo ateado do abraço na dança ao abraço fora dela, da cabeça no ombro ao beijo na boca, do apalpão à fuga discreta ou descarada para o meio do milheiral, para o abrigo das medas e dos sótãos.


O escândalo assumiu proporções nunca vistas. As casas ao correr da estrada trancavam os miúdos dentro nos sábados à tarde, não fora serem atingidos pela maleita. Com as jovens, as cenas eram violentas, das palavras aos interditos, das disputas às pancadarias. Havia, porém, sempre aquelas que escapavam à teia, que iludiam os ferrolhos. E bacorejava-se pior.


- Há lá umas serigaitas que ninguém sabe donde bem. Ninguém as conhece. Chegam pelos matos de Santiago ou do Merouço, outros dizem que das Bicas.


- Umas descaradas! Agarro-se a cada um c'uma força! Bê-se logo o que é que elas quer. Inda bão p'ràí desgraçar alguém.


- Aquilo são é putas. O que pode acuntecer é pegar alguma doença a alguém. Mas tamém quem quiser que se precate. Se é a bida delas, só les bai quem quer, homessa!


- Mas é a bergonha da terra! Nunca cá se biu disto inhantes. Inda bão bir casas abaixo.


- Quê?! Algum home é tão burro que se imbeice por uma tipa dessas? Num acredito!


- Ora não! E atão os nobos que num conhece nada do mundo... Oube o que te digo, inda bai haber munto que cuntar. Inté cum pais de filhos e tudo. Num bês que elas sabe-a toda e a gente aqui num tá preparada? Inda bão cunseguir tirar o pão a munta boca.


Claro que não tardou a haver sarilho maior. Engalfinharam-se à porta, por mor duma delas, o Tilós, meio avinhado, e o Zé da Roca que era a primeira vez que lá ia, nem sequer chegara a entrar. Um comentário brejeiro fora o bastante, a uma delambida que lhe fizera olhinhos à beira da porta. O outro veio de trás, já andava de olho nela há semanas, corria que ele não a largava dentro nem fora e que já a levara uma que outra vez para o palheiro da casa, às escondidas. Só que ela era de qualquer um e ele dera em andar nervoso e assomadiço. E pronto. Foi ali. Puxou da navalha mas nem chegara a abri-la, se calhar do vinho de que já vinha toldado. Acertou um murro nas costas do outro, a zaragata soltou-se em gritaria das raparigas a fugirem, espavoridas, os rapazes atiraram-se ao molho a separar os contendores, os insultos choveram, a surriada aumentou. Já voavam pedras pelo ar. A vidraça da janela estilhaçou-se, a porta do baile foi trancada, que lá dentro a função continuava, não era nada com eles. Separaram-se em dois grupos, cada qual acalmando um dos brigantes e garantindo distância segura para o fogo não reacender. As moçoilas lá se foram achegando, curiosas do ocorrido, briga de paixão ateia imaginários, que maravilha! Que inveja da que pegara o fogo!


- Que é dela? Que é dela?


- Quem era? Quem era?


- É das de fora – comentava a Guida, desdenhosa. - Eles só gosto daquelas. Agora acunteceu isto. Era bem feita que fosse pior, que elas num presto p'ra nada. A ber se eles aprendio.


- Ela tá lá dentro? - perguntava a Dina, admirada. - Num fugiu?


- Fugir, fugiu, mas olha, já biste p'ra onde eles foro co'ela?


- P'ra onde? P'ra onde? - atropelaram-se várias.


- Acolá, atrás da meda do campo do fundo. São logo cinco ou seis.


- Num foro nada. Num se bê ninguém... - duvidava a Beta da Capela.


- Pudera não! Querias que fossa á bista? Tens cada uma!


- Ai é...? - e a outra ficou vermelha como um pimentão, sem fala.


- Que habia de ser? Habio era de ficar todos doentes! Porcaria de rapazes os de agora, cumo é que a gente pode cunfiar im alguém? Merece é todos um par de cornos! Oxalá los ponho, era bem feita! Até aquele Esquenta da Cobada, que eu bi... Um pau de birar tripas!


A Guida deitava fogo das ventas. As mais desataram todas a cochichar.


- Eu só queria era ber! - murmurava a Dina à orelha da Beta que agora até ficou com a ponta do nariz vermelha como um morango, a virar a cara de vergonha, com os olhos a brilhar descontrolados.


- Cumo é que eles faz? Aquilo é no chão? Que porcaria! - A Lina enojava-se ao ouvido da Mèlita.


- Se calhar tem lá uma coberta... - hesitava baixinho a outra, com risinhos à socapa. - Mas não, que aí toda a gente bia.


- É im pé, bais ber – tornava a Lina, abafando o riso com a mão.


- Im pé, cumo? Assim num dá! - duvidou a Mèlita, sem compreender.


- Dá, dá. Cum'às cadelas – assegurava a confidente, já não se contendo ao imaginar a cena hílare. - E eles infio-se uns nos outros cum'òs cães. Ah! Ah! Ah!


Desataram a fugir, perdidas de riso, não foram as demais quererem adivinhar a conversa proibida. A Dina não resistiu e achegou-se. A Mèlita acabou por lhe contar. Estrugiram ambas às gargalhadas e em breve era um coro interminável de risos e comentários, rapazes aparte, intrigados mas bem dispostos por tudo ter acabado em bem. Agora o baile é que definhou. Já ninguém quis ir lá para dentro, puseram-se a caminhar rua acima, rua abaixo, uma fila de raparigas, um passo atrás uma outra de rapazes, mais longe um par delas e ao lado um par deles, ora direitos à Capela, ora direitos aos Clipes, derriço para aqui, piropo para acolá, um que mete conversa como quem não quer a coisa, outra que joga langue um rabo de olho para o seu eleito, a ver o que dá. E a tardinha foi morrendo assim, enfriada e calma.


Pelo serão fora tudo, em lugar de arrefecer, mais se esquentou. Por que vias os que foram para trás da moreia acabaram identificados aos ouvidos dos pais, ninguém o topou. Foram as mães a tocar a rebate. Que se os maridos já não sabiam impor respeito, então era a fim do mundo, que elas é que eram umas desgraçadas em trazer tais abortos de gente à vida, que nem valia a pena ter homem para saírem uma minhocas assim... Tanto sarrazinaram o bicho do ouvido que daí a pouco já se ouvia por todo o lado o praguedo e a fúria dos machos, impacientes com os despautérios que lhes haviam quebrado o sossego dos lares. Acabaram os mancebos por ser chamados à pedra, houve ameaças e proibições, o Esquenta apanhou umas correiadas que lhe deixaram o lombo e os braços pretos e mereceu com isto, mais uma vez, o nome que lhe davam.


O desassossego correu Vila Chã inteira, desceu o Fundo Lugar, trepou à Lomba, furou das escolas a Bustelo, atingiu a Gandra, Costa Má e Samil e até nos Fundões, a quantos lá foram semana fora trocar os sacos de milho pela farinha já os moleiros comentavam, chocarreiros, que aquilo lá por S. Pedro era um putedo pegado. Uma vergonha! Toda a gente se sentia atingida, culpados e inocentes, a difamação era duma aldeia inteira. Então, para grandes males, grandes remédios. O P. Abel foi chamado a pôr o rebanho na ordem. Ninguém esperara aquilo, nas três missas do domingo. Foram três sermões de escacha-marmeleiro. Queriam a prova? Aí a tinham. Metam-se em bailaricos, metam-se, depois queixem-se! Um bom vizinho não abre a casa a tais desaforos. E não me venham com essa de que dançar não é pecado, que é desculpa velha e puída. Então e o ajuntamento, e o esvair-se por entre a multidão para ninguém ver, e os marginais e aquelas desgraçadas que nunca ninguém vira em tais paragens antes, só ali vindos para destruir a moral e destroçar os lares? Só uma atitude poria cobro a tais desmandos: encerrar de vez o antro de perdição, antes que de lá venha maior desgraça! E aguardava que o brado lançado do alto do velho altar surtisse efeito, porque as gentes de S. Pedro eram tementes a Deus e de princípios. Mais não seria decerto preciso para chamar à razão as ovelhas que se desgarraram, tinha a certeza que apenas por ignorância e distracção.


Foi um dia memorável. A ti'Delaida não tinha um buraco onde se enterrar. O marido, que até nem era muito misseiro, só lá ia por ela e pela cachopa, ficou de boca aberta e sem ar, assim jogado para a boca do povo como um condenado aos infernos, ainda tremia quando entrou em casa, enfiado no capuz de vergonha e humilhação. Já lá andava a ti'Rosa mais a mulher a aspergir a loja de água benta e rezas, a esconjurar o mafarrico. “Ai balha-nos Deus, que bergonha, mulher! Nunca mais, nunca mais, eu bem te abisei a tempo! É milhor fazer uma promessa p'rò pobo esquecer isto depressa. Balha-nos a Birge Santa! Abè Maria, cheia de graça...” E jogava água-benta às mancheias santificando de novo aquele lugar tantos anos abençoado de úberes samiguéis.


Foi a libertação da criançada, agora já de todos era de novo a rua, aos sábados à tarde. Desapareceram as estranhas de hábitos indecorosos, já as moças respiraram novamente bentas inocências que por trás escondiam suspeições picantes, imaginários afogueados, inconfessáveis, que nenhuma porta poderia jamais trancar, uma vez implantados.


O P. Abel era o portento: herói de fantasias infantis, mestre incontestado de adultos, vergasta de marginais, todos discretamente murmuravam que corria o fado e tinha dons tais que não apenas curava milagrosamente como era a segurança única contra o tardo, a incarnação demoníaca dos crepúsculos que tantas malfeitorias pregava aos mal precatados. Quando qualquer miúdo se perdia ou se aterrava com as sombras buliçosas do sol-pôr, quando o monstro cinzento lhe saltava ao caminho a bufar lume e a varrer com o rabo preto o chão, bastava-lhe apegar-se ao P. Abel e o diabo esfumava-se no ar com um estoiro: ficava apenas um fumo vago e o cheirete a enxofre do maldito.






6 – A Viagem ao Porto


- Em tempos de antigamente as vidas eram duras, muito diversas de agora. Quando eu era miúda, contavam os horrores que eram as odisseias até ao Porto, por barrocais, fragaredos e pinheirais ermos sem fim.


- Ora, trinta quilómetros! Ó tia, a gente faz isso a brincar, de bicicleta, em menos de meio dia...


- Agora, que tendes estrada. Mas naquele tempo... E quem é que tinha uma bicicleta? E para quê, se nem havia por onde andar com ela? Experimenta meter-te a pedalar por um mato dentro, por uma regueira de água ou trepar uma encosta por um trilho de carro de bois. Logo vês como é que era a vida de antanho.


- Então mas sempre iam lá?


- Uma semana inteira para ir e vir. E nós, aqui, ficávamos sempre com o credo na boca por causa do que poderia acontecer, até eles voltarem. Quando voltavam... Os que voltavam, que às vezes...


- Morriam assim numa viagem tão curta?!


- Imaginas lá!O pior não eram os desastres, eram as quadrilhas. Havia muitos bandidos, assassinos...


- E o avô atrevia-se?


- Sempre. Disso é que ele gostava. Era o maior no jogo do pau por estas terras todas em redor. Não perdia uma boa briga por nada deste mundo. Acabava sempre alguém com a cabeça rachada. Mas lá a ele nunca lhe aconteceu, embora nos consumisse a todos, à espera de quando lhe chegava a vez. Teve sorte, escapou de todas. Era mesmo muito bom a lutar com o bordão de lódão ferrado.


- Era ele que fazia a guarda quando iam ao Porto?


- Ninguém fazia guarda nenhuma. Todos tinham de se ajudar e defender quando era caso disso. Muitas vezes eram lutas de morte.


- E como é que iam?


- De carro de bois, ora! Aquilo, a preparar, era como uma romaria. Aqui o ti'Zé Levante, como lhe chamavam, dava o mote. Que era sempre o teu avô que tomava a dianteira. “Há precisão de mantenças, bamos à biage, bezinhos!” E logo corria a palavra e começavam a juntar-se os interessados, quase sempre os do Resende, do Santos, do Brandão, às vezes alguns de Vila Chã, da Gandra, até de Bustelo e da Lomba chegaram a vir. Tiravam augúrios do tempo que faria, eram os do Leite que mais acertavam nisto. Uma empresa daquela monta já era arriscada só por si, quanto mais com tempestades ou saraivadas por esse mundo de Deus! Procuravam no Borda d'Água que a gente tinha sempre aqui em casa, comprado todos os anos no Porto, propõe um daqui, contrapõe dacolá outro, o dia acabava acertado, pelo menos com uma semana de antecedência, para os preparos. Então começava a freima, que era o melhor da festa. Os homens escolhiam o nosso mais conservado carro de bois e toca a limpá-lo todo. Tiravam a lama das rodas e raspavam-nas até ficarem polidas, o rodado era untado com pingue para girar melhor e não fazer chiadeira. Eles até levavam sempre um pote de rojões, que, enquanto lhes servia de vianda, lhes dava a reserva para lubrificar aquilo todos os dias de manhã, antes de se botarem de novo ao caminho. Lavavam o estrado, esfregavam-no à vassourada. Até as cangas eram limpas e, quando novas, deviam ser erstreadas numa viagem destas, com as cores e os entalhes todos a brilhar. Mesmo os fueiros e os taipais eram sempre reparados ou feitos de novo para aquelas ocasiões. As cordas também se renovavam então. Aproveitávamos, que era para depois não parecer mal na cidade, que sempre é outra gente, mais fina. Nós cá somos uns labregos que nunca vimos mundo, por isso eles levavam então o melhor. Mas esta era a tarefa dos homens, dos rapazes. Nós, as mulheres e as raparigas, tínhamos outra responsabilidade. Era a vianda para a semana, o carro tinha de levar de comer e beber para os homens que fossem e tinha que dar para aqueles dias todos. E também mandávamos prendas para untar as mãos a vendedores ou então para os conhecimentos que eles lá por longe iam fazendo, que sempre é bom mantermos estas relações à beira dos meios de poder, ninguém sabe o dia de amanhã, em qualquer momento podemos precisar da mão de alguém. Então nós fazíamos o rol do que havia mister, primeiro a comida, depois o resto. E os bois também precisavam de alguma coisa, que só retoiçar nos pastos onde os houver é pouco para estafa de tal monta. Pelo menos um saco de farelo ia sempre junto, para este fim. Eram depois as chouriças, os salpicões, os nacos de presunto, as talhadas de porco da salgadeira, o pote dos rojões. Quando calhava, ia uma canada de azeitonas bem fechada, uma manteiga caseira, se era tempo frio, que pelo calor não aguentava, derretia-se toda e era só perca para nada. As broas de milho, o bolo, às vezes cozido com sardinhas por cima, no forno de lenha, isso era feito de véspera, à noite, enquanto se arrolavam as compras a aviar, as voltas a dar na cidade grande, as portas onde bater. As verduras também eram apanhadas em cima da hora, para aguentarem mais, mas eram quase só pés de couve, às vezes uns nabos ou nabiças, que depois seguiam em cima das batatas, cebolas e alhos, mesmo ao lado das panelas e tachos onde os viajantes teriam de cozinhá-los, algures, à borda dum regato perdido num ermo qualquer. Ora, preparar isto tudo, para nós, era uma alegria. Melhor que ir ao Senhor da Serra! Alindavam-se as fatiotas muito bem, as mudas para não andarem como uns mendigos na cidade. Enquanto isto ia correndo, recordavam eles as aventuras doutras idas. E a gente cantava como num arraial. Eram contos e mais contos, cantos e mais cantos...


- Como era? Como era?


- Olha, uma vez foi o teu avô com o teu tio mais velho, mai-lo ti'Nino. Naquele tempo este era ainda um cachopo que andava de casa em casa, aos biscates e ao que lhe dessem de manducar. Foi a primeira vez que calçou tamancos, uns velhos que eram do teu pai. Ficavam-lhe tão grandes que o miúdo parecia um pato marreco a abanar-se, espigadote, sem jeito nenhum. Muito a gente riu daquilo! Era a primeira vez que ia ao Porto. E olha que foi uma sorte! Abalaram daqui lá pelas cinco da madrugada, nem sequer ainda luzia o alvor. Lembro-me bem de que o galo, quando cantou a primeira vez, já eles tinham há muito deixado de se ouvir. Levavam candeias de azeite para enxergar os caminhos, uma ou duas por carro, penduradas no fueiro da frente. Apontaram daqui às Travessas e ainda atravessaram S. João com noite. Iam menos daquela vez. Éramos só nós, os do Resende, os do Brandão e os da Galinheira, quatro juntas ao todo. Pouca gente para se defender, mas calhou. Apanharam um primeiro susto logo depois da Arrifana, quando o pinhal cerrado começou. É que ainda não havia estrada real nem nada. Era tudo azinhaga de terra batida marcada de rodados. O inverno ainda não tinha acabado e o chão estava mole demais. Como os carros levavam o carrego todo, olha, acho que o dos da Galinheira, ao descer para um ribeiro que tinham de atravessar, bateu para lá num pedregulho, os bois assustaram-se, puxaram desencontrados, o caso é que saltou o aro da roda direita e ela quebrou. Eles iam sempre prevenidos com peças sobresselentes e ferramentas para qualquer imprevisto, mas o pior é que foi mesmo no meio da correnteza, com o frio de enregelar os ossos a trepar da ribeira pelos pés acima. Aquilo atrasou-os ali quase meio dia, ainda por cima uma série de horas em que não surdiu vivalma pela estrada. Foi quando começaram a martelar o aro de ferro que o Nino deu o alarme. Moviam-se umas sombras lá pelos fundos mais negros da mata. Ele cuidara que era gente ao trabalho, depois deu conta que andavam era a vigiá-los. Aquilo deveria ser quadrilha, pela certa. Preveniu a correr o teu avô, para o que desse e viesse. Ali não havia casal nenhum, nem quinta, nem terra, nem lugarejo, só matagal, quilómetros e quilómetros. Para trás e para diante. Enquanto rematavam o rodado, confabularam rapidamente no melhor modo de se livrarem de trabalhos. O problema é que o atraso do conserto os impedia de chegar ainda com dia à venda mais próxima, de caminho ainda umas boas horas para a frente. Voltar atrás, nunca, que isso não dava com o ti'Zé Levante! Aí o Nino, que já então era danado a pregar partidas, pôs-se a vasculhar na correnteza, sacou de lá dois burgaus avantajados e, ali escondido pelos cômoros das margens do ribeiro, começou a malhar com jeito um no outro. “Tu que tás a cuidar? P'ra quê uma coisa dessas?” - acudiram logo os mais, a pressentirem uma aberta para escapulirem a salvo. “Tou cá im crer que achei uma maneira. A gente bai-se dibertir um bocado, bocês bão ber!” - retrucou ele, concentrado a limpar, meticuloso, a superfície húmida das pedras. “Ó ti'Zé, bocê repare se num dará resultado” - e explicou-lhes o plano. Daí a nada a caravana arrancou, parecia tudo como dantes, como quem não quer a coisa. Só que o Nino e o Quim da Galinheira deixaram-se ficar escondidos no regato, a espreitar os quadrilheiros ou lá quem era, cada qual armado dum par de burgaus bem grandes. Logo que as tais sombras de gente começaram a perseguir pela mata fora, discretas e cautelosas, o passo morno dos bois, os dois emboscados correram pelo leito abaixo, sempre acobertados e de olho atento aos meliantes até passarem para além deles. Depois, muito cuidadosos para não haver qualquer barulho, puseram-se a acompanhá-los a uns cem passos de distância, à cautela, aguardando que o lusco-fusco enoitasse de vez. Entretanto, o teu avô e os mais seguiam com as juntas, a fazer de muito descontraídos, cantando em altos berros as modas das desfolhadas cá da terra. Era para os bandidos não tirarem os olhos deles e não darem nunca pelos outros que os iam surpreender por trás. Quando anoiteceu, o teu avô e os mais acenderam ao mesmo tempo as candeias e penduraram-nas nos fueiros. Era o sinal. Os birbantes já estavam muito chegados à caravana, afoitos com a escuridão. O Nino e o Quim tinham-se colocado mesmo de modo a encurralá-los entre eles e os nossos. Quando a última candeia ficou pendurada, já estavam ambos agachados, com um burgau e um tamanco em cada mão, a dez passos um do outro. Desataram a bater com as pedras com toda a força, enquanto os tamancos chocavam. Tou! Tou! Tou! As faíscas e os ribombos pareciam mesmo os disparos das velhas escopetas da polícia. E então o danado do Nino aos berros: “Fogo! Fogo! Que num escape nem um! Fogo!”, a saltar dum lado para o outro, tou! Tou! Tou!, ora à esquerda, tou!, ora à direita, tou! Tou!, parecia um regimento inteiro da Guarda ali postado de emboscada aos ratoneiros. Os meliantes entraram em pânico, a disparar à toa, a correr, a atirar-se ao chão. Os dos carros berravam “mata! Mata!”, malhando com os varapaus nos pinheiros atrás de que se acobertavam. “Mata, que é ladrão!” O teu avô correu a um que estava de navalha de ponta e mola aberta, a fugir para o carreiro e, quando ele se lhe virou, acertou-lhe uma bordoada num pé que lhe arrancou a soleta. Pisgou-se o meliante a mancar pelo matagal fora como se levasse fogo no rabo, ninguém mais lhe pôs a vista em cima. Enquanto o diabo esfrega um olho foi a tramóia desfeita, levaram todos sumiço. A alegria desta surriada não lhes deu para comemorar, todos toparam que era de mau augúrio. Só pelo serão fora, agasalhados num quinteiro, uma boa légua adiante, se descontraíram o bastante para rirem a bom rir da partida bem pregada. “Só que os sacanas tinham pelo menos uma arma de fogo!” - não deixava de ponderar o teu avô. “Fazia-nos jeito uma tamém” - comentava o ti'Santos. - “Qualquer dia compro uma. P'rà caça.” Foi dessa vez que ele trouxe a primeira caçadeira do Porto, há quantos anos isto já lá vai! “Num se apoquente, ó ti'Zé, que, se eles bolto, o senhor inda les infia o pau pelo cano dentro da deles e nem bai ser preciso a gente cumprar arma ninhuma nem nada. Ficamos co'aquela, bai ber!” - acalmava, eufórico, o Chico do Resende, incontido nos verdores da juventude.


- Ó tia, e ele arrancou-le mesmo a soleta?


- Ora não! Tu já não te lembras, mas antes de a gente chapear as portas de entrada tínhamo-la lá pregada, como os outros têm uma ferradura. Era o amuleto da sorte do teu avô. Ficou lá até cair de velha. Apodreceu com os anos. Como tudo na vida...


- Não aconteceu mais nada?


- Depois é que foi o pior. Tu já ouviste falar do pinheiro da Malaposta? Pois. Estão lá sete cruzes pregadas, tantas quantos homens ali já foram assassinados. Se calhar até foram mais. Estes são os que se contam desde que começou o hábito de os marcar assim, ainda antes de eu ter nascido. Aquilo é lugar negregado, já muito falado pelos antigos. E então quando veio a quadrilha do Feirão, valha-nos Deus, foi a fim do mundo. Muito sangue ali correu de parte a parte, durante anos e anos.


- E o avô foi apanhado aí?


- Aquilo é já lá muito para arriba e naquele tempo era selvagem por completo. Não havia ninguém muitos quilómetros em redor. Isto é que era o problema. A quem era assaltado nunca havia vivalma para acudir. Era nisto que o teu avô cismava à noite, por causa daquela da arma. Porque no segundo dia tinham de atravessar a Malaposta, toda a gente o fazia ali pelo meio dia, para ver bem e se poder precatar, mas valia de pouco quando a quadrilha entendia fazer a espera a alguém. O Feirão foi o terror por estas bandas até à Serra de Arouca durante tempos e tempos. Parece que por ele até nem era má pessoa, mas tinha uma comandita sanguinária. Uns disseram que acabou por ser apanhado, outros que não, que fugira baleado e sobrevivera em terras longínquas, nunca ninguém pôde saber ao certo.


- E o que é que lhes aconteceu? Ele assaltou-os?


- Pois foi. O teu avô, como quase todos os que se metiam naquela aventura, quando se tratava da Malaposta poupava a paragem do almoço para adiantar caminho pelo matagal fora e dar menos ocasião aos azares. Comiam broa com uns nacos de linguiça ou de presunto ou então uns rojões, mais ou menos limpos do pingue, com um pedaço de bolo e azeitonas. Às vezes era só uma talisca de bacalhau. Um caneco de vinho em cima e pronto! Ninguém precisava de parar, que aquilo era uma selva impenetrável. Contavam que os tojais trepavam mais alto que uma pessoa bem taluda e mesmo as urgueiras e carquejas que por aqui quase só rastejam pelo chão, por aquelas bandas dão bem pela cabeça dum homem. Ora, assim como é que se pode evitar uma emboscada? Não é possível. O que eles costumavam era sair todos da estrada, ficava só um homem com a aguilhada à frente de cada junta a guiar os bois, os mais iam pelas bermas, adentrando-se nos matos, de vigia a cada moita, atrás de cada tronco, suspeitosos de toda a sombra, alerta a qualquer movimento.


- Então e nem assim...?


- Bem, valeu de alguma coisa. O teu avô sempre cheirou as brigas. Nunca se embrenhou na mata, como que a adivinhar. Depois, quando o carreiro fazia uma curva à direita, adiantou-se ao cortejo, pressentiu aquilo mesmo. A quadrilha do Feirão tinha-o topado e cosera-se ao talude no lado menos visível, andava mesmo a segui-los a par e passo. Quando o ti'Zé Levante enxergou o ombro do último ratoneiro, agachado na berma bem para lá da curva, disfarçou, fez que reparou numa coisa no chão, apanhou uma pedrita e voltou para trás a mirá-la, como quem não tinha enxergado vivalma. Ao passar pelos boieiros preveniu cada um. “Diacho, são muitos, pela distância entre eles debem alçar a mais de binte, a seguir à curba. Bamos adiante cum calma.” Depois, enquanto andava de costas, fez sinal aos do mato e mandou-os continuar por lá, mas doravante bem escondidos eles, prontos para uma surtida, caso houvera ocasião. Não dava ilusões, claro, a quadrilha tinha-os a todos debaixo de olho. A única vantagem era que os nossos estavam armados de varapau ferrado e sabiam manejá-lo com destreza, mesmo os que iam com os carros tinham trocado a aguilhada por ele. A prevenir, nas traseiras de cada carga e à frente, encostada ao taipal dianteiro, logo atrás dos bois, havia uma pilha de pedras roladas que durante a jornada haviam recolhido. Podiam vir a fazer jeito, nunca se sabia o que as oportunidades permitiriam. Logo se veria, pensavam eles.


- Parecia uma guerra, tia! E como é que foi?


- O Feirão saltou-lhes à frente, de garrucha aperreada. O teu avô plantou-se-lhe diante, as pernas abertas, o pau ferrado apontado no chão. Entretanto, uma dúzia de quadrilheiros cercou os carros, de ponta e mola em riste para cada boieiro. Os restantes espalharam-se pelo mato, de ambos os lados, a vigiar os nossos. Ficou tudo parado uns momentos, na expectativa. E vai daí, o Feirão resmungou: “Num queremos sangue, passem p'ra cá as notas e alguma bianda p'rà rapaziada, que fica tudo bem.” Fez sinal de pistola aos que rodeavam os carros e avançaram quatro para os carregamentos. E era o teu avô, a tentar ganhar tempo: “Ó tiozinho, atão num bê que a gente semos pobres, homes do campo? Bamos só a umas cumpritas p'às maiores precisões, se nos deixo descalços, que bai ser de nós e dos cachopos que deixámos lá atrás? É uma desgraça! Se bocês tem fome, tá bem, a gente dá-les de comer...” e assim por diante, a ver se o marau vinha às boas. Só que o Feirão não era de conversas. Ficaram ali especados um frente ao outro, o pistolão na mão daquele, o varapau aperreado nas deste, enquanto quatro negregados ensacavam o melhor dos carros. O primeiro que levantou o carregamento foi o que estava no dos da Galinheira. Aí o Quim não se conteve e fez menção de saltar do mato nele, só que logo lhe pulou diante um dos ladrões, de navalhão pronto: “Quedo aí, eh!” Ao brado, o Feirão desviou a cara para aquele lado, disposto a disparar. Então o maravelho do Nino salta detrás duma moita de tojo com um tamanco erguido na mão direita e zás! Acertou mesmo em cheio na pistola do tratante, com tamanha força que ela pinchou da azinhaga para um barranco emaranhado em silvedo que havia ali mesmo à beira. Em menos dum credo, o ti'Zé Levante atirou tamanha paulada às ventas do Feirão que o estatelou rasgado no meio do trilho, enquanto berrava: “Cheguem-lhes agora! Cheguem-lhes!” Os boieiros não precisaram de mais para partirem as costelas aos birbantes que lhes roubavam os carros, estenderam-nos logo ao comprido. Os do mato atiraram-se aos das navalhas, que os varapaus miscavam-lhes bem sem que as lâminas os atingissem, só se eles lhas atirassem. Apenas o Quim da Galinheira é que teve azar, o meliante reagiu mais depressa. Ele só teve tempo de virar-se de lado e o navalhão enterrou-se-lhe no braço. Isso deu tempo ao ladrão de agarrar-lhe o lódão e a coisa começou a ficar feia. Aí o teu avô deu por ela e num pulo atirou-se ao lado de ambos, com um rodopio do pau tão certeiro que malhou ao mesmo tempo nos dois braços do tratante. Caíram para baixo como mortos. Deve-lhos ter partido, a uma paulada daquelas não há osso que resista. Só que entretanto o Feirão deu acordo de si e começou a levantar-se, meio trôpego, a esfregar os olhos toldados pelo sangue que lhe escorria da cabeça por todo o lado. O ratoneiro do primeiro carro, a gemer das costelas, correu para ele a ajudá-lo a fugir. O Nino estava mesmo atrás, às pedradas aos bandidos, cada uma levava conta certa, já tinha marcado uma boa meia dúzia deles. Ao ver aqueles dois a tentar fugir, atirou-se-lhes. O birbante do saco pressentiu-o e fez-lhe frente de navalha aberta, apesar de derreado dum lado. O Nino estava de mãos a abanar, nem uma pedra se lembrara de trazer. Olhou para o chão, desesperado, e só então viu que tinha um pé descalço e o outro com um tamanco. Foi como um raio: sacou do soco e lançou-o com quanta força tinha à testa do ladrão. Abriu-lha a meio. Só que o outro era duro. Caiu de costas mas não largou o navalhão. O Feirão tinha-se já recomposto e ajudou-o, lesto, a levantar-se, para se pisgarem. O Nino ainda correu ao carro a munir-se de calhaus e virou atrás deles. Já tinham saltado o cômoro, a couraçar-se por entre as moitas, e num nada se perderam de vista. Entretanto, os mais, apertados entre dois sarilhos de varapaus dos nossos e sem chefe, com tantas baixas ao primeiro assalto, só queriam era escapulir-se de qualquer maneira. Os de cá dificultaram-lhes o mais possível a tarefa e malharam, malharam enquanto puderam. Nenhum ficou ileso, apesar de serem mais que os daqui, à partida. E acabaram por largar no terreno sete navalhas de ponta e mola, que andaram depois por cá de mão em mão. O teu avô ficou com aquela com que ainda hoje desmanchamos o porco, lembras-te? É uma bela lâmina, bem temperada, grande. Muito perigosa, uma arma de respeito!


- Então e o ti'Quim da Galinheira?


- Ora, a alegria foi tão grande por correrem com o Feirão que tudo o mais perdeu o interesse. Ataram-lhe a ferida lavada com aguardente e, quando coagulou, deixaram-na ao ar e pronto. Quando aqui chegaram tinha um grande casco, mais nada. Ele é que nunca mais se desfez do navalhão que o esfaqueou. Usou-o até à morte e ninguém lhe podia tocar. Provou-lhe o sangue, agora só faria o que o dono muito bem quisesse, como ele costumava dizer. Era uma glória, aqui pelas aldeias deu brado, claro.


- Agora o ti'Nino com os tamancos... Que grande gozo! Aquilo é que foi!


- O teu avô costumava dizer – não te lembras? - que os tamancos são a maior arma do lavrador e toda a gente se ria. Pois agora aí tens, finalmente, porquê. Quanto falatório aquilo deu, cruzes!





7 – As Cruzes da Malaposta


Caía a noite, as galinhas eram enxotadas do quintal para o desvão debaixo da escada de pedra e trancavam-lhes a porta. Nós, os miúdos, éramos chamados para a cozinha. O fogão de ferro, a lenha, já estralejava a aquecer o ambiente, com as panelas em cima. Quando apenas as chamas que balançavam nas achas de pinho nos permitiam ver alguma coisa, então acendia a mãe a candeia de azeite e colocava-a em cima do tampo robusto da masseira. O serão era a este lusco-fusco de meia parede, com a escuridão completa daí para baixo até ao soalho. Eu tinha sempre um medo tremendo daquele antro sob a masseira e os bancos de pau, negro de breu, donde a qualquer momento me podia saltar o tafe-tafe, o mais terrível papão que aterrou a minha infância. Era tão real que um dia vinha ao colo de minha mãe pelo corredor da sala para a cozinha, a cabeça deitada no ombro dela, olhando para a minha irmã Belita que nos seguia atrás, nas sombras do escuro e, de repente, ela lembrou-se do monstro que me aterrorizava:


- Ó mãe, o que é o tafe-tafe?


- Ora, sei lá! Num há tafe-tafe ninhum. É um medo, pronto!


- Não! - gemi eu a temer o pior. - Há e há...


- Atão o menino é burro! Acredita numa coisa que num existe – tornou a Belita, rezingona.


- Olha, cala-te! - ordenou-lhe a mãe, inpaciente.


- O Tito é burro, o Tito é burro – cantarolou minha irmã. -Tafe-tafe! Tafe-tafe! Tafe-tafe!


E batia a compasso os pés no chão, fazendo-me caretas feiíssimas e gestos aterradores com as mãos. Foi quanto bastou. Eu vi ali de imediato o tremendo papão, negro e pronto a engolir-me inteiro num ápice. Agarrei-me ao pescoço de minha mãe com quantas forças tinha e desatei num berreiro, em pânico, com uma gana desalmada. Ela virou-se, furiosa, pregou meia dúzia de bofetões descontrolados na Belita, enquanto esta fugia desgovernada para a cozinha, onde se acobertou num canto, a gemer de raiva contra mim. Eu é que não desgrudava do abraço, a tremer de terror. E não deixava minha mãe mover-se para dar conta da ceia. Ela bem tentava acalmar.


- Pronto, já passou! Num há perigo. Foi a tua irmã que é maluca. Agora acabou. Bai p'rò chão, que eu assim num cunsigo fazer nada. Ai, balha-me Deus!


- Não, não, mãe! - e quanto mais ela tentava mais eu me pendurava a estrangular-lhe o pescoço, deveras descontrolado.


Só foi possível resolver o diferendo quando o meu pai subiu do curral das vacas, acabada a freima de ordenhar e acomodar o gado, de erva na manjedoira e cama de tojo fresco. Ele sentou-se num banco, encostado ao taipal de pinho da janela, e falou-me, descansado:


- Anda cá, anda ao colo do pai. A tua mãe já num pode mais.


Deixei-me sentar nos joelhos dele e encostei-me ao peito robusto e acolhedor. Abraçou-me com firmeza e então, instantaneamente, acalmei, fechei os olhos e fiquei ali a dormitar pelo serão fora. Nem me lembro de quem me deu a malga de leite migado com miolo de broa, o prato ritual da ceia. Que lá comer pela minha mão, disso não era ainda capaz, tal a ressaca de ter avistado o tafe-tafe ao vivo, ali a um passo de mim. Em contrapartida, recordo vivamente toda a conversa terrível do serão, aliás de todos aqueles serões de pôr-nos os cabelos em pé.


- Roubaro uma toira aos do Maninho de Nogueira. Hoje de manhã entraro no curral e olha, nada. O gado belho ficou, bá lá... Ninguém deu por nada. Num sei cumo eles cunsegue isto.


- Num tinho lá um cão, ò menos?


- Cuido que não. O dum bezinho diz que ladrou, mas ora! A gente passaba a noite im pé se se alebantasse sempre, quando um cão ladra.


- O pior é quando há mortes. Mas apetecia mesmo era sangrar esta ladroage toda.


- Eles é que nos sangro, calha bem! O pinheiro da Malaposta tá cribado de cruzes. Conto p'ràí que hoube agora por lá uma sarrafusca co'a polícia. De parte a parte acho que há mortos e feridos. Qualquer dia o tronco da árbore num chega. E é bem grosso, por acaso.


- Num se apanhar esta corja toda! Malditos!


Eram as considerações sonolentas entre os meus pais. Mas nós não nos aguentávamos muito calados. Isto metia medo, pudera! Se até aos grandes, quanto mais aos miúdos! A Tilde era sempre a mais afoita:


- Depois eles fico a correr o fado.


- Quem? - tremia a Belita, a encolher-se mais ainda no seu canto.


- Os que são mortos à facada.


- Credo!


Eu ouvia e ficava arrepiado, todo enrolado contra o casacão do meu pai.

- Nunca mais eles tem descanso, todos os dias no escuro, quando o sino da torre bate a meia-noite, lebanta-se um bento a assobiar fininho, são eles a aboar por cima de toda a folha – continuava a Tilde, a tremer. - Òpois corre por todo o sítio que calhar, sem descanso, inquanto alguém num les cortar o fado. E tem de ser antes de cruzar sete rios ou sete pontes, ou atão quando eles entro outra bez im casa. Mas aí tem que se les dar co'a foice roçadoira no pescoço e pode matá-los. É perigoso.


- Mas eles já tão mortos!... - objectava a Belita.


- Mas nunca morre todos de bez, isso é que é a desgraça deles. Inquanto num houber justiça, eles ando por aí à precura dos assassinos. Mas num sabe quem eles são nem onde tão, por isso eles aboo por todo a lado ao calhas. E atão quando passo im silbados chego todos arranhadinhos a sangrar.


- Atão e os bibos num corre o fado?


- Ora não! Num bês o P. Abel? Mas é só quando é o sétimo filho macho duma casa. Os mais, não. E é diferente.


- Porquê? - atrevi-me eu, tremendo todo.


- Porque os bibos num gosto nunca de correr o fado, mas quem corre tem mistério e sabe coisas que mais ninguém inxerga. E mais: quem corre o fado bibo num cunsegue mais morrer.


- Atão mas isso é que era bom! Quem me dera! - murmurava a Belita.


- Olha, e o P. Abel nunca mais bai morrer? - admirei-me eu.


- Pois não, fica sempre assim. Ele já debe ter mais de mil anos. E inda nos há-de interrar a todos.


- Num é nada! - duvidou a Belita. - Ó pai, o P. Abel nunca mais morre? É berdade?


A conversa dos grandes suspendeu-se, misteriosa, a deixar-nos ainda mais baralhados.


- Sei lá bem! - respondeu a minha mãe. - As coisas de Deus a gente num intende, o milhor é acreditar e andar im frente. Num perguntar demais.


- Porquê? - a Tilde nunca desarmava.


- O P. Abel é um caso sério, coitado do home – ponderou o meu pai. - Sempre perseguido, sempre incompreendido. É um grande mistério, já era tal e qual quando o meu abô bibia e a abó do meu abô, fica sempre igual, o tempo num le toca. Só que bai correndo mundo, ninguém já se lembra donde é que ele beio. Qualquer dia tamém se bai de bez daqui, ninguém sabe para onde.


- Ó home, é milhor mudar de cumbersa, que isto põe a canalha nerbosa e òpois nem dorme sossegada...


- Oh, não, mãe! Eu queria saber mais – rezingou a Tilde, sempre ela.


- A gente dorme, mãe, a gente dorme – deu-lhe força a Belita, ainda a tremer no canto.


- Isto num faz mal, cuida o P. Abel – pesava sereno o meu pai, encavalitando-me no joelho direito, para descansar o colo. - Cuntou-me que quando corre o fado bê muito mundo. Atão, quanto aos cachopos, o segredo é este: inquanto são miudage o que mete medo só les faz mal se num houber quem os tome. De resto, até será bom, que quanto mais eles se acolher à gente e for beijados e abraçados, milhor. Quando tem medo é quando mais eles acorre òs seus, é só dar-les o que eles pede de colo e de carinhos e mimos, mais nada. Conta ele que dá saúde e faz crescer. Atão, só é mau quando eles num tem ou quando les falto co'o amor e a ternura. Eu até le disse que era coisa de mulheres, mas ele riu.


- Pudera não! Os homes num tem de ser todos uns brutos. Imbora a maioria... Bê-se p'ràí do piorio, é o que há mais.


- Pois é, mulher. Agora um home tem de manter autoridade, de modos que tudo tem de ser equilibrado. Cá o meu nunca nos deixou pôr o pé im ramo berde. Mas tamém sabia dar o pão e, quando éramos cachopos, todos andámos ao colo dele. E atão às cabalitas, aos ombros! Aquilo é que nos sabia bem! Mas nunca ninguém abusou, quando mandaba, mandaba. Ponto final!


- Conte mais do P. Abel – pedi eu, encantado com o destino que este me recomendava em particular.


- O que ele refere é que quando aboa por riba de toda a folha, atão bê os poboados. Miúdo que goza de saúde e alegria de biber, é certo e sabido que le passo o tempo aos abraços e ao colo. O que mirra, pronto, é um injeitado a morrer debagarinho. É de regra. Poucos foge a isto, ao que ele inxerga por esse mundão fora.


Isto já era fala de graúdos, não me agradava. Eu queria era mais aventuras. Cochichei para a Tilde.


- O P. Abel tamém chega todo arranhado das silbeiras? Eu nunca le bi a cara esgatanhada. E a batina fica às tiras, não?


- Qual o quê? Ele nunca se esquece de gritar “abante por cima de toda a folha!” quando bai correr o fado. Assim nunca fica por baixo de nada. Só chega cansadinho de todo. Já biste como ele respira a ofegar, gaf-gaf? É disso, que ele corre terras e terras, às bezes é uma noite inteira sempre a aboar, já cuidaste? Òpois nem tem tempo p'ra descansar, que às tantas na noite a seguir é o mesmo, lá bai ele outra bez, léguas e léguas.


- Debe ser bom...


- Num é nada, - contrariou a Belita, achegada a nós- que eles fico tão gastados que òpois nem cunsegue sigurar-se im pé. Eles num dorme nem nada, ando a bida inteira a ficar cada bez mais chupados até incolher cumo uma saca bazia, toda injarricada. Só pele e osso, parece uma castanha pilada.


- Ih, ih, uma castanha pilada ! - desatei eu a rir.


- Ri-te, ri-te, que às tantas aparece-te um e ficas logo cum mau olhado. Num é caso p'ra rir.


- Oh, eu num me estaba a rir deles, era da castanha pilada – protestei, temeroso.


- Bom é a gente ter pais que num nos injeito. Já biste? Quem num tem... - considerava a Tilde.


O pai ouviu o comentário, puxou-a para ele, “anda cá, minha rabica”, e depois comentou:


- Já tás a sair da idade, que isto é só co'a miudage mais piquena, òpois, não. O P. Abel acha que é sempre preciso, mas co'o andar dos anos já num é o mais importante. Ele é que sabe o que diz, que bê coisas que ninguém mais bê.


- Bê cumo os que corre o fado, home, atão num é? - perguntou minha mãe.


- Debia de ser mas num é. Ele estuda muito, os mais são uns ignorantes cumparados co'ele e atão parece que fico cegos. Ando a aboar de olhos fechados. São uns brutos cum'à gente. Ele, não, ele apanha tudo. Quando aboa por riba do mundo num le escapa uma nesga. Aquele home sabe coisas que até custa a acreditar.


- Essa das cruzes da Malaposta eu cá num podia imaginar. Medo é sempre medo, num é? Cumo é que por a gente os abraçar já num faz mal e, ò imbés, inté calha bem a esta miudage?


- O mimo alimenta. Alimenta mais quando a gente aperta o bebé ao colo do que quando mama, porque o alimenta de saúde e de bida e o mamar só alimenta o corpo. Ele trocou-me isto assim pelo miúdo, tim-tim-por-tim-tim. É o que os bai atirar òpois pelos anos além, senão fico trôpegos, num ando nada pelas idades fora. É o que jura o P. Abel e ele inxerga mais que os mais todos juntos.


Eu turrava de sono, a imaginar o mistério daquele homem a voar, a querer vê-lo e a temê-lo, e enrolava-me cada vez mais no casacão de meu pai, de olhos fechados, balançado pelo ritmo da respiração do peito dele. Como a vida era um sonho, nem me lembro de ter sonhado, tão fundo mergulhei neste repoiso.






8 – Abrir Estradas


Naquele tempo, todos os trilhos ou eram de carro de bois, os mais avantajados, ou então dos pés da gente, sendeiros tortos, caprichosos, por matos e campos, por montes e valados. Os mais bem fadados já tinham uma bicicleta, com aquela roda atrás muito alta, do tamanho quase dum homem, e lá iam ao domingo espalhar a basófia, à hora da missa, na igreja, muito impantes. Agora todos se ririam, mas então aquilo metia respeito, era novidade e muito rara. É preciso lembrar que o mais do povo vivia do gado que pastoreava por outeiros e quebradas, não havia família sem rebanho de ovelhas e cabras, as vacas eram ainda raras por aqui, só nas casas maiores. E o pascigo era comum, ainda se não tinham dividido as terras, apenas alguns matos e outros tantos eidos que o Senhor do Covo distribuíra em paga a algumas famílias, por serviços prestados, em tempos que já lá vão, nem há memória de quando. Os terrenos eram maninhos na maior parte, mesmo os de boa terra para cultivo. O mais eram baldios de uso comum, que era o deveras conveniente ao pastoreio. Só muito mais tarde houve apropriações e escrituras, muita polémica. Há quem se tenha aboletado e bem, sem direito nenhum, mas que se lhe havia de fazer? O povo é sempre ignorante e acaba irremediavelmente espoliado pelos mais espertalhões. É a lei da vida. Uma pessoa tem de se conformar quando já não houver mais nada a obrar, não é?


Claro, tens razão, estou-me a desviar. Mas bem vês que a terra comum não levantava o problema das estradas, todos podiam andar por todo o lado sem entrave e servir-se do que precisavam como lhes aprouvesse. Assim vivíamos ainda por estas bandas em tempos de teu avô e antes dele mais era desta guisa. Contavam os avoengos que isto fora uma matagueira interminável desde Oliveira à Vila da Feira, tudo pertença dos da Casa do Covo, que eram a nobreza daqui, interligada de perto aos senhores das Terras de Santa Maria que, ao que contam os ditos dos antigos, foram quem confabulou com D. Afonso Henriques as manobras e as contendas que levaram ao nascimento de Portugal. Vê lá bem onde isto remonta! E mais para trás, sabes lá! Por exemplo, a fábrica de colchões de Bustelo ainda te lembras de miúdo que era de vidro, não lembras? Pois é. Foi lá que decerto os romanos montaram a indústria quando ocuparam a Península Ibérica, vê lá bem há quantos séculos, há quantos séculos! Eles foram corridos e depois deles muitos outros, mas a vidreira continuou sempre, mudando de mãos, mudando de povos, através de gerações e gerações até aos nossos dias.


Evidentemente que era dos senhores, o povão que por aqui vivia dava apenas a mão-de-obra à laboração, só que, depois, as guerras do liberalismo e, por fim, a República, no princípio do século passado, alteraram tudo. Aquilo foi vendido, os industriais é que tomaram à conta deles a exploração, reconstruíram os edifícios por inteiro, as técnicas mudaram, houve uma época de apogeu e depois a decadência, a venda a outros e a mudança final de ramo. Morreu ali mais dum milhar de anos de história ignorada. Nunca mais se deverá fabricar vidro nesta terra, doravante. É uma pena não ficar disto pelo menos uma memória!


Está bem, é o progresso... E eu já estou muito velha e caduca para isso, é bem verdade.


Ora vês? Ao menos um museu, até atrairia mais vida, mais turismo, maiores ganhos. Se calhar mesmo um levantamento arqueológico e uma monografia histórica não seriam descabidos, mas enfim...


O quê? Uma abordagem literária?! Lembras bem. E sabes que mais? Ela até já principiou e não é por acaso. Nem imaginas com quem! Não, Ferreira de Castro ignora tudo isto e só muito vagamente as paisagens de Oliveira e cercanias lhe marcam a escrita. Não, é o mais clássico dos clássicos em lides quejandas.


Exactamente, Eça de Queirós. Nunca ninguém o descobriu até agora, sabes? É um segredo que o P. Abel partilhou comigo, só porque eu gosto de ler e tenho vindo a ser a mestra-escola de todos estes aldeões nem sei há quantas gerações. Não é por acaso que me chamam a Sôra Pessôra e toda a gente apagou o meu nome. Eu própria julgo que acabei por me moldar a isto, nem me consigo ver noutra função, apesar dos dez filhos que criei e lancei o melhor que pude e soube no maremoto da vida.


Ah! Pois claro. Perdoa-me por eu divagar tanto, mas olha, a gente com a idade é assim, gostamos de ir adejando por isto e por aquilo... Também aqui chegarás um dia. Mas tens razão, era de Eça que te estava dando notícia. É verdade. Quando ele quis encontrar a portugalidade autêntica, quem havia de procurar? Uma raiz que remontasse funda aos primórdios da nacionalidade e se não houvesse pervertido nos ventos da grande cidade, nos mitos vazios do mundo vário. E que se risse descarado das pretensões de todos estes, com os pés bem enterrados nos torrões das berças. Pronto. Diz o P. Abel que elegeu a Casa do Covo, baptizou-a de Ramires para encobrir a fantasia e tudo o mais na pintura é o retrato de S. Pedro, do concelho de Oliveira. E este aqui nem mudou de nome, aliás, só que o tornou cidade, por antecipação. Eu cuido que Eça de Queirós intuiu e bem que por cá se mantinham impolutos valores e apostas que entretanto muito dessorados andariam pelos grandes fóruns do País. O P. Abel ri-se quando eu acho A Ilustre Casa de Ramires uma maravilha. E não é só por falar de nós, ao menos dos outeiros, dos prados, dos rios, das matas, que lá, quanto ao mais, a gente do povo não pesa ali muito. É a Casa do Covo, é verdade. Mas ele diz que o romancista já tinha olhos de cidade e, se topou que aqui mexia outro Portugal, já qual ele era não conseguiu enxergá-lo de todo. A mim parece-me que ele já viu muito quando às falácias dos palavrosos, corruptos, inoperantes, parasitários as varre a todas, sem mais considerações, com um “patriótico murro português” nas ventas! O P. Abel desata sempre à gargalhada, diz que isto é verdadeiramente excelente mas que aqui há muito pano para outras mangas e que Eça de Queirós nem imagina a mina de oiro por que passou sem ter visto quanta luz dentro dela brilhava. Mas enfim, vá lá a gente entender o P. Abel! É um caso aparte, não o podemos medir pela nossa bitola. Um homem que se bacoreja que já por aí andava no tempo dos Romanos! Não sei quem pode acreditar, mas, enfim, é a voz do povo. E se ela é a voz de Deus, algum sentido isto há-de ter, embora não enxergue qual, em meu alvedrio.


Ah, pois, as estradas! Não, não as havia quando Eça andou por cá recolhendo inspiração. Eram os córregos e as sendas que botavam de Cidacos a Bustelo, dali a Vila Chã e Samil até às Devesas, numa rede feita de acasos e pés repetidos. Não vês que nem casas havia ainda quase nenhumas, só aquelas de granito nu que por aí restam agora envergonhadas, no meio das opulências novas que se estadeiam? O quê?


Ora, o que Eça queria era endeusar o nosso atraso que nem era maior então que hoje, se olharmos ao País de antanho! Não, não! É que lhe pareceu que por estas bandas se preservavam tradições e sensatez quantas bondem para repor de pé um povo inteiro, mais nada. Ora, as estradas vieram por esse entrementes.


Pois aí é que está! Não foram os senhores do Covo que mexeram nas ruas, também não foram contra, cuidaram até que era bom e por eles foi luz verde ao povoléu todo. Quem picou os ânimos foi o ti'Zé Levante, o teu avô. Já naqueles tempos era dos poucos que sabiam ler e manipular os pauzinhos do poder. É por isto que o P. Abel se ri do meu encantamento com o romance do Eça. Diz que ele se enganou na fonte, devia ter bebido do Ribeirinho em lugar do Antuã. Reparou no nobre que já tinha os dias contados, em troca do povo bruto que principiava a sair da casca, a aprender a piar. Cuida ele que era aqui que estaria o que o romance procurava e não encontrou.


Perguntas pelo que era então? Qual a receita que o P. Abel diz que ele não viu? Olha, vais-te rir pela certa. Não é por ter a ver comigo, porque ele joga-me na cara de eu nunca a ter também entendido, atira-mo sempre para cima. Eu não me importo, nunca é por mal, que aquele homem é assim, corta a direito mas é por bem, a gente perdoa, não é? E acaba agradecendo.


Está bem, está bem, é este divagar por mor da idade. Não ligues, rapaz. O que o P. Abel diz é que o segredo está na educação. Já vês porque se ri de mim, eu é que sou a mestra e, pelos modos, andei cega a vida inteira porque nunca enxerguei que haja por aqui nenhum segredo particular. Ora, ele jura que sim e que Eça de Queirós passou mesmo ao lado do que era importante, por só saber olhar para os de cima quando era ao invés, nos de baixo, que o grande tesoiro germinava e dava frutos. Ele conta mesmo que as estradas foram um dos resultados daquilo.


Porquê? Na dele é porque foi obra do povo inteiro, o ti'Zé Levante falou com os grandes e com os do poder, foi ao Administrador a Oliveira, mexeu a Câmara, fez-se Regedor e toca para a frente com toda a população atrás. Sabes que do lado do Governo, então como agora, pinga sempre muito pouco. É fatalmente do populacho sem eira nem beira. Dinheiro contado, por aqui não abundava. Era o tempo em que os nossos maiores ainda trocavam um alqueire de feijão por dois ou três de milho, quando não por um saco de batatas mai-lo direito a um mês de novidades da horta. Troca directa, assim, ainda me lembro do primeiro chambre que a costureira (que Deus lá tenha em sua guarda) me alinhavou. A minha mãe pagou-lhe sabes como? Com um eucalipto fino, para ela armar uma foice roçadoira e um cabo de forquilha. Pois era mesmo deste modo, em tempos que já lá vão. Muito diferente de hoje, desta fartura toda. Agora o P. Abel conta que a abundância é por mor da educação que aqui damos e não existe em mais lado nenhum. Eu cá custa-me a crer, porque nunca vi diferença de monta. Agora, se ele o trejura, nalguma coisa o há-de fundar, que é um sábio e um santo. O mais certo é ter visões onde enxerga além do que o resto do mundo vê. Que lá os contos do povo, enfim...


Eu sei, eu sei, não me esqueci, não cuides... Pois a questão é que o teu avô, o ti'Zé Levante, tirou-se de cuidados e depois de garantir que não havia obstáculo, antes apoio do lado da Casa do Covo, do Administrador e da Câmara, enfim, dos grandes, começou a bater de porta em porta, conversando com calma, ali pelo fim da tarde. Ele tinha jeito para aquilo, escolhia a dedo quem tinha melhor fama primeiro, depois mandava-o aos vizinhos mais chegados. A seguir também lá ia, a confirmar a um e a outro. Foi como a atear um fogo. Pôs do lado da ideia o P. Abel e levou-o a deitar água benta nas homilias, domingos seguidos. Tudo muito bem combinado. Não havia dinheiro, claro, mas havia braços com fartura e bem rijos, da rudeza dos montes e dos campos. O importante era mobilizá-los, quantos mais, melhor, mais quilómetros rasgariam.


Se largaram os trabalhos de cotio? Não, que o combinado era para os fins-de-semana. Não quer dizer... Houve dias e dias, quando as coisas se atrasaram e só alguns se ajeitavam, por exemplo. Mas foi raro. Os cachopos em regra tratavam naquele entretanto dos rebanhos, as mães era da cozinha, todos os mais iam rasgar as estradas, aos sábados e domingos.


Anos?! Quais anos, não durou tanto, que todos juntos andámos muito depressa! Em meses o teu avô fez com que a aldeia inteira aparecesse cortada de estradas em todos os sentidos. Ninguém ficou isolado, dos que ao tempo cá moravam. A largura em que assentaram era para passarem à vontade duas juntas de bois, contando com o tamanho das cornaduras. Era o que importava a todos, embora naquela época só as casas maiores e mais afortunadas tivessem um carro de seu. O ti'Zé Levante tinha dois, mas isto então já era um luxo muito, muito raro. Também lhe dava autoridade, entendes? O povo liga sempre muito a estes sinais, embora ele pouco precisasse daquilo, que sabia impor-se, tinha uma vontade de ferro.


Ora pois! Começaram todos da igreja, para não beneficiarem ninguém nem nenhum lugar em particular. Um grupo rompeu para a Gandra e outro para Costa-Má. Da igreja para o cemitério não foi preciso, era o passal do senhor Abade e a passagem dos de Vila Chã para a missa e de toda a aldeia para os enterros tinha aberto um trilho tão largo que passavam à vontade três ou quatro carros pelos campos abaixo. Ali até o córrego tinha largura demais, por isso é que ao depois, quando os terrenos foram apropriados, tiveram que lhe erguer um muro de cada lado, senão nem os cultivos escapavam ao calcar de tanta gente, que há sempre quem não repare no que faz aos vizinhos. Não é pecha só de agora, já naquele tempo havia muito distraído, que lhe não doía na bolsa nem na fome dos filhos.


Era, era. Primeiro, unir cada lugar à igreja, por isso a seguir foi ligar a estrada de Costa-Má a Samil. Os carros naquela época cortavam pelos campos, que era na maior parte uma matagueira a perder de vista. Mas depois cuidaram que dava mais trabalho cortar pelos rodados do que aproveitar a estrada já rasgada e então ligaram do meio dela até Samil. Problema aí foi então a ponte do Rio do Pintor. Só quem sabia de pedreiro é que podia deitar mãos à obra. As Travessas de S. João ficavam ali mesmo em frente e era a ligação para o grande mundo. Os moleiros que moravam lá no pego também lembravam que eram fregueses, filhos de Deus, como os mais. A estrada parou à borda do regato. Aquilo era muito a pique, eles atravessavam as alpoldras com os burros e trepavam por ali fora, muito satisfeitos com a estrada nova. O ti'Zé Levante sentava-se lá por cima a coçar a nuca, a olhar o ribeiro, a medi-lo com a vista e pronto! A gente já sabia que magicava novidade: e foi a ponte velha. Falou aos pedreiros, não havia quem se ajeitasse àquilo? Os mais tinham alvitrado por uma de pinho, com troncos grossos. “Só de remedeio, só de remedeio” - contemporizava ele. Enquanto os outros ficavam a cavar, a padejar terra e pedras, a arrancar uns sobreiros que trepavam por aquela congosta, leva ele muito sorrateiro um grupo dos que se entendiam melhor com o granito até ao largo das escolas que nem existia ainda, eram uns campos de hortaliça dos avós da ti'Sardinheira. Desceram à Ribeira Verde no fundo da encosta, que era o único lugar onde havia um pontão de arco em meia lua, diz o P. Abel que deixado ali pelos romanos, por mor do escoamento do vidro de Bustelo.


Bem, eu nunca fui confirmar, mas ele contou-me que é obra de antes da nacionalidade e que está lá registada na pedra, para quem o queira comprovar, por mor das dúvidas. Muito carcomido do tempo, ao que ele me contou nem dá bem para se ler o que escreveram, mas se o granito ficou gasto dos séculos, repara bem há quantos não deve estar ali plantado! Delir um entalhe por mão das intempéries é obra! Aquilo deve ter quase dois milheiros de anos, vê lá tu, mais do dobro do que conta Portugal! Mas adiante.


É claro que aquela ainda está por ali para durar, as obras daquele tempo eram para a eternidade, agora só com um terramoto é que pode vir abaixo algum dia. É um arco perfeito, à maneira romana, é verdade. O P. Abel deve ter razão, herdámo-la deles e por cá ficou ignorada séculos e séculos. E agora foi ele que deu por ela.


A minha cabeça, lá estou eu a variar! Pois o ti'Zé Levante meteu-se para lá com os pedreiros, entraram no rio que ia de poucas águas, era a estação seca. Olharam, conversaram, mediram, palpitaram e quando de lá vieram já tinham resolução tomada. “Bamos à pedra ao Calbário, à beira da Serra do Sino, e trazemos o saibro do Merouço” - rematara ele. “O João do Paúl é que bai comandar a obra, que é o mais ajeitado co'os granitos”. Quando chegaram aos moinhos, já era só para distribuirem mais ajudantes pelos dois grupos que tinham de principiar logo os carretos. Com ele a mandar era assim, ninguém parava nem para descansar, mas ao fim a obra via-se e todos nos sentíamos orgulhosos. Enquanto a ponte durou, fomos nós, as raparigas e as mulheres que demos mão-de-obra a romper estradas. Aquilo no rio foi um sugadoiro de homens e de rapazes. O ti'João do Paúl comandava os pedreiros e a empreitada toda, a escavar caboucos, a armar troncos e madeirame, a fazer subir as fiadas de granito aparelhado, tudo ali muito certinho, que ele não perdoava um desvio. Aquilo deixava-os arrasados, a descer os penedos brutos encosta abaixo até às alpondras, a acertá-los ali à beira das águas, a montá-los sobre a argamassa descida da estrada aos ombros, em celhas. Cada pedregulho, mesmo desbastado, era obra para dois, três, mesmo quatro homens juntos para o acertar no lugar próprio. O que lhes valeu ali foi o Nino. O ti'Nino nestas ocasiões era um moiro de trabalho, sempre serviçal e aplicado até mais não. A boa disposição dele grangeou-lhe na ocasião tanta simpatia que pela primeira vez teve alguém em quem mandar. O teu avô tinha-o em muito boa conta, eram unha com carne, se assim podemos falar entre um grande lavrador e um zé-ninguém, mas pronto, tu entendes.


Foi, sim, foi depois daquela ida ao Porto que, não fora ele, ainda por lá teriam ficado todos, que o Feirão não era para brincadeiras. Mudou-lhe a sina a partir de então, foi o golpe do destino, o bandido a partir dali só teve reveses e desapareceu de vez sem mais ninguém dar conta, graças a Deus. Muito estrago e terror espalhou por esse mundão além, antes de o ti'Nino lhe ir às unhas! Foi bem feita, muito bem feita, que ele merecia bem pior! Foi corrido à tamancada, ih, ih! Que riso!...


É isso, estava eu a contar de aquele pedro-sem, por uma vez na vida, ter podido mandar em alguém. É verdade. O teu avô encomendou-lhe a organização dos ajudantes dos pedreiros e dos carreiros que iam à pedra e ao saibro. E que jeiteira o diacho do homem mostrou para aquilo! A rir e a brincar tocava-os a todos, ninguém se encorajava a negar-se, até porque ele era sempre o primeiro, nunca a gente compreendia como é que ele aguentava tanto. Era um cavalo de força, um boi de resistência! Nunca faltou serventia lá na fundega do Rio do Pintor, que ele vigiava atento cada palmo de adianto. O ti'João do Paúl praguejava como um desalmado, com as unhas partidas e os dedos deformados de tantas entaladelas naqueles enormes blocos de granito. É que eles nem tinham alavancas de ferro nem de aço, eram só paus de eucalipto e de carvalho. Partia-se tudo ao correr de cada dia, tinham de arranjar novos cada manhã, mas ninguém desanimava. Ferramentas a sério, só mais tarde. Aprenderam ali para quando chegaram à ponte de Fundões. Esta foi muito mais difícil, mas já não teve história, tinham aprendido a lição, correu muito mais depressa e sem sobressaltos de maior. Então já em todas as casas havia uma alavanca de aço pesada, comprida, despachava trabalho que era uma alegria!


Não, não houve problemas de monta. O Quim da Galinheira, o Nel do Rato e mais uns dois que me não lembram tiveram, um sábado, de ir aos ombros ao hospital de S. João. Um penedo escorregou-lhes em cima dos joelhos, foi uma sangreira. O da Galinheira ficou com uma perna partida mesmo abaixo da cintura, o outro, não, foi só um rasgão pela coxa abaixo. Valeu-lhes o ti'Nino que estava a descer ao lado, com um pedregulho às costas. Mal viu o perigo, jogou o penedo ao rio e correu para eles, ainda a pedra deslizava do encaixe para cima dos homens. Meteu-lhe as mãos por baixo, entalou-lhe um ombro e empurrou-a de modo que ela acabou por encalhar na terra, depois de raspar e rasgar os que foram apanhados. Ele conseguiu evitar, mesmo assim, que aquela penedia lhes ficasse em cima, tê-los-ia esmagado pela certa, que aquilo tinha cá um peso! Era um bloco que tivera de vir sozinho numa carrada, os bois não aguentavam mais. Vê lá bem a desgraça que ali podia ter acontecido! Era para o ti'João do Paúl rematar com ela as juntas, no fim da fiada onde apoia o alçado da arcada. Olha, ficou para ali de lado, ajeitou-se-lhe a terra para ela calçar bem o paredão e acabou a fazer-lhe de reforço, num dos topos. Ainda lá se vê, quem vem das Travessas, na parte escondida da ponte velha, no meio daquela matagueira toda que com o tempo foi por lá crescendo e cobrindo tudo novamente.


Mas a propósito de que é que isto vinha? Estavas tu a perguntar...


Era isso, pois claro! Esta minha cabeça! É que erguer aquela ponte, por mãos de quem nunca tinha feito igual, estás a ver! O ti'João do Paúl levantava para aí pardieiros a quem lho encomendava, mas era diferente. Aqueles casebres eram na sua maioria tugúrios de quatro alçados e terra batida, com telha vã sobre uns caibros por riba. Uma ou outra tinha nos baixos o gado, um soalho por cima onde moravam os donos e rematava-a um telhado de duas águas. Raramente ia mais longe, quase ninguém tinha posses para muito, quem dera! As casas maiores já quase todas precisaram de conselhos de gente de fora, de mestres pedreiros e canteiros com mais experiência. Lá a mão-de-obra, essa era sempre daqui, havia pouca gente e de longe ficava tudo além do que mesmo os maiores podiam. De modos que os nossos que se ajeitavam, a mando do ti'João, nunca na vida tinham tentado uma coisa de tal monta como pôr de pé uma ponte de granito, por mais pequena que fosse, igual àquela, ali na parte mais estreita e a jeito entre as congostas de Samil e das Travessas. Então foi mesmo preciso trabalhar fora dos fins-de-semana para levar aquela teima avante. O povoléu começou a protestar, que aquilo ia atrasar os caminhos, que nunca mais se rompia até Vila Chã que era o lugarejo mais povoado da freguesia já naquele tempo, que ligar por ligar às terras de fora mais valera trepar pela Gandra fora até Nogueira, ao largo da Feira dos Vinte e Sete que já vinha da Idade Média e bom jeito nos fazia todos os meses na compra e venda de gados e alfaias, para uns rendimentos extra, que então nem falar de chegar até Bustelo ou à Lomba, ficariam por lá perdidos no cimo dos montes, nunca mais haveria estrada que lhes batesse à porta, sabes como é o falatório do povo a cortar casacas quando não anda satisfeito. Bem, o povo nunca anda satisfeito, não é, e pela-se por uns ditos de maldizer. Pois ali foi de tal jeito que ameaçou deitar a empreitada toda a terra. Já pelas costas bacorejavam que o ti'Zé Levante o que queria era modo de chegar depressa, num aperto, a S. João ou ao Porto. Eu não digo que não, pois se todo aquele levantamento do povo foi mesmo na sequela do acerto de contas com os quadrilheiros! Mas a verdade seja dita, que aquilo beneficiava toda a terra, não era só ele que se botava a caminho quando a precisão apertava. Seja lá como for, o caso é que ele apalavrou o ti'João do Paúl mai-los pedreiros e serventes com duas juntas de bois para carrear o material e botou as contas à freguesia toda, cada casal tinha de entrar com o que pudesse, mais os de Samil e da Gandra daquele lado, que chegavam à ponte depressa, menos os mais distantes. Só deixou de fora Bustelo e Lomba, diz que eram sacrificados por serem os últimos e por isso não entravam na colecta. E foi assim.


Não, ele organizou as obras ao mesmo tempo. Enquanto os da ponte labutavam nela de sol a sol a semana inteira, os mais continuaram as estradas aos sábados e domingos. E se alguém se esquecia, estás a ver os fingidos, o teu avô ia-lhes bater à porta. Só se houvesse doença, de resto não acatava desculpas, até da cama os arrancava se fosse preciso. E tinham-lhe medo e respeito os mandriões, que com ele não se brincava, se lhe chegavam os azeites ao nariz. Era melhor não o ver vermelho, que aí era o diabo! Num instante rachava um homem de alto a baixo. Mas como não era injusto e nunca obrava como lhe dava na veneta, palavra dele era de juiz, naquele tempo. Mesmo nas teimas e querelas era a ele que havia recurso e o que ele traçava, pronto, era lei. Se alguém recalcitrava, os mais caíam-lhe em cima e morria ali a veleidade.


Pois, evidentemente, aquilo assim foi depressa. O pior é que a fadiga ou os nervos ou sei lá bem o quê, parece que até o calor que, entretanto, de semana a semana ia apertando mais, enfim, olha, a verdade é que o ti'João do Paúl passou a beber um garrafão de cinco litros de carrascão por dia. Ao princípio era para ser para todos, para dar força e tirar as dores, que aquilo é trabalho de arrebentar o mais resistente. Mas cada qual queria ajudar, foram aparecendo mais umas pingas daqui, outras dali, ora umas botijas de barro, ora uns canecos de folha, e o garrafão foi-lhe ficando cada vez mais abandonado nas mãos. Vai daí, ao fim do dia, já mal ele se aguentava nas canelas, a língua entaramelada a cantar o João Brandão, não tardou que sozinho não adregasse de trepar a encosta até à encumeada. Era com um de cada lado, a servir de muletas, bem dispostos e também meio alegres que retornava a casa. Foi assim uma semana, foi assim um mês e pronto: já nunca mais aquele homem endireitou. É o que se chama mesmo de caixão à cova, porque foi um vezo que o acompanhou até à sepultura. Mas nunca deixou de ser boa pessoa, amigo da família e tudo. Dava-lhe para cantar, cantar pela noite fora, até que adormecia à porta de casa. À porta, não, que era no degrau de pedra da escada. E nunca sozinho adregava de lá chegar, ia entre dois, era sagrado, quantas vezes tanto ou mais bebidos do que ele! Despejavam-no no degrau e desapareciam no escuro, calados, para ninguém ver.


De vergonha, não, não era por isso. É que tu nem imaginas que tal era a ti'Rosa do Paúl que Deus tenha. A primeira vez que lho levaram naquele estado, ela rompeu num tal bramido de injúrias e ameaças que até a Rua da Toca veio toda para o meio dos eidos a ver o que era, alarmada. Aí ela saltou lá de dentro armada dum mangual e toca a malhar no costado dos bêbados, que foi um consolo! Aquilo é que foi fugir aos tropeções pelo caminho acima, pareciam ratos! Nunca a ti'Rosa despachou um monte de espigas tão depressa! E olha, serviu de emenda, daí para diante eles despejavam o ti'João no degrau e pernas para que vos quero, antes de a megera dar por ela. Tinha pêlo na venta, a ti'Rosa.


Como o ti'Marcadas? Que sabes disso, ó miúdo? Nem penses! Ao contrário, foi a época mais feliz da vida deste. Sabes quem é que rompeu à frente da estrada para Vila Chã? Foi ele, é verdade. E sóbrio, completamente, parecia outro. Até houve quem apostasse durante quanto tempo aquilo ia durar. E sabes até quando foi? Nem te passa pela cabeça, nem a ninguém, naquele tempo! O Marcadas era um franganote espigado, sempre aos baldões, sempre fugido de casa para não apanhar, caído aí pelos cômoros de tanto álcool, nem sei como ele o arranjava, que, naquele tampo, nem comprado, nem fiado. Era um migalho de gente. Então, olha, as estradas foram como uma luz que lhe acendeu na mente, ele atirou-se a elas com um entusiasmo, com uma gana que até parecia que queria rasgar tudo num dia! Aquele diabo não parava! Rangia os dentes, sempre muito sério, e esfanicava-se inteiro de trabalho. Caía redondo à noite, de exaustão. Se calhar nem bebia por isso, mas eu cuido que não. Ele não bebia porque tinha encontrado alguma coisa onde empregar o sonho falhado duma vida, não é? Não podia ser malabarista, podia encorpar outro sonho. Trocou aquele por este e ficou temporariamente curado.


Ah, pois, já se me tinha varrido. Ele andou sempre à frente da equipa de trabalho desde o cemitério até ao Largo da Capela, depois queria descer pelo Fundo Lugar mas venceu quem preferiu rumar às Escolas, até à ponte de Ribeira Verde, lá nos socalcos que levariam a Bustelo. Aí esmoreceu um bocado, preferiu juntar-se aos das Travessas por uns dias. Mas depois passou-lhe e voltou, quando se abria a contra-costa por Bustelo acima. Entusiasmado, nunca mais largou a dianteira até conseguir ligar a estrada à que de Oliveira vai para Nogueira, pela Feira dos Vinte e Sete. Lembras-te da sachola que ele traz sempre ao ombro, não é? Pois aquela é que foi a ferramenta do Marcadas. Escolheu-a ele, sabes porquê? É que aquilo cava pouco mas é o melhor para os sítios ruins, os que são mais duros e pedregosos, onde só o alvião às vezes penetra. Ele é que estava pronto para isto, sempre a dar a mão onde o mais falhava, a saltar dum ponto ao outro, parecia mais novo dez anos, era outra vez um rapaz pujante de vida. Só parou quando chegou às portas de Oliveira. Ainda ajudou a romper o Fundo Lugar até ao moinho da Levada, onde o caminho vira à direita para a Lomba. Aí deu-lhe então qualquer coisa, largou do grupo todo como se tivesse variado e quando voltou já vinha aos baldões. O que se passou ninguém sabe. Alvitrava o meu pai (que Deus tenha) que fora ali que ele se despedira dos do circo, quando em miúdo cismara naquilo e matara a vida de vez. Não sei, que não pude testemunhar dessas coisas. Sabes? Isto anda tudo ligado, porque ele voltou a arribar quando a estrada para a Lomba encalhou na Linha de Água. Aquilo é tão a pique que ninguém via como fazê-la trepar até ao lugarejo lá na cumeeira da colina. Ainda por cima, a seguir aos campos, a terra é dura como pedra, mesmo com aquela urze, tojo, mais as carquejas todas, que ninguém sabe como se lhe agarram. Os da Lomba desciam ao regato, às águas, todo o dia, o resto era pastorear o gado nas vertentes viradas ao sol, que todas dão para o Fundo Lugar. Parecia fácil mas não era. Então decidiram cortar naquela matagueira uma curva apertada e a subir, o mais que pudessem. Ainda por cima apanharam rocha, uma penedia de meter medo! Foi quando o pessoal já murmurava que, pronto, deixavam-se para lá os da Lomba, não havia meio de ali se chegar com a estrada; quando já tudo pendia mais para o desânimo e os de lá do lugarejo se arreliavam a tentar romper o obstáculo, que o Marcadas retromou a liderança. Parecia que um fogo o consumia. Não falava, não ria, não parava. Cavou, desbastou, rosnou de manhã à noite. Nem comer queria, era preciso meter-lhe bucha na mão, dar-lhe uma caneca a beber. Parecia que andava possesso. Isto envergonhou de tal maneira toda a gente que, olha, a estrada lá está feita, praticamente como ele a deixou até ao topo do vale, matagal acima, em terra batida e calcada e tudo. A Lomba, se hoje não é de Santiago, a ele o devemos, que nos ficou ali unida por aquele cordão umbilical. Continua aquela curva malfadada a impedir maior facilidade de ligação, não entendo porque ninguém repara que é só levantar a estrada do lado de cá um metro ou dois e o mesmo ao pontão sobre a Linha de Água, ficava logo tudo alinhado ao nível da curva e seguia-se a direito, trepando de leve, fugindo àquela inclinação quase a pino. Não custava muito pôr assim a Lomba ligada ao Fundo Lugar. Como está, continuam a ser os desterrados de S. Pedro, aquilo é o purgatório da nossa vergonha. Mas são boa gente, nunca se queixaram. E, entretanto, Santiago lá os vai chegando a ele, até que um dia os absorva de vez. É ver como eles se espalham pela encumeada fora!


É verdade, rapaz, foi mesmo esta complicação que levou a desistir da ponte no Fundo Lugar, junto à curva. Aquilo custou tanto lá adiante que, olha, enfiaram-se nesta uns madeiros e pronto. Para ali ficou anos e anos. Quando apodrecem, mudam-se e o provisório ficou definitivo, já lá vão umas duas gerações. Pois se eu então era uma miúda ainda! Até já lhes perdi a conta, aos anos que levo, valha-me Deus! Cuido bem que são mais dum cento...


Quando o inverno chegou? Perguntas bem. Olha, cuido que já havia estradas a ligar todos os lugares, a Rua da Toca foi rasgada até aos Clipes, dali para diante era só o rodado dos carros para o Jurbil e Santiago, para o Merouço e Margonça, ou então para a Lameirada. Mas aquilo dos caminhos novos, se bem me lembro, foi apenas até à beira das casas e não entre elas. Estás a ver, Vila Chã era já muito populosa, com casinhotos espalhados à volta do Alto dos Foguetes, era mesmo o lugar maior de todos. Os demais troços foram depois, a pouco e pouco, por iniciativa dos moradores de cada bocado. No ano seguinte ligámos Costa-Má até Fundões, depois fizemos a ponte e chegámos ao Couto, na Margonça. Toda a gente queria aquela ligação porque ali havia já entretanto a estrada real calcetada a paralelipípedos. Ficávamos ligados a S. João e a Oliveira, aqui mais perto, mas também ao Porto e a Lisboa.


Qual o quê? A princípio íamos até lá só para ver passar a malaposta com a quadriga a galope e uma ou outra caleche de gente fina. Eram muito raras, os mais que usavam a estrada eram cavalos, com indivíduos muito imponentes, aperaltados no selim. O resto, umas carroças de burros ou muares, de comerciantes que andavam a vender, a traficar de terra em terra. Depois veio o comboio e aí é que foi uma festa! O Vale do Vouga a parar no Couto, todo o mundo a apurar o ouvido, piuuu, piuuuu, a ver quem ouvia primeiro quando ele chegava à estação. “Vai ficar bom tempo, hoje quase não se ouve.” “Ena! Parece que tá a apitar no Merouço, mesmo ali, bai cair uma saraibada, toca a fugir p'ra casa!” O comboio foi durante decénios o nosso boletim meteorológico. E olha que não falhava! Aí descobrimos que havia praia, íamos nele até Espinho, muito labregos, ao monte, cheios de cestos e garrafões, crestávamos ao sol, molhávamos os pés, voltávamos à tarde cheios de novidades para contar. E fazer inveja. É que só os mais remediados é que podiam dar-se a estes luxos. Mais para diante, o médico, por causa das asmas e bronquites, deu em receitar o mar como remédio para a miudagem e então é que, no bom tempo, se foi tornando um programa de quase toda a aldeia.


É, foi assim que devagar fomos chegando ao mundo e que o mundo acabou por vir entrando lentamente por aqui dentro. Doravante os tempos estão definitivamente mudados. Quem se lembra mais daquele S. Pedro? Era muito interessante, muito interessante... ...E nunca mais há-de voltar... Só resto eu, cada vez mais uma memória doutro mundo. Nem sei como Deus me não leva. Já não presto para nada, um cangalho velho fora de uso. Melhor era ir ter com os de minha igualha que já daqui se foram de vez. Nesta idade, quem me dera o descanso! Que a vontade de Deus seja feita!






9 – O Nome de Samil


Descobrirás que é nome recente, das querelas liberais. Naquele entretanto eram chamados os das Laminhas, afortunados apenas do úbere das terras, de pomares e hortas. E cada tugúrio enxergarás que era uma cabana de caniço, apenas meia dúzia, ao todo, em tempos idos.


Verás que a ponte que traz o bem, traz o mal. Verás que as guerras e as guerreias de fora jamais haviam aqui penetrado. Eram tempestades longínquas que as bravatas da Casa do Covo faziam ouvir em cada lar, apenas quando arregimentavam mancebos e homens feitos para combates que mal entendiam, se não fora para proteger o seu senhor e quem à conta dele vivia, toda esta arraia-miúda.


Lerás que Samil é nome de aflição, marca de fim do mundo. Ou porque o fim do mundo ali chegou e nos invadiu, ou porque nosso mundo então chegou de vez ao fim. Compreenderás que foram ambos, que um gerou o outro e o mundo inteiro que era nosso além se finou de vez e para sempre.


Hoje nome, intuirás que foi um grito que rasgou o peito a esta terra inteira. Ali se lhe amortalhou a inocência de rebanho ovelhum, remansoso e pacífico, para a eternidade. Ali vais inaugurar o tempo, o nosso tempo.


Desvendarás o fratricida confronto entre absolutistas e liberais, a tergiversação do Covo, sempre apostado naqueles mas a respeitar digno ambos os arraiais, a preferir que nenhum fora e a largar de mão o povoléu à sorte, doravante sem trela nem freio. Descortinarás o ti'Zé Levante a tomar conta dos eventos, ele que era ainda um parente arrenegado da Casa do Solar, os baronetes de Couto de Cucujães que muito haveriam que dar que falar em decénios posteriores, nos meandros da República e depois nos conluios do Estado Novo. Vê-lo-ás homem do povo habilitado a pisar palácios e fortalezas, à vontade em ambos os tablados, que de ambos tem costela genuína, aqui a ordenar a defesa do povo e seus taleigos contra a banditagem dum e doutro partido e dos que, não sendo de nenhum, de ambos aproveitam a anarquia para forrarem as burras.


Com ele mandarás o Nino vigiar às Devesas os movimentos suspeitos da estrada real, de conluio com os moleiros e a Quinta da Volta, que então nem era murada nem pertença dos do Bisoeiro, em tais eras recuadas. E mandarás o Quim da Galinheira pelas Travessas além, a enxergar a subida da Arrifana, não fora amear dali alguma horda de bandoleiros, com farda ou sem ela. E depois surpreender-te-ás ao ver o ti'Dornas a correr afogueado pela margem do Rio do Pintor abaixo, desgovernado e aflito. Ouvi-lo-ás encalhado nos moinhos da ponte, a fala tolhida pelo susto, “é um mar de gente, do lado de Cambra, um mar de gente!” E logo as sentinelas a correr silentes e disfarçadamente no rumo deste alerta, a verificar nervosas, colhidas, afinal, pelas costas. Quantos são? Quantos são?


Suspeitarás o arrepio deste povo que domina charruas e gados, foices, engaços e manguais mas que treme ao nome da escopeta e da pistola, que tem como arma mais mortífera apenas a faca de esgoelar porcos. Adivinharás que o matador, para eles, é o benemérito que lhes abate o suíno para a mantença doméstica. O matador, para a horda recém-chegada, é quem sangra gente. Eis, pois, a aldeia toda trancada atrás dos portais de pinho maciço, a espreitar pelas frinchas, aqui um machado à mão, além um fueiro, aqueloutro com uma roçadoira, este com uma alavanca, esse aí com o varapau ferrado – tudo de pouca ou nenhuma serventia contra quem os procura de armas de fogo aperradas.


Foi o Nino quem mais logrou correr, descortinadas que foram as hostes em aproximação. Quando trepou a congosta do Rio do Pintor, à procura do ti'Zé Levante, no largo do planalto, vê-lo-ás sem fôlego a tentar desesperado avisar rápido sem o conseguir, de respiração oprimida. Até que solta um brado que resume todo o pânico: “Sã mil! Sã mil!” O terror dobrou o grito de boca em boca, de porta em porta, de lugarejo em lugarejo e mudou-o o temor em “Samil, Samil...” e tal ficou de vez, em comemoração e memória. Não ganharam para o susto! Mas tiveram de manobrar, embora não como o houveram previsto na confabulação com o ti'Zé Levante, arvorado em comandante do medo. Por ele, mandara recolher aos redutos frágeis dos casebres e defenda cada qual o seu e os seus, com tudo quanto puder, fiado em que da morada de alguém mesmo um cadáver só o tiram quatro vivos, quanto mais se ele estiver bem vivo ainda e determinado! Claro que lhe descortinarás uma reserva, o corpo de sentinelas que ele escolhera a dedo, espalhara pelos quatro cantos da aldeia, como uma guarda avançada. Desconfias que na manga ele reserva uma cartada, para o que der e vier. Não foi, porém, preciso, que um imprevisto deslindou tudo de maneira feliz, por modo que a ninguém podia ter ocorrido.


Acompanharás os passos trôpegos do Marcadas a descer a estrada para a ponte, a subir às Travessas, alheio aos cuidados gerais, surdo aos avisos, “home, recolha-se, que inda apanha um tido!”, resmungão, de sachola ao ombro, como sempre foi timbre dele desde a empreitada das estradas. Acompanhá-lo-ás rumando a Nogueira na contra-escosta, os de cá a vislumbrá-lo ali entre as urgueiras, além atrás duma moita de tojo, como a sombra dum fantasma ambulante, solitário, a meter-se pela boca do lobo. Estava uma brisa abafada soprando do sul e, à medida que a tarde se adiantou, virou vento com rajadas ofegantes, de atabafar. Mesmo parados, os de cá, na cumeeira do vale do Rio do Pintor, suavam, cuidarás que de medrosos, mas talvez te enganes, que o tempo asfixiava, a puxar uma trovoada. Ninguém viu como aquilo foi, mas o caso é que repentinamente descortinarás com os mais uma primeira cortinazinha de fumo, depois outra mais além e uma terceira, uma quarta, para, sem tir-te nem guar-te, saltar um fogaréu descomunal de toda aquela alpendurada, com o vendaval a assoprá-lo e a jogar uma fumarada negra impenetrável sobre toda a estrada das Travessas a Nogueira, por onde vinha ao assalto a horda da banditagem.


Verás o Marcadas em passo firme, curada a bebedeira, a descer lesto para a ponte atravancada de pedras e troncos, única barricada que os de cá haviam montado para dificultar e porventura demover do saque previsto e inevitável. Espantar-te-ás de vê-lo a arrumar um braçado de caruma, depois outro e outro mais, atascando todas as brechas da barricada, pegando fogo a tudo. Uma fogueira colossal e heróica! Tão eficaz que os do bando armado tossiam os pulmões, tão cavos da fumarada intoxicante que os ouvirás cá do alto da vertente. Encegueirados com incêndio tão descomunal, asfixiados de gases e fumos, com os peitos de aduelas doridas, não só desistiram de nos assaltar como aos das Travessas. E os de S. João aproveitaram para lhes saltar em cima, apoiados pela Guarda, foi um fartar vilanagem. Ouvirás daqui a fuzilaria e os gritos durante muitas horas, pela noite fora.


Celebrarás o amanhecer da glória do Marcadas, o libertador, a mando do ti'Zé Levante, quando a alvorada acordar no silêncio grato da vitória. Tão estremunhado como todos, talharás o presunto e o paio, a chouriça e as azeitonas, as farpas de bacalhau demolhado com as fatias das cebolas – tudo com copázios de tinto e grandes nacos de broa, partilhados de mão em mão. “Ah! Grande Marcadas, que se tu tibesses juízo nessa bida inda dabas que falar!” Conversas de homens, palmadas no ombro de homens, admiração de homens. “Se cum binho é assim, sem ele o que num seria! Raio de bida! Há cada maldição!”


Dar-lhe-ás de comer e de beber, grato e reconhecendo-o, finalmente. Beberá contigo e com todos e, pela primeira vez em muitos anos, o vinho não o beliscará, tolhido pelo tamanho que daquela mesquinhez inopinadamente ali surdira. O álcool às vezes também se compadece. E emudece.


E dirás Samil como os mais, doravante, e saberás que celebras muitas e variadas libertações que por trás dum nome então se escondem, ignoradas e humildes.






10 – Novenas de Maio


Contigo me sentava nos bancos da escola, no antigamente, lembras-te? Como a gente era ignorante, parvinocente! A Sôra Pessôra desarvorava por ali fora quando os cadifilhos tinham dolenças, ficávamos a tomar conta nós, vaidolosos da promoção. Recordas o Pingarelho? Endiabrado, aquele é que era! Dava sempre para a malidícia...


Eh, Pingarelho! Que estiveste a estudar em Ciências?! E ele, a bater com as mãos na barriga: “Eu?! O aparelho uro-recreativo!” E a turma inteira à risalhada...


Naquelas idades todo o mundo a acreditar que somos cridanças ignorestúpidas e, afinal, quantos amorios disfarçaimados! Ainda me lembro da aventura da maçã... Tu já não?


Era o Dérito, nem já sei que é feito dele, aquele paz de alma gordalhufo, oito anitos de paixão pela delambida do Cruzes, como é que ela se chamava? A Mécia, raio de nome! O nariz arrebitalhado vinha-lhe dele, que aquilo é nome de cadela e não de gente. Mas ela achava-se muito importadistante. O que ele sofredoeu com aquela rejeição! Agora rimo-nos, que já vamos para verrelhos, mas então...


Contavam segredocinhos ao ouvido, que ela era mais ou menos de todos, mas de pêlo na ventosa, só ela é que pretendescolhia quem lhe dava na veneta. E o Dérito a roer as unhas de revaiva e ciúme, que não levava nada do diabo da pequena. E o Zeca do Chiado a mostrar as cartinhas que lhe riscrevia, tolapaixonado, confessando que queria era buchar, tudo conversa fiada que lhe ditava a Quina do Marceneiro, que essa sabia-a toda. Mais velha que nós, a olhavesgar-nos de alto com aquele riso desdenhoso. Buchar buchava com ela, que quando iam escrever as cartimanhas, num recanto do quintal por trás do rosmaninho, confessava-me ele a tremer de excitação que ela lhe metia a mão entre as coxas e quando aquilo ficava duro como um pau tirava-lho para fora, apertava-o nas pernas dela e esfregava-se, esfregasgava-se, que ele até temia que alguma vez ainda lhe dava um ataque de falta de ar ou coisa pior. A primeira vez teve tanto medo que aquilo murchou logo, só que a Quina estralava tão afogueada que lho chupou e ele logo empinou para ela se satisfalecer. As cartas eram o afrodisíaco dos dois, cuido bem que nunca chegaram ao destino. Mas o Dérito sabinhava lá! Ficava vermelho como um tomate liso e bufassoprava como um gato assarpanhado.


Depois foi a risotaria com a história do buchar. Como ele era um comigordo sem emenda, bucha, só de comida, nunca a entendera doutro modo. O ciúme só lhe viera de imaginar o rival do Zeca refastelado à manjedoira com a sua mais-que-tudo, e ele a rilhar uma côdea encostalhado à porta do curral, enjeitado do paraíso.


Vai daí o Pingarelho jogatira-lhe à cara:


- Ó seu lorpa de merda! Atão buchar c'uma rapariga é comer co'a boca da cara? Cuidas que ela num tem mais ninhuma, é? Porra, que este já nasceu p'ra corno! Olha, inq'anto a comes a ela co'a de cima, q'alquer outro ta come na da baixo, ganda burro!


- Deixa lá – gozava o Zeca, deleitado. - Bom é haber gajos destes. A gente come-les as miúdas todas e eles num dão por nada.


E o Dérito a bufar como um totoiro atrás dele, uma fúria viva! Se o apanha, rachatava-o. E o outro a gozar, a fazer polouco, os dedos em corninhos na testa, e a turma inteira a assanharrir de tamanha parvoiçada. Lembras-te de que depois largámos o apaixonambado a chorar mágoas e vergonha no recanto do ti'Carniceiro? Ninguém podia imaginar a vingança da maçã. Aquele sonsinho vai da escola só, troca as voltas aos mais, mete-se na betesga por trás da ti'Sardinheira, passa os campos do Chope, que andaria a tramar? A Mécia ia por cima, pela estrada, para a mesma banda, para além da Quinta do Godinho, morava numa casa alugada mesmo à entrada do bequeco que bota para a Covada. Não sabias? Eles não eram daqui, parecia até uma gente fina, mas que queres, éramos todos uns criançolas irresponcientes...


Ele seguiu-a até que a estrada desvia pelo muro acima da quinta, deixou que as companheiras rumassem para o Alto, achega-se da Mécia todo desajeitado e, antes que ela empurrasse o portadão, ameia-lhe prometedador um brilhante pêro de S. João. O danado! Sonsinho, sonsinho... mas olha!


A miúda, com o almoço por comedoer, estende-lhe a mão comissaborosa, ele a retirar-lho:


- Aminhé bais comigo p'rò campo? Bais?


- Quê? Quê?!


- Aminhé dou-te outra inda muito milhor. Bais? Só um bocadinho...


E a Mécia, a armadilhar em cara:

- Um bocadinho? Só se for um bocadinho...


E a Sôra Pessôra que não dava na manhã seguinte com nenhum jeito de nos ter, “hoje vieram com o diabo no corpo, que é que lhes deu? Que mafarricos!” Era uma agitação incontrolável, cochichichos intermináveis, “ele bai hoje a ela, num acredito!”, “tá-nos a enfiar o garruço, bai-se rir ò fim da gente todos”, “q'al quê, se num for berdade, eu dou-le uma coça que inté cria bicho!” Ninguém ouvia nada de lição nenhuma, era quem mais queria ir espreitaver! Ao fim da manhã, tudo numa corrida para o quelho escondido, atrás das silvas, sem tugir nem mugir, na expectativa meia descrente. E lá vieram os dois escapubulindo-se da estrada de cima, ela discreta, que já era avezada nas andarilhanças, ele como um tomate a tremelicar, perderam-se no meio do milharal, mais alto que qualquer deles. Aí saltámos todos o cômoro, calados e lentos, a enfiarmo-nos por entre as folhas e troncos fleximóveis dos milheiros, a espreitar onde estaria a caça, para não a espantacorrer. Quando os vimos, até a respiração sustivemos. A Mécia despira as cuecas e deitava-se no chão, puxando a saia até à cintura, após o que estendeu a mão. O Dérito entregou-lhe a maçã, nenhum de nós viu sequer que era camoesa, todos binocolhos para a nudez apeticiosa dela.


Então, foi o inesperado. Ele deu uma olhadela em redor, a confirmar as testemunhas da sua vitoglória e, repentinamente, saltou para riba da miúda com o corpo inteiro, que ela até ganinchou. A Mécia tentou safar-se do bruto, mas qual o quê? Ele era um sacão de batatas, soerguia-se e atirava-se de novo, aos berros. Aí pulámos todos ao mesmo tempo, uns por cima dos outros, à molhada. A rapariga acabou por escapulir-se, fungona e humilhada, abandonando o destroço das cuecas como um troféu na mão do Dérito. Foi tamanha a surrigargalhada das Escolas até à Covada e pela encosta do Godinho que, olha, murmurações daqui, falarrisórios dalém, a família dela apenas aguardeceu o fim do ano escolar e ala! Assim como vieram se foram, ninguém ficou a sabadivinhar para onde. Foi um ar que lhes doeu!


Quem invejou o troféu do Dérito foi o Zeca do Chiado. Uma semana depois já tinha o dele, segredo apenas confiado a alguns eleitos que ele achava de mérito. Só amigos do peito, não os troca-tintas que não respeitavam uma amizade. Aquelas, as dele, eram dadas como prova de paixão, a sério, seriozinho! A Quina do Marceneiro, por ele, era caidinha! Agora tinham inventado um jogo das casinhas por trás dos galinheiros, onde estava a capoeira. Havia uma folha de zinco pousada sobre ela e que encostemparava ao muro, fazendo um pequeno cubículo onde cresciam ervas ralas. Aí era o quarto do casal de faz-de-conta. Quando jogavam, brincavam ao almoço e iam dormir a sesta; brincavam, a seguir, às merendas e iam dormir a sesta; depois era a ceia e iam dormir a noite... Aquilo não parava nunca maise ela de cada vez arfagava, arfagava e geminchava como uma porca faminta. Era às três e quatro vezes por cada sessão, não era como aquele papa-açorda do Banhas que nem sequer soube aproveitar, uma garota toda oferecida e ele dá-lhe para uma mariquice daquelas! Verdade, jurava. Claro que era a inveja a falazar. Se calhar nem passou de magiquinação de despeitado.


Agora tu lembras-te bem das novenas de maio? Quando íamos atrás da Sôra Pessôra, era tudo compostura e a Virgem Nossa Senhora era cada uma das colegas. Ao calor brando do fim da tarde, seguíamos em jornada pelos Tanques, calmeirosamente, até ao Ribeirinho, os grilos cricrilavam vibrantes, as rãs desatavam a caxoaxoalhar, os melros retiniam os clarintins ao sol poente. E o ar mansinho como gata no cio. Dentro da igraja, o frescor reconfortante era um copo de água fresca. E os cantos cantatantos, a berrar dos pulmões, e depois a lengalenga a entorpecer, “avé Maria, cheia de graça...”, “Pai nosso que estais no céu...”, tam-tam, tam-tam... E de repente o gritaviso dum hino quando a pálpebra já adregava de descair. E o P. Abel, do alto dos séculos, a pontificar, palavra aqui, comentário acolá, como um salpico de água benta a despertar a frofronte vergada da dormendência. Aquilo, para mim, naquela idade, era um verdadeiro jogo erótico, de preparação, era o dançarilhar a seduzir, antes de cada qual retornar a penates para consumar em festa. Daria por isto o Snr. Abade? Creio bem que sim e que o aprovava, em graúdos e miúdos. Só falava em amor do princípio ao fim, com aquele ritmo balanceado, lento, a promenegar um clímax sempre adiado e sempre mais próximo... Ele não é parvo nenhum, vê bem onde mete as mãos, aquilo era mesmo propositado, não acreditas?...


De qualquer dos modos, lembras-te dos nossos murmúrios à margem durante as devoções? Eu é como se fora hoje. Aquela do Quito ir à Belinha do ti'Credo. Quem me contava era o Bento, ainda te lembras dele? Nem sei que sumiço levou. Iam pelos campos, depois da novena e, quando ninguém via, deitavam-se num rego e era uma esfrega danada, ele de calças abaixo, ela de saias acima. E o outro é que tomava conta, para ninguém ver, senão ainda eram corridos à sacholada, miúdos do diabo! Vinha-me confidenciar porque andava com um medo: ficava-lhe a doer a barriga depois de ver aquilo, ele ali a morroer sem partilhar de nada, o membro duro a querer perfilevantar-se e a não poder. “Num cuidas que se pode partir? E òpois cumo bai ser, se ficar partido, q'ando chigar a minha bez algum dia?” O Bento vivia numa aflingústia, enquanto os outros dois gozavam, os nababos!


Tu sempre tiveste a maniteima de te recusar. Foi quanto perdeste, entendes, que este prazer de miúdos é ignorocente e quando é de franquezinha ensina e nem prejudica. Claro que discordas e eu bem sei que há mais problemas disto que vantagens. Mas a culpa é dos maiores que põem mal em talhudo e então mesmo o natural se estraga de vez. É o caso, em meu alvedrio. Atenta apenas naquela conversa que tivemos na escola, a meio de maio, quando juntámos as turmas na salafala da feminina, para as sabatinas antes de exame. Tu também gostavas da Beta do Lebre, diz lá que não! Andávamos todos embeiçados por ela, pela Guida, pela Lilinha, ainda te lembras daquela carinha redonda? Se hoje a vires nem te passa pela cabeça quem é! Pois, dizias tu à Beta, como quem não quer a coisa: “Tu gostas é do Artur, num gostas?” E ela de novas: “Quem? Eu?!” E tu a insistir: “”Olha que ele num bê mais ninguém!” E o raio da migraúda, com a lição toda de cor, a fazer-te olhinhos como um cachorrinho à procura de colo: “Não, não, que ele num é da minha ògalha, se fosse... Só c'um da minha ògalha...” E atirava-te os olhos azuis a pedir-te esmola. Lembro-me bem que quedaste sem pipio. Nem sabias se ficar, se fugir. Confessa lá! Ainda por cima com os da Gandra a sussurrazinar-te que ela fugia para os campos com o Quinito porque, enfim, não tinha melhor. Que ela bem queria, bem queria! Foi quando estiveste prestes a cair. Foi ou não foi? E ela era linda de morrer, para os nossos olhos de pequenitotes.


Cá por mim, vê lá, aquilo dava-me tal volta à cabeça que quando uma vez, à vinda da igreja, te murmurei ao ouvido:”Esta noite tenho de ir à Mitó”, foi mesmo a sério. Tu bem viste! Andei a correr atrás dela o caminho todo, para trazás e para diafamante, ela a fazer-se rogadada, eu cada vez mais cego, uma corrida para a frente, outra ao invés, passámos por ti mais duma dúzia de vezes. Lembras-te de eu te dizer, numa delas, “o problema é conseguir que ninguém nos beja”? Já lhe tinha pedido e fora a objecção dela, portanto aceitesitava. Eu fiquei em brasa, aí é que não desarmei mais. Entrámos a correr à frente de toda a gente, nem nos lembrámos de ter memedo, acho que ela estava tão esbrasifogueada como eu, fomos direitos ao palheiro. Nunca me despi tão depressa, mas ela já estava deitada toda nua de braços estendidos. Aquilo é que foi um prazer e uma afligação! Em miúdos nunca se chega ao fim, não é, o orgasmo é só para mais tarde, mas pronto. Enquanto não sentimos ruídos dos que chegavam nem parámos, a aproveitar o mais que podíamos. Pisgámo-nos depois a grande velocidade, sem uma palatrava, não fora alguém dar por ela. Éramos mestres no distorfarce, ou os adultos de então faziam de conta, nunca percebi muito bem. O facto é que ninguém nos pediu contas. O engramaçado é que, assim como veio, o desejo se finou. Ardeu de repente e não deixou radastro. São as vantagens de ser em miúdo. Olha lá se isto ocorria meia dúzia de anos depois, podia ter sido uma desdengraça! As paixões da adolescência, Deus nos livre! Aí, sim , uma deslizasdrela é o fim. Muitas vezes, duma vida.


Está bem, não acreditas que o P. Abel abendissesse destas aventuras, mas olha que ao menos botava-lhes água benta, ao contrário dos mais e do povoléu, pela frente vestido e por trás ao léu, se me queres entender. Porquê? Olha lá bem. Eu ouvi teu pai um dia no barbeiro a diziscorrer, como era mesmo dele. Protestava o Beto, de tesoira em punho, trás, trás, trás, que na véspera à sonoite fora ao eido por uns grelos para o caldo quando, de repente, com que deu? Era o Lio mai-la Súsi engalfinhados, uma pouca desvergonha, bumba, bumba, bumba, o mundo anda perdido, que vai ser desta pequenagem? Ainda há uma nesga largaram os cueiros, já andam na sem-vergonhice, nem sequer têm tamanho para isso, ora uma coisa destas!


Vai daí, o ti'Luís Avante, muito pachorrentento:


- Deixem os miúdos im paz, deixem-nos. Que mal bem daí, han? Isso é cumo o resto, é só guiá-los para num embarcarem de olhos fechados. Agora naquela idade, ora balha-bos Deus! É falar p'ra incaminhar...


- Ó ti'Luís, mas... Dessa num taba à espera. Atão um home, mesmo sem ir à missa, sempre há-de ser um cristão, num é um bicho p'ràí, que diabo!


- Olha que essa do cristão, dobra a língua. Nunca oubiste o P. Abel acerca daquilo, pois não? Atão, tento nos ditos, que ninhum de nós tem autoridade.

- Mas bocê já le falou, foi? Atão ele acha bem?! Num acredito, num pode ser!


- Ninguém albitrou que acha bem nem mal, intendido? Já le falei e já muitos le falaro, im cunfissão e fora dela. Tu é que não, portanto, cuidadinho co'os modos, co'estas coisas num se brinca, que um home inda se queima. Co'os piquenos é o mesmo que co'os grandes. As famas, quando más, já dero muita desgraceira. É milhor andar cum calma.


- Atão diga lá, ti'Luís Abante! A gente cá num perccebe nada. Que é que o Snr. Abade le cuntou?


- Tu queres mesmo ou é só p'ra dar à língua? É que são querelas sérias, mais até do que a gente pode intender. É o que conta o P. Abel que tem os estudos e o saber de muitas bidas.


- Ora, o que nós queremos é biber direito, ninguém le falta ò respeito nem a si nem ò Snr. Abade, ninguém bai brincar cum coisas sérias. Nós num semos ninhuns samelos, bemos bem qual é o nosso lugar.


- Pois atão lá bai e bejo bocês se intende direito, que isto num é o mesmo que se oube por aí, a cada canto.


Ficou tudo calatento, parecíamos miúdos para ouvir um conto. O teu pai tinha uma jeiteira para criar ambidolente, falava com autoridade, aquilo era vezo de família, que já o teu avô, o ti'Zé Levante...


Mas vamos ao caso. Ele recostou-se no espaldar da cadeira, olhou-nos a todos com aqueles olhos escuros, franziu o sobrolho, pigarreou calalmo, e, no silêncio suspenso, arrancou.


- Primeiro, abenta o P. Abel, quanto à miudage que começa a olhar para a diferença de home e mulher, que num debia de ser diferente doutra coisa qualquer im que eles reparo. Quando eles mexe co'o fogo, co'a auga a ferber, que é que a gente faz? Abisa do perigo e prebine. Ou atão trata de os acumpanhar, a bigiar, quando eles aprende e mexer co'o perigoso. Pronto, ebita-se os desastres, as queimaduras e escaldadelas e, a pouco e pouco, à medida que eles cresce, treino a usar bem o fogo, a auga a ferber e q'aisquer cozinhados. É tal e qual cumo nos namoricos da criançada. E até nos outros de mais tarde. O que eles preciso é de quem os incaminhe bem, cum jeito, atento. Manter a cunfiança e garantir a segurança inquanto eles cresce, cumo nos demais casos da bida. Mais nada.


- Mas atão, mas atão... - o Beto não atremava com que dizer.


- Atão num pode haber cundenações sem apelo nem agrabo, cumo a gente sempre oube por aí e num quero apuntar ninguém. Quando um home se distrai, pumba, tropeça. Todo o mundo faz igual, num admira. Por isso tamos a cumbersar, num é a atacar ninguém. Aqui já fizemos todos muita asneira, ninguém pode atirar pedras, tamos intendidos? Bem, atão, nem cundenações à partida, nem deixar correr ao calhar: acumpanhar, ajudar e insinar, cumo im tudo o mais. Afinal, é muito simples. A gente é que anda a estragar tudo, por uma palermice que todo o mundo comete, por mor das manias que se nos mete na cabeça. Conta ele que é uma doença da cibilização que já bem de há muitos séculos, bai ser ruim de curar. Podemos é tratá-la aqui entre a gente.


- Ah! Já percebi - entremeou o Jajá dos Barreiros. - O pobo num tem de se preocupar nestas idades miúdas. É cum'ò mais, tratamos tudo por igual. É cum'òs cabalos, depois de aprender a comer e a mexer, num há mais trato particular quando fico desmamados. -Ele tinha de chamar a atenção para a cavalariça que era a vaidade deles, lembras-te? Ninguém mais tinha ligado aos equídeos, gado que só trazia cuidafreimas e despesas, sem proveitagem de maior. Mas para eles era a importainfância da diferença. Então quando cavalgavam pela estrada, aquilo era uma imponentência!


- Tá bem, tá bem, mas tamém é preciso treinar p'ra ter um bom cabalo, num é? Conta o P. Abel que o mesmo é co'os piquenos. Importa é tratar do treino que cumbém, im bez de perder tempo cum problemas que num existe.


- Atão que treino? Que treino? Eles bão à escola e pronto! Tão na idade, aí aprende o que for preciso – isto eram os ditos trocaduvidados entre vários.


- É outra coisa – tornava o teu pai. - A escola, claro. Mas o que o Snr. Abade aponta é p'ra ela e p'rà casa de cada um. Ele fala assim: antes de tudo, quando eles chego aí pelos cinco anos, eles tem de ter quem les conte contos, cum'à gente co'os nossos abós, quando éramos canalha. P'ra ele o problema é que até òs dez eles debio aprender tudo pelos contos, cum abenturas, cum riscos, cum dificuldades e cum espertezas...


- Lá contos a gente sabe muitos, que oubimos dos antigos, eles já bem de há muito. E os miúdos já conhece aquilo tudo, já los cuntamos desde o berço. Todo o mundo faz isso, foi cumo aprendemos... É berdade – confirmava o ti'Luís Avante ao Neca da Pedreira que era já muito velho cá na terra, não pertencia aos que se andavam sempre a chegajuntar de fora, das serras de Arouca, até do Caramulo. - É berdade, mas repara im duas coisas: primeiro, as famílias que p'ra aqui num param de migrar num tem hábitos disto; e òpois o problema é que era preciso que tudo, tudo les fosse insinado cum 'stórias, cheias de episódios... Mesmo na escola, intendes? E co'eles a ajudar im casa e nos campos ou co'o gado, debia de ser na mesma. Tínhamos de inbentar contos cum fartura, isto é que é o problema.


- Atão eles io aprender a ler cum contos? Cumo é que pode ser? Tou mesmo a ber a Sôra Pessôra. Aquilo bai à reguada e pronto! Sempre assim foi e ò mais todos sabemos ler e fazer contas quanto bonde p'ràs precisões da bida – espantobjectava o Neca, duvidoso e irónico.


- Tens razão, Neca, muita razão. É por isso até que o P. Abel faz pouco dela, diz que os libros a estragaro porque só ficou cum olhos p'ra eles e incegueirou p'rò mais importante que eles debio cumpletar e ajudar. Atão a Sôra Pessôra jura ele que insina tudo às abessas, a gente lá aprender, aprende. Agora ele afirma que quanto mais aprendemos, menos semos e debia de ser ò cuntrário, era p'rò fim a gente sermos mais.


- Que é que ele quer dizer co'isso, lá na dele? Às bezes é ruim de intender... É do fado, ninguém mo tira do toutiço – fazia o Antão do Lima,que sempre foi muito crendeiro, metido com as bruxas, sabes?


- O Snr. Abade acredita que andamos todos a perder por a escola num cundizer co'as nossas lareiras neste assunto. Se a Sôra Pessôra inbentasse uma 'stória p'ra cada coisa que insina e que a miudage aprende, diz ele que, primeiro, ficaba grabado p'rò resto da bida e, q'ant'ò mais, abria-les a imaginação òs sonhos, quem mais sonhar mais bibe e, quanto mais alto puder imaginar, mais alto atinge. É o que ele conta e atão ri-se dos modos desta escola sem imaginário, um desperdício permanente, cuida. Diz que se tudo corresse cumo o debido, im família e nas aulas, os piquenos binho tão capazes que tomabo até conta do País e do mundo.


- Eh, lá, que isso é demais, ó ti'Luís! Portugal até já foi grande, a maior entre as nações, mas é obra dos Descobrimentos. Coisas dos Corte-Reais de Olibeira e S. João que pelo mar ou pelas Américas se ficaro, é o que o pobo por lá diz, que nunca ninguém mais deu tramenho deles até ò presente. Agora os nossos cachopos?! Tás a ber, ó Beto, aí o meu ganapo feito gente da grada? E atão a dar ordes ò mundo! Isso foi chão que já deu uvas, ó ti'Luís, num bolta mais. Temos as colónias de além-mar e pronto, foi o que ficou, um migalho e é cum muita sorte! Outros ainda caíro de mais alto.


- Inda bem que o lembras, ó Lima, inda bem – tornava descansado o teu pai. - É que os nossos descobridores de antanho são mesmo uma proba, ò que teima o P. Abel. Ele diz que o Infante e os irmãos...


- Os filhos de D. João I?


- Pois. Na dele foro educados doutra maneira, co'as abenturas da Tábula Redonda, do Rei Artur, Da Demanda do Santo Graal... e diz que lero as Biages do Marco Polo. A mãe, a D. Filipa de Lencastre, é que cismou im fazer assim, quis ela ser a mestra e pronto, contra a rainha ninguém podia remar. E foi a nossa sorte e a deles. O Infante gostou tanto das histórias que foi logo co'os mais a Ceuta e nunca mais pararo, cada qual co'o seu projecto, até ficarmos co'o norte de África e co'o resto do mundo na mão. Agora, claro, seria diferente, que o tempo é outro, mas chigábamos ò mesmo, se todos adregarmos de obrar da maneira direita. É o que ele me cuntou muitas bezes e é um home que sabe, num é cum'òs mais, p'ràí cheios de prosápia e num passo duns ignorantes que nunca biro nada.


- Mas isso atão habia de ser bonito! Olha só o Tilós que já é espigadote. Até conto que já bate na mãe e tudo. Imagina que era um desses, cum tal poder que dominaba tudo, a nós e ò mundo. Tábamos bem arranjados! Atão num era?


A dúvida do ti'Faustino colheu terreno próspero, todos confalaboravam novos casos e episódios.


- O ti'Rufino – comentava o Beto - ouviu o Tilós a pespegar uma tareia tal na Anica que 'stebe bai num bai a meter-se. Pô-la negra, o diabo do rapaz, aquilo tem o chabelhudo no corpo. O P. Abel debia de fazer-le era um exorcismo, é uma pena ele num ser desses, que aquele bem no merecia.


- Merecia era uma espera, umas bordoadas balentes! É o que le faz falta. Se fosse bem torcido de piqueno nunca mais chigaba àquilo. Num tebe educação ninhuma, pronto, é o que se bê. Criado cumo um bicho, agora é um bicho. Aquele bai acabar mal. E, quando anda co'o binho, inda é pior. Palpita-me que qualquer dia temos p'ràí uma desgraça, ou muito me ingano.


Era o ti'Sacristão Capador quem botara faladura. Muito chegado ao P. Abel, tinha partilha na autoridade sabedora dele, mas, por qualquer razão, nunca sabia impor-se como o teu pai e o teu avô. Palavra dele pesava poucamente. Podia ser o mesmo, mas se dito pelo ti'Luís Avante era sentença lavrada. O mais voava dos ouvidos, não restava marca nem memória.


- É por isso que o P. Abel diz que contos são fábulas, é preciso plantá-los em terreno adubado – retomou o teu pai. - Duas cundições tem de haber no campo dos miúdos, p'ra eles num usar p'rò torto o poder que les dermos. A primeira é que tem de ter uma disciplina forte, pau numa mão e pão na outra, conta ele que é a belha sabedoria sempre actual. Nem só um, nem só o outro, ambos equilibrados, p'ra de piquenos eles intender qu'o pão tem um custo que é o da orde e respeito, senão ninguém se intende, é a lei do mais forte, boltamos à selba e nunca mais se pode cuntar cum nada. Eles tem de ser cibilizados, dá-les segurança um pulso forte p'ra se apoiar, desde que tenha senso e goste deles.


- Isso é berdade. À rédea solta nunca o gado atrema co'os currais. E os bois acabo escorneando a gente. É de aguilhada na mão e co'a arreata bem sigura. Qu'a bem dizer a canalha quando nasce é tal e qual cum'òs bichos. E bem brabos, por sinal! Se num se les tem mão, acabo por dar cabo dos grandes, num é?


- E dão cabo deles tamém. Quem é que os auguenta? Acabo eles por apanhar, mais tarde ou mais cedo, qu'a paciência tem limites. O Tilós anda a pedi-las e, num tarda, bocês bão ber...


- Mas há outra coisa, – tornava calmo o teu pai, no remantanso da conversas, já o Beto desatara a disparachar cabelos e barbas a toda a pressa, que se perdesquecera com as novidades – há outra que a gente esquece da escola. É que lá tamos nas carteiras a dois e dois, cá fora ando todos os piquenos à molhada, im grupos, cumo bem les apetece. Conta o P. Abel que eles tem de aprender nestas idades assim, nos grupos de amigos, tal cumo les aprouber. Inq'anto a Sôra Pessôra num cumprir isto, num faz bô serbiço. Aquilo dos grupos é cumo aprender a biber im família ou entre bizinhos numa aldeia. Ora, lá na escola há quase sempre falta disto, os mestres-escola num bem preparados p'ra dar lição assim e atão insino muito menos qu'ò que podio, ò que o Snr. Abade les atira à cara. Além de insinar a ler, escreber e cuntar, a miudage tem de aprender a ser gente, cá fora e lá dentro, as regras do bom cumbiber, em prol de todos. Aquilo de estar lá nas carteiras muito caladinhos e quedos num é maneira de eles desenbolber nada. Eu cuido que ele nisto tem muita razão, a Sôra Pessôra bem fazia se mudasse, que muito milhor ia ser p'rà gente todos e p'rà canalha. Só que cabalo belho num aprende linguage, num é? E ela já lá tem uma boa carrada de anos.


- Mas é rija cumo um carbalho! Daquilo já num se fabrico mais. Bai a caminho dum cento, não?


Foi assim mesmo, tão certo como eu chamar-me Miro Lias, o taratolinho do cinema, e ter andado quatro anos a assentar-me ao teu lado no mesmo banco de carteira. E mais, eu acredito que o P. Abel corre o fado, sim senhor, e que deve andarilhar por aí há mais de mil anos, como o populacho murmura, medroso. Cá disto não tenho medo nenhum, quem me dera ter a sortuna! E há-de continuar a descobrir mistérios que mais ninguém desvencobre, para proveiganho de todos nós. Por isso, palavra dele é palagrava de Deus, tão certagrada como a Bíblia, Deus me perdoe. Mas tu compreendes, não é? As novenas de Maio, ele sabescobria tudo, ninguém mo tira da crença. Só que enxergavia muito para além, mais que todos nós juntos. Coisas de quem avoa por riba de toda a folha, acredita.






11 – O Roque e a Amiga


Contas que eles falo do Roque e da amiga por todo o lado? Disso nunca dei conta, que eu raro saí daqui, filho, só umas biages ò Porto, munto de longe im longe, e há quantos anos já lá bai! Q'ant'ò mais, é Olibeira ou S. João, p'ra umas cumpritas ou atão à festa de La Salette, uma bez no ano. E agora é mês a mês mais difícil, cumprendes, qu'os anos peso munto, as pernas já num quer, do reumático. Mas bamos atão ò conto, do que me alembra daqueles tempos.

O Roque, sabes, inda era nosso aparentado, moraba lá por trás de Costa-Má, nos quelhos que dão p'rò açude da Bolta. Eles tinho lá um campo e aquele moinho que lá tá abandonado era da tua abó de Samil, quem trataba dele era inté a tua ti'Legria. Sempre tinha sido uma mulher danada p'ra tocar a bida. Foi pela época im que começaro a desaparecer uns alqueires de farinha, de noite, ninguém daba pelo ratoneiro. Os teus abós inté abentabo que aquilo debia de ser bicho, algum tixugo, porque bariaba munto, uma bez uma mancheia, outra uma quarta, mas às tantas era já uma medida bem atestada, que num daba p'ra pensar im bicho ninhum. A ti'Legria ateimaba que tinha de ser tramóia de gente. De dia nunca desaparecia nada mas num habia auga p'rò moinho, por mor das regas, o açude abaixaba munto. Só de noite é que o milho p'rà fornada podia ser moído. Atão ela , cumo quem num quer a coisa, sem dezer nada a ninguém e sem ninguém a ber, agarra nuns punhados de farinha quando já lá tinha despejado o milho todo e posto a mó a girar, co'a lebada aberta. Beio cá p'ra fora e esparralhou cumo poeira pelos degraus de intrada e no passadiço lá dentro. Foi-se imbora e boca calada. No dia seguinte, pronto, as marcas acusadoras dos pés do ladrão lá estabam nas pedras bem clarinhas. Era gente, claro. Atão ela pôs-se de tocaia e duas noites òdespois, escondida no mato, topou o ladrabaz e pinchou-le im riba. Era o Né Ratão, o malandro, da geração dela e tamém da do teu pai, inté foro à guerra juntos, olha. Bai daí a ti'Legria grita-le: “Ah, ladrão, que te apanhei! Num tens bergonha nessa cara, de dia andas co'a gente e à noite fazes uma destas òs teus amigos?! Que raio de home és tu?!” E ele atarantado, co'a boca na botija, ia a sair de saco cheio ò ombro, olha, largou tudo ali, a desfazer-se im pedidos. “Ó Legriazinha, tu num me desgraces, é qu'a gente passa fome e temos bergonha, isto era p'ra ser òs bocadinhos, coisa de ninguém dar por ela, tás a intender? Eu largo aqui tudo, num digas nada a ninguém, Legriazinha, por amor de Deus!”Aí ela, toda abespinhada: “Ai é? E num tinhas boca p'ra pedir à gente? Alguma bez faltámos a quem tem precisão? Anda, diz lá! Desabergonhado! E inda queres que eu num diga nada, p'ròdespois bires aqui sempre quando te der na real gana, não? Era o que faltaba! Num contes co'isso, meu menino! Cuidas que sou parba ou quê? Eu num nasci onte!” E o Né quase de joelhos, de aflição: “Eu juro que não! Eu num bolto aqui mais! Eu juro! Num contes ò ti'Zé Lubante, senão ele mata-me! Legriazinha, eu nunca mais, nunca mais! Por amor de Deus, ó Legriazinha!...” - e desata num choro aflito que se desfazia ali todo. Era o que a tua tia queria ber. “Já sabes, agora num conto a ninguém, mas no dia im que me falte aqui nem que seja um punhado de milho ou de farinha, és tu quem paga. Boto a boca no mundo e é milhor rezares pela tua alma, que nem ela se te bai aprobeitar. E é de me bigiares bem isto, porque eu bou-me imbora e, se outro bier, a mim tanto se me dá, bais pagar por todos, intendido?” E assim ela o fez bigia inq'anto o moinho trabalhou, ele tebe de o ter sempre debaixo de olho, que senão qualquer outro que o pilhasse le podia acarretar a desgraça. Andou a tremer quase p'rò resto da bida, fez-se munto chigado ò teu pai, nunca mais o largou, nem na guerra de França, nem òpois. Andaba a cumprar a liberdade que a tua tia nunca le deu. Só quando o moinho deixou de trabalhar, de belho e inútil. A ti'Legria era danada, era! Quem las fizesse pagaba-as a dobrar, ninguém fazia farinha co'ela.


Pois foi por esse intretanto que ocorreu a do Roque. O dianho do rapaz que se le habia de meter im cabeça? Arranjar uma amiga. Nem uma namorada, nem uma mulher. Uma amiga! Num inxergo o que ele pensaba nem ninguém, cuido eu. A mãe dele, quando le apareceu o rapaz co'a amásia p'rà meter im casa, deu-le uma coisa. Correu espaborida à loja, arrancou de lá co'a inxada alçada direita a eles que, olha, mal tibero tempo de fugir e se esconder pelos matos da Bolta e das Debesas, cumo coelhos. Ela armou uma gritaria tal de raiba que Costa-Má inteira saiu à rua a crer que era um fogo. E o pior inda foi quando le chigou o home dos campos da Relbinha. Ele deu co'aquele alarido todo, já a bizinhança se ajuntara no quinteiro, um falatório pegado, uma escândula daquelas! Numa família boa e tudo, cumo é que se podia intender? O mundo tá p'ra acabar! Sabes cumo é. As bocas do mundo...


O home ficou inxofrado, num abriu bico, pôs-se bermelho de bergonha e de inraibado, saiu toldado co'as chancas a bater nas pedras que inté chispabo, entra im casa do cumpadre Leite, pede-le imprestada a caçadeira belha que ele tinha cumprado e toca a corta-mato à caça dos desabergonhados. A mulher desata numa grita, que ele le bai matar o filho co'a bácora, ai que grande desgraça, que é que eu fiz a Deus p'ra merecer uma coisa destas? Foi a fim do mundo!


Os bizinhos correro pelo mato abaixo a cumbencer o home a num se desgraçar, num era caso de morte, a coirona que fosse à bida dela, que o filho era rapaz moço, lá se deixou de berde lubar da cumbersa, era o que era, que elas sabem-na toda e a gente aqui numa aldeola, um crianço mal precatado cai logo cumo um pardal na rede. Num temos resistência p'rò bisgo delas, que ando na bida bem treinadas. Era o que tinha acuntecido, num há que fazer disso tragédia, qualquer um podia cair. E assim, co'estas falas mais punderadas, lá cunseguiro acalmar o home, senão ind'òs mataba p'ràli cum'òs ratos.


Atão botaro-se todos im prècura do casalinho, mas qual o quê, lubara sumiço. Batero aqueles matos todos até ò rio de Fundões, palmo a palmo, e nada. Tinho-se ebaporado, num habia nem sinal! E ninguém os bira, cum tanta gente a bir dos campos e dos pinhais, nem sombra! Esfumaro-se cum'ò diabo no responso. Quando boltaro todos era noite feita, naquele tempo inda num habia luz senão das candeias. Todos pensaro que o rapaz debia ter ido largar a barregã e habia de tornar, caído im si, noite fora, quando todos estibesse recolhidos, por mor da bergonha por que passara. Mas não.


De minhé num tinha boltado, nem nos dias seguintes. Fugira de casa, o que era a desgraça p'ra aqueles pais. Atão andou toda a aldeia de nariz no ar, a ber se os inxergaba, que ninguém cria que eles pudesse ir longe, nem siquer tinho conhecidos, nem família aí por fora nem nada. Foi assim que uma querela deu im comédia. É que, num tardou, começaro a aparecer cinzas de fogueiras, fumos a trepar acima das copas im lugares tão ermos que só podio ser eles. O dianho do rapaz andaba por aí co'a galdéria de toca im toca cum'òs coelhos e as raposas. E a marafona num o largaba. Atão todos desataro a rir do disparate. Uma coisa destas! Será que a rapariga se imbeiçou pelo miúdo? Uma das da bida? Pode lá ser! E òdespois o Roque? Tá mesmo caído por ela? Que raio de situação mais sem pés nem cabeça! Se ela binha-se ajuntar, num era p'ra biber pelos matos, nos buracos. A comer o quê? Eles morre à fome, num tarda. Mas se ela o num larga, atão é porque aquilo é paixão, num é p'ra le bir comer os cabedais. Que é isto, senhores, que é isto? Nunca ninguém bira nem oubira tal coisa! E dele inda era pior. Atão se a queria meter im casa cumo amiga, cumo é que era? Casar, não, só p'ra manceba. Mas assim num era p'ra um sacrifício daqueles. O Roque taba era apaixonado e num atremaba co'o rumo a dar à bida. Que é que um home debe fazer quando se apaixona por uma rapariga de toda a gente? Ele debia de andar cumpletamente perdido, era o que era.


Claro que a família num a aceitaba, tás a ber ter uma nora daquelas, que qualquer um quando a bisse podia logo pregar que já a tibera, que já dormira co'ela, que era só chigar-le o dinheiro ò nariz, que ela abria as pernas... Credo, que bergonha! Eles num a podio aceitar, isso não, quanto mais naquele tempo, que num habia as liberdades que hoje há p'ràí. Uma pessoa mataba-se ou mataba outra qualquer, tudo por mor da fama. Agora bê lá bem a situação.


Foro o riso e a chacota da aldeia inteira. Todos querio descobrir mais sinais deles, era uma glória, tornaro-se todos detectibes da Guarda. Habia nobidades im cada dia que passaba. E corrio de boca im boca, de casa im casa, de rua im rua. Era o nosso romance por capítulos. Mas sabes? A maior parte num les punha a bista im cima. E aquilo atraiu mais cumpaixão que perseguição. Ninguém deu pela birage mas fazia-nos pena uma paixão tão apalermada assim. Durou meses. Atão cumo aguentabo eles se nem tinho comida nem nada? Eu cá dos mais num sei, mas conto-te da gente. Se num fora a aldeia, morrio à fome...


O teu pai dezia que um amor desgraçado debe fazer mais dó e aquilo tinha de ser amor, num podia ser o que primeiro parecia, qual o quê? O P. Abel binha cá munto, normalmente im segredo, por mor do mistério que o abarcaba, e remaba na mesma maré. Que a atitude de todos tinha sido munto má, que estas coisas só cumbersadas e depois de bem cumpreendidas im tudo o que foro é que se les podia incuntrar rumo sem dar cabo das pessoas... Albedrios assim.


Atão acunteceu uma bez quando fomos à erba à Ribeira Berde. Por acaso era raro, que ficaba fora de mão quando biemos da Cobada p'rá Rua da Toca. Mas naquele ano, sabes, a seca foi maior, de modo que lá sempre habia uma rega e as berduras espebitabo milhor e depressa. Quando estábamos a atar os molhos reparámos im baixo num fiozinho de fumo, à beira mesmo do pinhal. Era o lugar duma mina. Bai daí, éramos os únicos im todo aquelem bale, num bulia mais ninguém nem nos campos nem nos matos, o teu pai tirou-se de cuidados e foi ter co'eles à loca. “Ó Roque, num fujas que eu num te quero mal. Eu cumprendo a tua situação, só quero ajudar, que isto num é bida nem p'ra ti nem p'ra ela. Tás a oubir? Podes aparecer que num há por estes lados mais ninguém, tás siguro, num tenhas medo.” Aí o rapaz saiu, era mesmo um bicho de barba por fazer e cabelo crescido, tudo cheio de terra, enlameado, as roupas rotas esbodegadas, aquilo metia pena, é berdade, coitado do moço! O que faz uma paixão, quando num tem rumo! A ela ninguém le pôs a bista im cima, refugiada lá p'rò escuro da mina.


E pronto, por atão cuncertaro um modo de ajudá-los a biber ali, que o Roque num cunfiaba no pobo e queria ficar longe. Durante meses foi o Nino que nós incarregámos de les lubar comida, que lá na mina tinho água da boa. O teu pai tebe de o ajuramentar que num cuntaba a ninguém. Ele apanhaba um molho de erba e trazi-ò, p'ra ninguém descunfiar. Intrementes deixaba um saco à intrada da mina, eles recolhio-o p'a dentro e botabo-o fora bazio. Foi assim uns bôs dois meses, que aquilo fazia-nos mesmo pena. O Nino foi home de palabra, um jornaleiro cumo já num há, podia-se fiar dele, que nunca traía quem o tomaba à conta. Era um home fiel ò patrão, tinha uma deboção pelo teu abô que nem um filho. É berdade. Pois desimpenhou-se da tarefa tão bem que durante tantas sumanas ninguém mais deu acordo deles. O Roque e a amiga ficaro à nossa guarda. O P. Abel binha cá sempre saber deles, bibia mesmo preocupado co'os desgraçados, intalado entre a image de Snr. Abade que num pode dar iscândula e a pena de cristão por dois inexperientes caídos na pior das misérias, a sofrer mais do que bestas.


Òdespois, sempre às boas, o teu pai foi à Ribeira Berde parlamentar co'eles. Já andabo meio ignorados do pobo, aquilo num era lugar nem p'ra gado, quanto mais p'ra gente cristã. Eles debio bir de noite e ficabo aqui no sote por cima da casa da eira, ninguém ia descobrir, inquanto num se incuntrasse uma maneira de sair do imbróglio. Aí eles biero atão, ficaro por cá umas duas sumanas, até dar tempo de cumbinar uma saída airosa, só co'os pais a par, mais ninguém suspeitou de nada. E nem estes sabio adonde eles estabo, qu'o Luís guardou segredo diante de todos. Ele trataba de les dar caminho, q'ant'ò mais eles colaborabo no que poderio e mais tarde, quando todos quisesse, se biesse a querer, atão que se incuntrasse, que cumbersasse. Mas naquele intretanto era sigilo e num habia escolha. Ele pôs as cundições e acabou! A família mandou dinheiro e bitualhas, porque ia haber biage e longa, o teu pai ajuntou-le mais alguma coisa e uma carta a recomendar o Roque p'ra um trabalho de ajudante de armazém a um dos cumpadres do Porto que biu que podia deitar a mão ò problema e pronto. O Roque e a amiga foro despachados de noite, a pé, a ber se pegabo a diligência longe daqui pela manhã alta.


Foi o Nino co'eles, sempre aquele home pronto p'ròs apertos. Ajudou a carregar bagage, que eles pouco de seu tinho, mas lubabo de comer e umas prendas, p'ra ser bem acolhidos. E sabes que mais? Toparo no caminho co'o ti'Marcadas. Taba munto tocado, mas olha, conheceu-os e colou-se-les, todo serbiçal. O Nino deu-le trela p'ra se distraírem, a brincar co'ele. Mas òdespois é que foi. O home queria carregar cum tudo, custou cumbencê-lo a dibidir os tarecos, inda por cima ele num atremaba bem, meio desequilibrado co'a bebedeira. E lá foro até à Margonça, òdespois seguiro a estrada real por lá arriba e já tinho passado o Monte Pião quando a diligência rebentou da curba, a trote, qu'os cabalos binho cansados da subida. Tibero sorte, que ela ia quase cheia mas habia alguém que ia ficar adiante na praça e atão lá se acomodaro apertados durante aquele bocado, jogaro as trouxas no tejadilho e ala! Já o Nino biraba p'ra trás, cumbencido que cuntaba co'a cumpanhia do Marcadas que taba sóbrio atão, ou das horas que lubabo de jornada ou do esforço que tinho feito p'ra carregar as cargas. Só que o home num beio. Botou-se a pé atrás deles. “Eu bou ber se eles fico bem!” E o Nino: ”Ó Marcadas, mas olhe que é munto longe, eles bão inté ò Porto, home. Bocê inda morre p'ràí à fome, co'os diabos. Já pensou se eles le faz uma espera?” E o outro, teimoso: “Num te dê cuidado, home! Eu cá me arranjo. Òdespois dou notícias, atão num bês que são uns piquenos, num conhece nada do mundo? Não, eu bou ber, que num fico nada descansado co'isto.”


Num hoube cumo demobê-lo. Botou-se ò Porto a pé, sozinho. Beio dois dias mais tarde, estafado e bem disposto. O Roque já taba p'ra lá no tal armazém, a rapariga ficaba a ajudar na casa do patrão, cumo criada, e bibio por atão ali, num quarto dos fundos. O diacho do home taba alegre cumo um passarinho. Trouxe-nos a nobidade, foi dá-la a Costa-Má e òdespois andou pelas tabernas, pela barbearia, foi òs campos, parecia que le tinha saído a sorte grande. Cuido que im três dias num tinha bubido nem um copo. Mas ò fim da tarde aquilo é que foi! Apanhou uma bebedeira de caixão à coba, até pensaro que daquela num escapaba. Inda albitraro lubá-lo ò hospital, mas acharo que já nem balia a pena. Era o fim do home. Mas ele é rijo e num foi nada. Na minhé seguinte já andaba por aí de sachola ao ombro outra bez. E sabes o mais cómico? Ele foi ò Porto e boltou a pé, sempre co'a sachola ao ombro. Dezio atão que num tebe maus incontros por mor dela. Os homes rio-se: a ladroage debe ter pensado que aquilo debia de ser uma arma secreta e num quisero pô-la à proba. Atão o Marcadas safou-se im paz, quando naqueles tempos era raro, mesmo im grupo, num haber às bezes inda algumas sarrafuscas. Já era munto diferente de quando nem habia estrada real, nem diligências de carreira, só a malaposta a cabalo, co'as mudas de longe im longe. Atão era um caminho munto mau. Mas num tinha mudado grande coisa, só o mobimento era maior e, quando ele assim corre, as esperas já num tem facilidade, pode ser a quadrilha a ser surpreendida, num é? O caso é que o Marcadas foi e beio, ele é que os acomodou, aos piquenos, o raio do bêbedo! Foi quem se doeu mais da sorte deles. Parece que num ligaba a nada e òdespois, olha. O P. Abel comentaba que ele tinha dado a maior bofetada a toda a gente que aqui tinha a mania que era boa e birtuosa. “Cristão é quem faz daquilo, num é quem bai à missa” - dezia ele a sério e a rir. - “De beatério anda o inferno cheio. Mais depressa este bêbedo chega ò céu que quem passou a bida a les atirar pedras.”






12 – Os Caramuleiros


Quando eu era miúdo, havia uma figura entretanto desaparecida sem rasto, a dos caramuleiros. Era uma gente estranha que periodicamente nos cruzava as estradas enlameadas, faminta, rota, carregada de burros esqueléticos conformados, pejados de traquitanas miseráveis, os trastes de quem não tinha eira nem beira. Para nós, as crianças, era uma surpresa fascinante. Eles tinham hábitos bizarros que não lembravam a ninguém e contavam vidas inacreditáveis que abriam bocas de pasmo em todos os adultos, quanto mais em nós!


- Que é que são os caramuleiros, pai? - repetíamos de ano em ano, eu e minhas irmãs, intratáveis de curiosidade e excitação.


- É gente pobre que tebe que ir curar-se p'rò Caramulo, por mor da tuberculose – respondia, paciente e incansável, o nosso pai-de-toda-a-sabedoria. - A maior parte até perdeu tudo e acabou por perder os contagiados. É uma desgraceira que nem tem nome, coitada desta gente! Eles ando por aí cumo fantasmas sem rumo. Muita fome e muita doença e muita morte, é um grande castigo de Deus. E os pobres num tem culpa ninhuma, aquilo ataca onde há mais falta de tudo. Casa de miséria é um antro de morte. A tuberculose é uma maldição. Num haber uma maneira de le descobrir a cura! Mete raiba uma coisa destas!


Mas isto não nos interessava. As novidades é que eram de perder a cabeça. Um dia veio um velho que pedia esmola, no meio da tropeada. Nós tínhamos os nossos pobres habituais, cada qual em seu dia da semana, cumpridores e ordeiros na mão estendida, de casa em casa, o saquitel sebento pendurado ao ombro. Aqui levavam um tostão, acolá um naco de broa, além comiam uma sopa, umas batatas com couves, regadas dum pingo de azeite, às vezes com uma espinha de bacalhau, num lar mais abundante ou em dia mais festivo, que os anos, por exemplo, partilhavam-se. Estes eram pobres conhecidos e a dádiva para eles era estável, fazia parte dos ritos quotidianos, hebdomadários como as horas da refeição ou de acordar. E nós, os mais pequenos, é que fazíamos a entrega aos desprovidos da sorte, aos mais desprovidos que nós, pois a fortuna de quem nasceu a meio da II Guerra Mundial não era propriamente de abundância. Mas, enfim, em casa de pobre alguma sobra há sempre para quem pior se encontra. Aos ricos é que a ganância comeu e nem as migalhas deles chegam aos cães.


O velho, porém, como destroço duma enxurrada, não era destes. Nunca ninguém o vira por ali. Sentou-se-nos na pedra de apoio do tanque, ao lado do portão de entrada, debaixo da oliveira e da ramada, a refrescar-se. Nós rodeámo-lo, curiosos das novidades que não deixaria de contar, quando os grandes lho inquirissem. Minha mãe desceu da cozinha com uma tigela a fumegar, um caldo de batatas e couves, temperado com uma colher de pingue. Era a minha sopa predilecta naquele tempo. Fiquei a vê-lo deliciar-se, as barbas e os bigodes brancos a cobrir-se de pingos e bocados de couve cozida que se escapavam à colher.


- Deus bos abençoe, que sendes boa gente – e lá ia mais uma colherada. - E boa sorte p'ròs meninos, que lindos! - e abocanhava outra. - Atão esta loirinha é menino ou menina? - e apontava-me, no que anos seguidos foi um gesto que sempre me incomodou e me deixou meio atarantado.


- É um menino, tiozinho – ria a minha mãe. - Mas tem estes caracóis de que eu gosto munto e por isso inda num los cortei. Qualquer dia...


- Deus te salbe, rapazinho, e qu'a bida te dê mais sorte do q'a mim – continuava ele, como numa ladainha.


- Atão donde é que bocemecê é? De munto longe? - era a minha mãe, mas eu já estava cercado pelas minhas irmãs e uma turba de vizinhos miúdos.


- Olhe que inté já se me barreu, sinhora dona. Que eu, im berdade, nunca soube, nunca tibe família, se me faço intender. Desde que me conheço andei sempre de terra im terra, a alugar os braços a quem calhaba, nunca soube de pai nem mãe.


Aquilo arrepiava-nos. Como era possível? Que vida mais desgraçada! Sem pai nem mãe nós nem nos sentíamos gente, quanto mais...


- Ora atão quem no criou? Alguém foi... Num chigou a conhecer, num le dissero?


- Fui injeitado à porta do Snr. Abade de Cabeço de Cima, lá p'ràs bandas de Biseu. Foi a irmã que me adoptou inté aparecer uma ama de leite. Mas sabe, num foi por amor, não, que a freguesia pagou-le e bem. Òpois, olhe, tibe de fazer pela bida desde muito pirralho, que ela queria-me p'ra escrabo dos dela. Fugi debia ter p'ràí sete ou oito anitos e nunca mais lá boltei. Num fiquei cum saudades. Porrada de criar bicho, ih! E atão fome, fominha cumo a que lá sofri, oxalá que nem um cachorro a tenha de auguentar. Foro anos muito maus. Òpois fui-me oferecendo p'ra trabalhar e, cumo era muito piqueno, muita gente se apiedou. Desde atão nunca me faltaro. Agora tou é belho, belho, já num posso grande coisa e pronto, o meu préstimo é ninhum. Sou um peso p'ra todos, inté p'ra mim. Ando p'ràqui arrastando o corpo inq'anto Deus quiser, seja bendito o seu nome. Ò mais, se eu me fosse de bez, era um descanso. Mas os desígnios do alto quem os intende?


- Homessa! Im tendo saúde, a bida cuntinua. E q'ant'ò peso, olhe, já fez a sua bida, num é? Tem idade agora p'ra descansar. Ora, uma sopa e um naco de broa, quem é que lo num dá?


- Deus me perdoe, mas sabe que, se eu tibesse família, a cantiga era outra. Agora só no mundo, a sinhora tá a ber... a minha alegria inda é esta miudage, a bida tá p'ra eles. P'ra mim já acabou há muito, mas que se le há.de fazer?


- Cumo é que se ajuntou aos caramuleiros? Num me diga que bem do sanatório!


- Não, não. Mas benho de lá perto, que é onde fui dar, nos trambolhões da bida. Há uns bôs binte anos fiz-me por ali jornaleiro duma quinta, tomaba conta daquilo tudo e trabalhaba im q'anto calhaba, na loboira, a criar gado, a abater pinhal... Pois. Mas q'ando os anos pesaro já num adregaba às bezes de prestar p'rò serbiço, os patrões querio mais ligeitreza e os braços já num dabo e as pernas já se arrecusabo. Olhe...


- Mandaro-o imbora? Òdespois de binte anos a trabalhar?!


- Ninguém me mandou imbora, eu é que bim. Sabe, tibe bergonha de lá cuntinuar, afinal eles que obrigação tinho? Inq'anto prestei, prestei, agora sou um trambolho num bou ser incargo p'ra ninguém. Botei-me à estrada co'estes pobres de Deus. Morrero-le p'ra lá os seus, tamém são uns restos sem préstimo perdidos pelo grande mundo, cum'a mim. Alguns são nobos e bem cheios de bida, coitados! Mas a miséria e a desgraça torno o nobo belho e mato mais que uma moléstia, inté do que a belhice. E é asssim. Temos andado p'ràí ò deus-dará, sem rumo definido, que é que quer? Eu já num começo bida ninhuma, eles bem a podio começar, mas a desgraça a moer-les o peito num deixa. Inq'anto num passar bai ser este cortejo de mortos im pé.


Nós ouvíamos, deliciados. A cabeça pendia-lhe para o peito, de cansaço e de dormência. Minha mãe enxotou-nos para a cozinha, que o “jintar” tardava, na preguiça da conversa. Fomos, relutantes, atrás dela, escadas acima. Havia enxotado a canalha da vizinhança para fora do portão e eles lá ficaram a espreitar pela frincha, sem desarmarem. “Bocês já comero?” - perguntara a Belita. “Eu já, eu já!” - retorquira o Mingos que morava um nico acima de nossa casa. Os mais não responderam, o que entre nós era uma resposta evidente. Daí que estes se apressaram a debandar, rumo às mesas que os aguardavam.


Minha mãe servia-se destas circunstâncias para nos obrigar a comer tudo aquilo de que não gostávamos. É claro que havia aquele caldo que era para mim uma delícia. Só que ela meteu-me na malga uma colherada e pronto. À frente ficou-me um maldito bacalhau com batatas e couves que, por qualquer razão misteriosa, só na noite de consoada tinha o condão de me abrir o apetite. O resto do ano era o meu carrasco.


- Só podes boltar lá p'ra baixo q'ando o acabares.


- Oh, mãe! Num gosto nada de bacalhau cum batatas...


- Ninguém to perguntou. Num te lebantas daí inq'anto o num acabares, òbiste?


A Belita fazia-me caretas, ela adorava aquele prato malfadado, só que detestava os troços das couves. E lá estava um, enorme, a pingar azeite, no prato dela. Já tinha aprendido, contudo, a torneá-lo: cortava-o aos bocadinhos e misturava-os com cada garfada. Pudera! Assim também eu. Só que não tinha nada a que me agarrar, mesmo a broa com aquilo me sabia mal. A safa, em desespero de causa, era pedir uma tigela de leite. E então, se fora fervido, melhor. Mascava aquela argamassa pastosa um nada na boca, dava uma golada e ingeria tudo, sem lhe tomar o sabor. Evidentemente que eu não queria ficar para trás, com o caramuleiro lá em baixo à espera, a turrar de sono. Até parecia que adorávamos aquela pratada detestável, à velocidade a que a devorámos, à compita um com o outro. Nem me lembro do que é que ocorreu com minha irmã Tilde nem com meu pai, naquele almoço acelerado. Recordo apenas que, mal acabámos, saltámos dos bancos de pau com um pincho e um empurrão, a Belita abriu a porta, pulámos para o patim e descemos em correria os degraus de pedra. “Cuidado num caiam!” - recomendava, por hábito, a mãe.


Parámos, de repente, a meio, esbugalhados. O Mingos trepara ao murete do tanque e estava a urinar para cima do pobre. Para cima?


- Ele tá-le a mijar na boca! Ó mãe, o Mingos tá a mijar na boca do caramuleiro! Ó mãe! Ó mãe! - a Belita desembestou descontrolada, escadas arriba.


Eu fiquei especado, em transe, nem conseguira reagir. Ele estava mesmo a tentar acertar-lhe na boca quando ouviu a grita, parou, olhou para nós, e pisgou-se por entre as abas do portão. Neste entrementes, descia já a minha mãe os degraus, desvairada com o despropósito do garoto.


- O marabelho do miúdo!Tem o diabo no corpo. P'rò que le habia de dar, coitado do belho! Já num le basta a vida madrasta, inda por cima uma coisa destas! Ele há cada uma!


Com o reboliço, o caramuleiro acordou, não entendeu nada, viu-se todo salpicado não sabia de quê, levou as mãos à cara e reparou no cabelo e na barba molhados e sai-se com esta:


- Ora, ora! Atão num me babei todo?! Babei-me todo, cum mil demónios! Cumo é que foi isto? Babei-me cum'às crianças! - e ria-se, a boca escancarada, regalado.


E nós ríamo-nos todos com os despropósitos encadeados na cena e mais ele ria contagiado por nós e nós com os equívocos dele. Eu por mim fiquei com uma dor de barriga que durou até à noite. E, quando me lembrava de novo, não aguentava e desatava a rir-me sozinho. E então a Belita que me ouvia era ih, ih, ih, lá com os brinquedos dela. E o ataque continuava e pegava-se à minha mãe e ao meu pai. Foi uma alegria! O Mingos nunca imaginou a festa que o seu destrambelhamento viria a desencadear.


À merenda, porém, arregalámo-nos de espanto. O velhote seguira caminho Rua da Toca abaixo, queria ver o mar, era uma cisma dele que toda a vida o acompanhara. Não havia de morrer sem ver esse mundão de água de que sempre ouvira falar e nunca acreditara que fora possível. Agora, que estava perto, não queria perder a ocasião.


Com o que demos a seguir, todavia, foi com uma fome de que nunca tínhamos ouvido falar. Era um homem adulto, bem encorpado, e dois rapazes maiores do que nós, mas ainda nem adolescentes. Ele pediu-nos, humilhado e lacrimoso, “umas batatitas, umas coibitas, inté um punhado de feijão, pelo amor de Deus.” Isto era muito banal, o que não fazia sentido era aquela ansiedade, aquele desespero. E depois reparámos nos dois moços, sentados no peitoril da janela térrea da casa em frente, do outro lado da estrada. Estavam eles a explicar que não era preciso cozinhar nada, comiam mesmo assim, pediam apenas vianda, quanto ao mais não havia para eles problema nenhum, estavam habituados a tudo. Nós não acreditávamos no que ouvíamos, só podia ser conversa fiada para melhor nos enrolar e apanharem mais alguma coisita.


- Nã, sinhora, num é nada – contrariava-nos o pai. - É mesmo cumo eles diz. Os sinhores bão ber. Eu tenho uma doença que ninguém conhece, é a minha disgraça e a minha bergonha. É que eu como, como, como e nunca fico sastifeito. Num cunsigo parar, por mais comida qu'os benfeitores me dê. Bejo a minha sina, se num é dum home acabar co'a bida duma bez! O que me sigura são aqueles dois que num tibero culpa de bir ò mundo. A mãe lá les ficou na campa do sanatório. Mais nos balia ter ido todos, mas olhe, quem nasce cum má dita toda a bida há-de gemer. Sã destinos. O meu é este. Uma danação que o pior iscomungado num debia de ter. Num cunseguir parar de comer, onde já se oubiu tal coisa? Digam-me lá! Algum dia oubiro falar de tal maldição? Num oubiro, pois não? É assim , foi praga que me botaro e pronto! Num há bruxedo que me libre dela. Maldita bida a dum home cundenado a tal fadário!


Esta era a reza do pai, que lá os miúdos estavam orgulhosos de nos encherem os olhos, por um dia eram o centro das atenções. A minha mãe disse-lhes que podiam colher as couves que quisessem, enquanto ia encher uma quarta de batatas e um saquitel de feijões. Não se fizeram rogados. Cada qual chegou num minuto com um braçado de pencas enorme e, para nosso grande espanto, sentaram-se no peitoril a comê-las cruas, regaladamente. Mas o pior é que o pai abanca com as batatas e o feijão, pede uma baciazita de água, despeja lá tudo, esfrega as cascas dos tubérculos a tirar-lhes o terrum e desata a comê-las cruas também, descascando-as com os dentes. Parecia que estava a mastigar maçãs ou laranjas. Com os feijões, o mesmo. Aquilo era tal qual o gado e deglutiam a velocidade inacreditável: em três tempos, que nem uns bácoros, foi tudo! Nem os malditos talos das couves escaparam! Nunca tínhamos visto nada semelhante, de tão inaudito! A bizarria foi tamanha que o que noutras circunstâncias nos provocaria engulhos, mascar aquilo tudo cru, nem sequer nos tocou. Como era possível uma fome daquelas?! Que vida era a destes miúdos, quase da nossa idade?


O meu pai não comentou connosco o caso. Mas à ceia, quando a minha irmã Tilde franziu o nariz ao leite migado, como lhe acontecia muitas vezes, sublinhou:


- Lembra-te de quem num tem e dá graças pela sorte que te coube. Se andasses a morrer de fome, isto até te parecia comida de anjos. Bá! Nem chus nem bus! Toca a comer, num quero oubir nem mais uma palabra.


E eu sonhei aflito que estava no meio duma pocilga inteira, com os bácoros a devorar couves espalhadas por um ressaio, e, como eu era do tamanho delas, a todo o momento qualquer daquelas fauces esgalgadas ia-se enganar e trincava-me as orelhas ou o nariz ou enfiava-me a cabeça inteira pela goela abaixo!






13 – A Tica e o Vidreiro


Olha, vidreiro, a Tica é uma cadela. Tem tento na boca, que to digo eu, com o peso da vida nos meus cabelos brancos. Já vi mais mundo que todas as gerações de tua casa, se é casa o que tens. Que a miséria orgulhosa não te ensoberbeça. Levanta a cabeça e respira do ar que daqui te damos em paga de teus préstimos. Mas não abuses, que, se mulher tens, a nós o deves. Senão, nem a ti te alimentaras, quanto mais a um lar.


Respeita, vidreiro, a tua dita maior que é manteres a ponte multissecular entre a fábrica de vidro de Bustelo e a dos botões, na Margonça, ambas dum só dono para muitos povos e a serem a correia por onde transcorrem os calos de quem trabalha, ora cá, ora lá, conforme os mercados se alargam num ponto ou se estreitam noutro. E assim é que não morres à míngua, preso aos talhões escassos da enxada que manténs abandonada atrás da porta, como sentinela alerta, pronta ao que der e vier, nas desgraças da vida. Não mordas, vidreiro, a mão que te serve, o corpo que se te entrega, a terra que te oferta os frutos donde te sobrevivem os teus. Não mordas, vidreiro.


Repara que o apito das oito da manhã, a acordar-nos lá do topo de Bustelo, vale paredes meias o que vale o badalar do sino da igreja. E, se não é tão sagrado, é pelo menos tão antigo na memória do povo que nem a pequena torre sineira, de simpleza renascentista, lhe disputa a primazia das recordações romanas, pré-cristãs.


Não, não nos venhas humilhar a Tica que é uma cadela entregue às forças naturais. Como nós, é certo, mas há um arbítrio aqui que ela não pode ter acolá. Conta a tua aventura que ninguém convence mas deleita. Conta-a, porém, com contenção, com sentimento, com gestos ternos e atenciosos. Não omitas nenhum dos que viveste ou sonhaste viver, que é o mesmo, para o que a todos nos importa. Diverte-nos, diverte, mas não ofendas nem belisques, que, porventura, com tal irás contribuir para que o apito da fábrica se cale de vez ao fim destes milénios. E morrerás de penúria, pois te faltará o pão e a consideração. E esta, acredita, tolher-te-á muito além de qualquer fome. E depois, vê bem, perderás de vez este passeio matinal de melro que voa do Couto a Bustelo, entontecido pelas promessas da aurora, bem como o retorno crepuscular, prenhe de saudades da vida, com que refazes tuas passadas fatigado, grato pela féria e pela escultura de vidro que talhaste um dia inteiro. Olha que, quando o perderes, perder-te-ás.


E agora, prevenido, conta.


Conta como a Tica, seja lá quem for nem quantas foram, se perdeu de desejos por ti. Primeiro pela tua enorme estatura encorpada, robusta, de carvalho centenário. Mas por trás, afinal, bem mais perdida terá ficado pela fama murmurada, orelha a orelha, do enorme cumprimento do teu falo: palmo e meio de tamanho erecto, bem medidos.


Alegra-nos com a anedota que desde então nos recontas, incontrito. Tão extasiada ficou ao mirar-te o membro acrescido a latejar de vida que gemeu: “Ai, mete, mete, assim, mais, mais...ai... aai...” E tu: “Mais? Mais?” E ela, enfuriada: “Tudo, tudo...aai... aaai...” E, cheio de boa fé, cada vez ias mais para dentro. Até que ela, “ ai que bom! Aiii... glh!...Glhglh...”, acabou engasgando-se com ele!


Repete como, descendo a Rua da Toca, cordão umbilical que liga dois mundos, o de dentro com o de fora, o de antanho com o porvir, ela te surdiu matreira a atirar olhinhos libidinosos por detrás do palheiro, naquela sexta-feira em que te atrasaras a receber a féria e regressavas sozinho, a trautear lampeiro como um rouxinol. Havias bebido na loja do Bispo um copo de três tinto para aclarar a voz, alegre duma semana bem ganha, perante a bocarra em labaredas do forno, donde tiraste o vidro fundido de quantas peças a fábrica laborara em cinco dias bem pejados de encomendas. Mereceras bem o prémio.


Repara nela a fremir de lubricidade, essa Tica de tantos rostos, como um prémio a mais com que não contaras. Pára e ausculta com o olhar esse olhar dela e entende-a sem que palavra nenhuma distorça a verdade da mensagem secreta, do silêncio cúmplice. Ao aceno feminino, vai, entra discreto a esconder-te por trás do monte de palha e aguarda-a. Ela vigia o terreno em redor, a casa vazia, que hoje os demais foram pela farinha a Fundões, os campos atrás, de milheiros altos mais que a cabeça dum homem, não vá por lá esconder-se algum olho de tocaia que vos surpreenda e quebre o prazer. Ou que arraste sequelas tardias que pesem mais no porvir do que o gozo pesara num momento transitório.


Acolhe-a quando chegar vergada de desejo incontido, em desvairo, com a vergonha e a timidez vencidas a ruborejar-lhe as bochechas, com o peito a estalar, de oprimido pelo coraçãop aos pinotes, de freio nos dentes. Deita-a a teu lado,”é a primeiram vez, olha que é a primeira, não me aleijes... tá bem?” Confessa que então não desejaste apenas. Tiveste pena, tiveste apetite, tiveste dó, acabaste quase ternurento. Foi com toque de meiguice, não te envergonhes, que um homem tem coração. Quando rasgaste com teu membro a vulva dela, quando lhe sentiste o gemido de mágoa e de prazer descontrolado, não te escapou a marca duma dor verdadeira. E tu, vidreiro, foste capaz de ignorar-te e de atendê-la. Foi para não feri-la, não por teu prazer, antes pelo dela, que olhaste em redor buscando auxílio. Pegaste na toalha e enrolaste-a ao membro erecto, a diminuir-lhe o tamanho que ela tanto desejara mas não poderia conter, sem, virgem, por dentro se rasgar. E partilhastes então ambos um prazer proibido que aquele gesto humanizara.


Não foste capaz de silêncio, que a prenda fora demais. Segredaste-a de ouvido em ouvido, que a ninguém se contaria. E assim a todos chegou, “só a ti, não contes a ninguém mais, prometes?”, murmúrio a murmúrio. Pelo menos esta discrição impediu que a difamação tolhesse a vindoira vida dela, de todas elas.


Tua vaidade, porém, não proibiu que, sempre que a Tica, a cadela deveras, atraía de cio a matilha dos cães, todos uns nos outros enfiados em fila, a andar pelos campos fora, os dichotes chovessem, intencionais, contra aquelas de que mais se suspeitara a impudência. “É a Tica da Nani, é a Tica da Migu, é a Tica da Guida, é a Tica da...” A ladainha podia bater a todas as portas, que a má língua corta a veste sem olhar a quem.


Repara no Tito que nunca olhaste: ele ouve as sequelas e fica a magicar no jeito matreiro, no olhar trocista, no sorriso enviesado... Repara na Tilde que já notaste distraidamente, pelo apontar temporão da puberdade: ela escuta e acaba intrigada a perguntar: “Mas quem foi a rameira honesta...?” E cora logo de vergonha e confusão. E já viste a Belita? Ela repete, entendes? Ela repete. Vê o risco.


Cuidado, vidreiro, tento na língua traidora! Que enquanto nos alegras as horas, bem te aténs, mas, quando nos salpicas, te condenas. Aqui sempre houve pão, quando os mais rilharam a fome. Enquanto fores dos nossos, conta connosco, não apertarás o cinto. Porém, se descarrilas, não há emprego que te salve.


Ouviste o resmungo do Marcadas, a amear-te ébrio o sacho desgovernado? Pois, não entendeste. Eu repito-to, eu repito-to, para que o graves a fogo indelével: “Goza e cala-te! Goza e cala-te! Senão...” E olha que ele é homem para se tirar de cuidados e, numa hora de sobriedade, te abrir essa cabeça de vento como uma melancia podre. Já por menos testemunhei desgraças maiores, que para nós ela não seria de monta, o fim dum bobo que nos diverte um pouco, no intervalo das freimas, que tal é o que mais representas em nossa vida tu, o estranho que vieste partilhar de nossa mesa.


Quem te avisa teu amigo é. Repara em meus cabelos brancos. Olha que a experiência acumulada da velhice tem muito que te ensinar, assim tu o queiras ouvir. O ti'Sacristão Capador tem poucos envoltórios, mas aprendeu tanto da vida que, se não ligas como os mais, ainda te perdes. Até porque, quanto ao resto, lá por ter recolhido o falar do P. Abel, não é motivo de despeita. Quando me enganei eu, quando? Não encontrarás quem to diga. E não me enalteço de copiá-lo, é por respeito por ele, que é merecedor mais, muito mais do que alguma vez algum de nós pôde compreender deveras. Vejo bem quanto sou ignorante se com ele me comparo, mas não o és menos tu se comparado comigo.






14 - O Tribunal de Augusto


- Sabes, Tito, com que toda a gente se diverte agora lá na aldeia? Nem te passa pela cabeça! Lembras-te do ti'Augusto? Pois, o Silvério, o filho, foi até teu colega na escola.O irmão mais novo, o Totó, leva a vida nos vizinhos. Têm aquela irmã mais velha, a Rosa, recordas, que anda a servir em casa da madrinha, lá para os lados de Ovar? Olha, foram levados a tribunal os pais, sabes porquê? Por difamação, vê lá tu!


Difamação?! Não acredito! Eu conheço-os bem, lembro-me de quando a Rosa ia lá a casa brincar com a Tilde, eram bem grandes para a minha pequenez. Tu, Belita, estavas delas mais próxima e quantas vezes as desdobraste no jogo das casinhas, na disputa da macaca ou na dança do encadeado! Eu, não, só muito raro entrava nas lides, que minha tineta de jeito imaturo me tolhia. Agora, tanto os nossos colegas como os pais eram bem gente de sua casa, honrada e de palavra. Difamar?! Quantas vezes a Rosa nos tomou a defesa nas disputas infantis? Quantas vezes desabafaram nossos pais com os deles, que eram em quem mais se podiam fiar? Desde que aqui vim para a quinta da prima Teresa, a caminho do Marão, pela colheita da laranja, ainda não tinha ouvido uma enormidade tal! Alguém por lá deve andar com a cabeça fora do lugar! Mas conta, conta, que sempre quero ouvir...


- O caso foi assim. Conheces, já lá estiveste nas esfolhadas, o alpendre dos Branquinhos. Agora, até cima, aquilo é quase só molhos de canas de milho. Fica um nico à frente meio vazio, para descarregarem os molhos da erva para o gado. Quando tu eras pequeno até foi lá que a Nagu te deu de comer, naqueles dias do enterro. Pois olha, é tudo por causa dela. Hoje em dia botou aquela mulheraça peituda que tu bem conheces. Para o que lhe havia de dar! O Totó é quase ainda um miúdo, a entrar na puberdade. Passava lá o tempo todo durante as colheitas, pensou o ti'Augusto que lhe tinha dado para ali, não ligou. Não foi nada por acaso, que julgas? A Nagu sempre foi maluca por miúdos, tu lembras-te bem. E olha.

Claro que recordo a prontidão com que me agarrou ao colo e me retirou do meio do berreiro desatado quando nossa tia morreu de repente, naquele acidente na roda da bomba de água. Puseram-se à brincadeira, a ver se conseguiam pô-la a girar, àquele círculo com mais que a altura dum homem, de ferro maciço cortado por dois eixos perpendiculares que o ligam à manivela. Ela e os nossos primos mais velhos penduraram-se desta, a roda girou um pouco, penduraram-se do lado oposto, girou um pouco mais e pronto, ei-la primeiro numa volta lenta, depois noutra mais rápida e mais ainda, até que uma ligeira pressão no êmbolo era bastante para manter uniforme o corropio dos eixos e o jorro de água na caleira. Estavam muito divertidos nisto e vai daí a tia Florbela, de repente, pendura-se no topo dum dos varões, é arrastada pelo ar acima pelo balanço da pesada roda acelerada e lá do alto é jogada com toda a violência no empedrado do chão. Partiu a espinha, ficou logo como morta. Ainda correram em pânico ao hospital, mas não havia nada a fazer: a cabeça desfeita, a coluna seccionada só deram para ela vir a si uns instantes, reconhecer a mãe e o pai, pedir-lhes desculpa do disparate e finou-se. O choque foi tão brutal que a dor nos matava a todos. Os gritos aterraram a vizinhança que se desdobrou a socorrer-nos. A Nagu pegou-me ao colo, já me faltava o ar de tanto me desgoelar interminavelmente. Levou-me a correr para casa dela, foi-me buscar quantos brinquedos me pôde descortinar e inventou jogos e mais jogos. Era eu tão pequeno que, instantaneamente, mudado o ambiente, me acalmei, interessadíssimo por explorar as novidades. Fiquei lá um dia inteiro, às refeições e tudo, embora me negasse a comer à mesa com aquela família. Mal os conhecia, apenas das visitas que nos faziam, por causa de acertos de trabalho nos campos ou de idas às compras. Foi a Nagu a minha ama, comi aparte com ela, sentado num estrado com uma manta. E lembro-me de que só descansou, à noite, quando me descobriu outra vizinha que tinha um quarto livre onde pude dormir. Ela nunca me deixaria voltar ao estado de choque de que me arrancara, por isso eu não poderia regressar a casa senão quando tudo estivesse definitivamente ultrapassado. Recordo, recordo tudo como se fora hoje, Belita. Por isso mais estranho é quanto me contas.


- Ninguém teria dado por nada, não fora o Totó, que é mesmo ainda um miúdo, sem nenhuma responsabilidade, ter de repente ficado alarmado por ter o pénis dorido, de pisado. Queixou-se ao ti'Augusto de que lhe doía, palavra puxa palavra, vai-se ao médico, não se vai, o pequeno ficou aterrado só com a ideia, creio que julgou que lho iam cortar (é o que os outros miúdos afirmam). Mas então como é que fizeste isso, como aconteceu? O garoto descaiu-se, com a maior das inocências, que desde a época das desfolhadas a Nagu o levava para cima do folhelho, a atirar-lhe com as folhas e ele a ela, até caírem cansados. Abraçavam-se aos beijos e apalpões, apertavam-se entre as coxas, até que acabaram esfregando-se, despindo-se, que aquilo fazia calor. Conta o miúdo que então ela lhe fazia miminhos no sexo, para cima e para baixo, e que depois, com o falo duro na mão, se esfregava com ele entre as pernas até gemer de prazer. Aquilo era tão bom, relatou o rapaz, que por isso é que ia para lá todos os dias, sempre à espera de chegar a hora. Só passados tempos reparou que o pénis lhe doía o dia inteiro, de tão pisado que acabou em tais andanças. Evidentemente que o ti'Augusto desatou às gargalhadas, ele cuidara que era algum problema grave. Uma coisa destas! A ti'Ana, não, ficou escandalizada e disparou a pregar que a desavergonhada lhe andava a desencaminhar o ganapo, que já estava uma mulher e dera agora em perverter crianças e por aí fora. Toda a vizinhança ouviu, claro, e quem não se pela por uma história picante? Era um corropio de meio mundo para casa do ti'Augusto, mulheres para um lado, “cruzes, canhoto!, o mundo está perdido”, os homens para o outro, o danado do puto, numa idade destas e já a pôr-se numa marafona daquele tamanho até ficar pisado, com mil diabos! As mulheres a benzerem-se, os homens a rirem-se à socapa, aquilo foi um fogo pegado a correr a freguesia inteira em três tempos. A ti'Guida do Quelho andava a dias no Pocelgo, olha, os de Bustelo e da Lomba ficaram logo a par de tudo. Quando estavam a comer o almoço lá no campo, o ti'Nino, que acabara de gradar no Jurbil, desceu por ali abaixo, curioso, e, à tarde, já Costa-Má, a Gandra e Samil inteiro se andavam a rir da cena do “puto da ferramenta pisada”, como ele lhe chamava. Calhou de andar a fazer entregas de sacas de raspa de casa em casa, foi uma risota pegada em todo o lugar. Ah! E tu sabes que ele e a ti'Guida parece que ficaram um bocado enrabichados um pelo outro a partir daí? Ela tem lá empalamada, à conta dela, aquela irmã, coitada! Mas olha, estavam bem, era um casal emparelhado, se se vierem a entender. Ainda vamos ter casório por ali, embora já estejam um bocado entradotes, não é? Mas pronto. Para o caso, o que importa é que o falatório deu numa vergonha tal que a Nagu não podia sair à rua, as mulheres viravam-lhe a cara, os homens sorriam, irónicos, os rapazes mais metediços atiravam-lhe graçolas e tentavam a sorte com ela. A rapariga acabou trancando-se entre paredes, de vergonha e de medo. Então, para calar o povo, desataram a negar tudo e a atacar quem lhes calhou em frente. Claro que ela não tinha outra saída, senão não acredito que o pai lhe deixasse um osso inteiro. O ti'Álvaro é aquele paz de alma, mas cuidado quando lhe sobe a mostarda ao nariz, ele já rachou aquele canzarrão do Bimbo de meio a meio, só por lhe ter feito um lanho nas calças, lembras-te? Coitada da Nagu se ele perdesse a cabeça com ela, nem quero pensar! E mesmo a ti'Cesária, bem, não sei do que era capaz! O caso é que ela os convenceu de que o miúdo é que se queria aproveitar dela, mal intencionado, que lá por si sempre adorara crianças e nunca tal lhe passara pela cabeça, cruzes! Eles foram na conversa ou fizeram das tripas coração, que remédio! Que lá quanto ao resto, ninguém mais se deixou levar naquele paleio, o miúdo não podia imaginar aqueles pormenores todos com que contava as cenas em que andaram por lá rebolando um com o outro. Mas estás a ver o problema? Como é que se ia limpar a rapariga? Então, olha, tribunal com o ti'Augusto!


Vejo o problema, vejo. A Nagu difamada, os rapazes todos a tomarem-na por uma mulher da vida, a contar que um dia lhes chegasse a vez de se deitarem com ela. E a rapariga sem alternativa que não seja a prostituição ou o convento, à moda antiga. Tudo por uma criancice inconsequente que, obviamente, jamais poderia, em equidade, sofrer tão desproporcionado sancionamento. Uma vez mais a milenar duplicidade que empurra a rapariga contra a parede e chega a enaltecer o macho responsável da desgraça. Valha-nos ao menos que aqui é um miúdo. Mesmo assim, ei-lo enobrecido pelo clã dos patriarcas, “com aquela idade e já... Vai ser um grande galador!”, enquanto a enxovalham. E as mulheres, só falta gritarem aqui d'el-rei. Sempre a insana condenação às cegas, emocional, sem peso, sem conta, sem medida. Se ela fora uma prostituta viciada, o gesto impregnaria a experiência do vazio de sentimentos e da falta de horizontes afectivos que lhes marca o destino e os passos. Agora ali, em recíproca espontaneidade, sem pressões externas nem desagregações internas? Olha a grande perda! Vá lá que a tónica ao menos ainda virou para o riso e a chacota. Desgraça seria tornar isto uma tragédia. E, pelos vistos, para alguns ou algumas tê-lo-á sido. Que falta de senso transformar um deslize inofensivo no fim duma vida! Que falta de senso não reparar em tão criminosa falta de senso! Será que não é o teu bom coração, Belita, sempre apaixonado por todo o cão que sofre, por todo o gato faminto, que me distorce o relato da má-língua perversa, da beatice feroz e cruel, para o bom-humor e a ironia, afinal excepcionais? Como será lá, no terreno duma parvalheira abastada, saciada, que tanto se entretém a comer-se a ela própria, com requintes de crueldade? Não confio aqui no juízo das mulheres, perdoa-me, irmã, mas tu és boa demais para lhes tolerares a mesquinhez farisaica. Fazes-me o teu relato apoiada no outro lado que sabes que é o meu, para lhe dares mais força, a ver se a chaga doi menos e sara depressa. Como eu te compreendo! Fico-te grato porque a Nagu o merece, coitada. Ela é boa, fez-me bem, a sério, e nada do que tiver nessa história ocorrido foi por mal. Ela seria incapaz, sabemo-lo bem nós os dois. Por isso, Belita, te ris, a ver se pões todo o mundo a rir, até que tragédia mude em suportável drama, até que o drama dê uma cambalhota e não passe duma farsa ou duma inocente comédia, de que todos possam acabar por sair ilesos, a chorar de riso. É isto, não é? Eu conheço-te!...


- Tribunal com o ti'Augusto!Mas ainda foi pior, toda a freguesia queria ir para Oliveira assistir, era uma romaria. Cada vez aquilo dava mais riso. O juiz acabou por decidir que o julgamento era à porta fechada, que o arraial estava-se a tornar numa pouca-vergonha. Pôs todo o mundo na rua, mas adivinhas o que aconteceu? Lembras-te do largo em frente do tribunal, mesmo por cima do jardim, logo adiante do mercado, não é? Ficou atulhadinho de gente. E nada de debandar, qual o quê? Ninguém arredou pé. Todos queriam saber da sentença em primeira mão, os ditos, as graçolas, as piadas, as ironias choviam donde menos se esperava. Muita gente chorava de riso, sem conseguir parar. Vai daí o juiz adia a sessão. Quinze dias depois, contudo, ainda foi pior, até camionetas de carreira se alugaram, gente a pé era tanta que nem para a festa de La Salette. Olha, o largo, quando lá chegámos, já estava a extravasar de gente, as bancas de comes e bebes, as pipocas, as castanhas( nem sei como as arranjaram tão cedo!), os gelados, repara bem! Aquilo só faltava a música ou os carrinhos de choque ou o poço do inferno, era mais barulhento e alegre do que uma romaria a sério. Ninguém sabe quem os avisou ou então eles cheiram estas coisas no ar. E, ah!, cornetas e gaitinhas nem queiras saber quantas apareceram à venda, em cestas, em bancadas, em carrinhas, tudo mercadores muito brejeiros, com gestos sugestivos, “é p'ra les tocar à saída”, “à intrada, à intrada, que dá mais gozo!”, “as cornetas tocam nas gaitinhas e elas apito, fica todo o mundo a saber!”, era uma alegria tão esfusiante que não havia julgamento que lograsse qualquer ar sério no meio dum tal ajuntamento. Nunca vi coisa mais divertida! Já ninguém tomava a queixa a peito: julgar, julgar o quê? Eles, os miúdos, quiseram-se divertir, que se divirtam enquanto é tempo, que a vida dura e madrasta não vai ficar à espera, deixem lá! O juiz, no meio do pandemónio, decidiu abrir a porta mas pediu ordem e dignidade, que um tribunal não era lugar para desarrazoados. O pai tomou a palavra em nome dos que puderam entrar: “ninguém quer faltar ò respeito nem à casa nem ò Snr. Dr. Juiz. A gente só cuida que num se pode julgar uma causa que parece mais uma laracha que outra coisa. É isto. Tamos todos é curiosos, só, Snr. Dr. Juiz.” Vai daí não é que o tribunal se limita a perguntar ao ti'Augusto se ele se compromete a nunca mais falar do caso e, principalmente, a jamais repetir que a Nagu é leviana e que fez uma coisa daquelas? Ora, claro que ele jurou que nunca o faria, até porque nunca o tinha feito. E acreditas que só em tal momento é que eu própria reparei que era capaz de ser verdade? Eu nunca lho tinha ouvido e ninguém que eu conheça, confirmei-o depois, igualmente. O alarido no próprio dia foi o da ti'Ana que ficou nitidamente descontrolada. Mas a seguir até se calou ela também. O mais seria corte de casaca da freguesia toda, o vício venenoso de maldizer, a bisbilhotice. Quando o juiz perguntou ao ti'Álvaro se ficava satisfeito com o compromisso, que é que ele havia de dizer? Que sim, disse que sim. E acabou tudo! Nem queria acreditar: aquele alarido de semanas, uma romagem a Oliveira como nunca ocorrera em S. Pedro, o arraial daquela multidão e, olha, semelhante montanha pariu um rato que mal se via. Quando nos recobrámos do assombro, a gargalhada no tribunal foi tamanha que a sessão teve de ser interrompida para evacuar toda a gente. A risota cá fora e no regresso ainda foi pior. E piorou tudo o que houvera antes. Coitada da Nagu e dos pais, andaram uma semana encafuados, que nem à rua se atreveram a sair. Mas pronto, o povo tanto riu que esqueceu. Pelo menos, como toda a gente se divertiu, deixaram de os achincalhar: à frente deles já ninguém diz nem faz nada, parece que, de alguma maneira, acabaram por se sentir agradecidos.


Afinal, qual é o teu recado? Tudo está bem quando termina bem? Não pode ser, Belita, que isto de o povo ser instável, é verdade, estamos fartos de o saber. Mas só pela novidade tu nunca mo contarias, tens outra pedra no sapato e não a consegues tirar. Que diabo queres com esta conversa? Que andam a tramar à Nagu? Ou não será por ela? Naquela terra tudo tem um avesso e um direito. Qual é o de agora? Queres algo que eu não entendo e estás inibida, irmãzinha. É estranho, que tu sabes bem que eu não te conseguirei nunca dizer não. Sempre foste a maior aliada e a maior inimiga em minha vida. E, se calhar, quem mais me ensinou a viver. Pelo menos, a conviver, o que não é nada menos. E tu intui-lo muito bem, embora me pareça que nunca tenhas dado conta. Se bem te entendo (e, não fora eu, quem te poderia entender?) tens um pudor inultrapassável em me forçar, porque sabes quanto sou frágil ante os dedos de teu sentir. E é o que mais em ti aprecio e mais na vida nos uniu, nos mudou de irmãos conflituosos em solidários, mutuamente indispensáveis. Podes falar, Belita, estou prevenido e atento e sei da tua intenção. E compreendo-te a insegurança, vislumbro que terei de ajuizar por mim, que andas preocupada mas incerta de qual a via. Abre o jogo, irmã, vamos à luta!


- A Tilde é que me contou uma conversa. Ela agora enfeita e trata do altar da Senhora das Dores com a Celeste, lembras-te? A filha de ti'Mégui da Loja, que mora na subidinha do atalho para os Tanques de Baixo. Pois. O Turinho ainda andou contigo na escola, não sei se na mesma turma. É. Agora vê, eles têm um irmão mais velho, o Cacá. A Tilde é que o conhece melhor, que ainda foi do tempo dele e, como é muito amiga da Celeste, anda lá por aquelas bandas de vez em quando. O caso é que esta lhe contou que, afinal, a Nagu tinha um pretendente em casa dela. Nunca a rapariga deve ter dado se calhar por nada, compreendes, que nem chegaram à fala, pelo que a gente saiba. Mas a verdade é que o Cacá, no meio dos comentários apimentados por causa do episódio do Totó, descaiu-se com uma fala do género: “Olha onde eu me ia meter! Librei-me de boa, pôssa! Inda bem que isto acunteceu inhantes de haber intendimento, senão... A bergonha que um home ia passar! Aquela, não, nem le quero mais pôr a bista im cima!” Creio que na família dele ninguém tinha dado por nada até ouvirem o desabafo. Eu fiquei em cuidados. Deste a gente soube assim, não é, por mero acaso. Quantos mais não haverá? A Nagu deve ter ficado cortada, se calhar de vez, para todos os rapazes casadoiros da geração dela. Não é justo, tudo por uma criancice que não fez mal a ninguém. Ainda se fosse coisa de ter continuidades, duma fundada suspeita de que ela pode ser leviana e hoje foi com um miúdo, amanhã poderá ser com quenquer... Mas nunca houve nada. Nem mesmo há sinal de não ter aprendido a lição, ao contrário... Não concordo mesmo com uma situação destas! ainda por cima, uma rapariga com aquela queda por crianças. O jeito que ela tem! Se ninguém a quiser para mulher, olha, julgo mesmo que a nossa terra é um atraso de vida tamanho que nem um nome merecia ter. Tenho vergonha de ser de lá, juro-te. Raio de mentalidade! Para coisas destas não há maneira de encontrar peso nem medida. Com os homens, tudo bem. Com as raparigas dão cabo duma vida e pronto, ninguém se preocupa nem parece ter remorsos, nem que seja um crime o que cometam. Não está certo, não está certo! Nunca mais saem da Idade Média e dos fantasmas. Às vezes uma bomba naquilo tudo era o que me apetecia!


Evidentemente que tens razão, quantas vezes já falámos nisto! Continuas hesitante em dar crédito ao P. Abel, quando ele explica ao pai a estranha educação que lá tivemos em S. Pedro. Argumentas que a maior prova de que ele não deve estar a interpretar correctamente é que, neste domínio, as atitudes machistas não há maneira de mudarem, a família patriarcal continua incontrita, de gração em geração, há milhares de anos. E é verdade o que notas e sofres, o que te revolta. Mas como é frágil o teu argumento de facto! É que sempre ignoras a nossa casa (e outras mais, trejura o P. Abel, espalhadas lá pelos brejos ignoradamente), o trato igual que de irmãos tivemos, a rebelião que te sustém e não é partilhada pelas mais, a paridade entre nossos pais que não encontra, é verdade, paralelo na Rua da Toca. Mas o Snr. Abade ri, que é da lura que pula o coelho e que foi quem deu por ele, os mais andam encegueirados a reproduzir influências de em volta. Ora, se nós fomos encaminhados por outro carril, é que este trilho existe e opera, mesmo que em excepções tão esporádicas que nem dão para fazer conta. Estatisticamente são um nada. Mas lembras-te de como ele fala do fermento? Defende que, ao contrário do que cuida o vulgo, o melhor dele é que pode aguentar eras e eras, num canto escondido mas sempre vivo, aguardando a oportunidade. Ora, no que a este pormenor respeita, ele bem explica: a identidade de cada um forma-se depois de bebé e antes da idade da razão, antes de entrarmos para a escola. É ali, naquele intervalo, que o P. Abel cuida que reside o segredo. Está bem, não te falo na perenidade milenar dele, que ficas histérica de fúria e, entretanto... Quando te revelar o que em surdina escutei aos pais, quando for capaz de te confidenciar, em palavras que ainda não encontrei, o que lhe ouvi a ele, ao que corre-o-fado, murmurado medrosamente à avó,entre duas batidas do tear de mantas, - aí então, Belita, ficarás tão aturdida como eu e talvez mais comedida. Cada pessoa é um mistério e, além do mistério que é, há aquelas que vivem um mistério por dentro do mistério. Crê-me, o P. Abel é um destes, qualquer dia te contarei ou, se calhar, tu própria o verás e esfregarás os olhos, incrédula. Espero bem que então não percas o norte, porque há quem tenha queimado o juízo, ficando louco para o resto da vida. Só pretendo que resistas. E hás-de resistir, que tu és forte como um pinheiro por trás dessa fragilidade gaiata e garrida de menina autêntica, sem máscaras, que espero bem que nunca percas.

Então convencer-te-ás de que a identidade pessoal se estrutura dos dois aos seis anos, quando me perguntavas: “O Tito quer?” E eu:”Qué!” Para depois te impacientar mais tarde: “Ê qué, ê qué, ê qué...”. Até que te quebrava a resistência. Recorda apenas que nunca me foi permitido impor-me a ti, com direito de macho, como os mais na aldeia. É verdade ou não? Logo o pai e a mãe nos puseram a cada qual no lugar: nem eu a ti por ser rapaz, nem tu a mim por seres mais velha. Mas antes a solução da equidade, fora ela qual fora, por mútuo convencimento e consentimento. Verdade ou mentira? Estás a ver? E, a seguir, a linguagem. Lembras-te ainda do jogo? “Mãe, tenho fome!” E ela ou o pai: “Que queres?” Nós, claro: “Comer”. Logo o comentário: “Nenhum comer se chama comer. Inquanto num fores capaz de mandar no que queres, nada feito. Tou aqui tolhido à espera de ordes. Se num mas dás, fico cumo um boneco sem bida, nem mexer uma perna ou um braço cunsigo.” Principiava então a magia. Se era um passo em frente e nós só ordenávamos em frente, levantava-se a mão ou a cara virava para diante, até acertarmos no comando apropriado. Logo após, éramos nós na brincadeira, horas seguidas, dias, semanas, meses. Aprender a falar, a identificar o quotidiano inteiro. E aquele pormenor de o situar no espaço, de o situar no tempo. Eram as variantes do jogo do “Rei manda”. Afinal, tudo tão simples e tão raro! Identificar-se cada criança como um eu que se quer, se afirma num lugar e momento definidos, com palavras suas: eu perante o mundo. Isto, combinado com a regra da equidade neste encontro com tudo e com todos, e eis o que daria um homem novo, aposta o P. Abel.


E sabes como é que brota a matemática? Ali mesmo, quando o rei mandava quantas postas de peixe, quantas batatas, quantas garfadas. Até no jogo do fastio, lembras-te ainda da variante? “Quantos melros vão voar para o ninho? Doze? E vai um à procura do ninho da mãe” - a colher imitava um voo a aterrar na boca. “Quantos faltam? Quantos?” O mundo encantado das palavras, a poesia ao vivo de todas as evocações. Evidentemente que ninguém ignora: toda a gente faz isto de mil maneiras diversas. O pai objectava o mesmo ao Snr. Abade e ele retorquia sempre: “Olha, Luís Avante, por aí aprendemos a ser numa língua comum, não aprendemos a ser diferentes do comum. O que tu trazes de novidade ao teu lar e de que nem dás conta é a norma da equidade em que a língua é plantada e cresce. Isto é o fecho de abóbada a que os mais já não chegam, entendes? Onde raio foste tu buscar isto, não mo perguntes, que não o crerias, mas, se reparares, pelo menos revê-lo-ás no teu pai, no Zé Levante. Vem, porém, de tão longe que se o enxergaras lá do pináculo, cairias redondo de tão oirado pelo abismo dos milénios. A tua igualdade com tua mulher analfabeta, olha que é heróico como golpe de génio. E os teus filhos sem prioridades, a romper até o direito de primogenitura tão ancestral e o não menos antigo primado do rapaz sobre a rapariga, é obra, homem! O mais estranho é que para vocês parece tão natural que nem reparam na diferença da casa ao lado. Mas confessa lá, Luís Avante, porque não permites que os teus filhos vadiem por aí de quinteiro em quinteiro, como os mais? Vês como então notas a diferença? Tu sentes que mora algures uma ruptura e não te convence a receita dos vizinhos. Pois olha, tem sido assim desde o rpincípio, nem imaginas há quantas gerações!...”


Compreendo, Belita, a tua hesitação e o teu recado. A Nagu corre perigo, mas o Cacá não se identifica connosco nos tais meandros do amor, família, sexo, paixão... sei lá, ele ainda não descobriu a equidade, mudar de cultura é pior que mudar de pele. Deixas-me a ponte frágil do Turinho que nunca me esteve próximo. Eu falarei com ele, calmo e atento a não o deixar em carne viva de lhe arrancar o coiro. Tudo serão areias movediças, tu sabes, e os tabus e os dogmas mandam mais que qualquer boa vontade ou qualquer bom senso. Cumprirei fielmente o nosso destino de fermento incompreendido, irmã, como os nossos ancestrais pelos séculos dos séculos, até nós. Teremos ambos de aceitar esta humilde ineficácia, até que um dia, sabe Deus quando, a massa inesperadamente ficará fermentada de vez por inteiro, definitivamente.






15 – O Pó-d'Ela


O xeu abô conhexi-o bem, nos derradeiros anos, já q'ando mal jogaba as pernas, do reumático. Aí andaba pelos nobenta e tais. Inda eu era cachopita binda da xerra cum munto xangue nos bofes. Tinha alguma xerbentia por mor da garra, que eu lá xaber xabia pouco e na mor parte das freimas nem xiquer les apanhaba o jeito. Agora a ti'Guida do Quelho, como por aqui os patrões gosto de me apelidar, xempre tebe dois braxos que nunca recujaro trabalho nem ajuda. Por ixo o xeu abô me apalabrou munta bez, apejar de eu xer uma pirralha que nim tinha onde cair. Nos prumeiros anos fiquei de 'smola a dromir na palha, à ilharga dos gados. É berdade, que nim uma madrinha tibe, botei-me ò mundo e, cumo aqui xempre foi terra de abastanxa, tentei a minha xorte e pronto. Num me dei mal, fui ficando. Òdespois trouxe a minha irmã intrebada que, coitada, xempre ficaba comigo mais acunchegada que lá, ò abandono, a biber da caridade. E já conto daqui tantos anos que mal inxergo os de piquena, o cajebre nos pinhascos de granito onde eles por aquelas bandas gardabo as obelhas à noute, por mor da nebe e dos lobos. E da ladroage tamém, que os há por todo o lado, mesmo a ròbar a mijéria. Atente bem no que le digo.

Pois o ti'Jé Lubante era um grande patrão, imbora naquele tempo já cometexe à filha Legria o comando das laboeiras, que xua tia era munto mexida e mandona, imbora q'aije da mesma idade qu'a mim, nim dez anos debia botar de diferenxa p'ra mais. Mas já tomaba uma caja xobre os ombros e daba conta do recado, era mesmo munto esperta. A xua abó, por aquela época, já intrebara de bez e axim ia ficar dejenas de anos, recostada no escabelo ò borralho da lareira, mandando de lá e opinando, que era munto isperiente e xabida, tinha aprendido do marido, como ela gostaba de nos dejer.


Q'ando binha a merenda, ali pelas xinco da tarde, é que eu mais me pelaba. O ti'Jé, o xeu abô, acumpanhaba-nos xempre pelos campos fora, a ber cumo ia, a orientar q'ando calhaba, xentado num combro, incostado a uma fruiteira, cumo adregaba, tá a ber... Inq'anto xe laboraba num habia cumberxa de maior, que distábamos xempre demais p'ra ixo. Agora à merenda juntaba-xe tudo im bolta e ele binha tamém, comia cum'um pisco, mas xempre cheio de xaúde. Aí, intão é que era. Aquele patrão tinha cada história qu'a gente inté choraba de rijo.Era munto adebertido. E os antigos dejio que fora axim a bida inteira, um home a xério que punha toda a gente bem disposta. Co'o ele num habia tristeja que duraxe. E intão xe ele gostaba de xua abó! Inda daba p'ra ber, mesmo naquela idade de munto belhos os dois.


Nunca me esquexeu a do pó-d'ela, num le adregou de òbir cuntar? Ele pregaba-le partidas cumo xe cuntinuaxe q'ando ero namorados. Num figurabo mesmo duas rolinhas? Numa idade daquelas! Aquilo é que ero famílias a xério, p'ra durar p'rà internidade. Mas bamos ò conto, cumo lo òbi.


Intão foi axim. Xempre que botabo inté ò Porto, ele trajia à xenhora xua abó uma prendinha, q'alquer coijinha mesmo de arremediado, que lá riqueja cum'òs da xidade a gente daqui num tem, num é? A mulher ficaba im pulgas p'ra adibinhar de cada bez o que xeria. A mor parte dos cajos era um frasquinho de perfume, que a xenhora inté punha os olhos im albo. Era o que mais gostaba. Intão um bez, q'ando tibero aquela xarrafusca co'os do Feirão, os carros daqui acabaro, co'a brabeja, im munta perca e dejarranjo. Lá fama diz que num les faltou, mesmo lá p'ràs bandas da xidade, que aquela quadrilha aterraba meio mundo e eles tamém estabo à espera que les acuntexexe um percalxo que os libraxe de bez daqueles axaxinos. Mas xer famojo nunca encheu a barriga de ninguém e xó im roupas conto que eles ficaro todos im farrapos. Beja lá! Intão o xeu abô, q'ando acabou de cumprar os arranjos p'ra caja, arreparou que já num le restabo muntos binténs, aquilo num daba mesmo p'ra prenda ninhuma de jeito. Xabe de que xe alembrou o diacho do patrão? Botou-xe a caminho lá da loja dos perfumes a magicar que o habio de conhexer bem pro mor das outras bejes que les dera a ganhar. Fez-les uma cumberxa axim: desta bez prexijo da ajuda de boxas xenhorias cá pro mor duma brincadeira que bou fajer à minha mulher, queria que bomexês me dexe uma imbalage bajia co'aqueles infeites cum'às outras bejes. Eles foro na teia e prepararo-le tudo munto bem, num habia quem dexe pela diferenxa. Prumeiro ele tinha penxado que le ia intregar aquilo mesmo axim, que òdespois, ao paxar pela Bila da Feira, trajia umas rigueifas, umas fogaxas ou umas arrufadas e umas cabacas e pronto, fajia de prenda, que as poxes num dabo intão p'ra mais. Xó que as ideias do patrão xeu abô num parabo. Q'ando boltabo todos, quedaro no xítio adonde tinha habido o cumbate, a ber xe num les tinha ficado nada por lá esquexido, a rememorar cum ditos e brincadeiras cumo tinho corrido c'os bandidos derreados. Ò fim num incuntraro nada, o meu Nino riu, que naquele caminho xó habia bosta do gado, estaba tudo bem estrumado mas munto xeco. Dejia ele que xe tinho esquexido daquela arma, que os bandidos prexijabo era daquilo pelas bentas abaixo.


Foi o que alumiou a ideia ao xeu abô. Deu orde à comitiba p'ra meter uma bucha, que tinha de xe retirar pro momentos. Inté penxaro que era p'ra fajer alguma nexexidade. Qual o quê? Oubiro mexer e bater debagarinho, num perxebero, mas era lá co'ele. Num instante boltou e pôs tudo a caminho. Ninguém mais xe alembrou do promenor.


Q'ando eles xigaro foi aquele rebolixo todo das nobidades, co'o Feirão fora de cumbate à tamancada, a rijota da freguejia inteira a cuntar e recuntar, a imaginar as xenas. Mas im caja do ti'Jé Lubante inda foi mais cómico, que a xua abó a prumeira coija a que botaba mão era à prendinha espexial. E axim foi. Dejia o patrão: “Cuidado, que isto foi caro, é a derradeira moda da xidade, binda de Paris, é o Pó-d'Ela! Cuidado ò abrir, custou os olhos da cara.” Co'esta cumberxa toda, ela e as filhas ficaro mesmo apanhadinhas de xitaxão, ali im bolta da caixinha p'ra ber q'aij'era a moda mais fina.


Dejataro o laxo do xaquinho que tinha axim uns dejeres im letras doiradas, coija chique cumo era de ujo naqueles tempos que já lá bão. Òdespois pegaro no frasquinho que ò que parexe binha escrito im franxês mesmo, ninguém intendia nada daquela linguage de trapos. “É o Pó-d'Ela” - cuntinuaba a abijar o xeu abô. - “Cuidado ò abrir, que ixo custou-me os olhos da cara.” Claro que a mulher abriu logo co'as xuas tias e à uma quijero cheirar. “Pfuh! PfuH! Pfuh! Que fedor! Isto cheira a merda! Que cheirete!” - dejataro todas a fugir, claro. E o xeu abô que não, que era o perfume mais chique de Paris, homexa! Xó munto òdespois é que dero conta do nome, do “pó dela” e aí é que biro que era mais uma partida dele. Intão é que foi uma rijota, ele armaba-as de tal modo que acababo xempre por cair nelas. E ò fim, xabe, ele fajia de dejentendido: “Eu bem taba farto de bos prebenir que tinha custado os olhos da cara! Os da cara ou xeria o outro? Boxês num ligaro, olha, bem feita! Eu xó me inganei no lugar dos olhos, foi distraxão. Agora boxês num ligo ò que um home diz, pronto!”


Era munto adebertido, o patrão! Q'ando nos cuntou, eu inté chorei, de tanto rir, a imaginar a xua ti'Legria, intão miúda inda, na xena. Eu andaba p'ra ele e p'ròs do Brandão nos campos das Laminhas, inté nim queria acreditar. Aquele home era uma fera e, q'ando daba boz de comando era tudo im xentido e ai de quem bulixe, que o estendia logo ò cumprido. Co'ele num xe brincaba, inda mesmo rebelho cumo eu já o conhexi, uma pexoa tremia q'ando o bia brabo. Poucos o poderio infrentar, mesmo òdespois dos nobenta, qu'aquilo era fibra rija cumo um carbalho, num bai ò chão c'um xopro q'alquer.


Terminaro, é claro, num grande bródio im roda da maxeira, a comer fogaxas e arrufadas cum manteiga. Naquele tempo uma coija axim tão ximples inda era uma raridade, motibo de grande festa. Num habia as farturas de hoje im dia e a gente xabia aprexiar as piquenas alegrias da bida, xabe. Olhe, inté eu tibe xorte, que a romaria pelo fim do Feirão tamém me chigou. Os do Brandão, q'ando òbiro aquela, cuntaro a festarola que fijero q'ando na Gandra se espalhou a derrota da quadrilha. Tinha habido entre eles bítimas dos bandidos, numa feira lá p'ràs bandas de Arouca, im tempos atrás. E intão, ao recordar aquilo tudo, anos mais tarde, lembraro-xe de ajuntar os que inda ero bibos daquela abentura, que ero q'àji todos, xó me cuntaro que tinha morrido de repente um tal de Quim da Galinheira c'uma coijinha ruim no estômago, eu num o chiguei a conhexer. Mas acho que tamém lá tinha xido um balente. E olhe, foi um jintar de arromba! Aquilo é que foi comer papas de xarrabulho! Eles tinho matado um porco tamanho de num xei q'antas arrobas, habia farturinha. Foi na alpendrada que fica ó correr lá da intrada, tá a ber? Adonde gardo os carros e a mantenxa p'rò gado e a charrua e a grade, aquilo tudo. Tem lá espaxo p'ra munta gente. Pois ajuntaro lá tudo, pediro-me p'ra ajudar e pronto. Chigou bem p'ra todos, eu num comi de guloja porque já num podia e ò mais fartei-me de trabalhar: o dia inteiro e òdespois e xerão inté altas horas, que aquilo botou munto noute adentro. Nem eles parabo que comer nem a gente paraba de serbir, foi uma alegria. E fiquei a xaber munto mais histórias, que im roda da meja num acababo, ora agora contas tu, ora agora conto eu, prumeiro da tareia no Feirão que nos ajuntara, mas exa botou a tantas mais que les perdi a conta, cada qual tão adebertida cum'às outras.


E o xeu abô é que era o herói de q'àji todas, era um home das arábias p'ra furar na bida e impor respeito. Mas òdespois, olhe, era tão bô pexoa que todos xe rio co'ele e lubabam uma bida alegre. Inté foi naquela noite que ele xe inxergou no Tomás e le impôs: “Tu bais p'ra rigedor, tás a òbir, que cumo as coijas xe tão pondo co'estas guerras que nunca mais acabo entre os políticos, o milhor é tomá's as rédeas p'ra num haber xobrexaltos, é prexijo um nome xem história, que ninhum deles tenha marcado e a gente por aqui axeite bem. És o home p'rò cargo, tás a òbir?” Foi cumo paxar o testemunho, que o xeu abô intendia de política e daquelas lutas todas de q'ando eu era piquena, co'os reis e a fim deles e o mais...


Eles lá na meja dejio que a xua família tibera xempre um fraquinho co'a monarquia, por mor de antepaxados de xeu abô que tinho laxos co'a nobreja. Agora, naquele tempo, quero eu dejer, era República e, portanto... Eu num intendo porquê mas eles falabo axim, que os bentos soprabo noutro rumo, tinho de atirar alguém p'à frente que pudexe trajer bantage. Aí foi o ti'Tomás o escolhido e muntos anos deu de rigedor, q'áji inté à morte, xe bem me alembro, que eu cá nunca liguei munto a exes axuntos, num intendo, xão demais p'rà minha cabexa de belha agora, q'anto mais naquele tempo que inda era uma ninguém.


A xua mãejinha é que me cuntaba que tibero durante anos uma fetografia dos reis 'scondida, que eles bos tinho dado antigamente p'ra recordaxão. Mas era uma cunxumixão, bibio num xobrexalto q'ando beio a ditadura, tudo porque a políxia podia xempre ir lá e acabar por descobrir. Intão, cum munta pena, diz que xe desfijero dela de bez, que a paz im caja é mais importante que q'alquer memória de balor. E ela acostumaba-me cunfexar que cuidaba bem que aquilo num balia mesmo nada, era xó uma teima lá dos do lado do xeu paijinho, por mor dos parentescos de antigos há munto esquexidos, mas que mantinho axim xombras pelas geraxões fora. Num tem mal, inté cai bem num ignorar os maiores, num é? Agora q'ando arrasta perigos de monta, o milhor é esquexer ou fingir, ò menos num deixar rasto que nos denunxie. E foi o que fijero im xua caja p'ra le proteger o futuro, no que xe houbero munto bem, no meu fraco intendimento.





16 – O Esmeril do Paúl


Havia um rebolo em casa de meu avô, por baixo duma gigantesca figueira. A pedra circular tinha um eixo de metal ligado a uma manivela que se accionava com o pé, para deixar as mãos livres a passar e repassar a lâmina das foicinhas, das enxadas e dos machados, quando não das facas, pela superfície dura de amolar. O eixo apoiava-se em dois caibros, um de cada lado da mó, fincados no chão e na parede. Entre eles, embaixo, cavaram uma cova na terra que estava o ano inteiro cheia de água, para humedecer a pedra do rebolo e melhor afiar então as ferramentas.


Todos os dias o ti'Nino se afreimava na tarefa de apurar os gumes duma molhada de peças, a pedalar, a pedalar e zim, zim, zim, a correr-lhes o fio de corte, de lado a lado, pela mó de amolar. Muito tempo acreditei que era tudo lá para casa e fazia-me confusão porque na minha não era preciso: uma vez por ano, duas, quando muito, levava-se tudo ao ferreiro, ele metia os metais na forja até ficarem ao rubro e tim, tim, tim, martelava-os, tocava-os na água, tchum, e pronto, estavam apurados para longos meses de labor. Um dia abordei-o:


- P'ra que é isso?


- P'ra cortar milhor, desimbaraçar trabalho.


- Todos os dias?


- Não, eu benho todos os dias cum licença de sua abó (meu avô já havia falecido), mas é p'ra qualquer gente que precisar, que isto é só de longe im longe, o aço é duro, aguenta muito. Mas cumo num há outro rebolo por estas bandas, olhe, já seu abô que Deus tenha o pôs ò dispor dos bezinhos. Atão, pronto, eu faço este jeito a toda a gente e tamém p'ràqui quando faz falta.


- Tamém p'ra minha casa?


- P'ra lá num é preciso.


- Porquê?


- Porque o seu paizinho tem um esmeril, quando é caso disso. Num daba jeito ninhum bir p'ràqui tão longe co'as alfaias. Tá serbido im casa.


- Aqui num é nada longe. Eu bim.


- Claro, eu tamém, num é muito, mas num importa bir quando a gente arranja uma maneira mais fácil, logo ali à mão, num é?


- É – concordei mas fiquei a cismar, enquanto observava atento a enorme roda que não parava, a escorrer água, as mãos destras do Nino a afiar lâmina a lâmina.


- Eu cá nunca bi semeril ninhum – acabei comentando. - O que é um semeril?


- Esmeril, esmeril – corrigiu ele.


- Esmeril, isso o que é?


- É uma pedra destas de amolar, só que num tá muntada no rebolo, por isso num gira. Mas é da mesma q'òlidade e afia tal e qual cum'à mó daqui.


- Mas se ele num gira... - duvidei, sem compreender.


- Pois não, a gente tem de raspar o fio das alfaias p'ra trás e p'rà frente nele, faz-se à mão. Demora mais, mas fica igual, ò fim.


- Tamém faz o mesmo, no es... no esmeril? P'rà gente? - perguntei, preocupado, não fora andarmos discriminados sem o sabermos.

- Claro, sempre que a família manda. P'ra mim, uma bontade é uma orde. Cumo é que cuidaba que as foicinhas andabo lá tão afiadas, hã? E o machado de rachar lenha? Sempre que se imboto sou eu que les dou logo outra bez o fio. É berdade, nunca lá faltei co'o serbiço im dia.


Distraí-me com uma galinha que se aproximara inadvertidamente da minha chanca e tentei chegar-lhe um pontapé. Ela deu um pulo, cacarejando, alçou meio voo alarmado, pisgando-se para o meio do quinteiro. Corri atrás, as mais amedrontaram-se e foi um reboliço até ao alpendre. A porta deste estava aberta para o eido e escapuliram-se por ela, espalhando-se entre as árvores de fruto, a depenicar pelo chão.


Trepei à macieira das maçãs-pipas, as que davam uns olhinhos de azeite espalhados por dentro da casca. Não eram as minhas preferidas. No tempo delas, o meu vezo ia para as maçãs farinhentas que se trincavam e se desfaziam na boca em doçura acariciadora. Encavalitado no galho mais grosso, pus-me a espiar o crescimento dos frutos, ainda muito verdes mas já graúdos. Mais um mesito, dois, e estariam prontos para colher. Aí cismei no esmeril, palavra linda, burilada e que servia para burilar.


- Tu num cuidas que é uma peta? É, é, bais ber! - afirmei eu para a macieira, com quem gostava de aprtilhar minhas dúvidas, de meditar em voz alta, sem ninguém se nos intrometer a estragar tudo pelo meio.


- Sabe-se lá! Os grandes tem muitas coisas que nos esconde – retorquiu a ranca de maçãs do meu lado direito. - Lembra-te só da lata do açúcar. Isto p'ra não te recordar aquele quarto de queijo que levou sumiço. Portanto...


- É berdade, pode ser. Mas eu nem sequer oubi nunca tal palabra im minha casa. Esmeril, esmeril... é linda, parece o nome dum gato, num é?


- O esmeril é um gatinho que raspa, raspa e deixa tudo muito polido e a cortar muito bem, a cortar-te os dedos se num te pões a pau – comentava o galho em que me sentava, balançando-me devagar.


- Queria ber um esmeril – confidenciei. - É um rebolo que num é um rebolo, é o que num é. Ganda peta que o ti'Nino me pregou! Bou perguntar ò meu pai. Se for mintira nunca mais falo co'ele, um jornaleiro que anda a fazer pouco de mim, só porque eu num sei, tinha lá oubido falar alguma bez num esmeril, esmeril...!


- Ele nunca te mintiria, Tito, lembra-te que serbe à jorna im tua casa. Só que ele é dos grandes e os grandes sabe tanto, tanto que acabo sempre por apanhar-nos de surpresa. Quantos mais segredos aquele home num terá p'ra deitar cá p'ra fora!


- É capaz. Mas eu bou pedir ò meu pai p'ra me mostrar a tal pedra. Atão porque é que num é um rebolo? Ou é ou num é. Ele bai ter de me isplicar uma coisa assim, ora! - reclamava eu directamente a um cacho de maçãs que acabara de vislumbrar mesmo por cima da minha cabeça. - Ena, tantas! Uma duas, três... doze! Doze?! Nunca bi uma molhada tão grande! - referia-me às maçãs que descobrira. Que fenómeno, uma dúzia ali num cacho só!


Pulei abaixo entusiasmado com a descoberta e desatei a correr para contar a novidade ao ti'Nino. Acabara já, porém, de amolar e saíra. Trepei os degraus de pedra direito à cozinha em cima, em busca da ti'Legria que devia andar à lareira a cozinhar o jantar, que o fim da manhã já se aproximava e andava muita gente a pedido na lavoira dos fundos, duas juntas de bois e tudo. A minha mãe também viera dar a mão e por isso é que desta vez eu andava por ali a tais horas. Quase sempre as minhas visitas à casa-avó eram pelo fim da tarde e mais na época das frutas, para eu carregar, com uma das irmãs ou um dos adultos, alguns sacos delas para nos regalarmos ao serão e nos dias a seguir.


- Ti'Legria, ti'Legria! As maçãs-pipas tem lá um cacho cum doze! Doze numa molhada só! Tantas, tantas!


- Doze, contaste bem? É muito! - contemporizou ela, amistosa na sua fala apagada e lenta.


- Cuntei bem, cuntei. Quando ficar grande, já biu? A ranca num bai aguentar, pois não?


- É capaz, se não cair entretanto nenhuma, vamos ter de a escorar. Mas elas entretanto começam a murchar, enjarricam e tombam no chão. Mas se vingarem todas vai ser um ranco bonito. Vais ficar com ele, tu é que o descobriste. Queres?


- Quero, quero!


- E vais comê-las todas?


- Bou.


- E não dás nenhuma a ninguém? Nem às tuas irmãs, nem à tua mãe ou ao teu pai?


- Se eles quiser, dou.


- E tu não ofereces?


- Tamém posso oferecer.


- Então como é que vais fazer, hã?


- Eu bou é mostrar o ranco grande co'aquele cacho todo ò Nel e ò Mingos e à Ção e assim...Se o comer já num bale nada.


- Ora! E se não comeres a fruta, ela apodrece e pronto, perdeu-se tudo! É ou não é?


- É... é! - começava a ficar baralhado.


- Então, comes ou não comes? - brincava comigo a ti'Legria, a espicaçar-me.


- Oh, quando elas se começar a estragar, como-as todas!


- Tu?! Sozinho?! Não acredito! Então e os mais? - insistia ela, com um sorriso irónico.


- Tá bem, claro! Olhe, já sei, fazemos uma festa todos juntos e comemo-las. O cacho inteirinho.


- Ah! Muito bem, muito bem! - e colheu-me num abraço, fazendo-me dar uma volta inteira no ar.




Foi apenas uns anos depois que me lembrei do esmeril misterioso que jamais descobrira em casa. Andava a passear de bicicleta ao crepúsculo, meti pelo lado da Cabine, pedalei até à Farrapa, virei à Covada e, quando me preparava para entrar no Quelho, dei com o Esquenta a sair do ti'Chico, uma braçada de foicinhas e meia dúzia de facalhões de desmanchar nos braços.


- Para onde vai com uma coisa destas?! Leva aí alfaias para uma freguesia!


- Bou ali ò esmeril do Paúl ber se isto fica tudo afiado. Aminhé bai ser preciso p'rà colheita. Ficas cumbidado p'rà 'sfolhada. Bai ser a maior do ano, uma dúzia de carradas, pelo menos. Quanto mais gente bier, milhor, anima a festa e despacha mais depressa. Mesmo assim, bai ser inté de madrugada.


Segui em frente e, de momento, não liguei. A época, porém, era de apurar a ferramenta toda, para desmultiplicar o rendimento das freimas. Quando arrumava a bicicleta, dizia-me o Nel, a desculpar-se:


- Eu hoje não pude ir contigo, sabes porquê? Tive de levar as alfaias ao esmeril do Paúl, que vamos cortar o milheiral do campo das figueiras e precisavam de ter tudo pronto. Era até para ser esta manhã, mas olha, falhou o carreiro, agora todos o contratam ao mesmo tempo, não deu. Andou a levar as espigas para os da Cal, aquilo rendeu mais do que eles contavam, está a ser um bom ano. Então vai vir depois de amanhã.

- Claro, já sei, amanhã vai andar no ti'Chico, também já estou informado – ri eu.


- Não é esse, para aí vai o do Lídio, o nosso tirou todo o dia de amanhã para os do Loira, a ver se chega. Senão ainda nos vai atrasar a nossa desfolhada. Queres vir lá?


- Claro, à vossa quero ir, se puder. Se calhar a daqui vai ser ao mesmo tempo e então pode não dar. Logo veremos.


- Contamos contigo, se puderes. Até amanhã.

E foi esta conversa repetida do esmeril do Paúl que me lembrou dos tempos antigos de miúdo. Fiquei intrigado. Fui investigar na manhã seguinte. Estava de férias, não tinha grandes trabalhos em mãos, a não ser as ajudas eventuais, numa ou noutra tarefa, em casa ou nos campos, que a época das colheitas arregimenta qualquer disponibilidade, por mais pequena e inepta. Libertei meia hora e saltei para o selim, direito ao Quelho da Covada, um pouco além do largo das Escolas, em cata de mais alguém com um braçado de alfaias para amolar. Ninguém. Corri o Quelho inteiro, desemboquei na Covada, observei a enorme azáfama que ia pelos campos do ti'Chico, com uma fiada de jornaleiros atarefados a desbastar o interminável milheiral. Andava todo o mundo espalhado pelos eidos, a minha curiosidade não iria ter sorte nenhuma: as ruas estavam por ora desertas.


Desatei à cata de algum miúdo que pudesse dar-me informações, talvez por ali eles soubessem. Voltei atrás e foi à esquina da Quinta do Godinho que vi dois a jogarem à bugalhinha.


- Olhem lá, onde é que aqui as pessoas mandam amolar as foicinhas? Vocês sabem?


- Atão! É no esmeril do Paúl, ora!


- Ah! É na ti'Guida do Quelho, num sabe q'ais é?


- Não... - só então reparei que nunca me preocupara com identificar onde morava a melhor jornaleira do lugar, tinha apenas a ideia que era uma das da viela.


- É aquela do telhado baixinho, tá a ber, por trás das ameixoeiras? A que tá no meio do campo?


Dirigi-me ao local, convicto de que àquela hora ali não haveria ninguém que me elucidasse do mistério. No campo acima, contudo, havia gente a colher as espigas de milho para os cestos. Aproximei-me, disposto a confirmar a minha dúvida com quenquer que fosse.


- Olha o Tito! Procuras por alguém? - surpreendeu-me a Rosa do ti'Carniceiro que eu só conhecia de quando levávamos lá as vacas em cio, para as juntar ao boi. Era o único cobridor que se manteve na freguesia durante gerações de gado vacum, nado e criado por aqueles pastos e lameiros, quando os rebanhos começaram a dar lugar às leiteiras turinas e à indústria nascente de lacticínios de Vale de Cambra.


- Não, não, era apenas uma curiosidade antiga. Talvez me possas informar. Contaram-me ali uns miúdos que a ti'Guida é que tem um tal esmeril do Paúl...


- É, é. Tá lá. Se quiseres entrar no quinteiro bê-lo logo im cima do poial, ao lado da porta.


- Então é verdade. Mas o esmeril é dela?


- Não, é do home, do ti'Nino, acho eu. Ele é que amola as alfaias.


- O que me faz confusão é o nome: todos lhe chamam esmeril do Paúl. Que é que eles têm a ver com os do Paúl, se nem sequer são de cá? E que Paúl é esse?

- Ai disso num sei, nunca ninguém perguntou por nada, o ti'Nino é que debe poder responder.


- Vou deitar uma olhada.


- Bai, bai. Ò lado, no chão, tão algumas foucinhas e uma faca grande que eu lá deixei ò bir, prò ti'Nino mas amolar quando bier jintar daqui a um bocado.


Afastei-me e fui verificar. Sobre três pedregulhos mal aparelhados, escostados à parede, lá estava, iniludível, o esmeril, uma grande lasca da mesma pedra do rebolo do meu avô. Bem carcomida a meio, das muitas lâminas que nela se afiaram manualmente pelos anos fora, não era a mó que em pequeno esperara, apenas um pedregulho informe que um uso persistente gradualmente modelara. Ao lado, uma gamela de madeira semi-apodrecida estava meia de água suja. Deduzi que era para ir molhando a superfície onde o fio das lâminas se amolava.


Fiz por ali horas até ao almoço, aguardando a chegada do ti'Nino, já que ele viria, pelo menos para dar conta do trabalho que a Rosa lhe encomendara.


- Porque é que chamam a isto o esmeril do Paúl? - perguntei-lhe, mal o vi.


- Atão num sabe? Porque ele é do seu pai.


- Do meu pai?! - aí é que fiquei interdito de espanto.


- Pois num bê? Ele era do seu abô, do lado de sua mãezinha, qu'ind'ero dos do Paúl legítimos. Òdespois herdou-o o seu pai, por casamento, quando o sogro faleceu, num é? Aí ele imprestou-mo, que eu ajeitaba-me neste serbiço e habia muita precisão de toda a gente. E atão olhe, comigo ficou. É o esmeril do Paúl, sim senhor. Nunca foi meu, o seu a seu dono. O préstimo é que é im comum, mais nada.


Mistério desvendado, ali permaneceu até se desgastar de vez ou de vez ter perdido a utilidade. Derradeira sobrevivência dum tempo em que os pascigos e os baldios eram de usufruto comunitário e, por arrastamento, muitos outros bens e serviços, o esmeril do Paúl foi a última testemunha dum mundo e duma época de comunitarismo aldeão. Há várias gerações que desapareceu, fumo diluído nos ventos do tempo, sem deixar mais qualquer rastro por terras de S. Pedro.






17 – O Úbere do P. Abel


Escuita as belhas cumo eu, Tito, que a ti'Mília Libeira debassou munto mundo inhantes de aqui bir topar, menino. Bai às castanhas aí dos ouriços que o bento desbaratou, bai e come inté fartar, que este castanheiro é o derradeiro que bingou na aldeia. Q'ando eu morrer, morrerá comigo e daqui de S. Pedro num haberá mais ninhum a dar os frutos que já alimentaram Portugal inteiro. Por ora, inda bejo quem deles biba na serra, aminhé, bais ber, há-de chigar a luxo p'ra quem tiber posses p'rò pagar.


Anota bem o que te digo, que é uma berdadde por muntos ignorada. Comigo nasceu esta árvore, comigo findará: a partir do momento im que me acabe, nem mais um ouriço. Temos um pacto desde sempre, eu curei-le as feridas, reguei-a do meu suor e sangue. Aí o castanheiro cuidou de mim, e, se tou belha e caduca, repara bem nele, que o num tá menos. A par nascemos, sobrebibemos a bárias gerações, òs meus três defuntos maridos, òs meus filhos que morrero de belhos e a minha bez agora bem já perto, que tou cansadinha de tanto ber e biber. Tenho dorabante direito ò repouso, cum'òs mais, inté porque já se foro todos os meus amigos desta geração, resta a tua abó do Paúl que tamém tá por um fio; e pronto, num quero mais! Bou pôr o ponto final, é só deixar que ela se bá, que desde miúda foi a bida inteira minha protegida. Acabo o trabalho e bou-me ter co'eles, que já lá me espero há tempo demais.


Num cuides que tou bariando, é mesmo cumo to digo. Eu já bi mundo demais, já interrei gerações demais, já sofri e me ri demais. Agora bonda. Cuidas que eu tenho menos de setenta, mais noba que a tua abó? Pois inganas-te, se ela bai nos setenta, minada por uma doença ruim que a lebará im pouco tempo, eu já bárias bezes os fiz e refiz, tantas que les perdi a conta. E sabes porquê? É o segredo do pacto que de piquena fiz co'o castanheiro. P'ra eu tratá-lo, cuidaba ele de mim. Cumo nós duramos muito menos do que eles, tebe de inbentar uma castanha especial para eu poder durar bários séculos, são aquelas que fico mesmo no topo da copa. Ninguém lá chega nunca, dá trabalho demais. São as derradeiras a amadurar, aqueles ouriços que mal se bê só cai ò chão bem òdespois dos mais, já q'ando ninguém cuida, parece que melaro mas num é. Na noite de lua cheia que inaugura o imberno, à meia-noite, p'ra num haber ingano, eu pranto-me ali debaixo e atão o castanheiro aprobeita q'alquer sopro de arage p'ra mos jogar ós pés. Num preciso de mais que duma castanhita por sumana. Cum pouco me sustento. Nem precisaba de comer mais nada, se num foro as bozes do pobo que me matario por bruxa, cumo q'ando era mais noba, há uns centos de anos atrás.


Naquele tempo isto era o comum, a gente bibia cunforme os pactos que trataba. Eu cá escolhi o castanheiro porque era do que mais atão todos comio e, p'ra ser mais igual a toda a gente e me intender milhor co'o mundo inteiro, onde quer que a sina me lubasse, fui por ele. Num me dei mal. Co'ele se fez um pobo, co'ele mudou no incontro doutros, trazendo usos e comeres que num se conhecio por cá. Co'ele habemos de acabar naquilo cumo éramos, p'ra birar outros que ninguém adibinha inda. E dorabante p'ra mim num importa, nem tenho curiosidade por inxergá-lo. Cumpri o meu papel, por aqui me ficarei co'o derradeiro castanheiro que é bergôntea de gente. O que é que bai dar alma ò pobo que há-de bir, já num será comigo, bai ser cuntigo e cum teus iguais, bejo bocês lá se fazem bem a escolha e que pactos bos hão-de cumbir. Eu cá já num andarei por estas bandas p'ra ber.


O pacto do P. Abel foi outro, semos os mais belhos por aqui. Ele bem lá doutras bidas munto anteriores à minha. O dele foi co'a baca leiteira. Cumo é animal, num se le pode pôr fim, que se transmite de geração a geração, de mãe a filha, e pode renobar-se cum outra da mesma manjedoira. Cumo é que aquele home atura tanto milénio, num intendo, eu já me fartei, tenho saudades dos que me espero no Além. Isto por aqui já num me atrai mais, prefiro a outra bida. Bou morrer bem de repente p'ra num incomodar, num dia que sair de tua casa e bir que o meu mundo ficou consumado. Incosto-me aqui ò meu muro e pronto, adormeço num instantinho. Atão já estarei tão lebe que nem pesarei no caixão. Findarei cumo um sopro, sem dar nas bistas, mais ò menos cumo bibi. Q'ant'ò P. Abel, esse bai cuntinuar p'rà eternidade que é um home de Deus c'um fado munto diferente.


Agora bou-te rebelar o segredo qu'os teus num foro autorizados a cuntar-te. Sabes q'al é a baca da bida perene? Num podes cuntar a ninguém, que atão sofres maldição. Òbiste? Pois é. Olha, é a bossa turina Estrela, a mais idosa. A que come sempre à esquerda da manjedoira. Num é a mais rebelde? A que trepa à parede p'ra tentar chigar à erba do sote? Num é a que é perigosa q'ando 'stá boieira, que inté monta p'ra riba de quem a leba ò boi, se num se puser a pau? Bê só a bida que ela tem, e ò mais é a mais belha! Já a mãe dela e a mãe da mãe, sei lá dês q'ando, ero assim. Isto co'ele, co'o P. Abel, já debe bir do tempo im qu'os animais falabo. Cuidas outra bez que é 'stória. Pois num é. Hoube um tempo im qu'os homes falabo tão pouco e tão mal cum'òs animais, atão podio-se intender. Só que a gente soube imitá-los a todos, aí cada bez mais começámos a falar a linguage de todos à mastura, cunforme nos cumbinha a nós e pronto, as falas mudaro tanto im tantas cumbinações que nem a gente se intende, q'anto mais òs bichos. Mas num foi sempre assim, q'ando nós éramos mais chigados a eles, há munto, munto tempo. A minha mãe cuntou-mo, que lo cuntou a mãe dela que já o oubira da abó. Ela bibeu naquelas eras remotas im que toda a humanidade obraba cum'às bichezas de antanho e estas inda nem ero cum'às de agora nem nada. Im anos nem im milénios a gente nem sabe cuntar q'antos se foro. Num podes imaginar.


A Sôra Pessôra é munto belha, mas num tem pacto. Ela é que sabe disto. 'Stá no fim, é berdade, e bai-se ir imbora inhantes de tua abó, mas pouco. Eu sei-o porque, ao cabo destes centenares que já conto im meu passado, aprendi a medir bidas: leio os sinais e incontro o dia e o modo de cada morte.


Pois é cumo te cunfio e num podes cuntar a ninguém inhantes destas bidas 'starem todas acabadas, só q'ando o mundo já for outro, senão q'alquer mau olhado dará cabo de ti de bez e tu bem frágil és. Escapaste uma ocasião da morte p'ra arreceber a marca, dorabante és o depositário dos selos, mas, se abres a boca fora do tempo, num escaparás sigunda. Oube-me bem e num o 'squeças nunca mais.


Debes alembrar-te de que todos os anos o teu pai solta as bacas e leba-as a pastar lá p'ra trás do quintal, num é? Tu num sabes bem, que este é o mistério da Rua da Toca. Nunca te deixaro assistir nem às tuas irmãs, só teu pai e tua mãe, eu sei e ò mais nunca lá 'stibe. Mas olha, bi sempre doutra maneira, que eu acumpanho estes imbróglios há muntas gerações, num preciso de lá ir. Já o bejo há séculos e séculos! É berdade que sempre bos afastaro co'o pretexto do perigo, gado à solta incabrita-se e a miudage corre risco. Mas o motibo é bem outro: é o P. Abel no fecho dos arcanos. Claro que nunca òbiste falar im tal, nem podias, que é secreto. Se calhar, contudo, tens-te perguntado porque é que é só uma bez por ano, num dia apenas à tardinha, e, mal o sol se põe, o gado bolta logo prò curral. Tamém nunca biste naquela ocasião o Snr. Abade, num é? Pois. Ele é cuidadoso, um treino de milhares de anos, num é q'alquer que le passa uma rasteira.


Hoje é o dia de cuntar-te tudo. O fecho dos arcanos é munto simples, tanto que ninguém dá por ela, nunca deu. Q'ando as bacas se boto a pastar mesmo por trás do quintal, a coberto da casa da eira, do canastro e do alpendre, à tardinha, q'àsi ao pôr-do-sol, ali por finais de Setembro, co'o samiguel já a findar, num é nada p'ra elas arejar nem fazer exercício, que é gado que num faz questão disto. Tamém num le faz mal, pode largar-se no campo, cumo antigamente, co'os rebanhos, todos aqui fazio. Não, q'ando os teus pais armo isso, o problema é outro. É que a baca da bida tem-na lá bocês e ela tem de alimentar o pacto, de ano im ano, cumo de geração im geração, dês épocas imemoriais. Dês sempre. Ora, o P. Abel é que é o dono daquele arcano. Tem tanta força que le basta renobá-lo uma bez no princípio de cada outono. O modo é que é arriscado, daí que tenha de haber tantas cautelas. A baca tem de 'star solta ò ar libre, im pasto escolhido por ela e o pacto é renobado poucos minutos antes do pôr-do-sol inté ò momento im que ele desaparece da bista e fica só aquela poalha de luz. Nesse nico de tempo, ele tem de mamar o leite das tetas sem les tocar co'a mão, cumo um bitelo, 'tás a ber, inq'anto a baca pasta descansadamente e se bota a ruminar.


Atão já biste, era uma bergonha hoje im dia alguém topar co'o Snr. Abade ali de gatas debaixo duma baca, a mamar das tetas do úbere pejado. Por isso todos im tua casa tomo cuidado, é num lugar meio escondido, entre fruteiras, erbas altas, canas de milho por cortar, tudo assim, num bá um olhar ò acaso, distraído, cortar o fado e matar o home. Era maior a perca p'ra nós todos que p'ra ele, que já bibeu e sofreu que chigasse. Agora a gente, ingnorantes, bem requeremos quem nos abra os olhos. E quem sinão ele? A escola abre um bocado, mas num tem cumparação. Aquele home traz o lume lá desde o umbigo do mundo e, milhor, bê o fim, bê onde isto tudo bai ter. Ele é que descobre mesmo os caminhos, por isso é que toda a cautela é pouca. É grabe demais p'rò poder pôr im risco.


Nunca pensaste porque é que o teu pai e a tua mãe bos inducaro cumo fizero, porque são tão diferentes dos mais? Olha, é porque o P. Abel é que les dá as linhas cum que eles se cose ou, se num dá, que elas por lá germinam desde há muntas gerações, é quem faz força, isplica, leba a intender, percebes? Bem tudo daí, p'ra ele cunseguir selar os arcanos de ano im ano, cumo desde sempre tem bindo a acuntecer.


Òdespois é assim. Q'ando o sol cai de bez, inté à derradeira fitinha dele, por trás dos pinheiros, aí já num há mais que ter cautelas. Inhantes é que é o problema. O Snr. Abade bem sempre desde a igreja pelos campos, p'ra ninguém o ber, parece um foragido. Entra pela beira da presa do campo de baixo, mesmo ò crepúsculo, nem cumbersa cum ninguém nem nada. Bai direito à baca e toma-le o leite ali tal e qual, sem misturas nem intermediários ninhuns. Só chigar é que é cumplicado, que é sempre um ano òdespois e a força já 'stá munto fraquinha, intendes? Basta-le alimentá-la uma bez, que dá p'ra uma bolta inteira às estações, só no outono de ò diante é que precisa de a renobar. Agora, q'ando chega é mesmo um belho de mil imbernos, injarricado e a arrastar-se. Mas mal o sol se põe, fiuuu!, corre a aboar pelo ar fora c'uma rapidez que nem um melro a atinar p'rò ninho. E bai fresco e rosadinho que parece um menino! É sempre assim há que séculos! Dês que me conheço é cumo te conto e já inhantes era, qu'o òbi de meus maiores, inté donde se les perde a memória.


Às bezes a força é tanta que se alebanta um bento, nunca reparaste? É o deles, dos que selaro os arcanos cum'ò Snr. Abade. Às tantas nem tem tempo de gritar a orde: “abante por riba de toda a folha!” e fica p'ràí uma galharia e uma folhage toda caída à passage. Já correste no fim das colheitas pelos pomares e pelos matagais e cuidaste que aquelas rameiras quebradas e os montes de folhas caídas ero do bento a anunciar a imbernia que bai chigando. É, é. Mas aquilo é tudo um disfarce p'ra que ninguém descubra. A mor parte deles, q'ando selo os pactos, mudo tão de repente que num les dá tempo de gritar a orde e atão bão correr o fado por baixo das copas e dos silbados e, olha, no dia seguinte, a gente bê-os por aí marcados, esgatanhados. Eles diz que foi duns copitos, duma queda que dero, nunca se descose, cumo tem de ser. Inté porque há fados e fados, num é? Tamém já biste o P. Abel arranhado, num biste? Pois. Um dia im que se distraiu e pronto! Mas o dele é um fado maior, há quem os tenha menores e malfadados. Estes suspiro pelo dia do desinlace, que q'àsi sempre é o da morte. Destinos! Inté porque num há, se calhar, ninguém que lo saiba cortar, c'uma foice roçadoira, ali atrás da porta de intrada, madrugada fora, p'ra le miscar no cachaço ò primeiro passo portas adentro, findo o boo pelos sete poboados do azar. O que eles sofre co'isto, por num poder ter mão im si nem im nada! Fico tão aterrados que só cuido do fim de tal destino. Inda por cima q'ási nunca adrego de aprender nada de jeito e atão alumiar alguém nunca alumio. Co'o Snr. Abade é diferente. Há munto le perdeu o medo, se é que o tebe alguma bez. Atão aprende, aprende cada bida mais e milhor pode fazer à gente òdespois.


Agora atenta bem, nem ele nem ninhum dos mais que pelo mundo fora corre o fado, seja im graça, seja im desgraça, ninguém nunca o controla. Q'ando ò luco-fusco o tado fica à solta no mundo, assombrando quelhos e bielas, espreitando às esquinas das congostas e dos balados, assaltando os mal precatados desprebenidos, é só aguardar o despontar da Lua e pronto! Queiram ou não, os fadados lebantam o boo de bigilantes impreparados, nossa guarda-mor assarapantada, destreinada, aterrada: são os cundenados ò destino. Im lugar de nos proteger, são o nosso carrego mais fatal, mais desatinado, mais desditoso. Ninhum controla o rumo nem o momento, tem apenas de estar alerta e auguentar o que bier. Q'ando o ignora, trancado dentro de casa, acaba rebentando o telhado, a porta, inté a parede! E o pior é que num sente nada inq'anto correr o fado de terra im terra, só q'ando reentrar na morada. Atão é que sofre tudo e inda por cima num se cunsegue lembrar de nada. Que acunteceu, que não, cumo foi, é tudo por inteiro apagado, cumpletamente, da memória. Só imberte isto algum deles q'ando perde o medo ò fado e fica predisposto, que nem o P. Abel. Mas num há outro num milhar de léguas im redor, podes acreditar, que to juro eu que os inxergo a todos e à desgraceira pegada que no-los inferniza. Ninhum controla o correr do fado, nem ele. Mas todos os mais o teme, ele, não, ele gosta, aprobeita. E assim é que nos defende e promobe.


Bais ter de ser tu a guardar os selos que te acabo de cuntar. Q'ando o mundo já for outro, abre-os e partilh'òs. Inté lá, cala e aprende. O P. Abel há-de abalar daqui, rumando a outras bandas, há-de haber notícia da morte dele, cumo é o normal. Sempre assim foi, p'ra incubrir as aparências. Só tu saberás que é mintira: mudará de nome e continuará, renobado. Irá ter cuntigo disfarçadamente e insinar-te-á, bem à distância, q'ando aboar pelas alturas. Tu é que terás de gerir as nobidades. Q'ando os tempos estiberem maduros. Q'ando nós todos pudermos belar por todos bós do outro lado, p'ra nada se perder desta abentura.






18 – A Cabaça das Desfolhadas


Quanto ao Tilós, perdeu-se-lhe o rasto há muitos anos. Ele era mais velho que tu uma boa dúzia de invernos, que tinha nascido ali pelo S. Martinho, numa época em que tudo ficara estável, com Governo forte, o fim das intentonas e dos sobressaltos, o País em paz. As vidas tomavam rumo após gerações de lutas intestinas a que nunca mais punham cobro: um século inteiro de instabilidade, em que ninguém contava nunca com o dia de amanhã. Passou por mim tudo isto, do primeiro ao derradeiro ano, foi um descanso para todos ver-lhe o fim, respirar fundo e encarar o futuro, tentar um rumo. Foi uma esperança, compreendes? E aqui por S. Pedro, mesmo quando depois veio a Grande Guerra e as polícias secretas e as espionagens e as prisões, tudo nos foi passando um bocado ao lado. Fascismo foi nome que aqui chegou muito tarde e mais ligado à Itália, com as notícias da guerra, do que a Portugal e ao salazarismo. Demorou anos e creio bem que para a maior parte do povo ficou sempre como palavra sem sentido, não tem nada a ver com a nossa vida por aqui, de modo que nem há maneira de a traduzir em termos comuns, já que o comum lhe é por inteiro alheio. De vez em quando apareciam papéis por debaixo das portas, de noite, nem se via quem os espalhava. O problema é que naquele tempo quase ninguém sabia ler, de pouco os panfletos clandestinos valiam.


Pronto, lá estou eu a divagar! Mas que queres? É o que faço para aqui o dia inteiro, sentada na cadeira de braços no meio das almofadas, ou então à noite, deitada, em espertina, que eu já quase nem prego olho. Já dormi quanto tinha para dormir em toda a minha vida. Então, olha, lembro-me de muitas destas coisas de antigamente. As de agora é que se me varrem num instante, nem me recordo do que comi ao almoço. Em contrapartida, queres saber qual era o meu manjar predilecto enquanto dei aulas, que naquele tempo eram até ao meio da tarde? Olha, nem vais acreditar: era um bolo picão de centeio com uma sardinha por cima, tudo cozido no forno ao mesmo tempo. Hum! Ainda agora me faz crescer água na boca. Petiscos de antigamente que há muito acabaram. Já ninguém tem um forno em casa como dantes, depois de ter acabado aquele que era comunitário. Foi tudo desmantelado e as padarias não cozem manjares daqueles, não é? E pronto! É disto que me lembro sempre, tontices de velha.


Mas vamos ao ponto, o Tilós. Foi um aluno muito rabino durante os anos todos de aula. Na primeira classe raro foi o dia em que não tirou um ponteiro de lousa a alguém. Pelava-se por coleccioná-los, chegava a rapinar mais de meia dúzia sem ninguém ter reparado. E os castigos não funcionavam, dava-lhe uma reguada por cada um, mas aquilo já então era mais forte do que ele. No primeiro dia da segunda classe arranjou maneira de cativar o mais anjinho dos recém-chegados, dos novinhos, e, no recreio, apanhou-lhe o pão de trigo que ele trouxera para merendar. E andou tão inocente o resto do dia que fiquei de pé atrás. Só na manhã seguinte, quando o outro não queria voltar à escola, é que fiquei informada da malandrice. O Tilós era de se lhe tirar o chapéu! Dei-lhe uma tareia de criar bicho, aí perdi as estribeiras. Só que nada já dava resultado, tinha a pele curtida, estava muito calejado. Sabes a que ele pregou no dia do exame da quarta? Um dos membros do júri viu que ele tinha acabado a prova antes da hora, pediu-lhe para ir lá fora comprar-lhe um maço de cigarros. O Tilós correu todo lampeiro, que lá despachado era ele, e, quando volta, entrega o embrulhinho ao professor, sentando-se muito inocente no lugar.


- O troco? - pergunta-lhe o meu colega.


- Ah! O troco – fez o miúdo, todo ele ingenuidade. - Num me dero troco, só me dero isto – e tira do bolso um pacote de rebuçados em que gastara o resto do dinheiro.


O júri achou tanta piada ao descaramento que desatou tudo a rir e a coisa ficou por ali. Agora a mim fez-me passar por uma vergonha. Que educação é que eu, como professora, dera àquele diabinho em forma de gente? Dez reis de ninguém e a armá-las já daquela maneira!


É verdade que o teu pai nunca vos proibiu de conviver com ele, mas também nunca vos incentivou decerto. E tanto menos quanto mais a idade aumentou, alargando traços cada vez maiores de marginalidade. Eras muito pequeno, não davas se calhar por ela. Se fosse agora, não te escapava, tenho a certeza. Naquele tempo, o Tilós às vezes tinha saídas com graça, coisas de adolescente que são brincadeiras sem maldade e não trazem prejuízo a ninguém. Quem dera que ele tivesse tido critério e ficasse apenas com partidas daquele jaez, mas tal acabou por não ser o rumo que escolheu, tanto pior para ele.


Do que me lembro melhor é duma desfolhada enorme que foi de todo o vosso campo de baixo. O dia inteiro, desde antes da alvorada, labutaram ali bem uma dúzia de pessoas: para além dos de tua casa, com tua avó mesmo, apesar de manquejar muito já, lembro-me do Nino e da Guida, à jorna, mas ajudaram ainda vizinhos. Uma das minhas andou lá pela tarde fora, cuido que a Nanda. E à noite fomos todos. Naquela ocasião ainda não era muito de uso apalavrar carreiros para acartar as espigas, vinha tudo nos canastrões à cabeça. Os dois jornaleiros entraram à compita, andavam ainda então em derriço, casaram depois pelo Ano Novo. Quem leva mais, quem corre mais depressa, houve até um prémio para o vitorioso na desfolhada, brincadeiras do labor: se fora o Nino, teria o direito de beijar a Guida ao inaugurar a faina; se fora a Guida, ele teria de lhe cantar uma moda, dedicada só a ela. Ambos se esfalfaram tanto, por galhardia, pelo gosto da festa, pela alegria do divertimento que cuido bem que não haveria carro de bois capaz de competir com semelhante corropio. Foi uma montanha de espigas que encheu o soalho inteiro da vossa loja bem até aos caibros do tecto, quase não havia maneira de a gente pôr-se em redor a desfolhar, ficou tudo completamente atravancado. Foi um ano de fartura. A maior parte dos milheiros carregaram quatro e cinco espigas. E nenhuma peca, era um louvor a Deus. Ano de muito pão, é verdade. Até o meu campito ali de cima, a meio do Alto dos Foguetes, sem quase uma pinga de água para a rega, atulhou de milho.


Era uma desfolhada tão enorme que nem sequer a candeia chegava para alumiar a quadra, foi preciso espalhar várias e entremeá-las de velas, ou então ninguém veria nada do que estava a fazer. Devíamos juntar ali a desfolhar para mais duma trintena de pessoas. Quem ganhou o despique? Perderam-lhes a conta aos canastrões acartados, de modo que toda a gente entendeu que tanto o Nino como a Guida deviam ter o prémio. Ela não queria ser beijada em público, parecia um tomate, coitada da mulher, aquilo é gente simples da serra para quem uma liberdade tão inocente é já questão de monta, lá entre eles por menos chegam a vias de facto. Contaram-me muitas vezes que só por mor dum olhar há quem seja esfaqueado, agora vê só a atrapalhação da rapariga, já então mulher feita, até entradota. Mas isto sabes como é, cultura do berço a tumba a tira.


Mas pronto, depois de muita brincadeira, de todos a insistirem que não se podia começar a desfolhar sem cumprir a aposta, o Nino finalmente lá conseguiu dar o beijo na cara da futura mulher. Inesperado foi o prémio dela, o homem era despachado e alegre mas ninguém nunca lhe tinha ouvido a voz tremida e grossa. Que é que ele teria arranjado para a serenata à namorada? Veio-nos com uma modinha que nós não conhecíamos, recolhida num cantar ao desafio que ele desencantou ninguém sabe onde, mas uma coisa mesmo apropriada, como era de uso em tempos antigos quando havia as desgarradas. Há quantos anos isto já lá vai! Em miúda galgávamos montes, madrugadas fora, só para ouvirmos, numa romaria qualquer, dois cantadores que se pegavam nas quadras, qual delas a melhor. E repetíamos os improvisos no regresso e nas semanas e meses seguintes, chegava a dar cantoria até um ano depois, repara só como gostávamos daquilo!

Mas voltemos então ao caso. O Nino saiu-se com isto:


Ai, menina dos meus olhos,

O que tu vês não vês bem

Porque só vês com antolhos

Quando não vês o meu bem.


Quando não vês o meu bem

Dás topadas nos escolhos,

Que só meu bem, quando vem,

É menina dos meus olhos.


É menina dos meus olhos

O meu bem quando aparece,

Cego me cegam abrolhos

No momento em que me esquece.


A Guida, coitada, cobria a cara de vergonha. Queria fugir da loja mas os teus não a deixaram. Nem se atreveu a desfolhar nenhuma espiga enquanto o primeiro canastrão não ficou cheio, para ela o tomar sôfrega à cabeça e correr ao espigueiro a despejá-lo. Ficou lá fora o tempo bastante para acalmar-se e refrescar. Entretanto já nos atiráramos todos à descomunal pilha de espigas e o folhelho principiou a acumular-se atrás e à volta de nós. A cantoria do Nino dera o mote ao encadeado doutras, cada qual pegava numa e logo os mais o seguiam, talqualmente quando eu era uma miúda. Foi uma desfolhada memorável, como eu já não vivia sei lá desde há quando! É que dantes, pela noite fora, quando acabávamos um canto numa eira, ouvíamos os das outras ao longe, um dum lado, outro do outro, este mais perto, aquele mais distante, a reboar no silêncio nocturno, misturado ao gralhar dos ralos, dos grilos e das rãs. Era lindo, o mundo inteiro parecia uma festa. Isto é que era a verdadeira festa das colheitas.


Onde é que eu ia? Já nem sei a que propósito vinha tudo isto. Ah! Pois claro. O Tilós. Naquela desfolhada teve graça, o dianho do moço. As irmãs e a mãe estavam lá connosco, ao serão, também tinham vindo ajudar a dar conta daquela montanha de espigas. Não sei como se houveram nem ninguém deu conta, a verdade é que quando os cantos cansaram virámos a contar casos, novidades, velharias, tudo pareceu como de costume, mas não foi. As irmãs do Tilós, feitas com ele, empurraram a conversa para os ladrões, os assaltos, os mortos, as almas penadas do outro mundo. E que estas apareciam, juravam, e tinham um fogo dentro da caveira e viam-se os buracos dos olhos, do nariz e da boca a luzir, um terror. Já tinham assombrado uma amiga delas de Santiago que depois daquilo ficou tolinha e agora passava os dias no cemitério. As histórias à volta disto foram rodando e variando, cada qual tinha uma mais arrepiante que a anterior, a miudagem estava toda de olhos esbugalhados e cabelos em pé. Eu até reparei que a minha Nanda, a princípio céptica, se tornou de repente crítica e a afirmar a descrença naquilo tudo mas duma maneira tão nervosa que deixou de esfolhar as espigas. Eu tive de a acalmar, que eram contos e crendices e superstições, mais nada, que não se deixasse impressionar porque era tudo para entreter o tempo e maneira de nos divertirmos. Qual o quê? Nem assim acalmou, ali a tremer, e ao mais já não era criança nenhuma, cuido que teria ao menos uns dezassete ou dezoito anos. Mas ela também foi sempre muito susceptível, com os nervos à flor da pele, apesar de enganar com aquele voluntarismo todo que ela mostra. Parece uma loba e depois derrete-se como manteiga. Estava tão impressionada que, olha, uma rapariga que tanto vibrava com o ritual do milho-rei, então nem conseguiu reparar nele. Calhou-lhe uma espiga vermelha e ela, distraída, ia jogá-la no cesto quando um rapaz ao lado lha apanhou e foi dar a roda dos abraços às moças casadoiras. Fê-lo ele e olha que a Nanda, mesmo quando lhe chegou a vez de o abraçar, foi como se estivera na lua, parecia em transe. Aquela rapariga foi sempre muito vulnerável, boa de trato, trabalhadeira e prestável, mas com um sopro tomba ao chão, quando lhe abalam o coração ou os nervos.


Tu não te lembras de nada porque então já devias estar a dormir enrodilhado para lá no folhelho. Os mais novos, a meio do serão, tinham andado por ali a mascarar-se de bigodaças e cabeleiras de barbas de milho. Ainda me lembro disto porque a minha Anita (que também foi à desfolhada) teve de interromper a meio para entrançar uma cabeleira, tinha muito jeito para aquilo, era para a filha do Rufo, aquela que emigrou e nunca mais ninguém soube novas dela. Ora, como as máscaras de repas e folhas deram muitas brincadeiras de lutas, saltos e quedas no meio daquele folhelho todo, durou pouco. Era tarde e os mais novos, cansados, caíam mais de sono que do faz-de-conta com que se estavam divertindo. Em poucos minutos, uns atrás doutros, foram para lá ficando a ressonar ao redor de nós, os crescidos. Foi o melhor que lhes podia ter acontecido, que ainda poderiam ter apanhado um susto valente, capaz de tornar algum gago para o resto da vida.


Já era tarde, devia rondar aí pela meia-noite. A conversa de fantasmas agora era de como àquela hora é que saíam dos túmulos para assombrar as pessoas que não tinham as contas em dia nem com Deus nem com os mais. Tudo era lume neles, a sair das caveiras, pressagiando a sorte dos condenados que não arrepiassem caminho. Vai daí começa a ouvir-se um uivo vindo dos lados do quintal, que terminava numa espécie de grunhido soprado. A Guida tinha acabado de acartar um cesto de espigas para o canastro e entrou a tremer, branca. Que foi, que não foi, a mulher estava sem fala nem pinga de sangue, só murmurava “lá fora, lá fora...” De repente ouvimos todos nitidamente e calámo-nos, petrificados. Que diabo seria aquilo? Não sei quem tomou a iniciativa, mas vários murmúrios se ouviram: “Apaguem as velas, apaguem as luzes...” Logo as candeias foram cobertas e as velas, sopradas. Num instante a loja fica preta como breu, tudo num silêncio de morte. Eis senão quando vemos aparecer do lado da porta uns olhos de fogo, um nariz a luzir e uma boca a chispar, rindo-se escancarada para um lado e para o outro, como que a fixar-nos a todos. Confesso que eu própria não evitei um arrepio pela espinha acima que me paralisou. A minha Nanda gemeu um ai e encafuou a cabeça no meu corpete a tremer como se tivesse acabado de ver deveras o mafarrico. Muitos engasgaram-se de terror. Durante um bom bocado ficou tudo em suspenso. O efeito foi de tal monta que mesmo as irmãs do Tilós que estavam na tramóia, quando viram os pais tolhidos de susto, ficaram também assarapantadas, não resistiram à força de sugestão de toda a cena e desataram a gemer, convencidas de que a aparição era real, um castigo por terem querido brincar com coisas sérias: “Ai, é p'ra nós, ai balha-me Nossa Senhora, ai Santíssima Birge!...”


Estávamos nós nisto não sei há quanto tempo, que perdemos a noção dele com a baralhação que o caso provocou, tira-se o teu pai de cuidados nem sei como, que ninguém deu por ela, achega-se da aparição muito sorrateiramente e acaba por dizer de lá, muito chocarreiro: “Ora, isto é o Tilós! Destapem as luzes!” E dá uma estrondosa gargalhada. As candeias foram descobertas de imediato e que nos surge diante? O raio do raspaz todo a desfazer-se em riso, com uma enorme cabaça à cabeça, de recortes nos olhos, nariz e boca, a imitar uma caveira vazia, e com uma vela acesa lá dentro. Evidentemente que quando nos refizemos do susto até chorámos de tanto rir. De que se havia de ter lembrado o danado do moço! Já me tinha feito espécie o facto de estar ali a família toda excepto ele, mas pronto, ninguém é obrigado a ir a uma desfolhada dos vizinhos, não é?


Enfim, foram bons tempos e a vida dele ainda não desatara a andar para trás. Eu cuido que isto já está fadado ao nascer, ninguém foge ao destino com que vem talhado. O P. Abel ri-se de mim e diz sempre que eu ajudei a dar uma mãozinha ao fado quando não lhe dou ouvidos, pela maneira como ensinei durante estes anos todos. Tem lá aquela cisma de que a miudagem tem de trabalhar dentro da aula em grupos. Conta mesmo que este é o caso em que é mais notória a falha, diz ele, porque a sociabilidade do Tilós não teria outra alternativa. Ele não ligava com as irmãs, que as não tinha ainda quando miúdo, têm demasiada diferença de idades, e em casa não lhe facilitaram a vida, o pai era um bêbado violento e a mãe uma mosca morta sempre batida que se finou como uma candeia que murcha, terminado o azeite. Coitada, sofreu muito e para nada, que aquilo nem se pôde chamar vida. É verdade que o rapaz nunca teve ocasião de conviver, os miúdos da vizinhança fugiam dele, com medo daquela casa, os pais reforçavam-lhes o temor, que ninguém quer relações com gente de tal jaez. O Tilós cresceu na jaula isolado como uma fera, sem parceiros nem amigos.


Se calhar lá na escola era de facto a última oportunidade, mas que é que eu podia ter feito? Como é que eu punha aquilo tudo em grupos quando eu chegava a ter oitenta miúdos ao mesmo tempo na sala? É bom de dizer, outra coisa é arranjar maneira. Eu cá nunca aprendi nem me ensinaram doutro modo. E as modernices são agora para os novos que têm sangue na guelra, no meu tempo era diferente. Só mesmo o P. Abel é que tem aquelas minhoquices na ideia. Que eu nem acho mal, mas é demais para mim. Às vezes pergunto-me até onde serei culpada de sortes como a do Tilós, não é? O Snr. Abade claro que nem o admite, para ele não há culpas, apenas falhas. Nisto, só nisto, quero eu dizer na minha.


Mas o que eu entendo menos nas propostas dele é o que conta a propósito do rumo daquele rapaz, depois de ter saído da escola. Que lá esperto, se o era! Fez tudo nos quatro anos certinhos, ali, às vezes metia-me pena uma cabeça com tanto para dar e tão mal aproveitada. Depois foi de mal a pior.


Aí é que tu o conheceste bem, contigo ele era equilibrado, ao que diz o Snr. Abade. Fazia-te estrelas de papel e canavieira e deitava-as junto à presa, no campo do fundo, ensinava-te a remeter telegramas, como ele chamava aos papelinhos para treparem pelo fio acima. Brincava aos aviões com um de madeira muito tosco que para lá tinha. Enfim, era uma aposta, em desespero de causa, a ver se ele viria às boas. O teu pai nunca teria consentido em tal companhia, não fora a opinião do P. Abel de que talvez por aí aquela cabeça dura, gostando de ti, gostasse dele próprio. Mas olha, não resultou. E sabes porquê? Aqui é que bate o ponto. O P. Abel queria-te como a um afilhado, deves ainda lembrar-te bem de como te tratava naqueles anos. Pois a ideia dele, ao pôr-te no caminho do Tilós, era a ver se, através de ti, chegava à fala e à confiança com ele. Aquele homem não dá ponto sem nó, compreendes? Que é que ele pretendia?


O que ele me diz é que, se aqui falhámos todos, ele é que falhou mais, porque apenas ele é que estaria em condições de dar a volta ao rapaz, depois de ele ter saído da escola. Conta que quem não tem não tem que dê quase nunca e que nós tínhamos feito já o possível. Claro que me espeta sempre uma farpa, aquela de eu não fazer grupinhos dentro das aulas. O P. Abel está convicto de que há uma faculdade, um poder no pensamento que nós não usamos, de que não dispomos e que era o que poderia ter evitado o resvalar do Tilós. Seria preciso havê-lo desenvolvido, o que só iria com meios à altura. Ele diz que os conhece, mas para tanto havia de conquistar a confiança do rapaz a tempo. Ora, foi isto que falhou. A definitiva perda do moço parece que proveio de nunca se ter compreendido e acolhido a ele próprio. Também, numa família daquelas, à pancada o dia inteiro, com a mãe a definhar pelos cantos, coitado!... O Snr. Abade diz que se ele fora capaz de olhar-se de fora, como para um outro qualquer, capaz de explicar-se aí claramente, de desafiar-se deste modo a enfrentar o problema da vida dele, outro galo cantaria. Só que o Tilós (como nós todos, diz o Snr. Abade) só é capaz de pensar, de reflectir colado aos acontecimentos, sobre os casos e as situações que em concreto vai vivendo. É muito difícil desapegar o pensamento disto e pô-lo a trabalhar a partir apenas das palavras, das noções, dos modelos que a gente vai alcançando para interpretar as coisas. Eu própria, e ao mais fui professora tantos anos, cuido que não sou bem capaz de o fazer. Ora, o P. Abel crê que uma de duas: ou o Tilós passava a conviver permanentemente com ele durante aqueles anos perigosos, para aprender o jeito de reflectir daquela maneira, e então distanciar-se-ia do que o esmagava dia a dia (a vida inteira dele), para poder escolher e tomar medidas bem ponderadas, evitando ser arrastado pela raiva, pela revolta, como foi; ou, em alternativa, devia continuar a estudar. Mas como, naquela miséria de casa? Aquilo já não tinha mesmo saída nenhuma, é o que é.


O Snr. Abade afirma que a escola, no geral, também não dá rumo a isto, como eu, no entender dele, também nunca dei, para os mais miúdos. Mas jura que havia um modo. Queres saber qual? Olha, ele explica mais ou menos assim, ao que eu entendo. Se o professor, em lugar de dar a lição, puser o problema e ao mesmo tempo os casos, as situações, as experiências, os acontecimentos à frente do nariz dos alunos, então eles começam a pensar, a tentar resolver o desafio. Aí, a pouco e pouco, vai fazer-se luz. Desenvolvem cada vez mais o poder de descobrir e de explicar, já não vão precisar de encontrar as respostas no livro, inventam-nas eles. Então ganham o gosto e a capacidade de interpretar, daí constroem as próprias maneiras de o declarar, de o identificar. Este poder vai ser capaz de encontrar alternativas depois para o que parece não as ter, em qualquer campo da vida e do saber. É o que o P. Abel crê. Eu cá não faço ideia, que nunca lidei com problemas nem casos de tal jaez, que eram doutras idades mais crescidas que as que me caíam nas aulas.


Claro que lhe contraponho dúvidas e mais dúvidas quando ele me vem com tais conversas. Mas aquilo tem lógica, faz sentido. Porque ele explica assim, quando eu quero compreender como é que poderia ser, em pormenor, em concreto. Se, por exemplo, eu levar dois tubos de ferro, encaixados um dentro do outro, à justa, e os alunos experimentarem bem como eles deslizam para trás e para diante, basta aquecer cá fora bastante o de dentro que ele já não entra mais, enquanto não arrefecer. Quando perguntamos aos miúdos o que é que o calor fez, logo todos concluem que dilatou o corpo. Não é preciso dar-lhes a resposta, basta pôr a pergunta a partir dum caso concreto. Eles aí criam a teoria que resolve o desafio. Então, aposta o P. Abel que bastaria apenas que o professor, agindo assim por sistema, treine, primeiro, a medir o grau de dificuldade da interrogação, para adequá-la ao nível do aluno, e, segundo, que encadeie questões umas nas outras até onde o discípulo o conseguir acompanhar. Quando ocorrer isto por todo o lado, jura ele, teremos outro tipo de gente, que por ora ainda somos muito pouco racionais, muito pouco homens, prisioneiros do concreto.


Gosto de o ouvir por curiosidade, que isto seria para idades com que nunca trabalhei, a não ser no meu rebanho de filhos. Só que em casa o problema é outro, entende o P. Abel. Ele afirma que aí, dos onze aos quinze anos, eram precisos mesmo outros pais, para este efeito. Enquanto os adultos não tiverem aquelas capacidades, não as podem viver com os púberes e isto estraga as possibilidades todas de fazer alguma coisa de jeito a partir dos lares. Então a conclusão é que somos um povo mentalmente retardado. Eu desato a rir quando ele atira com esta, o homem fica abespinhado, porque não é coisa para rir, porque nos torna criados do resto do mundo, se não quisermos ganhar juízo antes que os mais nos ultrapassem de vez, mas que queres? Esta de sermos um país de diminuídos lembra-me um hospital do Minho ao Algarve, é lá uma ideia do Snr.Abade que tem o condão de me fazer umas cócegas que eu não consigo. Ih! Ih! Ih!


Enfim, o caso é que o Tilós não pôde contar com nada disto e pronto, cada vez asneou mais, caiu de degrau em degrau, até que teve de fugir. Não houve mais novas dele, nem sequer se é vivo ou morto. Provavelmente já levou sumiço, qualquer um lhe terá tirado o fôlego, em qualquer lugar perdido, como a um cão raivoso. E, de facto, foi naquilo em que derivou, mal comparado. Pobre do moço, foi uma pena, uma pena!





19 – O Tardo


- Os xenhores aqui ri-xe do tardo, mas crujes, abrenúnxio! A gente lá na xerra num brinca cum coijas xérias, co'o dianho num xe bole, que é milhor. Ó ti'Legria, intão num é berdade que eu lá tinha um priminho todo tolhidinho, coitado do home, tornado uma crianxa a bida inteira xó proque a mãe, q'ando prenha, tebe um mau incontro? Eu lembro-me munto bem dele, enorme e a babar-xe por ele abaixo que era uma dor de alma. Xe num foxe o tardo cum que topou a nha tia, nunca o rapaz teria xaído axim. Intão num é?


- Isso, sim, chamem-lhe tardo, chamem. Com que tardo é que a tua tia se encontrou é que eu gostava de saber. Devia ser um tardo e pêras, mulher! Aposto que tinha bigode e cavanhaque e cá uma lábia que nem te digo! Um figurão! Lá quanto aos chifres é que eu duvido, não deviam ser dele, rapariga, deviam pertencer a outro. Confessa lá. Não me tomes por ingénua! E não o sejas tu, abre os olhos!


- Ó tia, mas atão num há tardo? Num há tardo ninhum?


- Há tardo, há, Tito, mas não é o que as pessoas acreditam e contam.


- Atão o que é?


- Aí o menino num debia xer dejincaminhado. A ti'Legria quer xempre meter-xe comigo, pronto, num le lebo a mal, que isto é tudo cumberxa. Agora o piqueno habia de xaber direito. Uma pexoa tem de estar precabida, xenão ódespois bota aí por um carreiro q'alquer à xonoite, aparexe-le o tardo disfarxado numa curba, no meio das xombras e cumo bai xer? Inda fica tolhido cum'ò meu primo ou intão apanha um arejo que o deixa a murchar, a murchar, que nem uma maxã peca. E a culpa intão tamém é noxa, que num le preparámos defeja.


- E qual é a vossa defesa, ó Guida, lá na serra? Aquilo nem tem encruzilhadas nem nada... ao menos nós por cá temos espaço quanto bonde para o combate. Pelas tuas bandas só se caírem todos pelos despenhadeiros abaixo, aquilo é cada precipício!


- Ná, ná. Exa das incrujilhadas xó a òbi por estes lados. Que a gente, xe tiber um mau incontro, debe de traxar na terra o xino-xaimão e prantar-xe no meio, inq'anto xe iscanjura o barjabu co'o nome de Cristo. Ele pincha à noxa bolta mas num nos cunxegue bulir, que num pode crujar os traxos. Aí a gente lanxa-le o esconjuro do P. Abel, “iscomungado xejas p'ràs águas do mar acoalhado!”, e pum! O cornudo estoira cumo um balão e deixa aquele fume preto a cheirar a inxofre, pfff! Agora isto xó dá na incrujilhada. Intão cumo é que é num mau caminho? Aí o colhido pelo diabo tem é de traxar uma cruz entre ambos e nunca o deixar paxá-la. O demónio põe-xe às fintas e a gente fintò tamém p'rà cruz ficar xempre a xeparar-nos. Xe uma pexoa le amear co'o cruxifixo, ou xe benjer e gritar-le o esconjuro, pumba! Ele tropexa no cruxificado e despenha-xe pelos penhascos abaixo que é uma beleja!


- Ai, então era isso que eu via na queda de água do Mansor, esborrachado lá no fundo, quando lá fui o ano passado à romaria do Senhor da Serra. Mas olha que parecia mesmo um carneiro, com a lã e os cornos retorcidos e tudo. Tens a certeza de que o belzebu se despenca pelos despenhadeiros? Não será por ali alguma rês tresmalhada que apanhou um susto? Hã, Guida?


- A ti'Legria biu mesmo? E era o tardo? Cum cornos e tudo? Era, era?


- Com cornos e lã e cascos e uns belos bifes desperdiçados no meio daquelas tripas ao sol. É verdade, um valente carneiro que teve uma distracção, pobre do bicho! Ninguém consegue evitar acidentes que tais num rebanho, nem aqui, quanto mais em desfiladeiros e alpenduradas como aquelas! Aquilo é lindo, mas mete respeito. Quando alguém olha daquelas alturas até a cabeça lhe anda à roda com tonturas. Se não se põe a pau, quem se despenca por ali abaixo é o pobre dum cristão malfadado. E a muitos já deve ter acontecido. Não contam por lá casos destes, ó Guida, é tudo só com o tardo a dar um estoiro de cabeça podre num penedo? Hã?


- A ti'Guida se calhar já biu o tardo, num biu? Biu, num biu?


- Crujes, canhoto, menino, eu cá não, nem quero. Dês me libre de ruins incontros! Num me dejeje tal coija, xenão inda me aparexe. Eu cuido que morria de xusto, balha-me Dês Noxo Xenhor e a Xantíxima Birge nha madrinha!


- Então, se aqui o miúdo o desejar, vai-te acontecer? Essa agora, não me digas que o meu sobrinho tem pacto com o diabo! Acreditas que ele tem o inferno às ordens? Isto é novidade. Conta, conta lá, Guida, que eu é que fiquei mesmo interessada. Ter uma coisa destas em casa sem o saber! Homessa! Já viste, rapaz, o poder que tens? O belzebu obra a teu mando. E esta, hein? Nunca te tinha passado pela cabeça, pois não? Olha que a mim também não. Como é, Guida, como é?


- Tá xempre a fajê poco da minha ingnorânxia... Mas olhe que Dês dixe “deixai bir a mim as crianxinhas”. Intão já bê, uma crianxa tem munto poder. Xabe-xe lá xe Dês num le faz a buntade. O xiguro morreu de belho, é milhor fugir da ocajião. Eu cá bou andando co'o meu trabalho, já le apanhei mais duma giga de erba e quero cuntinuar aqui no meu carreiro xem percalxos. Q'ant'ò resto num xei de nada, que eu nunca aprendi a ler nem a escreber. Mas lá que Dês fala pela boca dos meninos é berdade, que o òbi xempre a todos, na xerra e ò Xenhor Abade daqui tamém. Intão olhe. Num queria nada que o menino me dejejaxe tais incontros. Ixo não, crujes!


- Ele não deseja nada, rapariga. Não é, Tito? Não queres mal nenhum à ti'Guida, pois não?


- Não, num quero nada!


- Inda bem, que fico mais descanxada, menino.


- Mas, ó tia, cumo é o tardo? É o carneiro?


- Estás a ver, Guida? Responde lá: aquilo que eu lá vi era o tardo ou não era?


- Ora, xei cá bem! Pode ter xido ou não. O que eles pela xerra conto é que o mafarrico é munto esperto. Q'ando xe dejiquilibra, bira bicho, p'rà genta nunc'ò descobrir. Intão, q'ando uma pexoa bai a ber, im lugar do tardo xai-le uma obelha, uma chiba, um carneiro ou q'alquer coija axim. Eu cá nunca bi xenão as rejes que xe perdero numa queda, é um prejuíjo danado, uma desgraxa p'ra quem já tem tão pouco de que biba, num é? Agora, o pobo fala e conta histórias e intão lá todos acreditamos que há cajos e cajos. Os de noite, q'ando o gado já foi todo p'rò redil, cumo é que é? Ali já num pode xer rês da gente, que tão todas recolhidas, xó pode xer o cundanado. Por ixo eu acredito que é o tardo.


- É boa, rapariga! Então não pode ser antes um lobo, uma raposa, um texugo, um ouriço-cacheiro...? Bichos de noite é o que não falta. Se te salta um lince ao caminho, olha que tardo mais azarento te caiu em sorte, não? Se o diabo se despenhasse havia de se ver, que lá essa de ele mudar, não! O belzebu não muda, se for ele, é tal e qual, está condenado para a eternidade, já não há transmutação que lhe acuda, mulher!


- Mas o abô matou o tardo, num matou, tia? Uma bez? Eu òbi...


- Era melhor começar a acartar a erva, Guida. Põe-te lá a encher um canastrão, enquanto eu acabo de apanhar estas leitugas e um manado ali de corrijó para os coelhos. Já te ajudo a pôr à cabeça. Enche a giga também, as rodas de erva bem travadas, estás a ouvir?


- O abô matou-o, que eu òbi, num foi, tia?


- O quê, Tito? Não estava a dar atenção.


- É aquela bez im que o abô matou o tardo. Atão num foi? Numa silbeira, q'ando binha p'ra casa, de noite...


- Ai intão tamém já cá tibero um cajo. Conte, ti'Legria, conte. Foi co'o xeu paijinho? Ai, home balente, co'ele num xe podia dar bem o dejalmado! Deu cabo do barjabu, deu?


- Dar, deu. É pena o meu pai não estar cá para contar, que Deus o tenha. Aí é que tu ias aprender tudo. Chegou-nos duma feira lá dos teus lados, vinha de Arouca. Naquele tempo metiam-se a pé, a direito por montes e vales, de varapau de lódão em punho, em pequenos grupos. Conheciam os carreiros, cortavam muito caminho. À vinda cada qual ia ficando pelo seu lugarejo, de modo que o derradeiro acabava sozinho até onde morava. Daquela vez calhou que os companheiros e os feirantes só refizeram a rota até Nogueira, daí para S. Pedro, pela Gandra, foi tudo a sós. A maior parte era matagal sem vereda nem nada. A noite era escura e o ti'Zé Levante tinha-lhe bebido forte e feio, que o inverno ia gelado e a companhia dos mais puxava. Não havia luar e as nuvens rolavam grossas e bem pretas, ninguém enxergava um palmo adiante do nariz. Mas ele era um homem voluntarioso e pouco dado a temores. Tratou de chegar a casa sem se perder, embora tivesse de andar às apalpadelas. Foi ao chegar aqui, tarde e más horas pela noite dentro, todo arranhado na cara e nas mãos, com rasgões nas mangas do casacão, as calças marcadas a meio da perneira, com lama que Deus a dava, chegava até à correia, que vimos que tinha havido coisa de monta.


- Ai qu'a luta foi fera! P'ra um home daqueles chigar axim, q'ando nem meia dújia de balentes adregabo nunca de o derrubar, a coija debe de ter ficado feia. O raio do tardo, maldito!


- Ah, mas o meu abô matou-o, num foi, tia?


- Que foi, que não foi, corremos todos assarapantados, a cuidar no pior. Andávamos sempre a temer que um varredor de feiras algum dia lhe saísse à frente e fosse a vez de ele baquear, há sempre um que é melhor lutador ou pode estar num dia de sorte, sabe-se lá. Mas aquilo não tinha sinal de combate, não eram marcas de varapau, que são bem piores e mais fundas. O ferro, quando não é de brincar, em três tempos pode matar um homem. Tememos que fosse outra coisa, quando ele, mais desafogado e lavado, berrou, estentório: “Matei-o! Desta vez matei-o!” Ficámos aflitos porque só nos ocorreu ser morte de gente, apenas não fazia sentido, já que nenhum jogador do pau se atrevia há muitos anos a desafiar o ti'Zé Levante. E adversários de morte não os havia. Foi quando notámos o forte cheiro a aguardente a que ele tresandava. “Tu bubeste, home, tu num te tens im pé! Caíste foi aí por uma ribanceira abaixo” - fez a minha mãe. “Qual o Quê?! Matei-o, que eu bem bi, ali òs Silbados. Ele escolheu mesmo o lugar mais feio, mas dei cabo dele. Desta foi de bez!” - retomava o meu pai. “Mas deste cabo de quem?” - a minha mãe continuava apoquentada, na dúvida. “Ora de quem! Do tardo, claro. Matei o tardo! Comigo num se safou. Ficou lá estalangado num banho de sangue” - insistia o ti'Zé Levante. “Mataste o tardo?! Nos Silbados?! Essa agora! A sério?!” - a minha mãe não queria acreditar. Nós, com o cheirete a álcool, nem nos conseguíamos aproximar dele, arregalados de espanto, sem compreender se era a sério ou a brincar. Com o meu pai nunca ninguém podia adivinhar qual era a tenção.


- Mas intão era a xério?


- A sério, era. “Eu de repente senti-le o cheiro a inxofre e oubi-le a restolhada por entre as silbas” - continuou ele. - “Bi logo que me binha ò incontro, subiu-me um arrepio na espinha, agarrei bem no pau e berrei-le: salta cá p'ra fora se me queres tentar, cá fora, aqui no carreiro! Bai daí bejo-le a sombra mesmo à minha frnete. O sacana! Atão, zás!, amiei-le uma bordoada, mas ele desbiou-se, eu pinchei. Se cuidas que me apanhas a mim, tás bem inganado! - pensei cá comigo. No ar apontei-le uma de trabés, o gajo mal tebe tempo, foi de raspão. Espera que num perdes pela demora! - calculei eu. Mal toquei no chão, já o lódão boaba mesmo ò meio do tratante. Num tebe remédio senão pular p'rò emaranhado do silbado, cuidaba o bandido que eu o largaba. Qual o quê! Saltei atrás e trás, trás, trás! Se as silbeiras me impediam, mais a ele, que o pau fura bem lá pelo meio. Fiquei todo arranhado e rasgado, mas estripei-o inteiro. Aquilo é que foi guinchar! E que fumarada preta e mais mal cheirosa! Pfuh! Quando me safei de lá até binha agoniado. O estafermo, só co'o cheirete, é capaz de tolher um cristão. Mas matei-o! Desta bez dei cabo dele. Matei o dianho à paulada! É berdade. Aminhé bou lá ber o sacana. Quero-le a figura à luz do dia, que de noite aquilo é mais uma sombra que gente de carne e osso.”


- E ele boltou lá, ti'Legria? E biu o mafarrico? Benja-o Dês, ixo é que era um home balente. Olhe que é obra matar o tardo, xenhora, nunca òbi uma axim! Xem rejas nem esconjuros, é a prumeira que conhexo.


- Pois, ele foi, num foi, tia?


- Claro, no dia seguinte de manhãzinha botou-se para os Silvados. E quando chegou à zona desbastada donde saíra todo arranhado que é que encontra? Um texugo! Um desgraçado texugo todo desfeito pelo varapau, com as tripas ao aol no meio das silvas.


- Birou texugo o maldito barjabu! Nunca xe le bê a figura, nem òdespois de morto.


- Tem juízo, rapariga! Qual virou texugo! A aguardente era tanta que até um texugo virou tardo e deu um combate de morte. Não tens juízo nenhum! Vamos lá ao canastrão, upa! Podes despejá-lo já na manjedoura, ao lado da Pinta. Eu levo a giga – dás-me aqui uma mão, Tito, só um jeitinho, assim? - e vou dá-la à Preta, que anda mais enfastiada. Vamos lá, rapariga, que se vai fazendo tarde e depois ainda te sai o tardo ao caminho.


- Ó ti'Legria, num diga uma coija dexas qu'inda pode dar ajar! Eu cá num brinco cum coijas xérias, que ixo mete-me munto medo. Xe me cuntinua a falar axim, inda bai ter de me acumpanhar a caja, que eu num bou cunxeguir ir xojinha.


- Não há problema, que o Tito vai lá e tira-te o medo, não vais, Tito?


- Eu bou, eu bou.


- Ora aí está um menino valente que não tem medo de nada, não é?


- É, mas òpois fico co'a ti'Guida, que eu num quero ber o tardo quando bier p'ra casa. Tá bem, tia, tá bem?






20 – O Carro do Ti'Quico


Recordarás aquele ano como o da nova transição. Primeiro foi a tua avó materna. Verás como na véspera, já desde há muito acamada com uma “coisinha ruim” no estômago, teve de súbito um desejo invencível de beber um grande copo de leite desnatado, que há vários anos não saboreava. Acompanhaste-a no ritual de infringir todas as recomendações da dieta, feliz, porque, se morrer, ao menos que morra satisfeita. Assististe, inconsciente e miúdo, ao vómito habitual de todas as comidas por aquele estômago estranho, há muito alheio à tua avó e à missão de a alimentar que por norma biológica lhe deveria competir. Viste-a cair exausta no leito, afrontada, como todas as mais vezes, todos os dias, há anos. Nem reparaste na ti'Mília Leveira, tão habitual nas visitas e nas intérminas conversas entre ambas que já nem as ouves. E, contudo, era tudo, finalmente, diferente. Porque era a despedida que te escapou miudamente, inconscientemente, irresponsavelmente, de modo irrecuperável.


Só te apercebeste de que havia novidade quando à noite foste impedido de dormir na cama próxima de tua avó, quando tua mãe ficou de vigia a madrugada inteira. A meio da manhã ouviste o grito de alerta. Falecera a grande contadora de histórias que te ensinara a ler as horas no mostrador do grande relógio de parede, em madeira antiga trabalhada. A que te fizera sonhar que o Rio de Janeiro, para onde viajavam os emigrantes dos contos, era um mês transformado num rio, coisa maravilhosa, bem digna de ser vista, quem te dera emigrar também para descobrir como poderia ocorrer tal encantamento! Não suportaste a visão do rosto parado nas rugas de pergaminho muito velho, da boca que jamais te ensinaria a sonhar a vida. E gritaste. Um grito infantil de quem descobre subitamente que ficou órfão de avó para sempre. Um grito de quem não suporta o vazio da palavra, o coração no vácuo. Agora só te ficaria o consolo de recordar um colo, uma voz e a mão suave. E um rosto muito estragado, muito feio, em que sorriam incontáveis maravilhas, um rosto adorado que o tempo suavemente apagaria como a uma pintura antiga de valor inestimável. Só te ficaria recordar.


Eras, porém, tão instável que à tarde já assobiavas, empenhado em consertar um prego que se desajustara na madeira da chaminé, onde se penduravam os chouriços ao fumeiro. Foi preciso tua irmã Tilde lembrar-te do dia e da desgraça para recaíres em ti, silente e mortiço. Para ficares desconcertado: já não sentias vazio nenhum, sentias-te por tão rápido teres ficado vazio do vazio. Tua avó já estava lentamente a morrer dentro de ti. Ficar-te-ia para o resto da vida uma vaga poalha de oiro na memória, menos que uns cabelos encanecidos ao vento e, afinal, muito mais, infinitamente mais. Uma parte de ti, tua avó reduzir-se-ia gradualmente a uma parte ignorada de ti, como um músculo, um braço ou um coração de que nem tomamos nota e que, ao fim, é mais nós do que nós mesmos.


Nem reparaste que foi uma semana após o enterro que a ti'Mília Leveira se encostou à parede de tua casa, mal o sol-pôr apagou o dia, levou a mão ao peito estrangulado e murmurou: “balha-me Deus, balha-me Deus, balha-me Deus...” como uma jaculatória, como uma reza. Não a viste atravessar, cambaleando, a estrada irregular de pedras e lama até o muro dela, descansar aí, resignada, cada vez mais dobrada, cada vez mais encolhida, cada vez mais leveira. Até que um passante ocasional por ela deu e, misericordioso, a ajudou a entrar o velho portão de ferro, a carcomida porta de pinho e a deitou no catre desfeito, entre os trapos imprecisos. Para que descansasse eternamente, como há muito impacientemente aguardava. Não a viste quando então foi ter com todos os amigos de antanho há eras desaparecidos e que intransigentes aguardavam o passamento discreto, para reatarem as conversas de tempos mortos, pejados de dores, esperanças e aventuras, de que todas aquelas vidas adubaram presentes e futuros que hoje herdaste. Estranhaste, porém, que nesse outono o castanheiro entanguisse, melado, pejado ainda de folhas mas sem um ouriço, quando os herdeiros o vigiavam, perplexos, sem poderem compreender aquele amor duma árvore por uma pessoa com que privara durante séculos. Decretaram que morrera de velho e venderam-no na primavera à serração, para com a ancestral madeira, curada de mil estações, se talharem móveis que embalassem os amores de novos lares. Quando lá foste à despedida, já só encontraste o enorme buraco da toqueira, uma ausência pura, tal como a da ti'Mília dentro de ti, mais nada. Nem uma saudade, nem uma dor, nem uma esperança: o lugar apenas donde uma vida fugira para sempre. Com um encolher de ombros seguiste em frente, a cumprir um destino. Doravante com a falta do sabor agridoce das castanhas do encantamento. E com a certeza de que no futuro nenhumas outras as poderiam substituir jamais, apenas recordar estranhos pactos secretos que nunca mais serão refeitos.


Passou-te um pouco à margem este outro mundo que acabou, porque estavas, como ele te ordenara, virado para diante, a cheirar a promessa que viria. Teria de ser na Rua da Toca, donde brotavam os coelhos do mistério. Treparia das profundezas ou cairia das alturas? Intuíste que o derradeiro passeio do P. Abel pela estrada acima, enfeixado na batina preta, gasta de tantos milénios, é que te daria a chave do porvir.


Seguia-lo atento com teus olhos de criança adulta, a tropeçar esfalfado na subida para o Alto dos Foguetes, baralhado nas dúzias de botões que lhe traçavam a perpendicular do pescoço aos pés. Ainda nem sequer imaginavas que era uma despedida, que jamais o verias em tal ambiente como em nenhum mais. Não te disse adeus, pôs-se a caminho à tua frente, pela colina acima, até desaparecer engolido pelos eucaliptos. Doravante só nos sonhos te voltaria a falar, só nas descobertas te segredaria os trilhos do mundo novo. Desapareceu ali para te orientar o olhar para o trecho da subida onde os sinais se iriam em breve congraçar.


Ouviste depois contar que fora expulso, desterrado por mágico, por um bispo obscuro que o não entendia nem acatava, para uma terreola perdida entre as abas da Serra da Freita. Teu lar sentiste-o bem mais vazio, com as palavras entarameladas da revolta e do silêncio, das iniquidades sofridas sem remédio. Mas as novas dele continuaram chegando regular e periodicamente, triadas na conversa à modorra dos serões, por entre os tenteios vacilantes da chama da candeia de azeite. O P. Abel curava pela montanha além, com a misteriosa geleia real de abelha, toda a espécie de maleitas. Tornara-a uma panaceia: todo o garoto que tomasse uma colherada regularmente, era certo e sabido que não havia mal que lhe pegasse; qualquer adulto que desatasse a murchar, de pescoço a cair como planta sequiosa, era só um frasquinho durante uma semana e pronto, estava aí arrebitado e são como um pêro! Ouvias e calavas, ainda incerto acerca do mistério escondido por trás destas andanças de quem voava por cima até das serranias.


E, finalmente, deste conta. Olhavas a subida para o Alto dos Foguetes, bem lá de baixo da Rua da Toca, quase nos Clipes, para nada te escapar. O automóvel do ti'Quico surdiu na curva do alto, molengão, aos esses por entre as regueiras cortadas no piso da estrada pelas enxurradas da invernia. Deslizava lento, aos sacolejões, arregaçado por cima dos pneus finos com raios quase de bicicleta, os enormes guarda-lamas salientes, a carroçaria mais alta que a duma mala-posta. Descaiu, descaiu pela descida e rac!, encravou. O ti'Quico trazia um ajudante que se pôs a dar à manivela à frente, mas aquilo nem à lei da bala! Parou de vez, não havia mecânica que o demovesse. Abriram duas abas à frente e puseram-se para lá a olhar para os cavalos daquilo que doravante se chamaria motor. Que será? Que não será? Gasolina havia, óleo também, a água estava ao nível e a nova maravilha do progresso escorria por qualquer descida abaixo. O problema era no plaino e nas subidas, engasgava-se e era mais casmurra que um burro, nem para trás nem para diante. Ao asno, uma cenoura frente ao nariz, quando tem fome, ainda o demove, agora qual a cenoura da máquina? “É da bateria! Está sem bateria!” - prognosticou o ajudante sábio. “Pois debe ser” - alvitrou o ti'Quico. Diagnosticada a doença da alimária mecânica, o remédio era fácil e estava a postos. “Pàbu! Pàbu! Pàbu!” - buzinou o bicho de metal, pela corneta, soprada a balão de borracha que a mão do condutor apertava, imperativa. E pronto, lá vinha encosta abaixo uma junta de bois, uma corda ao pescoço do boieiro, colocando-se atrás da novidade do progresso que entupira.


Viste-os amarrarem a corda ao pára-choques imponente, na parte de trás, e toca a arrastar encosta acima a maravilha motorizada empanada. E novamente assististe ao deslizar do automóvel rampa abaixo, aos soluços, até parar na estrada plana. E de novo os bois e de novo a viatura, tantas vezes que lhes perdeste a conta. O ramerrão da tarde, numa primavera a anunciar-se, com laivos de sol entremeados por umas fustigadelas da chuva a despedir as invernias.


Até que, reparaste, até que um ronco fundo saiu das entranhas do bicho e ei-lo encabritado a correr, como um potro recém-nascido, estrada fora! Eis o futuro que passa, no primeiro anúncio, com a estranheza e a alegria de tudo o que é novo. Eis o automóvel do ti'Quico. As sobrinhas, seis, por cima do muro a bater palmas, que alegria, que grandeza! Chegou aos Clipes, deu a volta gracioso e apertado e trepou ligeiro e fácil encosta acima, com mais músculo e despacho que o mais pintado dos corcéis. E quanto aos bois, coitados, ainda estavam no mesmo sítio a ruminar, meio interditos, o fim da sua história. Tão lentos, tão lentos! Descobriste que quando o entendessem já teriam há muito passado, sem deixar memória nem saudades.


Verás logo após a imponência do ti'Quico cavalgando a maravilha mecânica, estadeando a grandeza, a fazer inveja aos demais. Vê-lo-ás engalanado pela coroa de loiras tranças das seis sobrinhas, esfusiantes, nervosas da novidade, e enaltecidas da eminência de serem as primeiras a espanejar o tamanho do futuro incarnado no metal. Segui-los-ás, solenes, empertigados, a olhar em frente, que quem transporta tão descomunal boa-nova nem sequer tem uma piscadela para a vil ralé de boca aberta, no pasmo emudecido do inacreditável. E quando no silêncio maravilhado, subitamente, o veículo cai num buraco e pum!, entope brusco, atirando as seis coroas de tranças loiras de cabeça para baixo no banco da frente, ficando todas a espernear de rabo no ar, rirás descontroladamente com os mais deste futuro de partes ao léu, desta imponência vergonhosamente desnudada. Distinguirás, porém, a futilidade de quem, pretensioso, quis revestir-se da magnificência dum inesperado porvir e acabou nu na praça pública, por um lado, e, por outro, vislumbrarás a grandeza e poderio, prenunciados na semente desajeitada dum automóvel, reduzido a peça de montra, sem bateria por desuso, mas que dentro germinava as primícias dum mundo outro. Adivinharás o que ninguém ainda viu. Arrepiar-te-ás com as possibilidades em aberto e com quantas vidas e modos irão germinar daquela mole de estofos e metais. E tremerás por quantos modelos de ser e de estar ela irá cilindrar, enterrando-os de vez nas mortes do passado, como decididamente inúteis.


Contarás, lento e paciente, este primeiro arauto do reino automóvel em Vila Chã, logo depois um segundo em Samil e um terceiro, de aluguer já, em Bustelo: os passos de amanhã a tomar firmeza, tenteantes e tentadores. Depois de muito conciliábulo, de muitas contas aos tostões, de muita conversa com o médico de todos, que sim senhor, os meninos precisam de desobstruir os pulmões e acabar com as bronquites, nada melhor que uns ares do mar, a decisão foi tomada: alugastes a viatura de frete para uma primeira ida à praia de Espinho, um dia só e muito cuidadinho com a velocidade, que isto parece que voa e parte tudo quanto encontra pelo caminho. “Arrancamos, Alfredo, logo ò romper do sol, p'ra aprobeitar bem o dia” - proporá tua mãe. “E quando boltamos?” - quis saber o condutor. “Ò pôr-do-sol, à noitinha, p'ra aprobeitar bem o dia, tá bem?” - proporá tua irmã Tilde, não lhe fossem reduzir o prazer. “Sim, senhor, à noitinha. Atão num se importo bocês que eu faça alguns biscatos durante o dia, dos que por lá sempre aparece?” - e ficou combinado. “Ai, Alfredo, ai, bai cum cuidadinho e debagar, olha que lebas estas bidas todas” - gemerá todo o caminho, ansiosa, tua mãe. E tu, como o mais atreito às moléstias, seguirás no banco da frente ao lado do guiador, bebendo o espanto do mundo a entrar pelos olhos dentro àquela velocidade estonteadora. “Cuidado, Alfredo, cuidado, num bás depressa” - continuará tua mãe, ansiosa como agulha em disco rachado, sempre o mesmo, sempre o mesmo.


Até que por isso, por efeito de sugestão ou porque o imprevisto ocorre qualquer que seja o cuidado, de repente salta ao caminho uma cabra, da berma escondida. Vai o travão, brusco, ao fundo e eis-te projectado com toda a força contra o pára-brisas, trás! E bates com a testa aí, como uma granada! “Ai Jesus, que desgraça!” - gritará tua mãe. “Ai o menino, ai que chatice!” - fará o desatinado condutor, atrapalhadíssimo. “Num foi nada, num foi nada...” - insistirás tu, vermelho de vergonha, e não mentirás, que nada sentes a não ser o pudor incomportável de com tão sonora cabeçada teres estragado a romaria em curso. Após tudo serenado, a viagem é retomada com redrobadas precauções. “Ai o que podia ter acontecido, o que podia ter acontecido!” - continuava a remoer o automobilista, francamente repeso. - “Uma pessoa com tanto cuidado e, de repente, uma coisa destas! Olhe que eu nem a q'orenta ia beja bem! Imagine o que era se eu fosse p'ràí largado! Nem quero pensar!” - continuará o desabafo. “Tu bai debagar, Alfredo, bai debagarinho, q'a gente num tem pressa ninhuma. O que importa é chigar bem!” - insistirá tua mãe. Enfim, um dia memorável, inaugurado por uma memorável cabeçada.


Bendirás o porvir que lento assim foi chegando, cada vez se entendendo pior com aquelas estradas cheias de regueirões fundos, dos rodados de carros de bois, das escorrências das chuvadas, com peedregulhos a aflorar desmedidos e escandalosos. Acompanharás o convívio pacífico entre carros de bois e automóveis, aqueles cada vez menos numerosos, estes cada vez mais, com as ajudas que durante anos e anos os primeiros darão às falhas dos segundos, à imagem do veículo do ti'Quico que só andará depois de pôr à prova a paciência bovina que o puxará e tornará a puxar quantas vezes forem requeridas, até que o apuramento e a eficácia da nova tecnologia tornem o recurso definitivamente obsoleto.


Se antes corrias pelas veredas a sonhar com o dia em que terias uma bicicleta, capaz de driblar as raízes, os areões, os regos e as pedras, de modo a levar-te mais longe e mais depressa, doravante sonharás com a magia de quatro rodas numa avenida lisa de asfalto ou trepidante de paralelipípedos, com um motor a roncar barulhento e uma buzina a berrar pàbu, pàbu, como um novo grito de liberdade.


E até te esquecerás, definitivamente, de ter mais bronquites.






21 – O Carnaval do Tilós


O Tilós, grandessíssimo estafermo! Tu sempre tiveste um fraquinho por ele, só porque em miúdo brincaste muito a lançar estrelas, aos aviões e assim, lá com o grupo com que convivia. Eu não, aliás o pai e a mãe nunca mo permitiram, que ele era praticamente da minha idade e já não oferecia confiança desde miúdo. Mesmo a Belita nunca lidou com ele.


A sorte do homem? Aquilo que nós sabemos, nem por portas travessas, nada vem chegando há anos, desde aquele carnaval do desastre. Eu sei que tu mal te apercebeste, eu é que tive de dar o corpo ao manifesto. Lembro-me como se fosse hoje. Naquele tempo o entrudo, aqui na aldeia, era apenas uma brincadeira de disfarces e brinquedos pobres. Nós éramos até privilegiados, porque o pai nos trazia do Porto umas bisnagazitas de plástico colorido e passávamos o tempo a esguichar água duns aos outros. Mas olha que na rua éramos os únicos. Os mais nem de tal luxo podiam dispor. Quando muito o que alguém atirava a outrem era um sopro de farinha, a não haver falta dela na tulha. E era um sopro, jamais uma mancheia, que era desperdício que ninguém podia acatar. Vê lá bem como eram as vidas naquela época!


Fome, fome não havia, ao contrário, que os campos sempre aqui foram muito férteis, nunca foi difícil alimentar toda a gente. Problemas desses tinham-nos os que chegavam de fora, às vezes muito velhos, demais até para angariarem sustento. Houve sempre vários a escolherem vir cá morrer, decerto porque a abastança lhes prometia finarem-se mais em paz e a contento. Para estes havia também, desde que me conheço, o hábito de lhes garantir o mínimo, um barraco e o sustento até que a morte os levou. O derradeiro que ficou daqueles tempos foi o ti'Álvaro Cambra, não te lembras? Aquele pardieiro de madeira que ainda se vê, decrépito, no meio dos matos da Lomba, agora a cair aos bocados, é o que resta do que lhe foi montado quando aí apareceu. Ele dormia por baixo do penhasco, acima da linha de água, mesmo junto à curva da estrada que trepa lá para a colina. Quando o povo deu por isso, informou o P. Abel para fazer um apelo na missa e então os vizinhos mobilizaram-se, arranjaram materiais de desperdício ou de reserva e, com meia dúzia de ferramentas, num fim-de-semana montaram-lhe o abrigo improvisado e, enquanto ele vinha à esmola, todos os dias o alimentaram, até que se finou. Foi muito rápido, ainda chegámos a mandar vir o médico mas já era tarde, apenas serviu para confirmar a morte. Aqui lhe fizemos enterro cristão, na vida e na morte ficou connosco, já que nos havia escolhido para companhia final. Com estes é que às vezes houve fome, enquanto não demos por isso e até que a vizinhança organizasse o suplemento de apoio de que havia mister em cada caso. Tudo isto, porém, era muito raro, que a maior parte dos migrantes veio para trabalhar e arrendaram-se-lhes as terras que iam ficando devolutas ou mais abandonadas, à medida que os antigos aqui radicados iam arranjando trabalho nas fábricas de S. João ou iam criando as próprias empresas de base familiar. Foi nesta fase de mudança das nossas vidas que os eventos ocorreram.


Eu e a Belita tínhamo-nos vestido de vareiras, eu de mais velha, a avó sardinheira, ela de mais nova, a fazer de varina casadoira, e andávamos a passear estrada acima, estrada abaixo, pela Rua da Toca, entre outros grupos de vizinhos ou de fora, cada qual com os ditos e ademanes da fantasia tosca que adoptara. Era o divertimento da juventude. Os mais velhos, os nossos pais e os dos outros, esses ficavam à janela ou nas varandas, a rir-se e a comentar, quando acabaram as freimas de casa ou dos campos, ou quando vieram de tratar dos gados e mais criação. Os miúdos ora corriam por entre nós, ora andavam com os maiores. No teu caso, os pais não te deixaram vir à rua mas autorizaram os vizinhos a virem brincar para o nosso quinteiro e para a eira. Lembro-me bem de que refilaste mas a alternativa mostrou-se tão interessante que nem reparaste mais nisto, a brincar com o Nel e o Mingos aos tiros com as bisnagas novas que tínhamos tido de presente.


Havia vários grupos de rapazes vestidos de raparigas, houve sempre, todos os anos, não sei porque lhes dá para aquilo. Por nós, o gozo era adivinhar quem eram os mascarados. Os vizinhos, os da Capela, da Farrapa, do Fundo Lugar, do Alto dos Foguetes, dos Tanques, a esses a gente descobria-os logo pela voz, daí que a maior parte tentava não abrir o bico. Todos tratavam de dar-lhes a volta para eles se distraírem, dizerem qualquer coisa inadvertida e pronto, já os tínhamos apanhado. A meio da tarde o tempo piorou, veio uma chuvada gelada que nos correu a todos para dentro de casa. Nós abrigámo-nos por baixo da varanda, a rir da correria desenfreada que tivemos de fazer com os mais, quando a bátega nos caiu em cima de improviso, apanhando-nos a todos desprevenidos.


Isso é o ponto de que me lembro, claro, tudo por causa do Mingos, aquele taradinho sexual já nessa idade minúscula. Quando nos abrigámos por baixo do patim da carga de água que nos apanhou emboscados entre o alpendre e o canastro, ele ficou especado para vós, com cara de pasmo: “Ena, aquelas é que são as tuas irmãs?! Ih, c'um carago, que borrachos!” Estava tão farto de vos ver como eu, mas não aperaltadas com os preparos carnavalescos. Só então reparei como ambas vos tínheis transfigurado em beldades raras, para mim deveras celestiais, parecíeis mesmo duas imagens dos andores das festas de S. Pedro, com aquelas caras pintadas, os olhos e os lábios a sobressaírem, os cabelos engalanados. Só me não peguei com o Mingos porque o espanto dele era genuíno, tanto quanto o meu perante a novidade. Aí senti que era mesmo um desperdício ficarem ambas ali tolhidas pelo saraiveiro que caiu, com o granizo a saltitar à nossa volta, até cobrir de branco o monte de tojo acamado a meio do quinteiro. Duas mascaradas tão espectaculares era para se pavonearem pela aldeia toda, com um grande sol pela rua fora, a abrir as bocas de toda a gente que nem a do Mingos. E, claro, eu deveria ir ao lado a saborear aquele espanto que todos nos deveriam tributar. Ficar em casa na tarde de entrudo era mesmo uma sensaboria, os grandes nunca entendiam o que era importante. Qual perigoso nem meio perigoso! Era tão perigoso para os pequenos como eu, como deveria ser para as grandes como elas! Ainda por cima lindas como se puseram, até podiam ser roubadas por algum maior que tivesse muita força e então como era? Nem sequer eu e os meus amigos poderíamos defendê-las nem nada. E depois não podia compreender-se mesmo porque é que os pais e os avós se limitavam a ficar a ver. Ou bem que havia perigo e deviam andar a vigiar a rua, ou não havia nada e era tudo conversa fiada para nos obrigar, aos miúdos, a não entrar na festa. Não era direito e quem mais perdia eram elas, as minhas irmãs ali transfiguradas em imagens de andores, lindas como duas santas, abrigadas debaixo da varanda, um bocado transidas de frio e impacientes, que lá se lhes havia estragado a festa inteira, não fora o sol furar aquelas nuvens pretas e derreter aquela neve, tornando novamente transitáveis as ruas cobertas doravante dum intérmino lamaçal.


E foi enquanto cogitava nestas considerações, dividido entre o desejo de apanhar uma mancheia de granizo para atirar à cara do Mingos (ali especado como um parvo, a olhar para vós ambas, que nem a saraivada o logrou distrair, grande burro!) e a vontade de saltar para o meio da chuva e fjiii, dar uma esguichadela da bisnaga nos olhos do Nel, que o sol repentinamente voltou, violento e quente, entre duas nuvens grossas como algodão em rama encharcado no terriço. Pulámos aos gritos para o meio do quinteiro, mal me dei conta já tinha um punhado de neve a gelar-me o pescoço, a escorrer-me pelas costas abaixo como uma faca de gelo, brrr! Partida do Mingos, que era tramado e mais dissimulado que um gato. Corri atrás dele a apertar-lhe a bisnaga para cima, ele a desviar-se aos ziguezagues como uma lebre acossada pelos galgos. O Nel ria-se, divertido, a comandar as operações de combate: “Agora não, que num le miscas, p'ràqui! P'rà frente, pula! Ah! Agora! Falhou... foi por um triz, força, já!”


E, quando novamente dei por mim, tudo estava consumado. Nem faço ideia de quanto tempo haverá decorrido, que a brincadeira encolhe as horas terrivelmente. Era à sonoite quando nos acercámos do portão, intrigados com tanto reboliço.


Esperámos, impacientes, o fim da saraivada, a tremer de frio e de raiva. Era um carnaval estragado, logo quando nos passeávamos na rua como modelos de alta costura ante um público vergado ao indesmentível: tínhamos dois belos disfarces e caracterizações a condizer. Os moços olhavam-nos invejosos e cobiçosos, das moças nem falar! Claro que eram sentimentos da verdura da juventude, hoje rio-me. Quando o granizo parou, a chuva tornou-se miudinha, mas a enxurrada ouvia-se pela estrada abaixo, ia durar. Nós estávamos em pulgas, a ver se o tempo melhorava antes de a tarde cair, os olhos pregados no portão de ferro, a espreitar o piso da rua por entre o gradeamento, sempre a aguardar que o chão se tornasse novamente praticável, a fim de podermos correr lá para fora outra vez. Chegou o sol, como uma explosão. Nós bem queríamos saltar logo, mas os pais estavam à janela e já no-lo tinham proibido. Alguns mascarados tinham-se atrevido e passeavam-se no meio da enxurrada, aos saltos, aos gritos, a chapinhar-se, a enlamear-se. Ficar sujas também não queríamos, claro, de modo que, embora nos apetecesse, ali nos contínhamos, à custa dum enorme esforço e sacrifício e da vigilância principalmente da mãe que não estava pelos ajustes, depois da trabalheira que tivera a ajudar-nos naquela roupagem e caracterização toda. “Librem-se de estragar isso, oubiram? Senão, num contem mais comigo!” - zurzia ela lá de cima da varanda, a olhar-nos ali abrigadas, nervosas, impacientes.


O que não pensávamos era que os mais tinham estado sofrendo pelo mesmo que nós, pardais recolhidos cada qual em seu galho, a coberto de qualquer beiral de improviso. A desgraça foi esta.


Sempre essa leitura azeda, Tilde, desde que te conheço! Porquê? Um acidente foi o que ocorreu, agora uma desgraça! A desgraça fê-la o Tilós depois, muito depois. Ali foi um descontrolo, uma das atitudes destrambelhadas em que ele era useiro e vezeiro. Deu para o torto, mas qual, antes ou depois, não terá dado? De que me lembre, nenhuma. Ele nunca regulou muito bem, como o povo dizia. Os grandes, naquele dia, no meio da barafunda, gemiam todos “que desgraça!”, lembro-me bem. Foi por ouvirmos isto e vermos o ajuntamento frente ao nosso portão que parámos de brincar e nos acercámos infantilmente curiosos, tanto mais que ninguém nos queria deixar ver, que poderíamos ficar demasiado impressionados, de miúdos verdes demais que éramos. Eu nem reparei nos mais, mas cá por mim furei as barreiras e consegui ver tudo muito bem, ainda que só por instantes, logo afastado por múltiplas mãos e objurgatórias. “Vá, fora, fora!Isto num é p'rà canalha! Fujam daqui!” Claro que não me custou nada, agoniado que fiquei com o que vi, até porque não havia mais nada para descobrir. Agora tu, que foste a mais empreendedora, que puseste e dispuseste, com todo o sangue-frio, de toda a genta na situação para a resolver em três tempos, como é que continuas, tantos anos depois, a ler tudo pela vertente sombria? Pára-raios da desgraça, irmã, não são os eventos, és muito mais tu a vida inteira, nunca entendi porquê. Tu, aquela dentre nós que sempre foste a mais eficiente, a mais empreendedora, a das vitórias mais inequívocas e gratificantes em todas as pequenas guerrilhas do quotidiano. Aquela foi apenas uma a somar ao rosário interminável de inúmeras mais. E continuas, no meio do sucesso e da festa que animas e crias, a fixar-te e a sofrer apenas pela recusa e pelo desafio esmagador dos obstáculos. Tenho pena de ti, minha irmã heroína, que me mostraste a vida inteira a via das vitórias e que, quantas mais por tuas mãos nos vieram, mais te azedaste com os desaguisados de cotio, numa rebelião perpétua, num sofrimento sem fundamento nem horizonte de saída.


O Tilós tinha andado a tarde inteira numa bicicleta velha a correr as ruas todas para não lhe escapar nenhum mascarado, entretido a identificar cada qual, a meter-se com quem lhe dava troco, muito divertido e sem magoar nem aborrecer ninguém. Era uma réstea de sol num rapaz que, em quanto se metia, dava asneira. Naquele entrudo, não, ele andava alegre e respeitador de todos. Tinha já passado por nós bem uma dúzia de vezes, a subir e a descer a Rua da Toca, e, de cada uma, contava as novidades que encontrara nos outros lados que percorrera. Rematava sempre: “Mas cumo bós inda num bi ninhuma, é tudo farraparia, biero todas da Farrapa, num é? Num presto p'ra nada, bem cumparado.” E partia de novo em busca de mais, tinha corrido o Fundo Lugar, as Figueiras, as Escolas, Costa-Má e Samil... Correra todos os cantos e esquinas, eufórico mas equilibrado, por uma vez na vida. A meio até nos viera contar aquela do ti'Sacristão, lembras-te? A mulher fez um bolo para festejar. Durante o bocado em que ele foi buscar a comida para a vaca, pô-lo a arrefecer cá fora, perto da manjedoira. Estava então a desabafar, na taberna do Cides: “Enquanto vinha com o manado da erva, o raio da vaca comeu-me o bolo!”


Foi mesmo quando nos estávamos a rir de novo com esta situação que ouvimos de repente pum!, o enorme estoiro junto ao portão. Olhámos assustadas e eu ainda vi o que me pareceu um pé torto no ar. Percebi que era alguém e que algo de grave ocorrera. Corremos de imediato para lá, já os mais mascarados que tinham saído à estrada convergiam para ali também. Quando abri o portão, o Tilós estava irreconhecível, a cara coberta de sangue, estatelado contra a parede, a bicicleta partida ao meio, com a roda da frente encolhida num oito. Não dava acordo de si, parecia morto, numa posição inacreditável, com uma perna por cima dum ombro e um braço todo enrodilhado nos ferros quebrados. Disse logo às pessoas que me ajudassem a estendê-lo, atirá-lo para fora daquela sucata. A princípio só o reconheci pela roda de trás da bicicleta que restara inteira. Mandei a Belita a correr a casa dele, a avisar para o virem buscar e a mãe do rapaz, coitada, veio de afogadilho, mais morta que viva, quase nem se segurava em pé. Aquela foi toda a vida uma desgraçada, um marido bêbado sempre à pancadaria e sai-lhe um filho como o Tilós! Há sinas que parecem excomungadas, coitada da pobre! Entretanto eu tinha-o desensarilhado dos restos da bicicleta e estendemo-lo na lama. A cara nem se via, acertara de frente na pedra do batente do portão, os dentes saltaram, rasgaram os beiços que descaíam lascados entre os buracões das gengivas e o nariz entrara esmagado pelo crânio dentro. Parecia um monstro, com o sangue a correr por todo o lado.


Não sei como, veio a si naquele entrementes, reconheceu-me e tentou sorrir. Aí chegou-me o bafo a vinho. Ele, afinal, esbarrara-se por vir a cair de bêbado, embora antes do saraiveiro estivesse completamente sóbrio. Fora abrigar-se para uma taberna e passara o tempo a emborcar copos atrás de copos. Ninguém sabia como se tinha equilibrado sequer na bicicleta até ali, tão perdido estava de embriaguês. Tentou justificar-se quando me viu a cara furiosa por a bebedeira ter dado no que deu. “Como é que foste logo bater com toda a força na pedra da ombreira? Não sabias parar?” - resmungava eu. Ouviu-me e saiu-se com esta: “”Não, é que bia duas 'stradas à minha frente e num sabia por qual meter. Atão, olha, num me lembrei de parar e fui im frente. O pior é que aí num habia 'strada ninhuma e pronto, 'sbarrei-me.”


No meio da gravidade da situação ainda deu para tudo desatar a rir. A mãe dele chegou quando eu trazia um punhado de água da regueira por onde ela ainda corria, grossa da chuvada. Lavei-lhe um bocado o sangue, mas aquilo era tanto e tão feio que berrei às pessoas que o levantassem com jeito e o levassem a casa e bem depressa. Ele já estava outra vez sem sentidos. A mãe seguia o cortejo torcendo as mãos, a chorar convulsa, descontrolada e trôpega como se lhe tivessem dado uma paulada na cabeça. Foi quando reparei nela que pensei que naquela família ninguém devia haver capaz de fazer qualquer curativo ou de tomar qualquer outra medida que fosse precisa. Estava já pronta para ir lá, quando pela primeira vez reparei no nosso pai. Ele, afinal, é que tinha organizado o grupo que transportava o Tilós em braços pela rua abaixo.


Mandou-nos entrar imediatamente, a mim e à Belita, disse à mãe que estava ao portão que mantivesse todos dentro de casa, que o carnaval tinha acabado. Ele ia tratar de ver como o rapaz ficava, para tomar as decisões, se fosse preciso. Demorou mais duma hora. O Tilós tinha perdido os dentes da frente, partira a cana do nariz e rasgara a boca e a cara em vários pontos, mas estava lúcido, a sangreira parara, tinha a cabeça toda amarrada e agora ficaria de cama por uns dias, até que as inflamações que adviriam começassem a diminuir. Naquele tempo ninguém pensara em hospital nem em médico. Só os remédios caseiros e pronto, não havia ali mal de maior a justificar medidas de excepção. Era assim que ainda se entendiam e resolviam problemas destes em tal época.


O Tilós ficou com o rosto desfigurado a partir de então, irrecuperavelmente. O pior foi que nunca mais deixou de se embebedar daí para a frente, exactamente como o pai, e ficou cada vez mais violento. Foi lá para outubro, novembro, logo depois do fim das colheitas, que ocorreu o episódio fatal. Era uma coisa curiosa como ele tinha um vinho mau mas nunca lhe deu para fazer tropelias em casa, nem à mãe, coitada, que já as aguentava e com muita nódoa negra do pai, nem a este, que até seria repor um pouco a equidade, bem o merecia! Não. Antes do desastre, quando lhe davam os repentes, malhava em quem calhava, até nas irmãs. Doravante, não. O Tilós sempre se virou contra os de fora e nem sequer os mais próximos nem os vizinhos. Ia-se embebedar longe, para a Gandra, Samil... Daquela vez foi lá para as Escolas. O azar é que tinha levado a faca de matar porcos. Quando começou ali a arrazoar com seus botões de ébrio varrido, sem mais tir-te nem guar-te, enquanto o diabo esfrega um olho saca do facalhão, vira-se para a mesa de trás onde estavam na cavaqueira mais descansada o ti'Jaquim da Caseira, o ti'Manel Lã Branca e o ti'António do Sardinha e zás! Espetou três facadas nas costas do primeiro. Nem teve tempo de dizer um ai: tombou para a frente tão sereno que os parceiros cuidaram que era um ataque que estava a ter. Só perceberam do que se tratava quando viram o cabo espetado abaixo do ombro, que o Tilós enterrou a faca e deixou-a lá ficar, vindo-se embora aos tropeções, completamente incônscio do que acabara de fazer. Foi uma corrida ao hospital, desta vez, com o homem entre a vida e a morte, ficou muito mal uns dias, mas felizmente não tinha, por milagre, sido atingido nenhum órgão vital, apesar de as facadas terem bem dois palmos de comprido. Demorou semanas a cura por causa do tamanho, mas acabou numa recuperação completa.


A Guarda é que passou à caça do Tilós. Toda a gente exigia, evidentemente. Não pode andar por aí à solta um indivíduo daquele calibre. Nas primeiras semanas ele fugia para os campos e os matos, por aqui à volta. O nosso pai deu pelo desgraçado uma série de vezes. Conversaram muito ele e a mãe acerca do que deveriam fazer. É que aqui por Vila Chã todos queriam que o Tilós fosse denunciado e lhe montassem uma espera para ser preso definitivamente. Os pais não vos deixaram ouvir estas trocas de ideias, foi um período em que tu e a Belita tinham de ir para a sala porque eles queriam analisar sozinhos um problema que não era conversa para os pequenos, lembras-te? A mim, ora deixaram, ora não, como era da idade do Tilós... O que eu entendi é que o pai iria explicar ao rapaz que aquilo não tinha saída, o melhor era entregar-se ou alguém acabaria por baleá-lo no meio dum tojal qualquer, como os da família da vítima ameaçavam à boca cheia por todo o lado. Se não se quisesse entregar à Guarda, então o melhor era desaparecer de vez daqui e tratar de arrumar vida noutra terra, entre outras gentes em que fosse por inteiro desconhecido.


Foi o que ocorreu, uns dias depois daquilo tudo. Deixou de haver mais sinal dele e até hoje. Poucos, bem poucos agora se lembrarão do Tilós, ninguém sabe ao menos se é vivo ou morto. Apagou o rasto por inteiro, desde então. Nem resposta nem mandado. O pai morreu de cirrose, ainda homem novo, aí pelos quarenta, a mãe sobreviveu uns anos, mas os desgostos da vida não a alimentam, antes a canceram por dentro lentamente. Nunca mais foi gente e acabou um dia por morrer também, num canto ignorado, humilhada como toda a vida foi. Destinos!


Pois, Tilde, é verdade, e assim nos ia findando lentamente a infância, a minha pelo menos, que tu já eras uma rapariga a desafiar os namoros, naqueles anos. A mim deixou-me apenas um travo amargo e doce de saudade. Em ti ficou também daqui uma semente de revolta, a maior talvez. Pergunto-me hoje se não haveria uma adoração clandestina, inconfessada do Tilós por ti e que tu secretamente alimentavas ou, no mínimo, saboreavas, ingénua porventura, inconscientemente. A perda do teu adorador ignoto, perda para ti, perda dele próprio, não terá sido a pedra encravada no teu sapato da vida que nunca mais deixou de te doer e sempre te mantém presente o amargor de todas as coisas, por mais luminosas que para todos os demais se antolhem? Ah, Tilde, minha heroína de infância, como eu adoraria desencravar essa dolorosa areia-mistério que de sempre te vem bloqueando a roda dos dias, anos e anos a fio!






22 – À Espera das Feirantes


- Olhem, filhos, a bossa mãe, agora que a guerra já findou há tempos mas nos deixou pobres e cum dificuldade de lebantar cabeça, cuida que o milhor é tornar-se feirante por uns meses, já que é por aqui o que tá a dar mais. Bai bender pano, im casa e nas feiras, cum outras mais, cá da freguesia, òs sábados, lebadas no camião do ti'Chico. Por mim, num ia, que a bida no campo e o trato do gado já chega p'ra dar cabo duma pessoa, inda p'ra mais mãe de filhos tão piquenos, que inda dão tantos cuidados. Mas bossa mãe quer, uma manhã por semana num le parece demais, bamos fazer a isperiência. Talbez ajude a milhorar o passadio, num é? Agora, reparem. Todos temos de ajudar p'ra num a sobrecarregar demais, senão inda bai ser pior, qu'uma pessoa, se num aguentar, adoece e, q'ando a saúde acaba, acaba tudo. Bamos ter, pelo menos, de dar conta do trabalho todo que houber nos sábados de manhã, p'ra q'ando a bossa mãe chigar num ter que fazer tamém im casa e nos campos, co'o gado, co'as roupas, co'o jintar... Bamos tratar de dar conta disto, tamos intendidos?


- Ó Luís Abante, num teja tamém a meter medo òs piquenos, eu cá me arranjo, bai ber que num temos de nos preocupar. Eu dou conta do recado cumo as coisas tão. É só preciso que a Tilde ajude co'as bacas, no comer do mei'-dia. Ela já fez isso tantas bezes que num tem dificuldade. Que tamém era só atrasar um nico e logo eu chego e posso tratar cunsigo do gado, bai ber que num há problema ninhum. Eu auguento, num há doença que em mim bula. Sou forte. Sempre fui à luta, Agora bou tamém, atão!



Sábado.


- A gente num bai comer, Belita. Hoje num comemos, a Tilde é que disse.


- Num percebes nada, a gente come q'ando a mãe chigar. A gente só espera o camião e òpois comemos todos. Bai ser assim inq'anto ela fizer feiras, percebeste?


- A Tilde é que disse e eu quero comer.


- É, é, mas q'ando a mãe chigar esqueces logo e òpois, p'ra comeres, inda bai ter de ralhar cuntigo.


- Num bai nada! Se eu pudesse comer, ias ber cumo eu comia tudo, tudo!


- O jintar tá pronto, Tilde? Atão bamos prò quintal todos, ber quem é o primeiro a inxergar o camião do ti'Chico onde bem a bossa mãe. Bá, tudo à minha frente!


- Ó pai, donde é que ele bem?


- De Samil, Tito, bê-se mal ele chegue a Costa-Má.


- Atão bou ser o primeiro.


- Bou ser eu!


- Deixa-o, Belita, nós semos as mais belhas, deixa-o, sabe-se lá quem bai ser o primeiro!


- Pronto, cá tamos todos assentados na relba, à fresquinha, co'a bida de casa toda arrumada. Assim é que tá bem, agora é só 'sperar pela chigada da bossa mãe. Bamos a ber se tudo les correu bem lá pela feira e se chego todas co'o ti'Chico.


- Olha o camião!


- Num é aquele. O dele é mais...


- É, é. Eu conheço-o bem, mesmo daqui à distância. Im menos de cinco minutos a bossa mãe tá im casa. Bamos p'ra dentro q'ando passarem o Ribeirinho. Eu bou ajudá-la a acartar os fardos ao largo da Capela. Tu, Tilde, tomas conta dos teus irmãos. Quero tudo im orde q'ando a gente chigar, cumbinado?


Foi assim durante muitos sábados, durante muitos meses. Até que um dia fui à feira, numa experiência a meio da semana. Um pano grosseiro estendido no meio do chão à borda do passeio com as mais vendedoras alinhadas lado a lado no mesmo preparo, As peças de tecido enrolado num montinho, num dos lados, ao meio três ou quatro mais vistosas e baratas, abertas a fazer de chamariz. Minha mãe estava com dores de dentes, gemia que bem mais fácil lhe seria parir meia dúzia de cachopos que semelhante danação. Eu encostei-me ao muro do passeio, confuso no meio da baralhada de gente que ia e vinha, às ondas, parava ocasionalmente diante da exposição das vendedeiras, palpava uma ou outra ponta de tecido. Breve atingi o limiar do aborrecimento, sentei-me no chão e aprestei-me para deitar-me no pano, ao lado de minha mãe que se apoiara sobre os calcanhares. Eis senão quando, inesperada, rebenta ali uma cliente desconhecida:


- Ah! Mas que chita mais bonita! Que flores, que cor! - E apertava na mão o tecido, virava-o e revirava-o. - A quanto é que me faz o metro? Há que tempos ando à procura disto sem nunca o ter encontrado! Era mesmo o que eu queria! A quanto é o metro?


- A dois mil reis, freguesa, e bai bem serbida, que é uma chita cumo num há outra – acudiu minha mãe, pressurosa.


- Muito bem, meça-me lá seis metros então, sim? Seis.


Minha mãe apressou-se,incrédula mas atenciosa. Apenas confirmou, antes de cortar a peça.


- É assim? Corto por aqui? Ponho-le mais um bocado, num bá haber uma falta...


- Ah, muito obrigada, muito obrigada. Corte, corte, se faz favor!


Minha mãe cortou, embrulhou numa folha de papel, estendeu o corte à cliente, expectante. A senhora puxou do porta-moedas e contou os doze escudos certos que colocou na mão estendida que ainda nem acreditava em tal. Eu não estava a compreender nada. Só quando a freguesa desapareceu de vez é que a nossa vizinha da direita comentou, numa cara de espanto de quem havia perdido a fala há uns bons minutos:


- Ó mulher, saiu-te a sorte grande! Já ganhaste o dia! E duma assentada só!


- Que foi? Que foi? - acudiram as mais que não tinham assistido.


- Bendeu seis metros de chita a dois mil reis cada! A doze tostões já todas fazemos muito ganho, muito. Uma freguesa assim baleu por um mês inteiro. Isto é que foi ter sorte! Benza-te Deus, parceira!


A alegria foi tanta entre toda a companhia que de repente a minha mãe reparou que lhe tinham passado as dores de dentes. Instantaneamente. Não sentia nada. Foi uma galhofa.


- Num há milhor remédio – ria a ti'Micas, com os incisivos encavalitados – do que a bida a correr-nos bem!


Tudo o mais naquela feira embaciou perante esta fortuna inesperada de doze mil reis. De tal euforia o que eu compreendia é que, às vezes, em casa comprávamos dois carapaus por cinco tostões e dava para almoçarmos todos, que o mais vinha do quintal e das tulhas onde guardávamos o samiguel.



Decénios depois.


- Ao fim destes anos o que eu não entendo é como a mãe, uma analfabeta de facto, foi capaz de se meter e de singrar numa actividade daquelas, com tantas contas, com fornecedores, com clientes, nas feiras e em casa...


- Lembra-te de que as contas e os balanços eram com o pai e ele tinha estudado. Parecia um aldeão martarroano mas era por escolha, para integrar-se mesmo entre o povo. Já o nosso avô paterno lia e escrevia quando ainda ninguém mais aqui o dominava, já vinha de trás.


- Mas a mãe, não. Como é que conseguiria aquele à-vontade? Para tratar com fornecedores e clientes, claro que não tinha dificuldade, como quenquer que fale pelos cotovelos e era o caso dela. O que acho mais estranho é como também, sem o pai, ela dava conta do recado, a calcular ganhos e perdas, a planear aonde ia e o que abandonava para trás, mesmo a medir vantagens e desvantagens, que modelo seguir e quais rejeitar, independentemente de registos. Ela fazia de facto os balanços de cabeça e, da mesma maneira, os projectos dos investimentos e das reconversões, o pai é que os transpunha depois por escrito. Ela criava fórmulas novas. O bizarro, o invulgar, de facto, reside aqui. Nunca reparaste em tal pormenor? Nisto é que acho que os dados não condizem.


- É. Uma analfabeta deveria comprar, vender, negociar, amealhar e, ao fim, trazer a saca dos trocos presa à cintura para cima da mesa, abri-la e conferir. Mas eu também vi a mãe fazer desta maneira, aos sábados ao serão, com o pai, muitas vezes.


- E o resto, não viste?


- Claro, também.


- Aí é que bate o ponto. Donde lhe veio aquela capacidade? Aquilo é mais que pensamento concreto, já não é operar logicamente com dados presentes nem evocados. É já trabalhar com modelos, teorias, com árvores de conceitos interligados. Mais: é criar, recriar, reformular quadros conceptuais, à margem de qualquer experiência concreta, ainda por cima para condicionar e encaminhar a vida futura, o que irá acontecer. Consegues entender isto numa adulta analfabeta?


- É complicado. Teoricamente não deveria ser. Ainda por cima o pensamento discursivo, dedutivo, encadeado com razões lógicas, depende primordialmente da leitura. A descoberta da escrita é que criou o pensamento reflexivo, com as cadeias de raciocínios. Ora, a nossa mãe nunca na vida leu nada nem, que nós saibamos, ninguém lhe leu a ela, a não ser aquelas pequenas coisas esporádicas, um jornal de acaso, o Borda d'Água e cartas que às vezes o correio trazia. Isto não chega, tens razão. Há-de haver outra fonte.


- Nas tuas ciências da Educação, Belita, não há pistas? Ou na experiência como investigadora? Gostava de entender como pôde ocorrer um fenómeno daqueles.


- Olha, Tito, lá para trás há mesmo mistérios e ponto final. Nunca reparaste no trato esquisito que havia entre os nossos pais? Eram só cerimónias, sempre. Jamais se tutearam, era sempre você. Houve ali muita coisa que ninguém desvendará, creio bem.


- Vês mesmo assim? Por mim, acredito que tudo tem explicação, podem-nos é faltar dados bastantes, ou então o génio para compreendermos o que nos estiver à vista. Se calhar andamos é cegos, Belita. Mas é verdade que isto confirma e também eu constato que nos escapa ali alguma coisa. E sei lá bem se alguma vez o apanharemos!


- Quanto à vossa dúvida eu creio que descobri algumas pistas que vós não sabeis. Vocês podem-me vir ali à cozinha para enfeitarmos os bolos? Tu, Tito, vai-me ao frigorífico e traz-me as natas. Olha, Belita, apaga-me o fogão. Deita uma olhada ao cozido. Depois vem cá para desenformarmos isto, a ver se sai direito.


- Mas que é que tu sabes, Tilde, que a gente não conheça? És tu que doravante vais incarnar a área do mistério? Eu cá sou franqueza, franquezinha, tudo transparente. Próprio do homem. A mulher é que é arrevesada. Entraste nessa?


- Que disparate!


- Ora, Tilde, estou a brincar! Mas conta lá de tua justiça.


- É isto. Vocês lembram-se da Sôra Pessôra? Eu quase que lhe assisti à morte, por mero acaso. Estive lá de manhã, ia dar um recado à Nanda, ela ouviu e chamou-me. Já estava acamada há tempos e finou-se naquele dia, ao crepúsculo. Foram mesmo as melhoras da morte. Falou ali um bom pedaço acerca de nós e deles, dos nossos pais que ela conhecera a vida inteira. Na ideia que tinha, o pai evoluíra mentalmente para além do comum, era uma cabeça superior porque o nosso avô, o ti'Zé Levante, o levara a estudar e seguira à risca as normas do Snr. P. Abel para desenvolvver a capacidade de raciocinar para além de casos e acontecimentos, a partir de modelos e concepções, com o pensamento sempre encadeado, a tirar conclusões de conclusões.


- Para o pai, compreende-se, aí devia ter sido mesmo assim. Agora a mãe... que disse ela da mãe?


- Não vais acreditar: diz que foi por osmose.


- Osmose?! Essa é boa!


- Osmose como?! É capaz de ser o que eu penso, Tito, deixa ouvir.


- A Sôra Pessôra estava muito acabada, não dava para grandes perguntas. Mas ela repetiu osmose um ror de vezes. A propósito disso e doutras coisas. Para ela a mãe foi uma privilegiada porque recebia tudo o que lhe faltava a partir do pai.


- Ele ensinava-lhe, era? Nunca dei por isso, palavra de honra!


- Não é por aí, Tito, pois não, Tilde?


- Pela conversa dela, não. Olha a torta, segura desse lado para eu enrolar, a ver se não parte agora. Tito, pega na outra ponta, vá, com jeito. Assim...


- Pronto. Está apetitosa, nham! Que quantidade de bolos, parece um casamento! Para meia dúzia de miúdos e graúdos não era preciso um festival destes, ó Tilde. Não sei que te dá nestas ocasiões que perdes a noção das medidas, não é?


- Festa é festa, rapaz! Ao menos uma vez na vida tira-se a barriga de misérias.


- Ora! A gente tira-a de misérias todos os dias, não é preciso haver uma festa, mal de nós!


- É isso, tu e a Belita já não sentiram as dificuldades, a vida já corria melhor quando ambos nasceram. Eu, não, eu ainda vivi muito o que era a fome, o que foram os apertos do princípio. Agora, olha, ficou-me para enquanto durar. Nos dias grandes é que há fartura, nos mais, não, apertamos o cinto. Sabem que isto tira a fome? É verdade, apertar a barriga. Aprendi-o em pequena e nunca mais me há-de esquecer, oxalá é que não seja preciso doravante, que haja sempre abastança.


- Mas conta-me lá a da osmose, que estou curiosa, a ver se é o que eu penso.


- A Sôra Pessôra não explicou muito, diz que no conviver é que estava o ganho. É como os miúdos, bebem dos pais o leite e a cultura. Aquele vê-se, esta, não. O facto é que se transmite: aprendem a falar, a relacionar-se, a ajudar em casa, a tratar de si e dos irmãos mais novos e assim por diante. Não é preciso lições, vão convivendo, vão compartilhando, dão-se-lhes tarefas, pedimos ajudas e tudo corre então espontaneamente. Para ela a nossa mãe era capaz duma inteligência superior, de raciocinar com brilhantismo por recebê-lo todos os dias do pai, assim, informalmente. Ele funcionava a um certo nível, então ela ia-se ajustando e, a pouco e pouco, pronto, foi ficando habilitada, por sua vez.


- Exactamente, é isso! O filho do escolarizado escolariza-se melhor, o do analfabeto tende a não levantar a cabeça. É a peça que encaixa, não é uma questão de privilégios, nem castas, nem lutas de classes, é o mecanismo que as gera sem ninguém dar por ela, nem sequer os envolvidos. Isto opera sem o conhecimento nem o controlo de quenquer que seja. Osmose cultural, gosto da metáfora, é mesmo isso.


- Então o P. Abel tinha razão quando queria atrair o Tilós para a beira dele, Tilde, torná-lo como a sua sombra. Se resultou aqui em casa, também poderia ter resultado lá. É ou não é, Belita? Era mesmo a solução. Mas agora para o resto...?


- É isso, é isso, rigorosamente, Tito, é o que estás a pensar. Para o resto do País como vai ser? Só ofertando estas condições a todos os miúdos, não é? Como não há com quem, é impossível, certo?


- Claro, Belita. Isto é uma coisa que nos deixa entalados colectivamente. Então não é? Um país encostado à parede.


- Ora, Tito, a Belita está a mangar contigo. Não vês a escola? Aqui é que podemos dar a cada qual o suplemento que lhe faltar em casa, para ficar igual aos mais. É o que deveria ser, pelo menos. Os professores, em geral, raciocinam e argumentam com pensamento formal, sempre que é preciso, não é? Então podiam fazê-lo com os alunos, desde a puberdade.


- Pois, Tilde, dizes muito bem: podiam, deveria ser. O caso é esse. Deveria ser mas não é. Suspeito justamente que aqui é que a luta de classes aparece, Tito. Há muito quem não acolha com bons olhos esta equiparação de todos, temem o fim de privilégios: o compadrio, o tráfico de influências, os favores familiares com os apadrinhamentos, o clientelismo do poder, a formação de capelinhas de benefício mútuo podem ter os dias contados quando todos puderem mostrar o que valem em pé de igualdade, sem pernas cortadas à partida, como agora.


- Mas não é justamente o que está na lei do sistema escolar, Belita? Nada impede os professores de o fazerem. Ou não?


- Ora, Tito, és muito ingénuo! A Tilde sabe muito bem do que está falando, anda lá no meio. E eu vivo com a mão na massa, quando estou em trabalho de campo. É tão simples como isto: os professores não mudam com a lei. Mudarão porventura se for grandemente compensador para eles o prémio pela mudança. É que a vantagem da gratificação profissional mobiliza apenas aqueles que esperam muito gozo pessoal, muita realização da sala de aula. Nem dez por cento serão, como em qualquer outra actividade. Assim ficamos no ponto de partida: isto é uma gota de água, não dá para nada diluída no conjunto.


- Então não há mesmo saída, ficamos de facto encostados à parede. Somos um País diante do pelotão de fuzilamento. Estais-me a dar razão vós ambas.


- Damos enquanto não houver uma ou duas coisas, não é, Tilde? E as duas é que seria o ideal: a primeira é que o Estado premeie fortemente quantos se envolvam com este projecto nas escolas e o desempenhem eficazmente; a segunda é que as forças vivas das comunidades (associações culturais, movimentos, clubes...) assumam esta actividade como delas também e a passem a aplicar em cada lar, em cada rua, em cada bairro. No dia em que isto acontecer teremos um País outro, capaz de criar um mundo novo.


- Então é que já não seremos um povo de retardados mentais, como diria o P. Abel. Muito ria a Sôra Pessôra com isto, até naquela manhã, a tão poucas horas da morte! Mas é tudo utopia aqui da Belita, cá por mim não creio em nada. Quem é que vai mexer uma palha? Eu vejo bem com quem lido lá na escola: “Não te rales” , “não façaz ondas”, isto é que impera e o mais são histórias. É tudo uma corja!


- Ih, Tilde, aí vem o furacão!


- Não sejas parvo! Vá, Tito, traz do frigorífico a travessa do leite-creme. E os gelados do congelador. Vamos, rápido, tudo para a mesa! Belita, chama aí os miúdos do pátio!






23 – As Amêndoas do Compasso


- Eu xempre penxei que ele daba um bô padre, q'ando o bia, tlim ,tlim, tlim, a acumpanhar o cumpaxo co'a campainha, era intão um piquinito munto infejadinho. Mas que ingraxado co'aquela xobrepeliz!


- Eu, não. Chigado ao P. Abel num habia mais, que era cumo um padrinho para ele. Mas, oh, lá q'ant'ò resto, aquilo era pela festa. Quem é o miúdo que num gosta do Natal, da Páscoa, do intrudo? Num há nada cum'à canalha p'rà borga, mulher. Eu q'ando acumpanhei o cumpasso naquele tempo, olha, o ganapo era cum'òs mais. Até p'rò Snr. Abade aquilo daba uma boa maquia, moeda aqui, moeda acolá, uma nota nas casas grandes, e ò mais ele num era dos que ligabo muito a isso. Òdepois é que biero outros que tem sido uma pouca-bergonha. Mas boltando ò caso, o que o miúdo queria era ajuntar as amêndoas. Im todas as mesas tiraba uma mancheia p'rò bolso. Era isto, mais nada. Tamém, co'aquela idade, o que era de esperar?


- Mas tinha um ar, um jeitinho! Ai, marido, que aquilo daba mesmo um padre lindo! Mas pronto, crexeu e Dês num quis. Agora lá que tinha de ter coijas de piqueno, claro, xi o era!...


- A alegria cum que, ò fim, òdepois do jintar, q'and'eu o deixaba à mãe, ele rebiraba os bolsitos a cuntar q'antas amêndoas arrecadara! Era o folar dele, dum inocente.


- Mas o Tito deixou de acumpanhar munto xedo. Já xe prebia que mais tarde nem abria a porta, cumo agora, num é? Isto nunca intendi. Foi xó magoado por o P. Abel ter ido imbora corrido, ò que dijem p'ràí as más línguas?


- Num sei, Guida. A mim, cá o que me pareceu foi que ele abriu os olhos q'ando começaro a bir aqueles ajudantes que num ero padres nem nada, lembras-te? Tamém a mim num me cheiraro bem, o que eles querio era só o dinheirinho do folar. As pessoas cum deboção e eles só a meter ò bolso, a meter ò bolso! Eu cá num achei nada bem. Q'ando bi as modas, só cuntinuei inq'anto eram co'o P. Abel, senão tamém tinhan birado as costas. Co'o Snr. Abade era diferente, que ele às bezes nem lebantaba a oferta, q'ando ero pobres e estabo a sofrer, ele é que daba, lebantaba numa mesa p'ra botar noutra. Bi-o muitas bezes e disso eu gostaba. Atão cuntinuei co'ele até ò fim. Q'ando foi imbora, pronto, tamém larguei. Berdade é que ninguém me cumbidou mas eu num ia mais, nem que eles o tibesse feito. Ora, eu cuido que co'o Tito foi o mesmo, ele era miúdo mas já esperto cumo um rato.


- Por falar nixo, Nino, conta-me lá bem. Tu biste a xério o P. Abel dar o folar im lugar de o lebantar? Lembras-te aonde? É que eu nunca te tinha òbido uma coija axim e nunca acreditei nos ditos do pobo. Inda num me tinhas cuntado. Era mesmo?!


- Ora atão, mulher! Q'antas bezes! Que me alembre, olha, im casa da ti'Micas, q'ando o home ficou doente aquele tempão inhantes de morrer. Ah! E no Paulino, co'aquela filharada toda, a mulher p'ra lá cum olhado, ali daba-le sempre uma mancheia, sempre, im todos os anos que lá fui co'ele. Mas habia mais, cunforme as ocasiões e as bidas. Co'o P. Abel era assim mesmo, isso eu bi.


- O Tito era piqueno, num debia dar fé dixo. Cuidas que deu?


- Se deu! Olha, Guida, uma bez reparei eu. Taba ele à campainha lá p'ràs Debesas, achigou-se dum dos nobos que nem ero padres nem nada aquele desinfeliz do Lixandre, a pedinchar que le fosse lá a casa por mor dos miúdos que esperabo o cumpasso. E o outro, orelhas moucas, era cumo se nem siquer o òbisse. Os da súcia dele comentabo que dali num binha nada, num io perder tempo. Andabo a tirar o folar, onde o num habia num tinho nada que fazer. E cuntinuaro adiante cumo se aquela ninhada de miúdos nem existisse. Ora, o Tito òbiu tudo, que até parou a campainha, assim cumo meio cismado. Nesta reparei, agora imagina, mulher, q'antas mais ele num debe ter testemunhado, que eu num andaba naquela comandita, mas na do P. Abel. Ora, uma coisa daquelas podia-se lá admitir! Os miúdos reparo sempre im mais do que à gente nos parece.


- Intão xerá dixo. Agora num abre a porta e, xe tá co'a família, recuja aparexer, mesmo que eles abro. Lá ele num cumparexe. Cuidas que deixou de xer crente? É uma coija que me doi, xabes?


- Já uma bez tibe à fala co'ele, que gosta de me òbir desde pequerrucho, inda q'àsi dos tempos do abô dele que Deus tenha. Num é isso, bê. Ele é um home crente, só que conhece mais que todos eles. Os padres só diz asneiras, é berdade, é tal e qual cumo ele me falou. Tás a ber, ele é doutor, num admira, que lá os padrecas, perdidos aqui pelos brejos, fico brutos cum'òs bichos, num é? Que é que eles hão-de saber cumparado co'ele que anda lá por esses mundos de sábios, nesses incontros e coisas que a gente nem pode cumprender?


- Mas abandonou tudo, num foi? Faz-me imprexão!


- Sabes o que me disse noutro dia? Num é quem diz “senhor, senhor” que entra nos céus, mas quem cumpre a palabra de Deus. Tás a ber? Assim, co'as letras todas do Ebangelho. A gente semos brutos, Guida, cumo é que podemos intender quem subiu muito p'ra riba? Aquilo são outras bidas, outras maneiras, pronto! Agora que num é nada do que tás p'ràí cuidando, num é de certeza, senão num ero estas as falas. Atão num bês?


- Dês ti oixa, home, Dês ti oixa. Que eu uma bez inté fiz promexa por ele, xe ele biexe a dar p'ra padre. Eu gostaba munto dele q'ando era aquele mindinho que parexia um anjo. A mãe dele brincaba comigo, que eu prexijaba era de ter um filho. Inda era xolteira e fui por muntos anos, num é? Mas q'ando o bia xentia aqui uma coija que era mesmo cumo xe foxe meu filho. Fiquei xempre c'um fraquinho por ele, que é que queres?


- Eu tamém, mulher. Acumpanhei-o quase desde o berço, uma bida grande. Im miúdo andaba sempre colado a mim q'ando eu ia à jorna p'rà família, p'ròs pais ou p'rò abô. Aquilo é que ele prèguntaba! Sempre quis saber tudo, tinha que dar im doutor, num é? E era cá uma cabeça, já im miúdo, que benza-o Deus! Às bezes a gente ficaba de boca aberta.




Não, não foram as amêndoas do compasso que passaram, até porque continuo a deliciar-me com elas. Foi o compasso que passou, foi a idade que passou. Mas foi principalmente uma terra e uma attitude dela que se esvaíram imperceptivelmente. Lembram-se da espera do Africano? O ti'Nino é que andou mais envolvido na preparação da festa. Quando correu a novidade, todos bacorejaram, incrédulos:


- Um Africano cumprou a Quinta de S. Bicente? Ih, pá, tem de ter muita bagalhoça! O milhor é a gente fazer-lhe uma festa de arromba, a ber se pinga tamém algum cá p'rà freguesia, hã?


Como foi a opinião dominante, os mais grados correram o risco e atiraram-se a organizar uma recepção de que não havia memória. Os cépticos trataram de fazer averiguações, não fora estarem a deitar dinheiro à rua. Quem comprou, onde fez fortuna, donde era, donde não, que referências tinham os vizinhos e familiares, por aí fora. Em conclusão: dinheiro tinha, com fartura nunca vista pelas bandas de S. Pedro. Agora se o largaria e como, isso era outra coisa. Oriundo do Couto, por lá jamais fizera nada, nem sequer entre os mais chegados. Torciam o nariz. O dele era dele, não esbanjava, portanto, era de tirar dali o sentido. Mas não, que outros chegaram à fala e a compromissos. Ele iria fazer recuperações na quinta, o que já era bom, mas lá atacar o arvoredo, por exemplo, nunca, gostava muito do bosquezinho. Até poderia ajardiná-la e abri-la ao gozo de todos, como um parque. Era o que ocorria à entrada de S. João, no Monte Pião, e em La Salette, em Oliveira. Porque não aqui em S. Pedro? Seria muito interessante. Depois, havia o responsável pela inscrição escolar dos filhos dele que jurava que o Africano logo se prontificara a pagar-lhe tudo, além do serviço prestado. Patrecia homem de palavra e bom pagador. Enfim, o caso é que todos gostavam tanto duma festa que ao menos esta não se perdia, nem que dela não viera maior proveito. As hipóteses foram bastantes para toda a gente se meter ao barulho e toca de engalanar o caminho inteiro, nem que viera cá um Rei ou o Presidente. O ti'Nino foi encarregado de contratar a banda de Santiago. A ti'Guida, dos tapetes de flores e dos festões. Mas era preciso botar faladura. Aqui os galos bateram-se. O ti'Zé do Toque achava que ele é que devia fazer o acolhimento, já que fora quem andara a tratar de inscrever os filhos do Africano no colégio de Oliveira.


- E tu sabes fazer um discurso? Contigo só se for aquele que o povo conta: “Meus senhores e minhas senhoras, só quero dizer duas palavras: tenho dito!” - aguilhoava o professor Tó Gaio, o filho mais velho da Sôra Pessôra que já lhe seguia as pegadas e se pelava por que lhe entregassem a tarefa distinta.


- Ó Tó, claro que eu num tenho estudos cumo tu, mas p'ra dezer duas palabras num é preciso estudo ninhum. Falar q'alquer um sabe, atão num é? Ora essa! - abespinhava-se o ti'Zé do Toque.


- Não, não. Quem debe botar faladura é o rigedor, que é uma òturidade. Isto é tudo p'rò bem da terra ò num é? Num pode haber melindres pessoais – faziam os mais.


- E que é que o rigedor sabe dezer q'ando abre a boca? É um papa-açorda, são só bacoradas, ora! - contrariavam outros, envergonhados na previsão de o discurso pôr a ridículo toda a freguesia. - Ele bai-se é rir da gente, uma quantidade de palermas pr'àqui a armar im 'spertos. Bai ser lindo!


O arranjo foi difícil, de negociação morosa. O ti'Zé do Toque ficou encarregado de receber o Africano nos Clipes, com a banda. Não havia aqui discurso, até porque o emigrante não sabia de nada ainda. O que ele tinha era de informá-lo, ali, de surpresa, acerca de todo o festival de recepção, enquanto a música tocava o hino de acolhimento. Depois seguiam ambos a pé, com o automóvel atrás para o resto da família, logo acolitado pela banda de Santiago que não pararia de tocar até à entrada da Quinta de S. Vicente. Ao portão, o tapete de flores que a ti'Guida comandara, no fazer, a todas as raparigas de Vila Chã. Entretanto, o ti'Nino andaria com o manado dos foguetes a acompanhar o cortejo, para indicar ao fogueteiro os lugares mais apropriados para lançar as quatro dúzias de morteiros e o resto, a verdadeira salva de honra, à falta de canhões ou de escopetas. À entrada, então o regedor leria o discurso de boas-vindas que o mestre-escola escreveria para o solene acto.


No dia aprazado estava tudo a postos, a freguesia parou o trabalho após o almoço, veio toda para a rua, domingueira nos trajos e nos modos, espalhando-se pelo itinerário programado, com a maior concentração nos dois extremos, os Clipes e o portão da quinta.

A banda alinhou à beira do mato, perfilada, os metais e as fardas a rebrilhar. O ti'Zé do Tooque ofegava, acorrendo a todo o lado, não fora algo imprevisto estragar o engodo para apanhar o grande peixe. “É às duas e meia, às duas e meia!” - informava ele, quisessem ou não ouvi-lo, pressuroso por fazer-se aceitar como quem mais privava com o magnate. Era a hora prevista da chegada que ele jurava que havia confirmado pessoalmente com o esperado Africano. Como não havia razões para duvidar, todos se aprestaram para aquela hora. Aí a vida parou, suspensa, à espera da revelação. Mas nada. Nem às duas e meia, nem às três, nem às quatro. Já todos se fartavam da espera.


- Ó Zé, acusa o Toque, acusa o Toque, ó Zé! - achincalhavam os mais velhos, gozando com o pretensiosismo cada vez mais desnorteado do responsável do ludíbrio.


- Num é nada, o home lá se atrasou no jintar, num é outra coisa, bocês bão ber – desculpava-se ele, minuto a minuto menos convincente, a suar de ansiedade.


- Balelas, ele num bem! - contrariavam-no, gozões.


- Bem, ele bir, bem – garantia o ti'Zé do Toque. - Só que às tantas tebe p'ràí um furo ou um choque... Se calhar hoube um desastre: atão ninguém pode garantir nada, num é?


- Bamos mas é imbora, que isto já deu o que tinha a dar – picavam-no outros e faziam menção de se pôr a caminho.


Os músicos, fartos e cansados, sentavam-se pelo cômoro do mato, um deles despira o casaco da farda, dobrara-o e dormia sereno a sesta, deitado no meio das urgueiras. Os mais, de instrumentos abandonados à berma do caminho, acamaradavam com a vizinhança, os casacos abertos, as camisas desabotoadas.


Iam as debandadas a meio, com os adultos quase todos retirados, enfadados com tão arrastada espera, muito depois das cinco da tarde, quando subitamente, do lado do Merouço alguém gritou, indistinto entre os tojos e as carquejas:


- Bem aí, é um carro branco! É o dele, é o dele! - e corria, aos saltos, por entre as urzes e as pedras, alvoroçado portador da salvação do mundo.


Todos se prepararam de afogadilho, os músicos a apertar rápidos os botões. Um deu tão grande pontapé no que se pusera a dormir que este saltou e ficou engasgado com o susto, a tossir, a tossir desalmadamente.


- Cumo é que aquele bai tocar, cumo? - o homem, de facto, segurava na mão um cornetim e estava vermelho do engasgamento. - Se calhar ingoliu uma mosca e agora ela num sai!


A risota misturava-se o nervosismo da expectativa. Será? Não será? Chega o carrão branco, descomunal. Porém, continua sempre, com um vago olhar intrigado do condutor. O ti'Zé do Toque desata aos gritos e a correr, desembestado, nem que tivesse recuperado os vinte anos, atrás do bólido. Obviamente, ninguém se lembrara de o mandar parar. Só junto à curva, quando os que lá tinham ficado adiante repararam no homem esbaforido, a esbracejar de chapéu aos acenos, no meio da poeirada, atrás do automóvel, é que compreenderam. A banda principiara a tocar mas, perante a cena disparatada, desafinou as notas todas e desatou tudo à gargalhada, a apontar o ti'Zé do Toque, a esganiçar-se atrás da fortuna que lhe fugia ali mesmo à frente do nariz. Foi tão contagioso que a risota se generalizou numa explosão. Aí, um dos da curva saltou à estrada e mandou parar. A travagem inopinada arrastou os pneus pela terra adiante e a nuvem de pó coalhou tudo, espessa e cintilante.


O ti'Zé do Toque continuava a corrida tresloucada, a guinchar, com a voz tolhida do pó, não reparou na brusca paragem da viatura, engolfa-se na nuvem e trás!, esborracha-se estrondosamente contra as traseiras do carro, estatelando-se na terra a todo o comprido. Então ninguém conseguiu mais conter as gargalhadas. Ao erguer-se, atarantado, o belo fato dele, passado a ferro com todo o esmero para a ocasião, estava mais enfarruscado que o dum carvoeiro, a cara agarrara o pó encardido no vidro retrovisor, parecia um preto mascarado para a dança da chuva. O chapéu, então, a peça que marcaria a nobreza e superioridade daquele encontro, rolara por baixo dos pneus e acabara pisado inocentemente pelo Africano, no momento em que saltara da porta para fora, completamente interdito por não compreender nada do que se estava a passar.


As gargalhadas eram tantas em redor quer o recém-vindo acalmou: o que quer que fora, não podia ser nada particularmente grave, já que deixava todo o mundo tão divertido.


Caminhou para a rectaguarda, a ver se entendia que diabo tinha ocorrido. Ao deparar com aquele indivíduo mascarrado da cabeça aos pés, a erguer-se atarantado debaixo do guarda-lamas de trás, nem reconheceu o ti'Zé do Toque. Temeu tê-lo atropelado, embora sem ver como, porque nada vira.


- Eu atropelei-o, foi? - perguntou, confuso.


- Não, não, eu é que o atropelei a si – retorquiu o outro, ainda baralhado.


- Homem, entre para o caarro, que eu levo-o ao hospital – propôs o Africano, com o automatismo de quem ainda duvidava se não teria culpas no caso.


- Não, não, eu é que tinha de levá-lo a si – continuava esforçado o ti'Zé.


- Levar-me ao hospital?! Para quê? - a confusão do emigrante aumentava.


- Não, não, o automóvel, a culpa foi minha... - o ti'Zé já não atinava na explicação.


- O automóvel para o hospital?! Não, não é lá que eles se tratam! - o africano desatou a rir da suposta ignorância crassa.


À volta, as gargalhadas que se haviam acalmado estalaram mais estridentes que nunca, ante os quiproquós do diálogo de loucos. Perante o sucesso, o Africano riu ainda mais gostosamente, crendo que gargalhavam todos da estupidez de alguém pretender levar uma viatura ao hospital. Nós, os jovens, chorávamos do cómico, as mãos apertadas na barriga. A Ção descontrolou-se tanto com as risadas que fugiu, o chichi a correr-lhe pelas pernas abaixo, a Guida ria e esmagava o ventre, queixando-se de que já não podia mais com coisa tão disparatada e o Nel, engasgado, gargalhava e vomitava encostado ao muro, completamente aflito e divertido.


Ninguém conseguiu ouvir como é que eles finalmente se entenderam. O caso é que o Africano e o ti'Zé do Toque acabaram por alinhar à frente do automóvel, a banda atrás, finalmente afinada. O emigrante, com aquele espantalho ao lado, coberto de poeira, com a cara traçada por regos de lama que o suor cavara no terriço que lhe aderira, parecia um general mostrando ao povo o inimigo vencido e humilhado. E quanto mais este se empertigava, para sobrepor o porte solene à vergonha, mais ridículo se tornava, pelo que, durante o trajecto inteiro, em lugar das palmas que se pretendiam, a adular a bolsa do ricaço, o que acompanhou o corso foram as risadas incontidas de quantos viam semelhante entrudo.


A recepção estrondosa morreu ali. O foguetório, em lugar de salva de honra, tomou o cariz de surriada. O regedor, a instâncias do aflito mestre-escola, atafulhou o discurso atabalhoadamente no bolso do jaquetão, limitando-se ambos a apresentar votos de boas-vindas e melhor estada à família inteira numa terra que não merecia o portento, de tão desataviada e pobre. Mas que dispusesse, sua excelência que dispusesse dos préstimos, que todos éramos hospitaleiros, mais ainda para gente de bem que nos escolhera, como ele fizera. A banda foi despedida à pressa, envergonhadamente. E à pressa cada qual se refugiou em casa, assarapantado com tão estrondoso fracasso.


E mais quem se deu pressa em fazer jus à disponibilidade oferecida foi o Africano: de imediato se pôs a utilizar toda a gente, como se foram seus criados. Acorreram, pressurosos e prestáveis, os mesmos que haviam montado o ridículo carnaval, os modos túmidos de cobiça. Fizeram-lhe recados, desempenharam-lhe trabalhos, cumpriram-lhe ordens. Gastaram de seu o que tinham e não tinham. Até as mensalidades do colégio dos filhos do magnate desembolsaram. Ao fim, ele despediu-se de novo para as colónias, cheio de sorrisos e de agradecimentos, qualquer dia havemos de fazer contas. Ficaram todos de boca aberta e de mãos a abanar. Nem para eles, nem para a aldeia: nada, nem um chavo.


Eis como, afinal, foi ele quem deu a S. Pedro a maior prenda: votou ao mais completo desprezo a loucura colectiva que da aldeia se apoderou quando se ignorou a ela própria, à criatividade e poder empreendedor de que era dotada, para andar a bajular um duvidoso salvador de fora, num sebastianismo serôdio e bacoco. Ali, porém, a freguesia perdeu de vez o rumo e doravante, como o País, sente interminável dificulddade em reencontrar-se. Então eu comecei a rumar para longe, à descoberta doutros mundos: os daqui andavam estreitando-se, como camisa de forças, para além do tolerável.






24 – O Avião das Manas Rolim


Quando eu comprencebi a primeira vez que algum dia levantarias voasas, éramos muito pequinocentes. Lembras-te de quando os Barreiros abriam os portões? Se o cavalo não estava bem preseguro, espinotava-se pela rua fora em galopope desenfernizado. A canalha fugirria esbandalhadamente, não fora o bicho escoicepisar algum. Mas tu, não.


Uma vez eu trepulei o cômoro do pinhal, frente ao teu quinteiro, e vi tudo. E ouvi:


- Num sais nem abres, òbiste? Espreitas só, se queres. E deixa lá o cabalo que inda acaba por esborrachar p'ràí algum – era a tua mãe, ansiosa com a ninharada, como sempre a conhecebi.


Quando o cavalo galopinava para os Clipes, eu faziarmava-te manigâncias com a cara e com os dedos, quando o animal catrapulava para o Largo da Capela, eu pisgueirava-me por entre o mato, não fora o bicho descobrrir-me e ferratacar-me. Tu, especado na fresta do portão, por trás dos ferros, observolhavas-nos, calmo e divertido. Mas eu via bem que te pelansiavas por saltapular as grades.


- Q'ando fores maior e num houber perigo... agora, não. Os mais ando lá fora, é co'eles, aqui im casa é cumo nós mandarmos. E num há mais cumbersa! - isto era o teu pai, quando tu insististe em sair, depois de me teres catrapiscado.


A cavalimária rua acima, rua abaixo e tu ali pregucificado às grades do portão, mortinho por galopinchar como ele. Não poderia durar a vida inteira, não é?


Concordo, concordo, eram outros tempos, outras normas. Aliás, frequentandávamos na terceira. Já então eras um esquecido com os guarda-chuvas e o resto. Ainda por cima eram quase uma rarinovidade, às vezes tamagrandões que cabia debaixo meia turma. Já não há mais daquilo. Foi o aninverno em que, ao fim, ora chovia, ora solava. E um dia de grossa chuveirada entraste com um na aula. À saída, como o sol era muito, para lá o largaste, ignorado, no canto da janela. Ainda recordas? Não?


Pois eu jamais o esquecignorei, que é deveras signifimportante de quanto mudam as terras e as gentes. Olha, a semana transacta fui ao tribunal de Oliveira. Chovia que Deus a dava! Como a carreira pára a uns cem metros do Palácio da Justiça, levei um guarda-chuva pequinúsculo, daqueles que desdobram pelo meio. Ficou a pingolinhar e eu encostei-o à ombreira da secretaria enquanto me dirigi ao balcão. Fui logo atendido, nem reparolhei se havia ali mais alguém. Num minuto vim-me embora, chego à porta e estava lá apenas a poçágua que escorrera para o chão. Do guarda-chuva, nem sinal. E repara, eu não me esqueci, apenas virandei costas. Como o mundo mudou!


O teu, lá na sala da escola, encostado no vão da janebela, semanas e semanas, que só pela Páscoa te lembracordaste que seria o que abandoneixaras, já te nem recordavas quando. Conferiste, confirmaste e pronto. Levaste-o, que ninguém o levafurtara entretanto, nem os da turma, nem os das outras que repartilhavam o mesmo espaço. Naquele tempo ainda era assim, ninguém bulia no de ninguém, a não ser combinadamente e com marca de origem, para não haver confusões nem pretensões. Agora é como te conto.


Lembras-te do teu primeiro brinquedo? Pois eu não o esqueçapaguei, que de algum modo também foi para mim iniciático: era um avião de massa, com as asas a brilhar, de prata, talqualmente os verdadeiros. Os anos que andaste com ele, como sonhámos todos com aquele brincorreio doutros mundos! Ali começaste a sair para muitos longes, foi nele mesmo: sonhaste voar as terras todas dos mapas. Tu é que nos promencontravas, lá dentro da aula, quando a Sôra Pessôra nos deixava a sós para ir cosconversar com as manas Rolim.


Ora vês? Pois claro, foram elas que to oferenderam, elas, as primeiras caídas entre nós, de muito longe provindas, para serem as novas professoras na freguesia, que a antiga já não aguentava tanta canalha, não era? Os teus pais é que as acolheram, lhes apresentacordaram a escola nova de então, onde poderiam morar como domicilar seu. Levaram-nas às lojas, mostraram-lhes as tabernas, apontaram-lhes os vizinhos. Então a vossa passou a ser para elas a casa-mãe, a casa-grande, e tu, a joia da família. É verdade. No regresso das primeiras férias, a maravilha: um avião, com hélices a girandar e tudo, até da cor verdadeira deles, tal como os mirolhávamos a recruzar os céus.


Tu não podes saber, mas olha, nós todos começámos contigo a embarcar nele desde então e ninguém mais travaparou. Eu confesso que decorei mapas e terras para depois não me perdemorrer algures, no vasto mundo ignoto. Quanto aos mais, ponho a mão no fogo, foi o mesmo. É verdade que, no geral, nos ficámos por aqui. Mas repara que estendespalhámos vergônteas por muito sítio, por todos os continentes. São negociantes que afreguesámos, são clientes que fidelizámos, são representações, agentes, caixeiros-viajantes... S. Pedro não é S. Pedro há muito tempo, que espalhou braços por tudo quanto é sítio e ninguém ainda repanalisou uma coisa destas. A terreola está espalhada pelo mundo inteiro, e o mundo inteiro está aqui. E os fios desta teia ata-os o tear de cá. Ninguém viu muito bem como isto foi. Para mim, principiou para todos nós naquele brincavião que nos trouxe novas doutro mundo. Que nos rasgabriu os olhos para quanto o mundo pode ser completamente outro.


Claro que sonhandávamos sempre no mesmo sítio, éramos miúdos. Mas depois não tinha mais de ser assim. Cada qual deu corpo ao sonho à própria maneira. Uns meteram pés ao camandarilho, outros, foram as palavras, outros, os produtos deles. Mas todos rasgomperam caminhos novos que deram pegadas ao projecto em que, crianças, abriram asas clandestinas, nas histórias partilhamadas em redor do avilhão de faz de conta. Como bois espicaçados, ao compasso lento e dormente das patorras pesadolentas, cá vamos, ao fim destes decénios, tão longe do ponto de partida que já ninguém o recorlembra. Eu, porém, não o ignoresqueci.


Lembras-te de alguma coisa que as manas Rolim te tenham ensinado, ou a alguém? Não. Eu também não. Se calhar, todos os mais que por lá passaram pelas aulas delas dirão praticamente o mesmo, aparte as lengalengas consabiadas dos livros (que não vinham delas, não é?). Pois. Agora, tenham-no elas adivinhado ou não, vê lá bem se alguém nos prendofertou alguma vez algo mais valioperoso do que aquele sonhavião aparentemente tão inócuo! Ao redor dele aprendemos todos a criar o porvir à medida do que fomos capazes de sonhimaginar.


Tu corraventuras-te por fora e por dentro. Palmilhas mundo pelos continentes, tens pegadas aventureiras por ti além. És o nosso bandeirante, já o eras de criandança. Recordo ainda a tua primeira ida à descoberta, com tua mãe. Usavas chancas, com planta de pau ferrado, cobertas de pelica envernizada preta, de cano até meia perna, atadas em ilhós de metal por um cordão grosso. Comprávamo-las nas feiras, normalmente, ou em lojas dos comerciantes de calçado. Tu também. Até que um dia, não. Forandaram à procura até Santiago, por veredas e matagais, tu e tua mãe. Não te recordas? Em demanda do Preste João, à medida infantil, até porque iam confirmar uma novinformação: ali é que haveria qualidade e variedade em conta. E atrás do rasto difuso se aventurembarcaram, de velas ao vento, pela Lomba acima, depois, lá no alto, rodaviraram para Ul, atravessaram o eucaliptal ermo, ao som do vento e perfumados de sol e abelhas, enviesaram às primeiras casas na contra-encosta e foram direitos ao primeiro informador de acaso.


- Onde é a oficina do ti'Fernando Lelo, o dos sapatos e chancas, que bende calçado pelas feiras? - e isto soava a “qual é o caminho das Índias?”


- Na rua à direita, depois da curba, bai-le ficar a umas três casas, bê logo.


Quando aportaram, nunca houveras visto tal fartura e comprofusão, nem nos estendais das feiras: era oficina, era armazém, era venda... e foi a boa recepção do Samorim de Santiago, teu primeiro Calecute. Tempos e tempos a ver, tempos e tempos a escolher a maçadoria interminável, tempos e tempos a experimentar, agora um direito, agora o outro. E, por fim, o barco atulhado das especiarias ignotas: umas chancas novas nos pés, de feitio estrabizarro, e teus primeiros sapatos, de sola e cabedal verdadeiros, coisa nunca vista em gente de miniatura. Só para as festas e domingos soalheiros, que de resto seria desperdício. Até faria mal à saúde: com pés frios constiparias logo e aí vinhandaria a bronquite a caminho.


Tão importante foi esta primeira exploração e descoberta infantil do grande mundo que, ao fim da tarde, deu para o torto. A Tilde não gostou do ar empertigalanado com que passeavas as chancas pelo corredor, feito Gama regressado das Índias. Desdenhou da atitude e deitou a língua de fora.


- Burra, burra, burra! - protestaste, furigemebundo.


- Burro és tu! Homessa, lá por ir a Santiago já tem o rei na barriga! Grande coisa!


- É grande, é. Num há por aqui daquilo, ora! Nem chancas assim. Tu é que és burra! - rezingaste, inconformirritado.


- É tudo igual, grande parbo! É mesmo estúpido de todo, o raio do miúdo! - impacientou-se a Tilde.


- Num é, não! - gemeste, já de lágrima apontada. - Burra, burra, burra!


Deu-te ela um safanão, retorquiste-lhe com uma chancada, em cheio, na canela da perna. A dor foi tão penetraguilhoante que ela te sovou de criar bicho. Tudo termidoeu numa enorme gritaria a que teus pais tiveram de acorrer, para lhe pôr termo.


A descoberta de novelhos mundos é sempre alegridolente, mesmo quando não é ao bofetão e à chancada. Agora, o curioso é que nunca mais paratropeçaste, daí em diante. O P. Abel diritaria que atingiste o derradeiro patandar, o de criar novos modelos, novos sabedoeres, novas teoridias.


A mim, aplicajusta-se a mim? Não me brincarrases, Tito, que nós de pequenos que nos damos. Comigo muitos o afirmam, que crinventei uma língua novova. Não, é apenas um brinquejogo interessante e sugestintencional, mais nada. Agora, contigo, é muito diferevidente. Quem encontrou o modelo de desenvolvimento duma pessoa, essa engenhaaria de gente desde o berço até à maturadultez?


Deixa-te de histórias! O P. Abel falou disso a vida integrinteira a todos e quem mais compreentendeu? E quem foi capaz de o explicadar a quem muito bem o pretender? Olha, nem eu nem os outros. Mas tu, sim. E mais: quem elabocriou a nova filosofia prospectiva que remetes para os alunestudantes foste tu próprio. E então uma nova fonte de energia não poluente e inesgotável? Só tu lá chegandaste. Mas o que me dá a vololta ao juízo é a dos discos voladores: descobrinventaste mesmo a forma de eles volandarem? É o máximo! Vamos construir um qualquer dia. A sério, nessa eu voalinho.


Nós, na criatividade formal, ficámo-nos pelo limipatamar, tu entraste mesmo inteiro. Claro, foi isso. O P. Abel pôs-te aquela aritmética racional na mão, eu lembro-me bem, aos onze anos, muito antes da idade certa, só com problemas, sem explicações nem soluções. Nós cansámo-nos logo. Tu, não. Não paratravaste senão quando os resolveste a todos, com os cálculos ali raciocinados, passo a passo, degrauperação a degrauperação. Lembras-te da vendedeira de ovos? “Veio o primeiro comprador,vendeu-lhe metade dos ovos mais meio ovo; veio o segundo, vendeu-lhe metade dos restantes mais meio ovo; veio o terceiro, vendeu-lhe metade do que ficou mais meio ovo e ei-la sem ovo nenhum.Quantos ovos levou para a praça?” As voltas que eu dei à cabeça por causa disto e nada! Desisti. Contigo demorou mas, ao fim duns dias, lá estava, tinhas a resposta ali distinvidente como água. Sem equações, sem incógnitas, sem fórmulas: raciocínio puro a entrar-nos pelos olhuzes dentro. Foi lindo!


O Snr. Abade colocava a desafiaposta e soltava-nos as asas, nós é que tínhamos de aprendoer a respondalar. Quem mais treinou, mais longe voandou. O truque dele era aceitacolher toda a resposta que fizesse sentilógica, mesmo fora das normas, como a tua à vendedeira de ovos, sem equanganações nem nada, só pensaumento limpo.


Com os livros foi o mesmo. Tu sempre leste mais que nós. Mas não era só lereler, era transpoler depois para tudo. Era reescreler como já tu escrevias então, era contaler e recontaler a quem o quisera ouvir e obrigar a história a dar cambalhovoltas cada vez mais inopinadas e inovadoras, era reinventaler tudo, de todos os modos possíveis.


Dois caminhos: ou perguntar pelos sabeeres ante os problemas, sem dar as respostas, antes nos acolhendo quantas tinham lógica, por mais desviandantes que foram dos saberes já constipuídos; ou aplicar os saberes segundo modos e formas ou nos campos que nos deram na veneta, por mais inesperinovados que se antolharam. O P. Abel estimeteu-nos por ambos, entre os quinze e os dezoito anos, sistematicamente, como um desafio permaneterno. Julgacri que era mais uma diverbrincadeira, uma animação cultural. E não era. Andava a cultivar a criatividade de novos modelos, formas, conceptualizações. Era uma cultursementeira por nós fora. Tu foste quem melhor terreno ofertilizou.


Um dia porás a lume a tua poesarte, o teu romance, a nova filosofandria, a engenharia de comportaumento, a nova fonte de energia alternativa, um disco voassonhador que trepará pelos céus dentro. Um dia todos visluentraremos na casa inteira em cujo ádito ficaparámos. Um dia, pela tua mão. Não acredolitas?






25 – O Milagre da Bronquite


Marquei-te para o mistério aos seis anos de idade, quando te libertei da morte já inevitável, consumada no encolher de ombros e no abanar de cabeça do Dr. Ilídio.


- Não há mais nada a fazer. O antibiótico não deu efeito, vamos pará-lo. Têm que se resignar. A bronquite desta vez vai levá-lo, é uma questão de horas.


E foi-se, definitivo. Sentiste, na agonia asfixiada, tua avó materna a sentar-se à borda do leito, o terço nos dedos, sem voz, a mão adejando lenta e leve, lenta e meiga por sobre teus cabelos ensopados, por sobre teus olhos semi-cerrados, quase cegos, por tuas faces congestionadas.


Perdeste a consciência e voltaste ao silêncio e ao esforço de aspirar um ar arredio, difícil, por uns brônquios estrangulados. E sempre a tua avó ali, a desfiar o murmúrio das contas, horas e horas, tardes e manhãs. Incansável e atenta.


E tu de olhos fechados, que só o abri-los era já uma sobrecarga a requerer mais ar, mais ar e ele tão escasso e trabalhoso de sugar, por aquele assobio apertado na garganta! Tu de olhos fechados, ora a dormir, ora acordado, mas sempre a resvalar no sonho dos dois lados. Quão mais vivo, fascinante, desoprimido este mundo onírico do que o real, reduzido a uma oração mal chorada, a uns dedos imponderáveis, quase asas! E quão mais reconfortante: sempre que embarcas num sonho, a correr por entre plantas e flores, abelhas e borboletas, não sentes o punho dolorido no peito esforçado, ficas livre para respirar quanto ar te apetecer.


Um dia, dois dias, três dias. E começaste a arribar, a respiração mais funda e liberta. E puseste-te a falar com tua avó, ao fim de várias semanas de crise fatal. Ela nem queria acreditar.


- Que tá a fazer aí, bó? - perguntaste à estátua viva que ganhara raízes, horas e horas perdidas à espera do derradeiro hausto do moribundo.


Nem tiveste resposta, tamanha foi a surpresa, tanta a alegria. Passou-te a mão no rosto, as lágrimas rolavam-lhe pelas gelhas e levantou-se, hirta e laboriosa do muito reumático que a tolhia, a manquejar torta como um pardal desasado, lesta da euforia.


- Ele falou! Ele falou! Tá a boltar, benho ber, tá a boltar. Ai graças a Deus, Nossa Senhora atendeu à minha promessa. Isto é um milagre! - ouviste rumorejar lá para dentro, à distãnccia da tua meia sonolência.


E logo a tribo inteira em redor do leito. Que era milagre, não havia dúvida! Até o Snr. Doutor já nos desenganara e tudo! Estava por horas e, afinal, três dias depois ressuscitou, como Jesus Cristo. Era o dedo de Deus, pois não era? E ali ficaste a saber que as promessas se acumulavam, não era apenas a de tua avó, também havia outra de tua mãe e até duma vizinha que era afilhada da casa. Todas a fazerem força, sem saberem umas das outras, e pronto: o morto voltara do lado de lá e aqui se apresentava, combalido, febril da intérmina viagem, mas afinal ele próprio, vivo e para a vida. Era milagre, era milagre, que já ninguém adrega de voltar donde este veio, senão com mandado especial de Deus. Ora, este, pela mesma ordem de grandeza, foi e retornou. E que fado vai ser doravante o que as ínvias profundidades lhe carregaram às costas? Será sempre a vontade de Deus, que seja feita no céu e na terra!


Depois foi apenas a rápida convalescença, as melhoras viam-se de dia para dia. E o milagre que frutificou num fervor à missa, à desobriga, às novenas, às liturgias. O Senhor marcara com seu dedo de mistério toda a pequena grei perdida e ignorada, através de tua casa.


Só muito, muito mais tarde descobriste que o milagre que tanto afervorara tanto povo, afinal era bem outro. Foras alérgico à penincilina o suficiente para ela te ter levado às portas da morte, por o médico, cheio de boa fé ignorante, ter persistido em salvar-te com ela. Quando desistiu e deixou de te ministrar aquele antibiótico, pudeste finalmente recuperar-te, pois era ele que, fatal, te andara lentamente aniquilando.


Recebeste como prenda, enquanto as forças iam recuperando, “Uma Aventura no Alasca”, o teu primeiro livro, de grandes letras negras e com desenhos a preto e branco. E foi a continuação aquém da grande viagem de além: aquelas paisagens de gelo, os ursos brancos nas montanhas nevadas, os esquimós encapuçados nos trenós, a deslizar por gelados trilhos puxados pelas matilhas de cães amestrados... Todo um mundo espantoso de maravilhaas ignoradas por ti como pelos mais. Leste e releste, viste, imaginaste e viveste nesse território fabuloso do Alasca dias inteiros. Tanto que decoraste cada episódio, cada personagem, cada pormenor do texto e das ilustrações.


Quando voltaste finalmente à escola, ias pejado de novidades. Reuniste à volta os mais íntimos da turma e contaste a fabulosa revelação: havia outro mundo, de planuras e montanhas de neve, com ursos, cães e renas, onde as árvores vergavam os galhos ao peso dos flocos gelados que os recobriam como grandes mazarulhos de algodão. E contaste a história aventurosa dos esquimós, de como corriam desvairados com os trenós tirados pelos cães, através daquela brancura imensa, brr, que frio!


- Cum rodas, cum'aqui, q'ando há saraiva? A abrir regueiras, é? - perguntava, entusiasmado, o Nel, que já lhe pegaras o fogo do teu fascínio, como aos mais.


- Ora, não! Os trenós num tem rodas, tem esquis, é assim umas tábuas cumpridas rebiradas nas pontas p'ra 'scorregar bem, chchch... Já biste que giro?!


- Quem me dera! - sonhava o Lias. - E isso, os tre... tresquis ou lá o que é...?


- Trenós? - perguntaste.


- Sequis? - fez o Nel.


- Esquis – corrigiste. - Os esquis tão assim ò cumprido, deitados na nebe e por riba é que eles põe òpois tudo, as cargas, a comida... E o banco p'ra se assentar e segurar os tirantes de guiar a matilha.


- É cum'às rédeas do burro do moleiro? - a curiosidade fascinada do Lias não desarmava.


- É, é mais ò menos, só qu'os cães são muitos, im duas filas, uns atrás dos outros a puxar.


- E num se afundo na nebe?


- Não, que ela é rija e os esquis num deixo. Eles abre dois trilhos cum'òs dos carros de bois, só que é na nebe e fica tudo, tudo branco. Às bezes é tão branco que eles se perde todos e atão é o cão-chefe que os tem de salbar. Senão eles morrio todos gelados, que o frio é tanto que eles ficabo pr'àli duros cum'à pedra, parecio um ror de estátuas. Mas o cão-chefe salba-os sempre, porque ele nunca se perde, nem sequer nas tempestades.


- Cum'é que é? Cum'é que é? - o Lias não desarmava, fascinado por inteiro.


- Atão, é pelo faro, cum'aqui. Os cães incontro tudo co'o faro – retorquiu o Nel, sabedor.


- Pois é – confirmaste. - Eles só tem que deixá-lo guiar a matilha, que ele bai logo direito òs iglos.


- Òs quê?! - perguntaram ambos. - Òs... elos, òs i... ilhos?!


- Iglos, iglos – corrigiste. - São as casas dos esquimós, feitas co'a nebe. Eles corto o gelo e armo uma meia laranja birada assim p'ra baixo, oca por dentro e c'um buraquinho. Eles entro por ele e fico lá dentro abrigados.


- Atão as casas dos quimós são de saraiba?! Isso desfaz-se tudo, bão pingar por todo o lado e eles fico todos molhados cum'òs pintainhos! - e o Nel desatou a rir.


- Não, que é frio demais! Aquilo num é saraiba nada, que é que cuidas? É tudo branco, mais que da altura dum home, até que duma casa. E fica duro cum'à pedra. Por isso é que num pinga nem nada. Eles bibe lá dentro dos iglos, assim òs grupos. E q'ando os constroi é uns ò lado dos outros, fica uma aldeia às bolinhas no meio da nebe toda, co'o sol a brilhar no chão e nos outeiros gelados. É lindo, lindo!


- Já bistes o que era aqui S. Pedro todo inteiro de branco? - era o Lias a sonhar. - Ih, cum carago! Aquilo é que era giro, se acuntecia! Eu bem gostaba, e tu?


- Eu tamém – retorquiste.


- E òpois fazíamos um tre... tremó, cumo é?


- Trenó – ensinaste.


- Isso, trenó. Tu sabes cumo é que eles se faz, num é? E òpois tamém a gente ia escorregar. A gente botaba por aqui abaixo, só paraba na ribeira, fschiiiuuumm... Co'a força inda trepaba até Bustelo!


Era o tema do dia. Foi o da semana, de meses... O teu livro emprestaste-o de um em um e o fascínio aumentava, aumentava. E todos viviam cada vez mais num mundo de maravilhas, a transpor o quotidiano banal e enlameado para branquidões jamais suspeitadas.


Foi aí que todos principiastes a viagem. Embora para outro mundo, afinal apenas por dentro das imaginações e emoções dele compartilhastes. Todos vós inaugurastes a aventura pela ponta correcta: não pelas passadas, não pelos degraus, mas antes pelo coração que põe o sonho a caminho. As maiores aventuras são as que ocorrem por nós além. Apenas depois é que as dum novo mundo tomam o sabor do primeiro dia da criação. Se por aqui passáreis sem os olhos afogueados do imaginário, nada veríeis, nada sentiríeis, e ao fim tudo ficaria tal e qual. De que valera uma aventura frustrada? Mas não, tudo foi feito regradamente e por ordem, para que nada se perdera do homem ignoto que aí virá, germinado clandestinamente em vosso imo, desde o dia em que te marquei do lado de lá da morte para que aqui cumpriras o programa a que foras desafiado e que constitui teu múnus desde então, em paga da vida restaurada.


Tuas férias grandes seguiram igual itinerário. Recordarás que durante três meses o teu programa foi este: ir aos sábados, depois de almoço, ao Escondidinho recarregar o imaginário com a revista hebdomadária de banda desenhada “O Cavaleiro Andante”. Aí te punhas de novo a caminho nas aventuras do Zorro e do Tintim, do Príncipe Valente e do Black e Mortimer, do Mickey e do Pateta. Maravilhavas-te e recontavas e discutias e analisavas. Deste mil vezes a volta ao mundo, aos personagens, aos episódios, aos riscos e aos truques. Ora relendo, ora conversando, ora recriando, ora planeando reescrever.


Depois, pelo fim da tarde, quando o sol descaía moribundo e a brisa refrescava já os caminhos do regresso com o lusco-fusco avançando molengão, voltavas carregado com um pesado saco de revistas antigas, de anos anteriores que iam até muito antes de teres nascido. Principiaste pelos mais antigos, amontoados ordenada e poeirentamente no fundo da despensa abandonada. Nem tinham já capa os números mais provectos, noutros fora o papel que se desfizera, alguns haviam de todo sumido. Que importava? Faltavam uns episódios, restavam os demais, a fantasia remendava as falhas – a magia continuava, sobrepondo-se a tudo.


Então as verdadeiras férias, as mais gozosas e aventureiras que jamais fruíste aconteceram. Ao domingo, ainda de manhã, mal regressado da missa das dez (obrigatória sob pena de pecado mortal e correspondente condenação eterna ao inferno), mergulhavas definitivamente na poesia do imaginário, do fantástico, do risco, do desafio – de quantos mundos há no mundo, de quantas gentes há nos povos, de quantas vidas vivem dentro de cada personagem, de cada um de nós. Mal desviavas tempo bastante para as sôfregas refeições, tão prosaicas, tão sensaboronas ante aqueloutro pitéu de maravilhas tão irrecusáveis que até daquelas te distraiu, permanentemente, durante três meses inteiros.


- Ele bai dar im maluco – comentava tua mãe, à mesa, para as tuas irmãs, quando nem com as conversas atinavas. - Ó rapaz, tás co'a cabeça na lua? Olha que tás a comer!


E tu a corar de vergonha ante os cochichos da Tilde e da Belita, divertidas a gozar com a cena.


- Que é que foi? Taba distraído – mas já nem logravas ouvir a resposta.


A risota, a gozar, aumentava da parte delas.


- Maluco já ele tá. Que é que te deu? - era a Tilde.


- Ora, as rebistas tão a dar-le a bolta ò juízo – conciliava a Belita. - Só pensa nelas, parece uma doença.


- Inda pego naquilo tudo e bai p'rò lixo – rematava a tua mãe. - Se isto cuntinua é o que bou fazer.


- Não, não! - acordavas tu. - Atão, aquilo num é nosso. P'rò lixo, não!


- Bais lubar essa libralhada toda e num trazes mais, òbiste? Só serbe p'ra dar cabo da cabeça a uma pessoa. Agora nem sequer sais lá do canto, sempre às boltas co'aquilo. Parece bruxedo, rapaz! - e tua mãe tentava meter-te os pés na terra.


- É só até acabar, que òpois num bai haber mais tempo, num é?


- E q'ando é que acaba?


- Sei lá!


- Falta muito?


- Não, qualquer dia já li todas as rebistas, mas inda há por lá um monte delas.


- Atão tás a ber. Se num te despachas, ficas p'ràí co'o juízo birado. Até parece que tens feitiço, cruzes! Nem oubes a gente! - insiste a mãe.


- Ora, agora num ouço! Claro que ouço, que disparate!


- Num oubes, não! Q'ando é que òbiste a gente chamar p'rò jintar? Q'ando? Diz lá, bá!


- Atão, q'ando a Belita lá foi, òbi logo.


Gargalhada geral do lado delas, magna confusão do teu.


- Bês, bês? Q'ando ela lá foi já tinha passado um quarto de hora que eu tinha chamado e a Tilde já lá tinha ido três bezes. Foi por ela num querer ir mais lá dentro que a Belita disse que te ia buscar. Agora diz lá quem tem razão, hã?


- Mas q'ando o pai chama eu ouço, num ouço? - perguntaste, vencido e confuso.


- Não, que ele obriga-te a responder, a tirar os olhos do libro, senão era o mesmo. Mas o teu pai continua a cuidar que só te pode bir bem daí, por isso é que tens sorte. Por mim, já tinha posto cobro a isto e pronto. Era um sossego.


E assim chegaste ao termo de setembro e ao termo das inúmeras aventuras. Decoraras tudo, às centenas e centenas. E nos anos vindoiros foste o manancial inesgotável de teus colegas predilectos nos intervalos das aulas, nos recreios, nos tempos livres, nos passeios. Todos os momentos desocupados foram momentos de sonhar – aí semeaste às mãos cheias amanhãs ridentes, semeaste os mais e a ti com eles pelo porvir adiante, um porvir à medida do imaginário, prenhe de fantasias criadoras. Foi aí, nestes anos imaturos, que todos treinastes e desenvolvestes os músculos com que erguem um mundo novo as mãos do novel homem.


Ficaste preparado para enfrentar definitivamente o caixão de remédios. A Assunção perdia os derradeiros dias duma juventude condenada a definhar lentamente, arrastando-se pelos bancos da cozinha da ti'Legria, para não ter de ficar sozinha entre as paredes da solitária casa dela. Os irmãos trabalhavam em S. João, os pais, o dia inteiro nos campos. Encontrava-la por ali, de mês para mês mais inconformada com uma doença madrasta com que médico algum acertava.


- Agora tenho doze remédios nobos, ti'Legria, doze. Beja lá! E ò fim acabo sempre a piorar, a piorar, que isto num tem mais saída, cuido eu. Daqui é p'rà coba e pronto!


- Cala-te, rapariga, que isso é com Deus, não é connosco. A ti compete lutar e lutar sempre, enquanto há vida. Tens de ter esperança, algum dia aparece um que acerta no que tiveres. É preciso ter paciência, que os médicos são como nós, ignorantes, e andam à procura às escuras.


- Eu sou é uma cobaia, eles ando im mim a 'xperimentar tudo. Que lá saber, olhe, eles num sabe nada. É do que eu me cumbenço. Uma pessoa anda p'ràqui p'ra eles treinar, a ber se acerto. É o que eu me sinto, um bicho p'ra eles treinar.


- Mas se acertarem, olha, tens sorte, não é? E os outros casos que vierem a seguir, ao menos já poderão lucrar com o teu. Não se perde tudo, não é verdade?


- Olhe, ti'Legria, eu por mim tou p'rò que der e bier. Se ó menos eu serbir p'ra isso, que outros aprobeite, que eu já num acredito que me sirba de nada. Eu é p'rà coba, que já num le bejo outro caminho.

- Não desesperes, cachopa, que és muito nova ainda. Ninguém sabe o que pode acontecer.


Era assim de todas as vezes e a Assunção cada vez mais definhada, até ao fim. Tu ouvias, observavas e não estranhaste jamais. Para um ressuscitado infantil era a prova derradeira. Precisavas de aderir à vida sem ser por fuga à estranheza dalém, sem o trauma do abismo donde regressaras. Sereno encaraste aquela caminhada sem retorno, como um destino comum apenas merecedor dum olhar vulgar, sem emoção, nem drama, nem tragédia. Com naturalidade, somente com naturalidade. Estavas maduro para avançar à conquista do mundo, com as sementes de porvir que mergulhei no teu íntimo prontas a desabrochar à menor réstea de sol, à mais branda molinha.


Perguntas por mim, não te respondo, suspeitas-me voz por detrás de todas as vozes, o sol único a refractar-se no irisado dos mil personagens, das mil e uma criações humanas. Chamas-me o imaginário criador e repousas até à próxima contradita. Mas donde te vem a criatura senão de ti que a não tens? E se não a tens como a engendras? Clamas por mim e não te retruco. Nunca, porém, te abandonarei, por mais que me confundas com um lado de ti, uma profundidade tua, um P. Abel que te povoa, um manancial que de ti jorra. Podes errar-me e baralhar-te, que nunca de ti desistirei nem me aprisionarás no que quer que seja que de mim concebas.


Entreverás, porém, que serei indefectivvelmente o sentido anterior às vozes, a ideia que mexe a carne dos personagens, o vulcão que explode nas entranhas da terra e, súbito, ilumina em tua mente a vereda de saída para o beco que a não tem. Desconfiarás que, no limite, serei o teu criador. E que não passarás da marioneta viva de meu alvedrio. Mero sonho dum sonho que alguém sonhará por ti, através de ti que serás mera sombra iridescente duma realidade outra.


É que não passas dum personagem dum autor que te deu corpo. Mas este autor é quem te cria ou serei eu que te crio através dele? Mistério dos mistérios, eu sou a voz do mistério que tudo desvenda. E que se esconde no que desvenda. E assim , afinal, se descobre. Se descobre como o que eternamente se venda. Vislumbres entremostrados, apenas, na fatal solidão dos desafios. Ténues dedos a irromper do outro mundo, imponderáveis, por este além, logo dissolvidos por entre as incontáveis distracções do cotio. Sementes, tudo são meras sementes interminavelmente a germinar outros mundos neste mundo. E assim ele vai devindo um mundo outro. A mando de quem?






26 – Um Mistério a Escrever nos Céus


- Lembras-te do Pingarelho? Aquele estupor, além de ter graça, era um futebolista endiabrado. Fintava o mais pintado e com um à-vontade!


Quem falou na minha caabeça? Quem me acordou as memórias? Foste tu, Belita, ou tu, Tilde, ou você, ti'Legria, que já morreu há tantos anos que já lhes perdi a conta? Quem nos podia ter visto, ali no largo da escola, Vila Chã contra Bustelo? Com a bola de trapos a rabiar entre as pernas desconcertadas, por entre gritos e correerias, todos à molhada, pontapé aqui, canelada acolá, encontrão além...


- Ó pá, num bale! Castigo, ele impurrou-me! - berrava o Zeca, sem ninguém lhe ligar.


- Impurra-o tu tamém, carago! Que maricas! - atirava-lhe o Nel, furibundo.


E o Pingareelho finta um, dribla dois, simula e passa três, perde a bola no emaranhado de pés e de canelas enredadas. É a vez do Quim, passa ao Nico, perde o esférico nas chancas do Zé Maria, este embrulha-se, tira-lhe a bola o Zeca, corre, chuta. Ricochete nas costas do Álvaro e ei-la a rebolar para a frente do Nel que remata, poc, e é gooolo! Goooolo! Vila Chã – 1; Bustelo – 0.


- Grandessíssimo burro, num me sabias passar? - era o Pingarelho a rezingar com o Zé Maria, cujo falhanço levara ao remate mortífero.


- Eh! E eu bi-te lá, bi-te lá! Burro és tu! - defendia-se o outro, sentido.


Mas já o Godinho chutava para o meio do terreiro. O furibundo Pingarelho fica com o diabo no corpo, pula por entre os mais, apodera-se da bola, finta o primeiro e o segundo, corre para a extrema, simula um remate, desvia-se dum terceiro, voltta para o centro, vê o Beto isolado e grita-lhe:


- Toma, é p'ra ti!


Puxa um valente pontapé mas, inesperadameente, a bola vai para a baliza quando todos corriam a cobrir o adversário que ele designara como destinatário. Até o guarda-redes se desviara, pelo que a bola entrou sem qualquer obstáculo. Vila Chã – 1; Bustelo – 1.


O Pingarelho ria com as mãos apertadas na barriga. Levara-os bem a todos!


Bola ao centro. O Zeca passa ao Quim, este ao Nel. Corre para a molhada dos adversários apinhados em frente da baliza. É desarmado nem se sabe por quem, tal a confusão de pernas. O Beto atira-a para o Zé Maria que se afastara, a apanhar um talo de vide que chupava na boca.


- Passa, bê lá agora se num passas! - berrou-lhe logo o Pingarelho, a correr à frente dele.


Aí o outro limitou-se a despachar a bola de trapos ao acaso para diante. O colega apanhava-as a todas.


- Boa! - confirmava ele, desembaraçando-se dos competidores, em corrida desenfreada.


Dominou o esférico, virou repentino para trás, desconcertou com o movimento os opositores, corre inesperado para um canto, pára, chuta a bola por cima da cabeça dos mais próximos, em dois pulos recolhe-a por trás deles e, sem preparação, dispara um tremendo pontapé. O guarda-redes nem se mexeu: Bustelo - 2; Vila Chã – 1.


- Agora tenho de ir imbora, que já é muito tarde – declara, peremptório. - O meu pai inda me dá uma coça, se num me despacho.


- Não! Não! Queremos a desforra! A desforra! - gritavam os de Vila Chã.


- Sem ele a gente num podemos jogar. Acabou o jogo, pronto! - justificavam-se os mais.


- Não, não! O que bocês quer é ganhar, num é? Queremos a desforra! Assim num bale! - protestavam os de Vila Chã.


O Nel correra a segurar o Pingarelho, mas quem é que lograva ter mão nele? Mal pressentiu o desígnio, em dois saltos, com a sacola enfiada a tiracolo, fugiu do alcance de quenquer e desata numa corrida desaustinada pela encosta abaixo, rumo à Ribeira Verde, para tomar a estrada de Bustelo, a partir da ponte romana. Os de Vila Chã, quando tal viram, armam-se de pedras. Os comparsas do foragido, assustados, pisgam-se-lhe na peugada, com toda a rapidez. As pedradas chovem de todos os lados, acompanhadas de enorme surriada:


- Uuuh! Cobardolas! Num sabe perder! Benho cá, que a gente racha-les a cabeça! Uuuuh! Grandes sacanas!


E corriam encosta abaixo no encalço dos outros, sempre a apedrejá-los, até à ponte. A partir daí, não, que era a subir para Bustelo e então os papéis invertiam-se. Se um de Vila Chã tentava atravessar para lá, acolhia-o então uma chuva de pedradas deles, a defenderem o respectivo território. Trocavam-se os derradeiros insultos e calhaus de margem para maregem e ambas as hostes retomavam, cada qual pela respectiva vertente, até casa, sempre a desfiar as correspondentes razões. Juravam dos dois lados que jogar com aqueles bardamerdas tinha sido a derradeira vez. Depois, no dia seguinte, recomeçava de novo tudo, obliterados os ódios da véspera. E só não terminava desta guisa quando Vila Chã ganhava, que os mais, fora do lugarejo de origem, ficavam em desvantagem para um remate tão espectacular e agressivo.


Isto, porém, são memórias duma infância longínqua, de há duas gerações. Ninguém tem de mas revelar. Eu, o Tito, sou o autor que recordo e dito para o papel. Ou não serei? É que aquilo ocorreu e não ocorreu. Era daquela maneira mas não exactamente assim. Uns personagens existiram, outros, não. E os que existiram não existiram tal qual. Fui eu que nos inventei? Não? Inventei o quê? Afinal são mais eles próprios do que eles próprios foram, a cena é mais real do que a realidade. Mas então donde me vem este excesso? Quem me excede quando me excedo? Sou eu? Serei eu próprio um invento? Sou mais do que eu? Se sou eu, porém, como poderei não saber o que, afinal, sei? Mas o facto é que o não sei. Quem é que em mim é mais, sempre mais, a ponto de eu jamais poder coincidir comigo? Quantas vozes falam por dentro de minha voz?


- Foi o Pingarelho que biu primeiro. Ele binha que nem um pinto, chigou à escola todo esmarroado, tinha caído do parapeito à ribeira q'ando reparou naquilo. O sinhor professor mandou-o imbora, que até podia ter de ir ò hospital e tudo. Tinha cada negra!


- Mas que é que ele biu? Que é que ele biu? - a Belita era duma curiosidade inesgotável.


- Atão, aqueles riscos no céu, que ando aí p'ra trás e p'ra diante. Tu inda num biste? Hoje nem há mais aulas nem nada, que o sinhor professor até ficou cheio de medo e mandou-nos imbora. Diz que é um sinal no céu, que nunca biu uma coisa assim. Num sabe o que é. Ia falar ò Snr. Abade, a ber se ele sabia.


- Adonde? Adonde? - a Tilde, a mãe, a Belita, o pai atropelavam-se agora, perplexos.


E eu, cheio de grandeza na minha pequenez de mais miúdo, a comandar a horda para o quinteiro, depois para a eira, para nenhum galho de videira nos tolher a vista.


- Acolá! Acolá! Bejo acolá, aquelas nubens fininhas a correr pelo céu fora no meio das outras. Ele diz que estabo a fazer um oito mas eu num bi nada. Só bimos aquilo a andar que nem agora, uma à bolta da outra, p'rà frente e p'ra trás, parece duas bichas de nubem, mal cumparado, assim a rabiar pelo céu. E ando aqui im riba de nós há que horas!


- Ai, Luís, que aquilo é um sinal! Atão num é? - minha mãe tremia, agarrada ao braço duvidoso de meu pai, desconcertado! - Cumo é que elas pode andar ali a rabiar assim?! Tu disseste que ele ia perguntar ò Snr. Abade, foi?


- Ele disse. Por isso é que de tarde num há escola. E tá toda a gente a ber, parou tudo, que eu bi q'ando binha p'ra casa. Tanta gente na rua! Tá tudo cheio de medo. Diz que é a fim do mundo. É, pai?


- Qual fim do mundo! O pobo é muito estúpido! Aquilo tem de ter uma 'xplicação, ora essa! Agora a fim do mundo!


- Ai, Luís, olhe que isto de se ber no céu coisas que nunca se biro, atão num é?... Deus disse, num disse? Desta bez é que bai ser, nunca ninguém biu coisa tal, nem o sinhor professor, home! E é um sinal no céu, num é? Bai começar assim e òpois desato a cair as 'strelas e o fogo e o resto... Ai, home, que bai ser de nós?


- Ó mulher, calma, que isto inda bai descontrolar a canalha. Calma, que a gente há-de descobrir que mistério é aquele. Já bimos tudo que habia p'ra ber, bamos lá jintar, que a fome aperta e os cachopos tem todos de comer. Num se pensa mais nisto, que a bida cuntinua. Logo habemos de ber o que é.


Durante mais de três horas o burburinho continuou, assarapantando a aldeia inteira. Já havia promessas para que a fim do mundo fora adiada. Já as velas se acendiam pelos oratórios rústicos, flores renovadas apareceram inesperadas nas alminhas da Capela que há anos para ali andavam ignoradas.


A ti'Micas botou-se para a igreja a rezar uma novena pelas alminhas. Arrebanhava pelo caminho quantos a queriam ouvir, feita pregadora ambulante dos prenúncios apocalípticos. Quando chegou ao cemitério já arrastava uma cauda de mais de meio cento de penitentes abalados. Passaram a tarde na igreja a bater com a mão no peito. O P. Abel não alinhara em comandar as operações para desarmadilhar o céu, recomendando-lhes apenas muita compostura e devoção, que ele tinha, enquanto pastor, outras diligências inadiáveis de que dar conta. Resistira à pretensão do beatério para ele decretar a fim do mundo para o dia imediato ou, pelo menos, até ao termo do mês.


- Tais arcanos quem os sabe? Apenas Deus. E a mim jamais Ele mos revelou...


- Ó Snr. Abade, - protestavam as mais renitentes – atão num se tá mesmo a ber?! O céu tá a mandar-nos os sinais, só quem é descrente é que num quer ber! É só olhar p'ràquilo...


- Tá bem, tá bem, santinha, mas eu não quero pecar por soberba nem presunção. Eu cá não sei de nada.


- É falta de fé! É um pecado! O Snr. Abade num pode...


- Seja falta de fé, seja, Deus é que sabe. Talvez as senhoras tenham mais do que eu, sei lá! Mas pronto, vão aí para a igreja, vão, e rezem pela fé de todos, pela salvação do mundo inteiro. Vão, vão lá, que eu tenho muita pressa, não posso ficar aqui retido. Tá bem? Vão, vão! Deixem-me dar conta da parte que me compete.


E assim as meteu a salvo no redil, escapando a comprometer-se. Daí a pouco ele e o professor abalavam na velha mota que aquele há meses arranjara e ninguém adivinhava para onde iriam. “Aquilo foro ò bispo, ò Porto...” - aventavam uns. “Qual? Não! O professor, p'ra ter querido ir, é porque foro ò Goberno...” - contrariavam outros.


Entretanto, no meio dos sustos, ninguém reparou que o céu acabara ficando inteiramente limpo e haviam desaparecido quaisquer vestígios das misteriosas nuvens rabiadoras, tal como se nada houvera ocorrido. Os que voltaram à tarde das repartições e das compras em Oliveira, bem como os que tornaram dos trabalhos em S. João, todos à uma recusaram acreditar nos mistérios que lhes contavam. Era uma peta, só podia ser! Então onde havia a prova? Quando muito, fora sugestão colectiva, alguém se enganara com a fumarada duma fogueira qualquer que vira misturada a nuvens baixas e vai daí, com o medo, mais a superstição crendeira do beatério, uma coisa tão banal terá virado uma aparição do outro mundo. E não havia como demovê-los do cepticismo descrente.


A ti'Micas proclamava, dogmática, que se a vingança divina se afastara fora porque ela e as mais devotas haviam corrido à igreja a impetrar de Deus o adiamento da sentença final. Mas, cuidado, incréus, elas não tinham força que bastara para afastar de vez o gládio divino. Estes pecadores impenitentes ainda iriam botar tudo a perder com o riso escarninho deles. E depois ainda vai pagar o justo pelo pecador. E a prova é que nem o Snr. Abade nem o professor haviam retornado: andavam seguramente, com os grandes da Igreja e do País, a regatear com Deus nos pratos da balança, dum lado os justos, do outro os pecadores, a ver para que lado pendiam mais. Ora, estes incréus eram uma ameaça, amanhã podia cair aí o dilúvio de fogo e a culpa era deles, de certezinha, que iriam desequilibrar de vez a justiça divinal, provocando a segunda fim do mundo. Bem melhor seria cada qual tomar tento no que dizia e no que fazia. Com Deus não se brinca!


O sobressalto prolongou-se noite adentro, com muita gente ainda insegura do destino, a duvidar se não seria melhor nem se deitar, que sempre era preferível viver o resto da vida acordado do que adormecer e despertar, sem saber como, no outro mundo. No meio das incertezas, a madrugada vergou os mais renitentes e tudo acalmou, por fim, num sono de pesadelos, pontuado aqui e além por latidos tardios de alguns rafeiros mais estremunhados. Quuando o primeiro galo cantou a prenunciar um ainda muito indefinido alvor, dormia tudo, exausto, na santa paz de Deus.


O mistério que tanto nos alvoroçou ficou decifrado ao fim da manhã seguinte, quando chegou o primeiro exemplar d'”O Século”, único ainda em S. Pedro, na loja do correio de Vila Chã, e que toda a aldeia lia, de mão em mão. Lá estava, clarinho, o sinal do céu, em fotografia a preto e branco, com um título por baixo: “Primeiros aviões a jacto fazem exercícios de treino e provocam alarme nas populações”. E eis como o fim do mundo ficou adiado para data mais oportuna.


Isso, ri-te agora do mistério a escrever nos céus, quando na ocasião eras um miúdo tão medroso como os mais, prisioneiro da ansiedade colectiva, pendente desarmadamente dos desafios do ignoto. Ri-te e não repares que não és mais que um invento imaginário e transitório da mente dum autor, mais criado tu do que foi a conjuntura, já que esta fora efectivamentem protagonizada em quadros mais reais, se bem que menos autênticos, significativos, do que aquele que acabas de pintar, depurado pelo tempo e pela memória de todas as gangas inúteis e dispersivas do sentido. Ri-te disso e não repares no nada que és. E não repares no que teu nada tem de arrepiante: como pudeste andar ali pelo meio de tudo e todos se nem sequer existias? Ou existias já e ninguém nem tu próprio puderas dar por ti naquele tempo remoto? Ou serás a camuflagem de alguém, o teu autor mascarado de outrem? Teu corpo, contudo, não é o dele, teus laços e vivências também não. Não serás tu um parasita superveniente que dele sugas a vida, feto espúrio gerado pelo sémen do mistério no ventre da fantasia? Quem é tu, afinal, que sobreviverás a teu progenitor por séculos e séculos, quem sabe até à eternidade? Quem és tu que vives na Ilíada e na Odisseia, na Eneida e na Divina Comédia, nos Lusíadas e na Rua da Toca, quando teus progenitores há séculos, há milénios já morreram e deles nem há, quantas vezes, mais memória que não a tua? Como é que do nada que és te chegas a transmudar em tudo? E num tudo que é tão imenso, descomunal, denso, inesgotável que é mais tudo que tudo o mais? Como chegas a devir tão luz que o resto, perante ti, é mera sombra inconsistente, inócua, desinteressante? E este resto, afinal, é que é a realidade, a única realidade. Ou não, será o contrário? Mas como, como? Ri-te, estupidamente ri-te e não repares como anda um mistério a escrever nos céus, muito para além daquele que descreveste, do que imaginaste. Ri-te e não repares quanto dele é marioneta o próprio autor que te criou. Não creias que pôr-lhe um rótulo o arruma na prateleira, chames-lhe tu musa, à moda antiga da magia poética, chames-lhe inspiração, ao jeito actual de identificar fontes cujo lençol freático nos escapa indefinidamente. Ri-te, superior, presunçoso, sábio-de-trazer-por-casa, para que todos possamos rir contigo e depois rir de ti e depois rir de nós mesmos. No fim descobriremos sempre que nós é que somos um mistério a escrever nos céus, um mistério para a eternidade. E esta angústia só nos é suportável desde que dela possamos gostosamente rir, rir interminavelmente.




A primeira angústia a sério foi o desastre do caulino. Era um biscate do ti'Manel Gaio, camionista de Ovar, que fazia entregas por todo o distrito de Aveiro, com um ajudante, homem na casa dos vinte, o Liscanço, esguio e de carnes transparentes que lhe deram o apelido, na voz do povo. Um dia descobriu que na Farrapa, numa nesga de mato por onde corria um trilho de carro de bois em direitura à Serra do Sino, desde que cavasse um nico, aparecia uma terra branca, pura, que apenas alguma raiz de pinheiro cruzava distraidamente. Levou uma amostra à fábrica de cerâmica e eles que sim senhor, era caulino do bom, podia acartar, que por cada carrada lhe pagariam uns tantos centos. Manel Gaio não aguardou mais, concertou uma retribuição aos proprietários e, duas vezes por semana, com mais dois ajudantes ocasionais, passou a transportar regularmente o camião cheio. Isto durou meses pacificamente, o único obstáculo era o carrego feito às pazadas, moroso de perder a paciência. Quando o ti'Nino tinha um bocado livre, dava-lhes uma mão, era sempre a partir do meio da tarde e a carrada arrancava para Aveiro à sonoite. Antes de chegar a S. Pedro andava o camião nas entregas por todo o canto onde havia clientela espalhada. Quando vinha, iam sempre o camionista e o ajudante comer um naco de queijo e umas rodelas de chouriça com broa e azeitonas, regadas com um copo de três tinto, na loja recente do largo das Escolas, para passarem palavra, já que nunca sabiam onde o ti'Nino andaria à jorna e dos utentes da loja sempre alguém o descobria.


O problema ocorreu quando, para poupar esforço e tempo, escavaram gradualmente uma caverna por baixo dum pequeno pinheiro, à borda do mato. Aquilo levava mais horas do que ao princípio, quando apenas se limitavam a limpar a superfície e depois era só enterrar a pá e projectá-la cheia por cima dos taipais do camião. Agora, primeiro, tinham de cavar pelo buraco dentro, depois precisavam de encostar o veículo o mais perto possível para não terem de puxar o caulino para perto da viatura antes de o atirarem para dentro. Como o tempo urgia, acabaram por ter de se juntar quatro homens para dar conta do trabalho, antes que anoitecesse.


O ti'Nino teve a premonição do problema ou o saber de cavador abriu-lhe os olhos que nos mais se mantiveram fechados.


- Ó sô Manel, olhe que isto, feito assim, é perigoso. O tecto do buraco pode abater, aquilo num tem grossura que dê p'ra se auguentar, nós andamos a cabar demais p'ròs lados. Num tou a gostar do rumo.


- Qual o quê? Aguenta, num bai alacar, é um bocado de nada. Já biu a trabalheira que era remober aquela placa toda de cima? Aquilo à mão era trabalho p'ra dias. Não! Só c'uma escabadora, cum'às que ando lá pela Ria a limpar. Nós cá é só um jeito p'ra arrecadar uns tostões.


- Inda p'ra mais tá ali aquele pinheirito. Já biu? Se ele inclina, interra-nos aqui.


- Bamos rodeá-lo, ninguém le mexa no prumo. Ele é muito infezado, num tem peso que dê p'ra fazer muita força.


- Num era milhor desistir de cabar neste sentido? Podiamos ficar mais à superfície ou cabar cá fora...


- Olhe, fazemos assim. Inchemos o carro só até darmos co'a raiz do prumo. Aí saímos e pronto! Já num corremos grande risco.


E lá se deitaram à faina. O primeiro metro bem foi, mas a frente alargava-se e cada vez mais o tecto escavado ficava suspenso num vão, num arco gradualmente mais largo. O terreno estava seco, não notaram sinais de fissura nem desprendimento. Com o andar ganharam confiança. O segundo camião daquela leva ainda foi cavado no mesmo buracão.


No fim de semana chuviscou de leve, nada que desse grande cuidado, embora a molinha tivesse durado horas e horas. Para as hortas e eidos, uma excelente rega.


Quando o ti'Manel Gaio voltou na terça-feira já ninguém se lembrara daquilo. Encostou o camião à boca da caverna e desataram os quatro a cavar e lançar para dentro dos taipais as pazadas do caulino.


- É o derradeiro, este é o derradeiro – comandara ele, no princípio. - Depois mudamos para outro lugar, se aqui num se puder cabar mais sem arriscar. Num bale a pena desafiar a desgraça. Bamos a despachar, p'ra nos safarmos depressa.


Cavavam concentrados e calados. Ouvia-se apenas o ligeiro cicio das pás a enterrar no caulino esbranquiçado e o som cavo das pazadas a cair no fundo de madeira dos taipais. Todos estavam já encobertos pela terra de cima, enegrecida e pejada de raízes da matagueira de tojos, carquejas, urgueiras e maias que nela proliferavam. O prumo do pinheirito estava à vista mas era quase um toco sem seguimento, tão raquítico como o tronco que se erguia do lado de cima. O ti'Nino deitava-lhe olhares desconfiados, sem parar a labuta.


Eram cerca de três da tarde quando tudo ocorreu numa questão de segundos. Primeiro caiu do tecto como uma poalha de grãos, em chuva por cima do Liscanço. Pararam todos, instantaneamente, a vigiar a cobertura instável. O primeiro a dar conta do que era foi o ti'Nino. Correu para a raiz do prumo do pinheiro, já uma enorme chapada de terra se abatia sobre o Tinoco, o outro ajudante, achatando-o no chão. O ti'Nino encravou a pá contra o prumo que lentamente se inclinava, fez força a tentarn atrasá-lo enquanto berrava:


- Fujam, fujam, que isto bai abater tudo!


O ti'Manel deu um pulo direito à frente do camião e, quando chegou ao guarda-lama, ouviu o enorme estrondo. Caiu de borco com a pancada, arrastou-se uns centímetros mas as toneladas de terra prenderam-lhe as pernas até à cintura. Olhou para trás, desvairado. Estava tudo findo, num silêncio de morte. A caverna abatera inteira, era agora um descomunal montão de terra espalhada, donde não provinha sinal de vida.


Desatou aos gritos, minutos que lhe pareceram séculos, à espera de que alguém acudisse. Chegaram em menos de três tempos os do Sardão, que andavam a sachar um campo, um bocado mais abaixo. Tinham ouvido o baque do abatimento e, perante os gritos, concluíram logo que houvera desgraça.


- Tirem-nos dali, tirem-nos dali! - gemia o ti'Manel Gaio, em choque, sem saber explicar nada. - Ai que grande dessgraça! Mais me balera ter morrido co'eles! Ao o Nino que bem me abisou! Inda a tentar salbar-nos a todos, ai o Nino! Tirem-nos dali!


A desgraça correu como um tufão e em minutos estava lá uma multidão com sachos, enxadas, picaretas, pás, tudo o que pudesse ajudar a remover a terra. Mas como dar conta de toneladas e toneladas? Depois, as picaretas e enxadas eram perigosas: onde estariam os soterrados, a que profundidade? Uma pancada poderia matá-los, se ainda houvera esperança de vida. Os bombeiros de Oliveira chegaram uns trinta minutos depois e comandaram as operações. O primeiro a retirar, já que estava vivo mas com as pernas e o ventre esmagados, foi o ti'Manel Gaio, evacuado de imediato para o hospital, antes que também se finasse. Depois, com cuidado, a partir da periferia do alacamento e uma vez liberto o camião meio soterrado, foram avançando bombeiros e populares, afincados e rápidos, na esperança de que ainda algum dos outros pudesse libertar-se com vida. O primeiro a ser alcançado foi o Liscanço que, ao grito de “fujam!” do ti'Nino, tentara atirar-se para debaixo do camião, tendo sido apanhado na corrida. Quando o conseguiram apanhar ainda dava sinais de viver. Foi de imediato, num carro de acaso que alguém disponibilizara, levado para S. João, mas já lá chegaria morto. O derradeiro a ser alcançado foi o Tinoco que já não lograra erguer-se donde a primeiram derrocada o tinha abatido. O ti'Nino ficara esmagado de pé, com a pá ainda encravada na raiz de prumo do pinheiro. Não a largara nem sequer na morte, até ao fim lutando para atrasar o momento do desastre, a dar uma derradeira oportunidade aos companheiros para se salvarem.


A ti'Guida foi cuidadosamente mantida aparte da desgraça por um espontâneo conluio de todos os vizinhos, até que, duas horas depois, o corpo destroçado do marido morto foi recuperado, embrulhado num lençol e remetido num silêncio magoado para a pobre casa. Era o fim do último esteio do comunitarismo em S. Pedro, daquela solidariedade e generosidade que cuida tanto dos outros que até se esquece dela própria. Isto fora o ti'Nino a vida inteira, incarnara-o exemplarmente no derradeiro momento.


A ti'Guida apenas dissera, branca de cal num tremor incontrolado do corpo inteiro: “Ai o meu home! Ai o meu home!” E nunca mais voltaria a si, louca, dia a dia mais louca naquela obsessão: “Ai o meu home!” Definhou tão repentinamente que lhe não sobreviveu um ano. Uma mulher que sempre fora, afinal, uma torre de saúde e de alegria de viver, pese embora a maleita antiga com que arribara a S. Pedro, moça ainda, muitos decénios antes.




Sofreste a mágoa e relembra-la. Escreve-la imaginariamente como uma ferida a redoer na folha de papel em branco. E nem vislumbras quantas dores reais vais cavar nos peitos que te lerem. Tu, mero ente de fantasia a sonhar uma tragédia que te corre pela mente inexistente. E eis como do não-ser brota o ser, como do nada tudo vem. Com um toque de magia, tu, que és mera sombra, enoiteces corações de carne e sangue. E não incarnas apenas neles, proliferas, proliferas mais que os milhões de sementes duma laranjeira em flor. A voz de quem te cria não logra ultrapassar as paredes duma casa, duma família, dum pequeno leque de amigos. A tua voz silente penetra pelos olhos dentro a abalar o tempo e o espaço de quenquer, pode transpor fronteiras e gerações, povos e culturas, animar séculos e milénios. Poderás virar rumos à História, revolver continentes. E, depois de tudo, continuas a ser apenas fantasia, mera sombra de fumo, um nada que mão alguma consegue reter. Dizem-te espírito a caminho e que traça a rota pelos corpos além, os dos humanos, os da Terra, os do Universo. Por isso nada conseguirá energia bastante para te paralisar, já que és tu mesmo a energia. Como, porém, poderás sê-la, se nada és senão inerte fruto tombado da imaginação? És menos, infinitamente menos que qualquer ponta de energia. Como, porém, podes ser o que não és e não ser o que és? Contudo, és, és tal impossível, embora seja impossível que o sejas.




A derradeira odisseia foi a da luz pública. O meu pai pôs mãos à obra com a ajuda do ti'Altino, o Bisca. Congraçou os mais remediados numa sociedade, aliou-lhe a fábrica do vidro que precisava mesmo de energia eléctrica para remodelar-se, sobreviver e reconverter-se, a tempo de evitar a falência geral que ameaçava o ramo. Garantido assim, amealhados os parcos contos requeridos à partida, entregou o próprio trabalho como o melhor capital a investir e foi em frente. Uma cabina em Vila Chã, uma puxada de alta tensão à conta da empresa do Lindoso, a derivar da de Cucujães, abrindo caminho através da matagueira, pelos campos férteis entre Costa-Má e os Tanques, e eis o trilho apto para se estender a rede eléctrica por todos os lugarejos, acendendo lâmpadas nocturnas, uma aqui, outra cem metros abaixo, como velas ardendo na noite escura, embora incapazes ainda de lhe diminuir a negridão.


Foi uma tarefa muito árdua, de meses e meses. À noite, à luz da candeia de azeite, era a batalha de furar a broca de mão as pedras de mármore onde assentariam contadores e fusíveis, casa por casa. Durante o dia era, primeiro, cavar os buracos onde enfiar os enormes postes de cimento que sustentariam, no topo, os ferros com os isoladores eléctricos, a que os fios da corrente finalmente se prenderiam. Depois, era erguer a alavancas, a cordas e a pulso, cada um daqueles monstros de betão armado até o enterrar no buracão rasgado na terra preta. Tapavam o buraco, acunhavam, batiam a acalcanhar o terriço e avançavam para o seguinte. A linha era toda irregular, seguindo o traçado incerto e caprichoso das ruas abertas sob o comando de meu avô. Apenas a distância que mediava entre postes era sempre a mesma, medida a passadas.


Enquanto a empreitada avançava penosamente, a novidade era a grande expectativa da aldeia toda. Primeira fase a inaugurar – Vila Chã, de modo a cobrir todos os lugarejos da planície; segunda fase, Bustelo, provavelmente principiando por uma cabine privada para a fábrica e com outra, depois, para o lugar do topo da colina. Era este, aliás, o primeiro pomo de discórdia.


- Num há direito, ti'Luís Abante! Primeiro debia de estar o pobo, atão num é? A fábrica sempre lá estebe desde antes de a gente nascer e nunca precisou da tal da lecticidade. Porque é que logo agora tem de ser a primeira? - isto dizia a ti'Laurinda, mas por ela resmungavam todos.


- Pois é. Mas olhe, quem deu mais dinheiro p'rà obra foi o Snr. Bideiro, tamém temos de ter cunsideração, ele é que é o dono agora daquilo tudo. E òpois, beja lá, se a fábrica fecha, é a miséria p'ra todos, atão a luz pública já num bai serbir p'ra ninguém, num é mesmo? E cá p'ra mim eu inda cuido que se bai cunseguir inaugurar ò mesmo tempo. Se o pobo ajudar...


- Ajudar cumo? Isto é trabalho p'ra quem intende, a gente de lecticidade nem sabe o que isso é, q'anto mais... Lá dar a mão, tá bem, mas é só a cabar ò a ajeitar os postaletes p'ra pô-los im pé, que lá o resto...


- Isso tamém ajuda. Mas é outra coisa, cá na minha. Se todos quiser e num puser intrabes, uma ruaa contra a outra, lugar contra lugar, querelas assim, se fizer força ò mesmo tempo, bão ber a pressa cum que a gente corre. É preciso é muita calma, ter paciência, que a empreitada há-de chigar a todo o lado, a seu tempo. Aqui é que é preciso ajuda, que a gente, p'ra ir mais depressa, num se pode desbiar nem perder os dias cum bozes loucas do pobo.


- Isto é cumbersa, cumpadre, que lá o que a gente quer é que a nobidade ande mesmo e nos chegue a todos.


- Atão é milhor que as tricas se acalme, que a obra lá chigará. Q'anto mais pudermos andar sem ter percalços, mais rápido. É assim. Bão passando palabra e apagando os fogos, im lugar de os atear. Isso é que ajuda a todos e a nós tamém, p'ra andarmos mais ligeiros.


- Tá bem, tá bem, já intendi o recado. Comigo pode cuntar. O que a gente queria mesmo era o progresso p'rà nossa terra, p'ra deixar de sermos p'ràqui uns bichos, num é?


Em cada morada a questão conversada e reconversada era muito outra. Como na minha.


- Ó Luís, atão num era milhor botar só uma lampadazinha, das mais fraquinhas? Bocê já biu o despesão que bai ser? Um aluguer todos os meses mais o que gastar... A gente bai ter mesmo dinheiro que bonde p'ra tanto luxo? Num semos cum'òs da cidade, num temos as posses deles. E ninguém pode pagar cum coisas, cum'ò Snr. Doutor. Se eu pudesse dar, de bez im quando, um quilito de manteiga ou uma dúzia de ovos p'ra pagar uma conta... Mas não, aqui é tudo a dinheiro. Olhe que eu tou cum medo.


- Num há-de haber problema. Tamém a gente botar uma lâmpada por dibisão num quer dizer que estejo todas abertas ò mesmo tempo. Só abrimos no lugar onde estibermos, num é? Desde que fiquemos todos no mesmo sítio cumo até aqui, pronto, é só uma que fica ligada.


- Atão num se põe no gado nem na casa da eira. Por ora remedeia.


- Pois, tá bem. E tamém não na cozinha belha dos currais? Daba jeito, p'rà comida do gado...


- Ai não! A gente bê bem co'o lume, já tamos habituados.


- E q'ando for p'ra cozer o pão? Bia-se muito milhor.


- Não, não, Luís! Òdespois bai ser uma bergonha, se num houber dinheiro p'ra tanto gasto. Bota-se lá a candeia, que já num faz falta aqui e pronto. Sempre assim cozemos, num é agora que num se bai poder. Bê-se muito bem, co'o lume do forno e tudo. Não, é milhor não.


- Se cuida assim, tamos intendidos. Òpois, mais tarde, q'ando a bida milhorar, podemos ir alargando, num é? Mas atão logo se bê. Tamém acho bem, bamos cum cautela.


Claro que uns eram mais espalhafatosos, alguns, mesmo imprudentes. No geral, o comedimento dominou, que a punição para o devedor era vergonhosa: cortar-lhe a ligação, pô-lo às escuras. E entre vizinhos era uma humilhação tamanha que ninguém queria incorrer em tal. A dificuldade era apenas do cálculo à partida, antes das primeiras cobranças, a ver a quanto montavam. O meu pai ia elucidando com as indicações que lhe vinham do Lindoso, mas era tudo muito indefinido ainda, antes de se ver preto no branco, nos recibos dos gastos que haveriam de chegar, uma vez terminada a empreitada.


Entre as euforias da novidade e as contenções de ponderar riscos, a rede pública de distribuiçãao foi estendendo os múltiplos tentáculos rua a rua, até cobrir os lugarejos todos da aldeia. Esta foi a primeira fase: esticar os fios poste a poste, permitindo acender as lâmpadas aparafusadas neles ou nos cunhais das casas que se intrometiam pelo caminho. Quando tudo ficou pronto, foi a festa da inauguração, no largo da Capela. Meteu foguetes, a banda dos bombeiros e um palanque armado de troncos de pinheiro, bem recobertos de verduras e festões de papel.


O início foi marcado para as cinco da tarde, a meio da primavera, para o sol já estar caindo e se poderem ver bem as lâmpadas anémicas quando fossem acesas. Teriam de manter-se ligadas até o crepúsculo tombar e então, pela primeira vez, principiarem a alumiar as ruas todas do povoado, expulsando definitivamente dos recantos delas os fantasmas e o tardo, as almas do outro mundo e os bruxedos, as esperas e os meliantes que se encapuçavam no escuro.


Quando o sino da igreja fez soar ao longe as cinco badaladas, tudo parou num silêncio expectante, os olhos fixos na mágica lampadazinha presa ao cunhal do prédio, ao lado do improvisado palanque. A banda ficou especada, a postos, atenta ao sinal da luz que deveria acender. O fogueteiro, em cima do muro, com um morteiro na mão esquerda e o rastilho na direita parecia uma estátua de olhos fixos na lâmpada. E em baixo o largo estava cheio, tudo fixando o cunhal: acenderia, não acenderia? Será que logo à partida vai haver uma avaria e tudo fica estragado, a festa adiada? Passaram cinco minutos, dez minutos...


Começaram a correr estafetas do largo para a cabine e vice-versa, ansiosos. “Tá quase, tá quase!” - asseguravam os primeiros. “Tá tudo bem!” - acalmavam os segundos. “Há uma abaria mas é só um bocadinho, qu'o ti'Luís Abante já tá a trocar lá umas peças” - garantiam os terceiros. O corropio não parou até que, às cinco e vinte, sem mais aviso nem prenúncio, silenciosa e pura, acendeu-se a gotinha de luz no balão mágico da lâmpada.


- Já beio! Já beio! Tá acesa! - clamaram todos, apontando de braço estendido, como num apresentar de armas.

E riram e dançaram e pularam e cantaram, como um grande mar prenhe de cardumes, com a zabumba da banda entusiasmada e o foguetório a estridular nas alturas, por sobre a cabeça de todos. Depois foram os discursos que ninguém ouviu no esfusiar do falatório. E de novo a música, a puxar um pé de dança. Distribuiu-se chouriça com broa e um copo de vinho da terra a cada participante. Só o trato dos gados, a forrageá-los, a mungi-los, a acamar os tojos e urgueiras para a noite, é que desfez o faustoso ajuntamento. Isso mais a incontívvel curiosidade de caminhar por ruas iluminadas pela primaira vez desde a noite mais funda dos tempos. Ninguém queria, aliás, entrar em casa, atardando-se aos portais, nos muros, nos quinteiros, a saborear a novidade: um luar inventado por nós, mais claro até que o outro junto de cada ponto de luz e que duraria doravante a noite inteira, todas as noites.


- Eles sempre imbento cada uma! Olha que é lindo! - repetiam, descrentes e gulosos com o novo sabor das horas.


- É, é, mas dorabante começa a num se distinguir o dia da noite. E Deus disse que isto prenunciaba a fim do mundo – respondiam, duvidosas, as beatas de maior escrúpulo.


- Lá que é a fim do mundo, é, que a gente agora bai ber a ladroage toda mai-las malandrages que se fazio no escuro. É, é o que se bai ber! - comentavam os mais, acalmando as cabeças mais amedrontadas.


O dia memorável aguçou o apetite de transportar este novo luar para dentro de cada morada. Meu pai não teve mãos a medir, meses e meses. Furados os mármores para os contadores, era fazer a puxada com dois fios para dentro de casa. Depois, implantar a instalação inteira, assoalhada a assoalhada, conforme o requerido por cada qual. Completada esta empreitada, veio a derradeira, mais leve: instalar motores de rega para substituir as velhas noras tão caras, tão raras, tão lentas! Poucos o quiseram, que era investimento de vulto para quem de tão parca liquidez dispunha. Os mais esperavam para ver, depois de contabilizar os resultados logo veriam, quando houvesse dias melhores.


O último, meu pai montou-o em Bustelo. Era uma manhã de sol fresco, a culminar de luz, de luz inteira, toda a aventura de andarmos, minúsculos, ali a imitá-la em arremedos tímidos, inseguros. Uma vez acabada a tarefa, meu pai desceu do poste, confirmou que a luz não fora ainda ligada e então trepou os degraus como quem sobe uma escadaria triunfal pelas nuvens dentro, até penetrar no céu, rumo ao dia integral onde toda a noite foi de vez abolida. Para despir o corpo que lhe empecia o voo pelas alturas imensuráveis, pegou no alicate que pousara lá no topo sobre duas fases, sem o isolamento de borracha, no momento exacto em que a corrente eléctrica fora restabelecida. O choque foi tão brutal que o projectou eufórico pelo infinito, vindo a corpo a terra, desamparado e morto. O gosto do ti'Luís Abante por todo o tipo de luz ali se consumou definitivamente, acabada a obra cá em baixo, num S. Pedro negro e sujo que nenhuma rede eléctrica poderia jamais alumiar com os brilhos inefáveis doutro mundo. Minha mãe chorou de saudade, que sempre sonhara viajar e ainda para mais na imensidão deste itinerário de maravilhas que ora lhe via recusado. Depois caiu em si, olhou-nos, viu-nos perplexos, tolhidos, e compreendeu. Teria de dar-nos a mão até que pudéssemos segurar as rédeas da vida. Enfrentou a tarefa como quem se despede gradualmente e foi esquecendo, insensivelmente, cada vertente dos dias com tanta persistência e precisão que acabou abalando daqui muito antes de ter morrido.O corpo ficou-lhe vazio de alma, ignorando quem era, ignorando o que nos era, ignorando o que éramos: aí soubemos que, finalmente, viajara de vez na imensa viagem sem retorno, ao encontro de seu bem-amado Luís. Doravante fazem parte da luz que em cada manhã nos acorda, depois de, noite fora, nos terem murmurado nos sonhos, jogando connosco às escondidas, como quando éramos bem miúdos, tal qual, no fundo, seremos sempre para eles.


E com ambos se foi de S. Pedro o cunho ancestral das grandes empresas colectivas. Ficaram os luzeiros, a derradeira obra, a indicar a rota, espalhados por todos os caminhos. Ficou a marca daquele pequeno coração de luz sobre a mesa comum de cada lar. Deixaram-nos, pois, a carta com o roteiro da viagem, de todas as viagens: o desafio das aventuras que irão dar a um mundo novo, que irão dar ao Novo Homem.


- Não, não creias que te despedes assim com tanta facilidade. Porque não conseguirás despedir-te jamais. Tu, aqui prisioneiro, sempre libertado quando um olhar qualquer, por mais distraído, sobre ti pousar e sentir por dentro a pulsação que é a tua mas que, de facto, não tens e ele te emprestará; tu, aqui aprisionado, e teu autor, pretensamente alheio a ti e a tudo, crendo-se liberto – vós ambos não lograreis jamais despedir-vos, nem sequer após a morte de quem te gerou. Aqui ficastes gravados em papel e em alma. Se o papel se queima ou rasga, se o tempo lhe dilui as tintas, as marcas de alma que lixívia as apaga? Não, não tenhas ilusões. O vosso destino amarrou-vos um ao outro e uma segunda amarra vos prende aos destinos da Humanidade pelo tempo além, sem mais fronteira no espaço e na duração que a que o destino muito bem entender. De vós, doravante, nada mais depende. Permanecereis para sempre escravos do acto gerador e da progenitura dele derivada.


- Mas, P. Abel, é o snr.?! Que mais pretende entremostrar-me? Crê que me não basta a sua engenharia educativa dum Homem Novo?


- Oixa, minino, a questão é que num há mais limitaxões. Ficou libre de bez. Dorabante pode libertar tudo e todos hoje, aminhé, daqui a um xéculo, a um milénio, aqui, na Europa, na Oxeânia ou no planeta Marte. Libre, xim, mas xem a liberdade de num xê-lo. Faxo-me intender? A ti'Legria conta axim: nem que rasgue tudo isto já, de modo a num haber mais notíxia im lado ninhum, dorabante num cunxegue diluir o efeito por dentro do autor qui o criou, que foi mudado pela gesta da criaxão e agora bai reflectindo tudo xobre todos cum que bibe e trabalha. A xemente germina, num tem mais fim. Nem meio de pará-la de bez. Foi jogada à terra, a leiba xegue o xeu curxo, queira ou num queira, minino.


- Ó ti'Guida, como pode entender disto?! Como pode falar assim?! Como sabe da ti'Legria?!


- Ora! O teu avô rasgou as estradas de mão dada com todos os mais. E este nó aí está. Não reparas como o modo como o recontas é o de interligar as vozes e os gestos, os sentidos e os rumos? Ele rasgou caminhos por todos os trilhos da terra, tu rasgaste-os no papel, seguindo idêntica receita. Ora, uma vez aqui, tu entras pelos olhos de qualquer um a marcar a ferro e fogo os corações, os imaginários, os sonhos e as práticas de quenquer. Tu rasgas também estradas, mas por dentro das pessoas e de mão dada com muitas mais, com infinitas mais. Ele teve o limite de S. Pedro, tu nem tens limite, que a Humanidade o não tem. És maior, infinitamente maior que teu avô, mesmo que teu autor, embora este seja a realidade e tu a fábula, sobrinho.


- Somo-lo todos e não o somos, já que entre a realidade e a fábula não há nunca fronteira definível. Nem no livrro nem na vida. Quanto de meu autor é sonho e fantasia, não-ser a caminho de revestir-se de carne e sangue? Quanto de nós foram e são vivências e gestos materializados, encardindo as pedras das sendas humanas?


- Ui, tem-te aí, que és fino demais! Se adregas de botar um passo abante, inda acabas por defender que fantasia é teu autor e tu foste que o geraste. T'arrenego, que tens pinta!


- Olá, ti'Mília Lebeira! Mas olhe que não era mal pensado. Quem sabe onde findo eu e começa o autor?


- Mais te balera reparares na mistura da berdade e do erro, do bem e do mal, intendes? Olha, a tua abó materna bubeu cuntigo o leite azedo desnatado cumo passaporte para o Além. Queres saber que é uma santa? Pois. E dubidabas tu, que era uma bruxa popular e uma feiticeira de curas sigilosas. De miúdo assististe-a a talhar o mau olhado co'a tampinha de azeite, o graveto de urgueira demolhado a retraçar cruzes e mais cruzes im riba da cabeça penitente, acumpanhando tudo cum rezas de antanho, im berso, meio oração, meio brincadeira. E òbiste muntas bezes os curados a agradecer a bença. Claro que é uma asneira, mas tamém num é. Fora por sugestão, por influência, por crendice ou porque tinha de ser: a berdade é que as maleitas se curabo e tua abó sabia o jeito. Era p'ra ajudar cada padecente, nunca p'ra indrominar nem por ganância. E pronto, òpois cunseguia mesmo. Intão é santa, bês? E o trasorelho? Munto bocês se rio q'ando ficaro mais crescidotes. Ê cá, não, num me ria de ninhum disparate se ele lubaba a auga ò moinho, que é cum'a quem diz. Io lá aqueles doentes todos co'o inchaço atrás da orelha, às bezes já co'a pescoceira gorda da infecção, parecio uns focinhos de porco, Deus me perdoe. Aí a tua abó punha a canga dos bois im alto, mandaba-les infiar o cachaço no lugar que nem o do gado e ali, co'a peça a pesar-les im riba e que eles tinho de òguentar cum'òs animais, cumeçabo as rezas, na lengalenga aprontada àquela maleita. E era certo e sabido que quinze dias òdespois o mal se esfumara cumo por incanto. Pois, bocês rio-se porque co'a canga ou sem a canga, duas sumanas curario sempre a doença, caso num fora agrabada por q'alquer mau sestro. Agora eu num ria, sabes porquê? Por respeito ò que cada qual acredita que é berdade e por respeito à cura que aquilo desincadeaba nos doentes, porque bastaba eles crer naquilo, era já meio caminho andado.


- Mas é tudo crendice, ti'Mília, tudo superstição sem fundamento e que não leva a nada. Os efeitos benéficos são recuperações naturais, quando muito aceleradas pela crença, pela fé, por efeito de auto-sugestão, do empenhamento dos doentes em curar-se... Então não é?


- É, Tito, será, mas o outro lado tamém é berdadeiro. Se tu les tiras isso, atão eles até pode morrer. Cumo todas as berdades, estas caminho por dentro de cada um. De duas, uma: ou se faz luz no coração e muda logo a maneira de ber, ou num se faz e fica tudo tal e qual. Mesmo q'ando um home é forçado, de fora, a proceder contra o que le parece bem, nem que isto seja uma grande asneira. É neste caso que tudo fica mais igualzinho por dentro dele: num bê a berdade daquilo que os mais le impõe e cuntinua a ber a do que le tiro. Cumo num pode fazer a caminhada por ele próprio, intão fica tolhido de bez naquele canto, cundenado à ignorância, no escuro do precunceito. O caminho da sabedoria é munto estreito e um nada deita tudo a perder no seio de cada um.


- Minha avó era sábia? Não acreditava naquilo que operava?


- Era e cria, meu filho. Mas custa-te a entender. Aí nada é a preto e branco, tudo são cambiantes que à primeira ninguém nota. Tu precisas que te expliquem bem, senão depois não nos largas mais nem desistes das perguntas. Eu conheço-te muito, que te aturei quatro anos na escola. E já ali eras uma carraça, salvo seja. Lembras-te daquela de quem descobriu Timor? Pois olha que eu não me esqueci, andei uma semana à cata de informação e documentos, a ver se conseguia dar-te conta do recado e não havia maneira, não constava em lado nenhum. Mas isto era o pão-nosso-de-cada-dia, endiabrado de miúdo! Davas-nos cabo do juízo a todos.


- Oh, Sôra Pessôra! Também não era tanto assim! Fui sempre curioso, só curioso... É de verdade tão mau?


- Não, claro que não, foi bom, muito bom. Contigo eu tive sempre a certeza de que não me podia instalar e ficar para ali cristalizada sem fazer mais nada na vida. Tu desinstalavas-nos permanentemente a todos,a mim e aos teus colegas da turma. Mas nunca podia ser, era incómodo porque ia contra o nosso comodismo. Mais nada. Mas lá estou eu a divagar. Ora, a que propósito é que isto vinha?


- Da minha avó.


- Ah, pois, evidentemente. Repara bem nisto. O que todos precisam é que lhes talhem o mau olhado, que é assim como quem diz que urge recuperar a lisura nas relações entre as pessoas. Os laços andam sempre a toldar-se, a equivocar-se, a perverter-se. Então importa contrapor um movimento de sinal contrário mais forte ainda. Senão, em lugar de andar para a frente, anda tudo para trás. Era o que a tua avó sabia fazer, limpava o olhar e o coração dos que a buscavam, com um ritual ingénuo mas eficaz para a magia em que eles todos criam. O que importava era varrer o terreno dentro de cada qual, para então daí chegar ao terreiro de uso comum a todos.


- E depois, se não funcionar, pomos-lhes a canga ao lombo, tornamo-los bois!


- Onde é que tu foste buscar esse feitio brincalhão e gozador? Olha que em miúdo não o eras muito. A canga do trasorelho é apenas o outro lado, o de desfazer os inchaços que nos tolham por dentro. A tua avó bulia nos dois registos de que tudo acaba por depender. A gente tem de ater-se à pureza, à simplicidade que nos conforma em nossa raiz. Então, quando uma inflamação nos verga ou mata, importa liquidá-la a tempo, antes que nos liquide a nós. Só depois é que podemos, limpos, abrir-nos aos mais. Agora já vês qual era a sabedoria da tua avó, qual era a crença em que ela apostava. O resto eram os gestos, os ritos, as tradições que com aquele povo iam mais longe em cada um destes trilhos escondidos. E tu que rias e tanto fazias pouco, diz lá bem se não é de rires aantes de ti próprio e da tua cegueira pejada de pretensiosismo! Olha que a vaidade é pior, muito pior do que o pior dos trasorelhos, salvo seja.


- Pronto, vamos todos pôr a canga, ficamos combinados. Cá por mim já cá tenho a minha, definitivamente ajustada ao cachaço.


- Terás de fazer a reza bem feita ou nada feito. Ouve-me bem, que a fé será que te leva a dar o passo que convier. Quando vos matava o porco, não era o muito saber, não era a experiência que endireitavam a faca certeira ao coração, para o reco não sofrer. Não, era sempre uma entrega quase de olhos fechados. Quando eu tinha o vezo de mostrar, falhava sempre. Só quando me fiava humilde dos instintos ou lá o que é, do que a gente nem controla, e o deixava guiar-me o punho. Aí o cevado chegava a afogar à primeira, nem dava conta. Ouve bem o que te digo, rapaz, que te fala o saber de muitos falhanços. E o dos acertos, e o dos acertos, compreendes?


- Lembro-me bem, ti'Sacristão, lembro-me. E aconteceu muitas vezes. Pois aqui vou, com todos vós, dar o salto de olhos fechados no abismo terrível da multidão anónima e do tempo indefinido. Com fé, com toda a fé de que os milagres são mesmo viáveis. E acontecem quando menos o esperamos. Quem dera! Quem dera!






27 – Post-Scriptum


Claro que me esqueci do ti'Marcadas. Bem, a questão é outra. Que é que um autor pode fazer para não esconjurar os leitores? O dilema em que me vejo é simples: o ti'Marcadas, leitor, é você mesmo.


Pronto, já previa! Mas não estou a insultar ninguém, acredite. A chamar-lhe bêbado?! Que ideia! Não, não! Como me poderia passar tal coisa pela cabeça? …


Está a entender-me mal, não quero apenas referir-me ao meio milhão de alcoólicos permanentes do País. É que esses apenas constituem os visíveis, os invisíveis são todos os mais, somo-lo todos, eu inclusive...


Vá lá, não vire as costas! Então não vê que até os abstémios são ti'Marcadas?! Sim, os abstémios. Que é que tem?...


Não é nada contraditório! Eu explico. Veja lá, cada pessoa é ou não é um sonho frustrado que nunca mais acerta na conta dos tamancos que trocou? É ou não é um projecto a caminho que fatalmente se desencaminha? Então já vê...


Para si é conversa fiada? Pois, para mim, não. Importa-lhe mais a história? Está no seu direito. Olhe, então aí vai, depois não diga que o não preveni. E, sobretudo, não creia que não é consigo. O que lhe vou contar é apenas o derradeiro trâmite da aventura de si próprio, dê-lhe as voltas que lhe der, já que nem o senhor, nem eu, nem ninguém escapa às malhas do destino. E a derradeira é fatal.



Quando o ti'Marcadas trepou a vertente pela última vez, aos bordões, falou às urgueiras, abençoou as carquejas, apoiou-se aos troncos gretados dos pinheiros, picou-se nos tojos. Ao cair desamparado, perdeu, finalmente, a enxada. Encontrou a ternura fofa da caruma que o abraçou mole e quente, como um seio da mulher que nunca tivera. Aí riu, riu, riu com gosto, com frenesim, pela vez primeira e derradeira. Agarrou as agulhas às mãos cheias, aos manados e elevou uma grande pira sagrada, ao lado da barraca informe que ninguém conhecia. Ateou-lhe o fogo, entusiasmado. Palmo a palmo, o lume que o consumia foi-se alargando, até que alta madrugada a mata inteira era um imenso fogaréu. Dava tanta luz que os galos estremunhados cantaram a alvorada, confundidos. Os aldeões abandonaram os tugúrios, assarapantados, mal dormidos, prontos para o trabalho. Só não compreendiam como é que a aurora naquele dia brotava do poente, com os pontos cardeais trocados. Mas não estavam ainda muito acostumados a perguntar...


Apenas os cães, com a intuição que a fidelidade multimilenar neles apurou, apenas os cães entenderam. Alçaram um enorme coro de uivos à Lua, de focinhos distendidos e alinhados, enquanto o Marcadas subiu de corpo e alma, finalmente, às alturas.


Só depois a aldeia caiu em si: os cães estão a anunciar morte, uma grande morte! Aí olharam bem alto a lua cheia, o luar de mistério e desafio, e maravilharam-se. Tinha-lhes voado a alma, o mais precioso da alma para tão longe e tão acima que a viam doravante projectada nos astros, no espelho do infinito.


E agora, sempre que os cães uivam, lembram-se de que um dia serão deuses. É que a semente ficou no além semeada, desde aquela noite dos mistérios, para sempre. Para sempre.






Peço Desculpa


Evidentemente que sou o responsável por ter escrito este romance ou lá o que é. E não peço desculpa a mim próprio por me ter dado o gozo inefável que me deu ao elaborá-lo. A si, leitor, é que peço, porque lhe dei o segundo lugar, sem sequer o equiparar, quanto mais dar-lhe prioridade!


Mas, enfim, o leitor é sempre benévolo, está-se realmente nas tintas para o que eu privilegiei ou deixei de privilegiar. No fundo, somos iguais: o que lhe importa é que isto lhe apraza e o mais são histórias. Como, afinal, não me liga nada, estamos quites, não é verdade?


Agora os críticos, não. Eles precisam imenso, infinitamente, do meu livro para treparem na escadariaa engalanada da glória, na pirâmide dos proventos que aguardam da fama. A eles peço desculpa porque irão necessariamente asnear, asnear asininamente como nenhum animal da espécie a que tal convém alguma vez faria. E não porque os críticos sejam asnos, coitados dos animais, mas porque os que o não foram já morreram e os que o não serão ainda não nasceram. Eu bem ando de candeia acesa, à luz do meio dia, Diógenes saído da pipa, a percorrer ruas e praças em demanda do primeiro, mas não, não encontro nenhum. Há, porém, sempre uma esperança...


Peço-lhes desculpa porque o meu romance ou lá o que é não obedece aos parâmetros a que andam habituados, não tem escola, não tem selecção temática, não lhe convém rótulo nenhum, não é de crianças nem de adultos, não é de entretenimento nem de tese, não é, não é... Todavia é tudo isto e mais ainda que não cabe sequer referir. E, para quem anda aprisionado no provincianismo ancestral de nossa literatura aqui vai o provinciano mais tacanho e broeiro e avinhado que algum dia viram com a prova provada de que afinal é perfeitamente universal, não só porque de todo o recanto geográfico mas porque de todo o coração de gente, se auscultado lá no bater mais fundo.


Peço-lhes desculpa porque gritarão contra a mistura de linguagem com metalinguagem ou então baterão palmas ao achado, mas o facto é que não entenderão nada. Nem sequer verão que isto anda aí desde a primeira linha e que o maior efeito lhe advém do esconderijo.


Evidentemente que gritarão contra o pretensiosismo. Uma das questões metafísicas mais absorventes a que me dedico é a de descobrir se, como não há jamais um teimoso sozinho, haverá um pretensioso solitário. Agora reparem bem de que lado é que isto provirá. Há tanto larápio que grita “agarrem que é ladrão!” na fuga para despistar!


O meu romance ou lá o que é constitui uma obra total? Claro, é verdade. Está aí, acabadinho. E tem, não nego, um bocado de tudo: é cómico e sério e dramático e trágico e esperançoso e revoltado... é mesmo revolucionário, pronto. Mas não é nada disso, que não passaria duma manta de retalhos ou dum mostruário. Ora, isto não é enciclopédia nenhuma, nem sequer dos géneros literários prosaicos. E, depois, é tão ternurento da primeira à última linha! Como poderia ser aquilo? Não tem unidade? Tem, olhem que tem, abram bem os olhos e não se deixem iludir pela troca de narradores nem de registos linguísticos...


É total, é. Mas não tem nada a ver com aquilo. É que anda aqui a Humanidade do homem. E mais: leva escondida a receita de criar um homem novo, extraordinariamente outro que este pobre, ignorante, incompetente que somos. Não é a brincar, não. Eu vi-o, eu, o autor. Não é ficção nenhuma, embora vá disfarçado com as roupas dela. Evidentemente que isto só não escapará a olhares mais apurados, os outros nem suspeitarão do que ali vive, do que anda a gerar-se em redor de nós sem que nos demos conta, meros primatas que somos relativamente a eles, aos que aí andam discretamente a transmudar-se, a transmudar-se, rumo a níveis de ser, de capacidade e de poder que nem nos passam pela mente. Nem nenhum homem algum dia pôde observar, muito menos os críticos que, coitados, não há maneira de aprenderem a reparar em nada que tenha jeito.


Peço desculpa porque nunca ninguém viu uma coisa destas numa aldeola perdida e desprovida e, portanto, os analistas terão de defender, impertérritos incréus, que tudo não passa duma grandessíssima asneira. Pobrezinhos, como levar-lhes a mal? Têm de ganhar a vida, não é? E assim continuarão a prestar os péssimos serviços que costumam à comunidade, apertando ainda mais afincadamente as palas que lhe tolhem o olhar e a mantêm ignara interminavelmente, para eterno benefício de quem apenas com um olho já logra então ser rei. Eles que o digam!


Peço finalmente desculpa porque não faço a menor ideia do que isto vale, se é uma obra-prima, se é um lixo a despejar rapidamente no caixote, se fica pelo meio de ambos, se para algum deles pende. É que eu não sou crítico. Eles é que sabem, embora, claro, se enganem sempre, redondamente. Por isso, digam eles o que disserem, será irremediavelmente um chorrilho de asneiras. O que não tem mal nenhum, porque nos diverte imenso. E há lá coisa melhor na vida do que a gente rir com gosto!


Claro, leitor, só você que não liga nada a isto é que vai decidir em última instância e ainda bem. Como nas demais justiças, para um julgamento com a máxima probabilidade de ser objectivo, só um juiz de fora parte. E mesmo assim, quantas vezes foi só na geração seguinte, apenas um século depois que, finalmente, os olhos se abriram!


Reparo, entretanto, que esta introdução-remate, bem medidas as coisas, era, afinal, inútil. Mas, já agora que me deu tanto gozo, não me desfaço dela. Peço desculpa!






Índice


Capítulos


1 – Ladrões

2 – Circo

3 – O Circo do Bispo

4 – O Cinema da ti'Delaida

5 – O Baile da ti'Delaida

6 – A Viagem ao Porto

7 – As Cruzes da Malaposta

8 – Abrir Estradas

9 – O Nome de Samil

10 – Novenas de Maio

11 – O Roque e a Amiga

12 – Os Caramuleiros

13 – A Tica e o Vidreiro

14 – O Tribunal de Augusto

15 – O Pó-d'Ela

16 – O Esmeril do Paúl

17 – O Úbere do P. Abel

18 – A Cabaça das Desfolhadas

19 – O Tardo

20 – O Carro do ti'Quico

21 - O Carnaval do Tilós

22 – À Espera das Feirantes

23 – As Amêndoas do Compasso

24 – O Avião das Manas Rolim

25 – O Milagre da Bronquite

26 – Um Mistério a Escrever nos Céus

27 – Post-Scriptum

- Peço Desculpa