TOMAR O RUMO



BARTOLOMEU VALENTE




Lisboa, 1989




Tomar o rumo



A pessoa madura e avisada pretende encarar a vida de modo consciente, orientando-se fundamente para horizontes de realização que o gratifiquem. Viver ao sabor da maré, ignaramente, é perigoso por desarmar-nos ante imprevistos , escolhos, distrai-nos de possibilidades que por nós derivarão inaproveitadas, para além de nela própria tal atitude nos frustrar no gosto de nos desvendarmos, afirmarmos, de imprimirmos a nossa marca individual na vida própria, no meio envolvente, na sociedade e até, quando viável, na história. A busca desta arte de viver constitui uma terefa interminável, devindo pano de fundo de qualquer projecto pontual do dia a dia para toda a personalidade forte e socialmente marcante. Constitui na prática um itinerário de gradual elevação à sabedoria. Noutras palavras, isto é filosofar ao vivo, tenham de tal conhecimento ou não os sujeitos em causa. Ora, é por este vector que devém imprescindível à maturidade humana a filosofia, seja a que espontaneamente ocorre de cotio a nível empírico, habitualmente assistemática e em muitos aspectos acrítica, ou a que deriva do empenhamento explícito na elaboração de tal saber e na comunicação dele e da arte de o descobrir e organizar a toda a gente.


Neste último sentido toma particular acuidade o papel do professsor de filosofia, pois dele depende a transmissão institucional tanto do conhecimento constituído nesta área como da via e da atitude que a ele podem conduzir. A dificuldade com que depara, porém, é a de que reflectir ao vivo e para a vida concreta de cada pessoa é uma actividade tão radicada no imo de cada um, tão característica dele próprio que não é transplantável, pelo que a respectiva transmissão é, no limite, inexequível. Por outro lado e ao invés, ensinar ou aprender a filosofia já elaborada é tarefa viável mas, no extremo, pode não ter rigorosamente nada a ver com a vida real da humanidade, da cultura ambiente, do grupo humano ou do indivíduo em particular que pretenda abordá-la, o que lhe retirará a pertinência e obscurecerá o sentido, podendo mesmo tornar assim inócua, até alienatória a intervenção filosófica. Ora, isto contradiz-lhe o alcance e a missão na economia da civilização e no destino do homem. Como superar o dilema?


Antes de mais o professor tem de tomar consciência e optar entre alternativas de escolha na atitude perante as disciplinas e os educandos, bem como na forma mais equilibrada de gerar e gerir o relacionamento com as turmas e os grupos. É o que constituirá o tema de “Algumas equilibrações a encontrar”. Nisto, porém, ele estará inelutavelmente assumindo já a intervenção da filosofia (e não só) com um rumo determinado que importa clarificar e fundamentar. Abordá-lo-emos em “O papel das disciplinas”. Quando organiza e executa o labor pedagógico, entretanto, ele vai requerer o conhecimento e domínio de múltiplos métodos e técnicas didácticas e de dinâmica de grupos, de modo a lograr adequá-los a cada um, a cada circunstância e momento. Trataremos deste aspecto nos “Métodos pedagógico-didácticos actuais”. À medida que implementa a intervenção, a irradiação das tomadas de consciência, da personalização gradual dos comparticipantes vai tendo efeitos cada vez mais profundos em integração, coerência e sentido, bem como em extensão, abarcando dia a dia mais aspectos e dimensões da pessoa e cada vez mais tendo eco sobre outros, alterando as relações intersubjectivas e grupais, os laços familiares e comunitários, fermentando uma cultura e um mundo diferentes, mais à medida do sonho do homem. Este domínio constará de “A formatividade da filosofia”. Evidentemente que todo este itinerário vai repercutir-se no modo e na orientação que a avaliação do aluno vai ter de revestir, obrigando-a a reconverter-se para não vir a trair a senda libertadora que se pretende implementar em todo o trajecto. É o que trataremos na “Avaliação como estratégia formadora”. Depois disto, porém, resaem dois obstáculos de vulto que levam a baquear definitivamente muitos, mesmo dos mais empenhados. O primeiro é o do padrão mais adequado para a relação pedagógica, num contexto formador como o visado. Os encontros intersubjectivos são tão vulneráveis e subtis que o mais insignificante desvio pode deitar tudo a perder. A que teremos de atender então? O segundo problema é o da disciplina em aula. Quando o educador não logra criá-la e mantê-la, não é apenas o trabalho do grupo que se esboroa, é o futuro profissional do professor em questão que é posto em risco, uma vez que ninguém aguenta muito tempo a balbúrdia, a agressão e a frustração sem esperanças que então se generalizam. Como evitar o colapso? Na última parte abordaremos estes dois problemas cuja gravidade requer tratamento mais pormenorizado. São desenvolvidos em “A relação pedagógica” e na “Disciplina na escola”.


Como todas estas reflexões, propostas e casos se destinam menos a serem meditados e mais a estimularem aplicações, reconversões, intervenções práticas nas turmas, em grupos, nas escolas e comunidades, optámos por dar-lhes uma versão intermédia entre o que seria um discorrer interligado, tendencialmente exaustivo em fundamentos e explicitações, e uma ficha tópica, com meras referências mnemónicas, pouco mais que um índice pormenorizado. Cremos que a versão intermédia garante por um lado a coerência bastante para ser inteligível e fundado quanto vai sendo explicitado e proposto e, por outro, termina a tempo de estimular cada um a confrontá-lo consigo próprio e com as práticas que vem tendo ou que pretende encetar, questionando e aproveitando assim quanto, como ponto de partida, aqui lhe vai ofertado. Outro não é nosso intuito, com efeito, senão que também com este meio cada educador se desvele, encontre e firme no que de mais autêntico tiver a compartilhar com os demais, na comum festa duma cultura onde pulse a vida.





I PARTE


ITINERÁRIOS



Algumas equilibrações a encontrar


1.ª Equilibração

A função cogente e a função referencial do programa


Na intenção ministerial e do legislador os programas curriculares são impositivos, para serem cumpridos obrigatoriamente. Ora, nem sempre os requisitos formativos são colmatáveis pelos itens programáticos, nem sempre os objectivos do sistema escolar e de cada currículo em particular coincidem com as necessidades, com as carências dos educandos abordáveis através da filosofia ou da psicologia. Em tais casos, que se tendem a tornar norma se tormarmos em consideração que os programas são universais e abstractos, no sentido de serem os mesmos para todo o País e duradoiramente (sem tomarem em conta as mudanças culturais e mentais permanente e aceleradamente em curso), que fazer? De notar que não são curricularmente atendidos factos tão inamovíveis e gritantes como: diferenças de valores, condições de vida, mentalidades e projectos existenciais que distinguem o aluno rural e o urbano, o do litoral e o do interior, o da montanha e o da planície, bem como o de quinze anos do de dezoito, vinte, trinta ou quarenta que permanentemente vamos encontrando nas turmas da noite. Igualmente não é considerado que todos passamos por períodos e acontecimentos críticos na vida e que áreas tão existenciais como as da filosofia e psicologia, se não quiserem ser alienatórias, têm de o tomar em conta.


Atendendo a que o professor deve ser antes de mais educador, faz mais sentido respeitar e cumprir o programa tomando-o fundamentalmente como referencial. Nestes termos, ele pode constituir um instrumento útil e utilizável em termos formativos, mas não ser empecilho sempre que se revele contraproducente ou ineficaz ou insuficiente para as necessidades a atender, devendo então ser complementado e substituído pelo que se demonstre eficaz em concreto para responder às carências dos educandos (ou de cada aluno individualmente).


Dar prioridade à função educativa na actividade docente do professor levará à busca duma equilibração permanentemente em curso, tentando corresponder a toda a variabilidade concreta dos educandos, turmas e escolas, caso a caso. Nisto ter-se-ão primeiro em conta as necessidades, objectivos e carências destes, tanto quanto possam ir sendo equacionados e respondidos pela filosofia e psicologia. Para tal usar-se-á o programa curricular como um recurso, um primeiro instrumento privilegiado sempre disponível e que teremos de ter à mão e de reserva constantemente, seguindo-o e desenvolvendo-o tanto quanto se mostre apto a corresponder às expectativas de formação dos educandos neste domínio, como nós formos capazes de as vislumbrar, apreender, propor e atender. Em segundo lugar, importa ter em conta que o grau de generalidade e abstracção dos itens programáticos curriculares permite uma enorme variabilidade de abordagens do mesmo programa, a ponto de ser difícil encontrar dois colegas que o concretizem na sala de aula com os mesmos conteúdos e da mesma maneira. Ora, esta flexibilidade deve ser utilizada em termos de optimizar a formatividade para os educandos de todo o trabalho docente, em vez de um uso arbitrário ou em função meramente dos gostos e preferências do professor como até hoje tem sido dominante. Em terceiro lugar, quando as peculiaridades das turmas, alunos ou escolas tornem desejável o recurso a outras pistas que não as programáticas, é importante explorá-las, mesmo em detrimento do cumprimento do programa, uma vez que o que interessa ressalvar é antes de mais a eficácia educativa e não o mero cumprimento legal e burocrático do papel de professor.


Este entendimento exclui tanto a abordagem arbitrária do programa, ao concretizá-lo, como a abolição pura e simples dele na prática, substituindo-o por outro sem lhe esgotar primeiro as possibilidades que se revelem de eficácia formativa em concreto. A equilibração a promover permanentemente é mais laboriosa que a preguiça de lhe obedecer às cegas, bem como a demissão de ir ao sabor da corrente ou do acaso, sem fio condutor definido e ponderado, que tenha em conta que uma das expectativas e objectivos legítimos do educando e seus pais é de que haja aprendizagens e continuidades garantidas pelos cursos e anos anteriores, o que não será respeitado se se ignorarem por sistema e por inteiro os programas curriculares.


O programa não é, pois, para ser cumprido mas para ser utilizado. Onde for inútil deverá ser substituído, onde for útil deverá ser rentabilizado até se lhe esgotarem as potencialidades, a fim de prevenir ao máximo as continuidades e pressupostos cognitivos da escolarização.



2.ª equilibração

A “pedagogia por objectivos” e as metas verificáveis previstas, a pedagogia humanista e os fins de autoformação



Se em filosofia pretendemos que o aluno vá o mais longe possível na linha do filosofar, implicando a reflexão pessoal e personalizada, autónoma e com os imprevistos que a afirmação duma consciência inevitavelmente sempre acarreta, tanto no âmbito dos conteúdos, como no das valorações, como no das trajectórias preferidas pelo intelecto, então a “pedagogia por objectivos” é inapta como instrumento para o nosso trabalho pedagógio, no que ele centralmente visa. Efectivamente, aquela, ao organizar-se em torno de objectivos previamente definidos pelo professor e vinculando este a efectivá-los na aula sem desvios, é a contradição de quanto atrás dissemos pretender na abordagem filosófica. Nesta, com efeito, intentamos uma iniciação à construção de si por parte de cada educando, no respeito, obviamente, da sua intimidade, originariedade e unicidade invioláveis e irrepetíveis. Isto implica a disponibilidade do educador para acatar, em cada área aporética a abordar, as singularidades e inesperados de todo o tipo que advenham à reflexão mais autêntica possível dos educandos, abrindo eventualmente rumos novos ao filosofar, projectando inéditos horizontes axiológicos, recriando a cultura em modalidades à partida imprevisíveis e, por conseguinte, implanificáveis em concreto.


A planificação que deve fazer-se revestirá, assim, modalidades e principalmente funções incompatíveis com a “pedagogia por objectivos”, mas antes coerentes com a finalidade primeira de tudo ordenar à autoformação do educando, no domínio da consciência de si na vida imediata e alargada no tempo e no espaço (objecto englobante do filosofar). Em primeiro lugar, o interesse pela definição prévia de objectivos gerais e objectivos específicos (até à especificação exemplificativa de comportamentos de verificação de que foram atingidos) perde neste contexto qualquer pertinência, uma vez que o que mais importa para preservar a capacidade de acolhimento de imprevistos é que haja grandes finalidades em mente, vastos campos problemáticos a explorar, deixando à definição pessoal de cada aluno, à especificidade de cada turma as concretizações a ocorrer, bem como a descoberta dos caminhos ou vias vivenciais e da razão por que acontecerá. Se os objectivos específicos podem ter eventualmente funções positivas para promover destrezas particulares que são ancilares na filosofia (aprendizagem de consultar obras, de interpretar textos, de elaborar fichas, de escrever relatórios, de trabalhar em grupo, de executar projectos...), para o mais importante aqueles objectivos podem sonstituir um espartilho que tende a levar o professor a obedecer-lhe e a forçar a turma a encarreirar pelos caminhos que a ele conduzem, mantendo-se o docente cego e surdo às manifestações desviantes mais significativas e autênticas dos educandos a que prioritariamente deveria prestar atenção para tornar maximamente formativa a relação pedagógica.


Também relativamente aos conteúdos a componente cognitiva deverá ser instrumentalizada em proveito da sócio-afectiva que recolherá as manifestações mais radicadas no íntimo e na vivência e consciência pessoais de cada educando. Como isto trará os consabidos imprevistos, só em termos de generalidade se poderá referenciar e prevenir numa planificação, mormente pela selecção de aspectos críticos e típicos das idades ou do meio dos alunos. Será ao serviço destes aspectos que, entretanto, se colocarão os recursos cognitivos programáticos (história da filosofia).


A metodologia e estratégias previstas não se deverão ordenar prioritariamente a que os alunos aprendam as matérias mas antes a que se descubram e desvendem a vida, tomando-se e tomando-a em mãos, servindo-se para tal dos recursos que são as interpretações da filosofia constituída (programática ou não, conforme o que for requerido pelos questionamentos existenciais que ocorrerem), bem como socorrendo-se da experiência existencial de cada um, das reflexões compartilhadas, do saber e capacidade de comunicar e problematizar do professor, da escola com todos os meios que ela põe ao dispor dos utentes. Esta mudança de tónicas pode aconselhar métodos e estratégias que até nem sejam os mais adequados a um mero domínio cognitivo do programa, visando uma simples prestação de provas, que nunca abandona a vertente intelectual, colocando entre parêntesis a afectividade e o agir dos educandos.


A planificação como um todo terá, por outro lado, a função de guião e não de projecto a ser cumprido. É uma prevenção, uma organização de recursos a manter permanentemente disponíveis mas que serão depois usados ou não conforme as circunstâncias o requererem, os imprevistos se lhes ajustarem. Noutros termos, o plano não é para ser cumprido mas para ser utilizado enquanto for útil, devendo ser substituído no restante durante a execução.



3.ª equilibração

A relação pedagógica


Entre a relação distante e superior do mestre iluminado que se digna descer do tabernáculo do saber até à plebe de eventuais discípulos, por um lado, e a do comparsa conspirando numa eterna conversa de café transposta para a sala de aula, inconsequente, sem horizontes nem conteúdos para além de epidérmicas cócegas intelectuais, urge encontrar um equilíbrio ordenado à máxima rentabilidade formativa do encontro com os educandos.


Entre um saber concebido como adquirido e que se transmite do iniciado ao iniciando, transformando este em mero receptáculo da sabedoria constituída e escolarmente consagrada, por um lado, e, por outro, a pretensão do inatismo do saber, do conhecimento infuso ou da mera ginástica de faculdades e aprendizagem de como aprender, esvaziadas de conteúdos, urge reconstruir uma equilibração que passa pelo relacionamento professor-aluno e pelo que neste encontro se troca mutuamente, tendo em vista optimizar o aproveitamento deste recurso no desenvolvimento integral da personalidade do educando.


O modelo optimizado do relacionamento pedagógico requer atendimento a quatro quesitos fundamentais:

1.º – O educador deve aceitar-se a si próprio, ser transparente perante ele mesmo e acolher-se tal como é, tanto no que for para consolidar como naquilo em que entender dever modificar-se;

2.º – Por outro lado, terá de aceitar incondicionalmente o educando tal como este lhe chegar, não fazendo jamais depender a aceitação de quaisquer condições prévias que requeiram a mudança do aluno, a transformação dele noutrem que não é de facto – acolhe-o enquanto sujeito, pessoa, autor de iniciativa e dele próprio e nunca enquanto detém determinados atributos ou revela certas qualidades, encontra-se com o eu que ele é e não com qualquer das circunstâncias que transitoriamente lhe dão forma, o informam;

3.º – Ambos devem predispor-se a empreender uma caminhada em comum em que não haverá jamais um educador e um educando mas sempre um educador-educando e um educando-educador, trocando permanentemente de papéis e entreajudando-se numa aventura interminável em que mutuamente se transforrmam e aprendem, complementando-se indefinidamente;

4.º – A fim de mais potenciar tal relação pedagógica convém explicitar aos educandos que é este o perfil que se tentará que ela revista, solicitando o empenhamento de todos na realização e aprofundamento em autenticidade de tal itinerário.


A efectivação dum padrão relacional optimizado pedagogicamente implica que se tenha em conta o grau de maturidade pessoal para geri-lo bem como o dos educandos para nele comparticiparem. Isto significa que ele se situará como um horizonte ideal de referência de que se tentará em cada caso aproximar gradualmente, conforme se for adquirindo mestria para com ele operar, por um lado, e, por outro, conforme se for obtenddo eco de adesão e de atitudes responsáveis correspondentes por parte dos educandos e turmas. Será um trajecto gradual e interminável.


Isto implica que, em concreto, se terá de operar uma equilibração que cada professor terá de encontrar entre um afastamento disciplinador e autoritário que ordena o relacionamento mas empobrece o potencial formativo dele e uma proximidade tão paritária e epidérmica que se esgote e esboroe no corriqueiro do dia a dia, sem futuro, nem profundidade, nem horizonte de sentido que a faça valer a pena.


A relação pedagógica, entretanto, é uma componente tão fundamental para optimizar o projecto educativo que se torna indispensável documentá-la de modo específico e diversificado, para estimular qualquer educador a implementar elevadas capacidades de relacionamento. Atenderemos a isto na segunda parte da obra.



4.ª equilibração

Excesso de informação e repetitividade


Na comunicação, o professor tem de encontrar o ponto de equilíbrio entre o excesso de informação e a repetitividade. O aluno, como qualquer receptor, tem uma capacidade limitada de apreender informação nova a cada momento. Ultrapassar o limiar máximo é bloqueá-lo, deixando perder por inteiro todos os conhecimentos que se pretendem ver assimilados e induzindo reacções de defesa como a criação dum muro de comunicação ou a formação duma cultura em mosaico no educando, com pequenas ilhotas de sentido mais ou menos coladas em profundidade e sem pontes dumas para as outras nem para a idiossincrasia pessoal global. Em contrapartida, porém, a falta de informação é desestimulante, gera o tédio, o aborrecimento de nada ter para fazer, a chateza de nada de novo ocorrer, estreitando gradualmente os horizontes pessoais e dessorando os sentidos de vida que lentamente perdem o atractivo, nomeadamente no âmbito da comunidade escolar.


Na busca do equilíbrio óptimo, é importante ter em conta que, para evitar as distorções que sempre se introduzem no circuito de comunicação, é fundamental que as informações cheguem ao receptor repetidamente por múltiplas vias. A repetitividade é relevante a vários níveis, permite reaferir a descodificação que se vai fazendo, garantindo a fidelidade da recepção, facilita a assimilação, evita a perda ou desperdício de comunicações que doutro modo poderiam ficar ou ser abandonadas, induz à descoberta das múltiplas implicações, alcances e sentidos em que as novidades forem relevantes, viabiliza as utilizações, aplicações que decorrerem das informações em causa. Quando, porém, a repetitividade se torna excessiva atinge igualmente um limiar de saturação por falta de novidade, levando o receptor a cortar o circuito, tornando-se surdo a qualquer comunicação que lhe não traga inovamentos. Daí ser importante ter em conta não apenas a utilidade de repetir mas de o operar segundo perspectivas diferentes, por vias de comunicação várias, a partir de questionamentos diversos, em função de aplicações ou sentidos díspares, de modo a introduzir permanentemente inovações num campo informativo que, entretanto, se vai mantendo idêntico através da variação dos ângulos de focagem.


O professor terá, por um lado, de equilibrar a quantidade de informação nova, evitando o excesso bloqueador e a carência entediante para o educando e, por outro, deverá ponderar a repetição em termos de fugir ao extremo de a tornar redundante, para não levar o aluno à saturação, nem tão escassa que a informação se perca ou esvazie. Para além destas duas equilibrações que o educador terá de operar permanentemente, convém ter em conta que cada uma delas se tende a opor à outra, pelo que deverá operar-se uma terceira forma de equilíbrio, agora entre elas ambas. É que, à medida que se incide nas informações novas vai faltando tempo e atenção para as repetir; ao invés, tanto mais quanto se acentue a estratégia da repetitividade, escasseará tempo e cuidado para o tratamento das novidades. Daí requerer-se que ambos os pendores sejam ponderadamente atendidos, tendo em conta o que é imposto pela norma interna do equilíbrio de cada um deles e a necessidade de não ignorar que, para a optimização da comunicação, ambos terão de ser contemplados, sendo as tónicas afinal decorrentes do estado cultural e do feixe comunicativo e relacional estabelecido com cada educando, cada grupo, cada turma e cada escola.


Tratando-se de realidades com dinâmicas sobrepostas, com dialécticas múltiplas imbricadas, o educador não poderá fixar-se em qualquer modelo pré-estabelecido, em qualquer fórmula apriorística, nem sequer numa modalidade pessoal típica que com o tempo e a prática eventualmente tenha acabado por adoptar ou para que tenda espontânea e inconscientemente a resvalar. Ao invés, esta vertente da relação pedagógica requer uma atenção permanente e incansável ao estado momentâneo do educando enquanto receptor, tanto em termos de atender ao contexto de saberes em que ele vai enquadrar a informação a transmitir-lhe como para identificar-lhe a receptividade, a disponibilidade para a comunicação, aspectos em que a multiplicidade de situações e a variabilidade delas são permanentes em cada aluno e em cada turma, bem como oferecem distinções de escola para escola. Ora, a optimização da comunicação requer o atendimento permanente e a adequação, em cada instante e lugar, a toda esta realidade mutável, em perene fluir. Quanto mais a sensibilidade se apurar em captar-lhe os sinais correctamente, tanto mais o professor disporá duma informação realista da situação em cada momento e melhor pode moldar-lhe a relação pedagógica a implementar em concreto.



5.ª equilibração

Rigidez e flexibilidade nos conteúdos e nos relacionamentos


A equlibração a encontrar entre a rigidez e a flexibilidade relativamente aos conteúdos programáticos ou extracurriculares é uma resultante da opção pelo primado da função referencial atribuída aos programas ministeriais. Isto, porém, pode revestir vários sentidos. Em primeiro lugar, trefere-se ao recurso aos itens curriculares sempre que possam utilizar-se formativamente, mantendo-se a abertura a outras matérias sempre que os educandos, os problemas ou as circunstâncias o requeiram, em ordem a optimizar a relação pedagógica. Em segundo lugar, porém, rigidez e flexibilidade serão os dois extremos dum continuum que tem como polos a informação da filosofia constituída e a informação da vivência existencial dos educandos. Com efeito, neste sentido, a transição duma abordagem exclusivamente centrada em conteúdos cognitivos para outra centrada nas vivências dos alunos implica uma flexibilização nos hábitos metodológicos tradicionais dominantes no grupo disciplinar. A mudança, entretanto, requer a aquisição e apuramento de competências, sensibilidade e cambiantes relacionais e culturais por parte do professor, o que implica tempo de empenhamento, disponibilidade de energias e vontade de ir mudando. Em todos os casos isto será gradual e com afinações lentas tanto mais morosas quanto mais precisas e apuradas. Ora, em todo o projecto é importante que o educador se autodiscipline e discipline a relação pedagógica, o que lhe vai exigir que encontre e reformule constantemente o ponto óptimo entre a rigidez e a flexibilidade com que se apega ou desliga daqueles dois polos, o cognitivo e o vivencial, sobre que está trabalhando com os educandos. O princípio aqui é o de que deverá ser apenas suficientemente rígido no apego ao vector cognitivo da filosofia constiuída para não perder o pé tanto no fio do discurso e reflexão compartilhada que está implementando, quanto no controlo do processo grupal de trabalho; e deverá ser o mais possível flexível para permitir a maior aproximação viável à análise e assunção da existência e rumo de vida reais de cada aluno e turma, em cada momento de maturação deste trajecto no professor, no educando e em cada grupo.


Nos relacionamentos terá igualmente de encontrar-se uma equilibração entre a rigidez duma disciplina imposta, com um distanciamento do educador, frio e implacável, detentor dum poder sagrado inviolável e o companheirismo de igual para igual em que se confundem posições, funções e responsabilidades e em que o respeito mútuo a todo o momento pode ser impunemente transgredido. Também aqui a directriz desejável, em termos de gerar e alimentar um relacionamento em clima que optimize a formatividade do processo educativo, consiste em apenas impor com rigidez bastante a disciplina do melhor padrão relacional que se for capaz de garantir e em alargar a flexibilidade do desenvolvimento dos encontros até ao extremo possível para neles acolher quanto de vital e significativo neles se possa equacionar.


A tensão antitética entre rigidez e flexibilidade opera dialecticamente enquanto cada um tem de encontrar o ponto de equilíbrio que no momento e para cada grupo e aluno em concreto melhor permite gerir o encontro interpessoal. A verdade, porém, é que em termos de desenvolvimento da nossa capacidade pedagógica tende a ocorrer um continuum numa trajectória que vai da impositividade à tolerância e disponibilidade, à medida que logramos ultrapassar as inseguranças, ignorâncias e deficiências próprias da imaturidade e inexperiência e, em contrapartida, nos vamos tornando mais autoconfiantes, disponíveis, acolhedores e atentos à especificidade de cada educando, de cada turma, de cada escola e comunidade ambiente. Convém estar atento a esta caminhada de maturação pessoal que simultaneamente se reflecte em optimização na relação pedagógica pelo espaço de simpatia cada vez mais largo que em nós vai criando para atender aos alunos. Não é, pois, indiferente axiologicamente cada um dos polos do itinerário na vida do educador: a rigidez é de menor valia e por isso deve apenas revestir o peso que requeira a segurança pessoal e relacional que garante; a flexibilidade é o ideal a atingir por maturação gradual e, portanto, deverá alargar-se tanto mais quanto for viável geri-la a contento, a bem dos educandos e para máxima gratificação profissional do professor.


Para optimizar tanto, em cada momento, o equilíbrio dialéctico entre os dois vectores como, ao correr dos anos, a lenta maturação da trannsição pessoal da dominância dum para o outro, importa, na primeira lição do ano lectivo, com cada turma, clarificar as regras (poucas e simples) do jogo relacional, mormente para a sala de aulas, de modo a ficar claro para todos os educandos o que se pretende, o que se espera, até onde haverá transigência e o que se não irá tolerar. Isto dará segurança a todos.


A gravidade dos problemas disciplinares na turma é, entretanto, de tal ordem que ameaça todo o labor pedagógico, bem como a própria carreira docente de quem com ele se confronta. Isto aconselha um tratamento particular e pormenorizado da dificuldade, o que remetemos para a segunda parte da obra.






O PAPEL DAS DISCIPLINAS



1 – A filosofia e a sua função na cultura


A função da filosofia na cultura ocidental está em crise, acompanhando a parca repercussão do filosofar desde os finais do séc. XVIII até ao presente. A par disto impera incontestável o saber científico e o desenvolvimento tecnológico, com a generalização mais ou menos empírica da tecnocracia, do cientismo e do positivismo prático e implícito. Dado que a dimensão da realidade recolhida, tratada e explorada por estas vias é a do universo sensível (nas ciências da natureza ou nas do homem), tais mundividências, tomando a parte pelo todo, constituem um factor de mentira, um germe de incultura, um reducionismo do homem e do seu projecto potencial. O mais grave, porém, é que o rumo civilizacional trilhado a partir daquelas premissas é o do mero automatismo derivado da busca do conhecimento pelo conhecimento, da implementação da técnica pela técnica, em mira do poder, do domínio e da produtividade por eles próprios. Eliminado qualquer horizonte de referência que tenha em conta o homem na sua totalidade, mormente pela recuperação da sua interioridade de sujeito criador de valores e por eles gerador da história, dimensão perdida e mesmo expressamente repudiada como ilusória ou inexistente por muitos adoradores do experimentalismo que não encontram a alma na ponta do bisturi, a corrida ao progresso, ao desenvolvimento sócio-cultural sem rumo definido, meramente ordenados por factores quantitativos directamente derivados das aplicações técnicas por elas próprias (como se todos tivéramos o dever de usar uma tecnologia pelo mero facto de ela existir, nem que nos assassine a prazo...), todo este estado de coisas gerou a actual ameaça e iminência de colapso ou cataclismo planetário, a prazo relativamente curto, quer pelo esgotamento geral das reservas de matérias-primas do planeta, quer pela poluição em crescendo galopante, quer pelo intransponível desajustamento entre a explosão demográfica e a capacidade alimentar total da Terra, quer pela sempre possível conflagração nuclear mundial.


Urge reinstaurar a missão do filosofar como via de salvação pelo reencontro do homem consigo próprio e com a gestão que ética e praxicamente tem de operar do seu tempo e do seu espaço, para gerar uma história condigna onde possa realizar as aspirações mais fundas e universais que o movam e que for sendo capaz de assumir.


Nestes termos, importa clarificar a distinção e complementaridade de objectos e métodos da filosofia e da ciência, deixando a esta o universo sensível e reivindicando para aquela o da interioridade do sujeito, aquela abordável experimentalmente enquanto este o é pela via da vivência que cada um tem de si próprio, ambos inextricavelmente fundidos em todas as experiências que qualquer um tenha pela vida além, constituindo um o lado de fora (apreensível pelos sentidos) e o outro o lado de dentro (captável na intimidade pessoal em que o sujeito a si próprio se frui e vive), dois lados duma realidade única e incindível que enquanto todo nos apresenta aquelas duas vias de acesso, mesmo ao nível cósmico (que só é e tem qualquer sentido para o homem enquanto o questiono e conseguintemente vivencio).


Clarificando os campos de incidência de cada área de intervenção, esclarecida a impossibilidade de se abordar qualquer um com o método adequado ao outro (é impossível submeter uma vivência a experimentação, por natureza – cada eu é inacessível, é outra realidade que o eu do outro e não tem qualquer dimensão sensível enquanto vivência do íntimo), então fica patente a legitimidade de ambas as pesquisas em complementaridade. A gravidade da crise mundial, o risco de colapso da humanidade imporão, a partir daqui, novas abordagens filosóficas a nível axiológico e ético, de modo a poderem criar-se propostas de reordenamento da civilização e da história que nos arredem do horizonte a ameaça de cataclismo que por via da ciência e tecnologia cada vez mais se nos perfila diante.


O professor, sensibilizado por estas ideias-força, poderá operar como fermento na massa a vários níveis: alertando os alunos, instrumentalizando todo o programa com tal fito; intervindo na conversão da mentalidade positivista e de cientismo acrítico dominante, mormente no seio dos corpos docentes; levando a escola a intervir no meio de modo a reconverter a fé cega tecnocrática da mentalidade e cultura reinantes; alterando a visão do desenvolvimento curricular, incentivando à reequilibração, na prática docente, dos dois vectores de abordagem da realidade em cada área curricular, e levando o alerta até à instituição e aos níveis de decisão soberana, de modo a reconverterem-se, a prazo, os próprios programas.


Este pode (e certamente deve) ser o fio condutor de sentido de todo o desenvolvimento do programa da filosofia nas aulas e na vida.





2 – A psicologia e a sua função na cultura


A psicologia é a ciência cujo objecto, o comportamento do indivíduo, se situa mais próximo do da filosofia, a interioridade do sujeito. É por isso uma área privilegiada para estabelecer o diálogo urgente entre ciência e filosofia, para demonstrar ao vivo a respectiva complementaridade e a insuficiência de cada uma das abordagens para nos dar conta do todo e de todas as perspectivas requeridas pela realização do homem (a área da liberdade e a definição e promoção autónoma de valores estão fora do âmbito dos produtos da ciência que se limita aos determinismos e às classificações).


Será importante relevar tudo isto em teoria e na prática. O professore de psicologia deverá implementar a utilização e demonstração prática dos conhecimentos e técnicas psicológicos, tanto quanto se revelem eficazes em dificuldades concretas que apareçam na vida do aluno ou das turmas, desde que ele próprio domine suficientemente a teoria e a prática requeridas em cada caso. Tal não é exequível em situações graves ou melindrosas mas não é inviável relativamente a problemas mais simples ou pequenos desvios ou inadequações de cotio ou meras caracterizações de aspectos ou padrões comportamentais. Entretanto, em toda esta via o mais relevante é a ligação a explicitar entre, por um lado, conhecimentos e técnicas (área psicológica) e, por outro, as opções valorativas que os levam a usar ou não, num sentido determinado ou noutro (área filosófica). Estas pressupõem uma visão da pessoa e do sentido e interesse da vida que não são cientificáveis, mas a cujo serviço toda a ciência e técnica são inelutavelmente colocadas sempre. Ora, é imprescindível que os alunos surpreendam em toda a profundidade esta verdade.


Na linha da re-humanização da ciência e da técnica importa que a psicologia, assim trabalhada lectivamente, se constitua numa matriz de humanidade. Isto é, vai ser usada no intuito de permitir múltiplos desvendamentos. Em primeiro lugar, a descoberta de si e dos outros nos automatismos e constantes tendenciais corporeamente manifestos e constatáveis nos processos relacionais com o mundo, com os outros e consigo próprio. Conhecer os determinismos pessoais e os dos demais é um instrumento fundamental para descortinar-se, assumir-se, posicionar-se, valorar-se e projectar-se. Mas, a um nível posterior, o conhecimento e as técnicas permitem intervenções e opções com determinados graus de eficácia. É importante que os educandos se apercebam que ficarão com instrumentos aptos a intervir e que logrem discernir que:

1.º – Não têm de os usar pelo mero facto de existirem, como se fora um desperdício ter um poder e não o utilizar quando do uso nenhuma vantagem (ou, pior ainda, qualquer desvantagem) advenha;

2.º – Não têm de os implementar no sentido em que os instrumentos e técnicas se revelam eficazes ou rentáveis ou produtivos por um critério meramente económico, científico ou tecnocrático, uma vez que estas áreas de valores só adquirem sentido e validade universais quando submetidas à construção e desenvolvimento integral da pessoa e da humanidade, sob pena de podermos, com a promoção daqueles campos axiológicos, estarmos a destruir estes que lhes devem ser prioritários, como no rumo geral da civilização actual já está a acontecer;


3.º – Deverão servir-se dos novos poderes adquiridos de modo a melhorar a qualidade pessoal e da vida em si próprios e em redor, bem como perante quem de tal necessite, sem submissão a critérios e valores outros que não sejam o da promoção de cada um e todos, do modo mais autêntico e integral de que forem capazes.


Neste sentido importa que o professor principie por adequar o próprio trabalho neste domínio ao nível etário dos educandos, às características dominantes do seu desenvolvimento intelectual, afectivo e relacional, tentando uma optimização do processo lectivo no âmbito psicopedagógico (psicologia do desenvolvimento da adolescência). Isto a dois níveis: explicitando teoricamente o fundamento cognitivo das opções que for tomando e implementando depois estas na prática da relação pedagógica, de modo a aproximá-la o mais possível duma fonte teórico-prática ao vivo da própria área científica em estudo. Neste sentido, cada aula pode ir-se tornando na encarnação em concreto do diálogo e complementaridade indissolúvel da ciência e da filosofia, uma vez que ambas têm de inelutavelmente conjugar-se na prática pedagógica. Como ocorrência pontual de qualquer praxis humana, esta a ambas inexoravelmente terá sempre de investir, por combinar indissociavelmente um conhecimento do sensível com um valor que se lhe atribui, uma opção ética a dar o rumo e o ser ao agir da pessoa do aluno e do professor. Praticar isto e explicitá-lo permanentemente em cada novo item programático será uma das formas mais eficazes de formar equilibradamente o cidadão do mundo novo que idealmente disporá então do poder da ciência e da técnica integrado com o saber do filósofo sobre o valor e o sentido a imprimir à vida e à civilização por que se sentirá responsável, com conhecimento de causa e com capacidade de ser eficaz.




3 – As duas linhas de fractura metodológica do grupo de filosofia


O problema do “científico” em filosofia alimenta tradicionalmente uma dicotomia nas opções metodológicas do grupo de professores de filosofia. O único vector cientificável do filosofar é o da história da filosofia, área particular da ciência histórica que tem por objecto de investigação os produtos que pelas idades fora a reflexão humana tem materializado em documentos escritos, mormente nos últimos três milénios da cultura ocidental. O prestígio da ciência, a tradição escolar e a facilidade de abordagem, bem como o facto de os professores só em época relativamente recente terem tido licenciatura autónoma em filosofia, sendo os antecessores licenciados em “ciências histórico-filosóficas”, tudo isto confabulou para que a generalidade dos docentes desta área disciplinar acabassem antigamente como professores de história da filosofia. Esta perspectivação histórica do labor filosófico confronta-se hoje em dia cada vez mais com um movimento de rumo divergente que pretende reivindicar a autonomia do filosofar, nos conteúdos e na metodologia didáctica, perante a abordagem típica da história. Para estoutros a questão não é de ensinar filosofia mas de auxiliar o aluno a aprender a filosofar. Se o fito é este, então a informnação histórica, a filosofia constituída, já elaborada, é um mero instrumento a que deitam mão para atingir os fins que visam e não, como ocorre nos de abordagem historicista, o conteúdo curricular a transmitir e ser assimilado pelos educandos, seja em si próprio, seja no método de o construir enquanto região particular da história. Ao invés, para os que pretendem assumir-se como educadores do filosofar, aqueles dados são meras pedras de construção. O método de investigar em história é posto de lado enquanto matéria lectiva, sendo tudo trocado pelo interesse em pôr o aluno a reflectir por si próprio e sobre si próprio na conjunção consigo, com os outros, com o mundo, a civilização e o rumo da história-processo-colectivo-da-humanidade. Aqui o centro é a vivência do educando, a matéria de estudo é existencial e o fim visado é a tomada de consciência dela através da descoberta da interioridade concreta de cada um, da assunção e projecção dela, com opções esclarecidas, para dar sentido à vida pessoal e colectiva.


Ensinar filosofia ou auxiliar a aprender a filosofar, eis a dicotomia docente. Aprender filosofia ou aprender a filosofar, eis a correspondente finalidade do lado discente. Que aquela se pode ordenar a esta, é para todos pacífico. Que filosofar sem saber filosofia é difícil de atingir e mesmo em concreto impossível à generalidade dos professores, é um facto, dado que, abolindo os referenciais históricos das filosofias propostas através dos tempos, a maior parte dos educadores fica sem o principal recurso a partir do qual pretende despoletar e estimular a reflexão autónoma e as opções esclarecidas de cada educando. Que reduzirmo-nos à mera informação e assimilação dos sistemas e propostas recolhidos na história da filosofia é insuficiente porque jamais conduz por si ao filosofar como reflexão autónoma a partir e para a própria vivência assumida da existência real de cada pessoa; que é desviante e falseador do sentiudo autêntico do filosofar oferecendo gato por lebre, tendendo a convencer professores e alunos de que a realidade e função da filosofia principiam e acabam numa área científica que é uma mera região do âmbito mais vasto da ciência histórica, colocando sistemática e intencionalmente entre parêntesis todo o filosofar ao vivo e em concreto que, a nível empírico ou crítico, queiramo-lo ou não, todos somos forçados permanentemente a empreender pelo mero facto de vivermos e com isto termos de gerir, orientar a vida, questionando e optando constantemente na nossa própria existêcia que tal reducionismo, o da abordagem historicista da didáctica da filosofia, é apenas mais um fruto do cientismo vulgarizado na cultura dominante, uma consagração, no reino do filosofar, do seu próprio suicídio – é que constitui para muitos problema e verdade difícil de engolir, apegados como estão à rotina, ao peso da tradição, à antepara pretensamente científica com que querem ilusoriamente defender a legitimidade do seu feudo, ameaçado de fora também por quantos, encegueirados pelo fulgor da ciência, já não acatam fundamentação curricular para quanto dela se afaste e pretendem logicamente abolir a filosofia da escola, mormente ao nível pré-universitário.


Logrando a iniciação ao filosofar fazer a economia de ambas as vias, uma vez que os docentes que apostam nesta alternativa se socorrem, por norma, de referenciais históricos como esteio privilegiado de recurso para estimularem a reflexão dos alunos nas turmas, esta é a alternativa só por isto mais rica e formativa, para além de ser a única que em autenticidade pode desembocar no filosofar autónomo do educando. Ela é, entretanto, muito mais difícil de cumprir que a outra, tanto por falta de tradição como de treino dos professores em tal itinerário, como ainda porque requer deles uma reconversão cultural que os distancie dos dogmas do cientismo e do tecnocratismo da cultura ambiente, transformação tanto mais problemática quanto tais inverdades são os estruturadores angulares do escol intelectual da civilização no mundo actual, são ainda as vísceras da nossa própria compreensão colectiva de nós mesmos e do mundo.




4 – Diferenciações resultantes das duas linhas de opção


Escolha de fins: na perspectivaçãpo histórica, o educando deve conhecer os filósofos e as correntes e sistemas filosóficos que eles propuseram ou em que enfileiraram, constituindo critério de qualidade a precisão das identificações, o rigor conceptual situado no enquadramento histórico respectivo, as distinções claras entre alternativas sincrónicas e diacrónicas de proposições sobre a mesma aporia; na perspectivação existencial tudo aquilo são meros instrumentos a usar conforme a eficiência e a necessidade, não constituindo o conteúdo real do programa a leccionar nem fundando, consequentemente, qualquer critério de rendimento escolar do aluno. A matéria curricular desta opção é, antes de mais, o problema filosófico, a questão a interrogar a vida concreta dos educandos até que esta se consiga ir esclarecendo e levando cada um a conhecer-se, assumir-se, optar por valores pessoais conscientes e a projectar-se num sentido de vida livre e lucidamente escolhido, como agente activo e propositadamente empenhado em ordenar com os demais a história. O critério de qualidade é, primeiro, o da autenticidade com que a vivência pessoal é enfrentada; depois, o da coerência e originariedade (original ou não) com que é interpretada, valorada, projectada e, finalmente, prosseguida na activifdade quotidiana da vida real, a principiar na da própria turma, relação pedagógica e comunidade escolar, derivando daqui para a família, a comunidade e o País (coerência lógica mas também existencial-ontológica).


Métodos e estratégias: na perspectivação histórica, é eficaz e fundamental a metodologia que canalize melhor as informações para os educandos, tendendo a privilegiar o método expositivo e as estratégias que lhe optimizam a assimilação das informações canalizadas (anotações, repetições orais e escritas para memorizar melhor, consultas bibliográficas, resumos de textos e documentos...); na focagem existencial busca-se quanto permeabilize o educando à dúvida e questionamento para levá-lo a tomar consciência do problemático da vida e dos seus ramos, o que tende a encaminhar para o diálogo, para o método de inquérito (perguntas sistemáticas), para o confronto e ponderação em comum, com métodos de colmeia e grupos de trabalho, com dramatizações e simulações, e, finalmente, para a pesquisa e intervenção em acção autónoma, personalizada, com o método de projecto. Todos estes, em sequência mais ou menos exigente conforme o grau de maturação do trajecto dos educandos, decorrem da centração da didáctica na vida real do educando e respectiva comunidade e escola e não num conteúdo programático previamente preenchido com saberes constituídos, historicamente válidos mas eventualmente irrelevantes na actualidade ou no educando em concreto e no momento em que com ele se trabalha. O trajecto da segunda linha de opção arranca da aporia para levar à autoconsciência, induzindo à responsabilidade por si, pela vida circundante e da comunidade ilimitada que a humanidade através do tempo constitui, tendendo sempre a culminar em intervenções conscientes, esclarecidas e empenhadas para transformar a vida em si próprio e em redor, apelando por isto para trabalhos de projecto a partir da própria sala de aula e não se esgotando, obviamente, nelas, porque se prolonga pela sociedade além.


Recursos e prioridades temáticas: na perspectivação histórica, o recurso fundamental é a história da filosofia, ilustrada tanto por documentos originais quanto pelas análises dos historiadores desta especialidade, constituindo a referência à vida concreta contemporânea e do aluno ou um mero expediente para auxiliar a compreensão e assimilação daquelas informações ou então uma ilustração delas em termos de clarificação do presente à luz das matrizes de antanho; na vertente existencial, no limite nem seria imprescindível sequer o recurso à história da filosofia e menos ainda às teorias dos historiadores, uma vez que o ponto de partida inultrapassável dali recolhido é o problema filosófico, a aporia, a pergunta que vale por si e se coloca independentemente de qualquer contexto histórico em que seja formulada ou em que se tenha dela tomado consciência pela primeira vez; a segunda fonte de recursos, na perspectiva existencial, é a vida real da actualidade, no educando, na comunidade escolar, no meio ambiente, na civilização e cultura de que partilhamos, na humanidade aqui e agora – que é questionada pelas aporias filosóficas para que o educando a desvende, dela tome posse e por ela assuma gradualmente a responsabilidade de forma cada vez mais esclarecida; apenas como terceira matriz de recursos nos surge, nesta focagem existencial, a história da filosofia, como reserva de pistas e soluções possíveis onde se pode e deve permanentemente colher inspiração para as opções a tomar. As prioridades temáticas são, em cada caso, as que derivam directamente deste escalonamento de prioridades atribuídas às fontes de recursos, decorrendo igualmente dali as diversificações de conteúdos.


Função do programa e papel formativo da disciplina: na focagem histórica, a função do programa é mesmo cogente e com o fim primordial de ilustrar o educando com informações relativas à transformação do pensamentoi filosófico através das eras, levando a alimentar a erudição do aluno e ginasticando-lhe a capacidade lógica e de argumentar em geral; na via existencial, a função do programa é meramente referencial, um fio condutor disponível para questionar a vida real numa sequência coerente e com recursos disponíveis para se não ficar sem saídas, mas sempre ultrapassável e substituível quando a formação em concreto do aluno o requeira, pelo que levará este a descobrir-se reflexivamente, a julgar-se bem como à sociedade e rumos da humanidade de modo crítico, lúcido e coerente com a vivência que de tudo tem bem como com as leituras que de cada aspecto vai fazendo e o valor relativo que lhes atribui. A formatividade da disciplina diferencia-se em conformidade.


Papel do professor: na focagem histórica, ele antes de mais transmite um saber adquirido e constitui-se num facilitador e estimulador da sua assimilação; na focagem existencial, ele assume-se como um questionador infatigável e um estimulador do processo de autoconsciência e autonomização intelectual, ética e activa do educando, disponível inclusive para o inesperado, o inovamento, o filosofar inédito, o mundo novo que a autenticidade sempre tenderá a gerar.




5 – Individualização da aprendizagem


Toda a aprendizagem é individualizada. Entretanto, a individualização do processo ensino-aprendizagem é difícil, dado o dimensionamento das turmas e a quantidade destas em cada horário lectivo. Como, porém, tal é o horizonte de referência de todo o processo lectivo, importa tomar consciência de que a filosofia, enquanto na perspectiva de aprender a filosofar, é um dos campos mais inadiáveis para a individualização da didáctica. Com efeito, reflectir sobre si próprio e o respectivo papel na vida e no mundo é um acto eminentemente pessoal que do primeiro ao último momento jamais abandona o registo subjectivo inultrapassavelmente individual. Sempre que se socorre da filosofia já elaborada e do diálogo com outrem ainda é como auxiliares para melhor, mais profunda e autenticamente penetrar no mistério do eu próprio e do respectivo projecto criador. Sendo assim, é no filosofar que a individualização do processo pedagógico atinge o máximo de pertinência, uma vez que é constitutiva da própria realidade dele.


Várias estratégias e opções metodológicas permitem aproximar-nos desta meta. Antes de mais, o ensino programado ou aprendizagem por descoberta, em que o educando é encaminhado, pergunta a pergunta, até dominar por inteiro aprendizagens previamente requeridas (como são as informações relativas à história da filosofia, sobre autores, correntes e sistemas filosóficos), subprogramas facilitadores ou confirmantes do intuito maior que deverá ser o suscitar a reflexão autónoma nas áreas da filosofia. Entretanto, este recurso não logrará facilmente satisfazer quem pretenda aqui chegar, muito embora, para os da perspectivação historicista da filosofia, todo o programa seja moldável numa sequência de ensino programado predeterminado antes de qualquer relação pedagógica estabelecida com qualquer aluno. O que não consegue facilmente integrar-se na aprendizagem por descoberta, quando pré-programada, é o inesperado, a vivência pessoal reflectida, a assunção autónoma da experiência de vida própria, fundamentais para se atingir alguma vez o filosofar por parte de qualquer educando. A criatividade não é pré-programável. Ora, visa-se sempre concretizá-la na descoberta, assunção e projecção da interioridade de cada sujeito, de cada educando.


Já, porém, o método de inquérito, centrado no questionamento incessante, oriundo do professor ou dos alunos e visando por norma o conjunto da turma, ocorrendo ao vivo e com forte predomínio do improviso em função do rumo que a reflexão, as respostas, as informações forem suscitando, é capaz de colmatar as duas perspectivas de abordagem lectiva da filosofia, tanto a historicista quanto a existencial. Com esta metodologia é viável despoletar tanto a criatividade intelectual do educando quanto a necessidade de buscar informações, de reconstituir a história, de redescobrir soluções e perspectivas de antanho como de inventar o porvir, eventualmente por caminhos inteiramente inovadores, criando filosofias novas, historicamente ainda não ocorridas, jamais propostas.


Se normalmente é insuficiente o método da aprendizagem por descoberta ou ensino programado por radicar no saber já constituído e no previsível, ele é ainda difícil de implementar pelo descomunal trabalho que requer à partida para a organização sistemática e graduada dos questionamentos que encaminharão a progressão. Já o método de inquérito, sendo eficaz potencialmente a todos os níveis, apresenta como dificuldade maior o desenvolvimento no educador de sensibilidade e destreza para questionar de improviso de forma permanentemente pertinente e adequada, bem como lhe requer uma cultura geral vasta e constantemente actualizada que lhe permita não ficar surpreendido por abordagens e situações inesperadas, nem deixar perderem-se perspectivas inéditas com sentido por não ter logrado compreendê-lo ou surpreender-lhe as possibilidades.


O trabalho de projecto é habitualmente o mais exigente no que se reporta ao empenhamento pessoal do educando, uma vez que o requer a nível intelectual, emotivo e activo, bem como o entrosa com um grupo de trabalho, com outras pessoas da escola e do meio e o conduz a produzir resultados palpáveis, os frutos da execução do projecto. Aqui a responsabilização individual é máxima, bem como toda a trajectória de desenvolvimento e trabalho. É evidente que, quando o educando não atingir níveis que lhe permitam responder por todos os graus de participação, desde a recolha de informação, à integração, à congeminação do projecto até à execução final, tal via é impraticável. Igualmente o é quando o professor não domina uma metodologia tão complexa como esta que extravasa sempre da sala de aula e normalmente intervém, na ponta final, na comunidade e no meio ambiente. Não deixa, entretanto, de ser a mais promissora, até por abater a barreira entre a escola e o meio, entre a sala de aula e a vida real, entre o programa e as aspirações dos educandos e das comunidades.


Há, finalmente, estratégias mais simples que podem sempre usar-se com qualquer metodologia e em qualquer ponto do trajecto educativo. Elaborar fichas problemáticas, responder a questionários, analisar recursos (textos, obras, casos...), escrever sínteses (de aulas, de unidades didácticas, de documentação de consulta...) - são alguns dos meios mais propostos aos alunos para individualizar os trajectos pessoais de aprendizagem, para permitir a autodescoberta.




A formatividade da filosofia



1 – A formatividade da filosofia e os níveis de integração e de abrangência dela



O filosofar radica no íntimo de cada sujeito. Parte dele como auscultação consciente e crítica da afectividade própria e da interioridade em geral, em ordem a orientar o agir pela mediação de escolhas valorativas e a intervenção da vontade. Nestes termos, o potencial transformador da filosofia, quando esta ocorre ao vivo, irradia da pessoa que devém então coração do universo, eventualmente arrastando atrás de si tudo e todos, tornada um microcosmos que nele resume o infinito, fermento que pode levedar potencialmente os recônditos mais escusos do mundo e da história inteiros. É que, quando alguém se transmuda, altera a atitude e o relacionamento para consigo próprio, para com outrem, mormente quem de mais perto o toca (a família, os amigos, os companheiros de trabalho e lazer), bem como para com a natureza e o mundo em geral. Ora, mesmo que se não dê conta de tal, esta irradiação inelutável altera o equilíbrio do Universo, nem que seja num pequeno nada aparentemente insignificante mas que já tende a fazer pender o fiel da balança para onde o novo rumo se orienta.


Se o inovamento aflora primeiro no perfil do sujeito cuja interioridade tremeu com a tomada de consciência e a escolha duma rota inédita nalgum recanto da vida (quando não para ela inteira), o nível onde logo repercute este despertar é nas relações interpessoais. Cada um de nós é um sistema aberto, em permanente permuta com outrem e o Cosmos e é neste feixe cruzado de intercâmbios que nos criamos pessoal e mutuamente ou conjuntamente nos perdemos, arrastando o Universo inteiro na ascensão ou queda colectiva. Ao filosofar, o sujeio descobre-se e projecta-se num horizonte de plenitude para onde se encaminha arrastando atrás a inextricável teia de fios e laços que o interligam aos demais e ao muno pulsante da humanidade e da cultura. O efeito encadeado deste entrelaçamento é o do despoletamento potencialmente interminável do despertar da consciência crítica em cada vez mais alargadas vagas de pessoas, fermentando uma civilização e história outras, mais e mais conformes com o novo perfil de ser, agir e intercomungar em vias de delinear-se e agir-se. É, de algum modo, o que ocorre com a intervenção dos grandes filósofos que têm o condão de inflectir o rumo da humanidade durante milénios, imprimindo-lhe a marca própria inconfundível, permanentemente discernível através dos contrastes das vicissitudes históricas, das contradições dos tempos, dos interesses, dos grupos e formações colectivas.


Com isto, portanto, o despertar do filósofo em cada um, se reconverte relações intersubjectivas, vai desde logo mais longe quando a qualidade do projecto-proposta que dinamiza atinge profundezas no sujeito que encontrem eco em cada outro. É a comunidade de origem que gradualmente se transmuda, recriando por vezes um novo perfil cultural, porventura de âmbito nacional, com reflexos mais ou menos vastos em grandes regiões da humanidade, conformando continentes inteiros, em períodos mais ou menos longos, nalguns casos multimilenarmente.


O mais curioso nesta realidade é que nos escapa quase sempre a dimensão mais comum, encandeados que ficamos pelo fulgor dos grandes génios. Sócrates, Platão, Aristóteles, Agostinho, Tomás de Aquino, Descartes, Kant, Hegel, Nietzsche aí andam como faróis do Ocidente a tolher-nos a vista para o cultivo de cotio em cujas fertilidades aqueles se adubaram, agigantaram e perduram irradiando sonhos que enformam vidas. É que onde cada um habitualmente imprime a marca pessoal pequenina mas indispensável para criar terreno aos grandes rumos do destino humano é na irradiação que logra animar logo além do feixe íntimo de laços que o inserem no nosso itinerário comum. Daí que o mais constante é esta presença repercutir-se ao nível da respectiva comunidade de base, no local de trabalho, no de convívio e no dos tempos livres. Quase permanentemente ignoramos que é no âmbito das empresas, ao produzir bens e ao prestar serviços, por exemplo, que cada qual diz como assume a sociedade e a posição que toma nela, se é uma entidade activa de optimização das relações de trabalho, de companheirismo bem como daqueloutras com os produtos e a natureza donde provêm ou se, ao invés, é uma roda na emgrenagem, acéfala e mecânica. Igualmente, é na atitude que toma perante ou nas autarquias, associações culturais e recreativas, grupos de intervenção ou de lazer, organismos privados ou públicos de todo o tipo e para quaisquer que sejam as finalidades, é aqui, pelo modo particular e único, inconfundível como neles intervém quando com eles tem de cruzar-se ou neles implanta arraiais, levando-os a melhor servirem ou a mais autenticamente serem, ou, ao invés, pela demissão de assumir um rosto próprio, de incarnar um sonho no tecido comunitário onde se encontra, é nisto que o filosofar de cada um, habitualmente espontâneo e ignorante de o ser, se manifesta e põe à prova a respectiva autenticidade ou alheamento. É até aqui, entretanto, que os sonhos do sujeito podem sempre implementar-se e produzir frutos. É igualmente a este nível que quase todos pretendemos fazer vingar os respectivos valores e abrir caminhos para um porvir de melhor qualidade.


Por esta senda, todavia, sempre o itinerário de cada indivíduo aumenta as probabilidades dum certo perfil de futuro e diminui as doutros. A conjunção colectiva das escolhas traça os rumos da humanidade, por muito que cada mónada não entenda como a ínfima migalha que é comparticipa da mole incomensurável do todo e o leva a pender num sentido ou noutro. Ora, é por esta razão que devém pertinente a assunção desta dimensão derradeira que o filosofar vivo de cada um fatalmente contém, por mais humilde e indiferente que se nos antolhe nele próprio. Aliás, é sempre viável o inesperado e a atitude despercebida de alguém hoje em dia vir a ter um eco inabarcável um século além. Ocorreu com filósofos de carreira de antanho, com místicos, com homens de acção cuja filosofia de vida colheu de surpresa ou distraídos os contemporâneos e só vieram a ser descobertos mais tarde no que de mais significativo trouxeram ao projecto colectivo da humanidade. Por tudo isto importa então compreender por onde corre esta influência, este eco de cada um para além das dimensões sociais e históricas que ele próprio logra abarcar, de modo a tal efeito poder ser, no que relevar duma assunção lúcida e voluntária, tomado em mãos e gerido por cada sujeito.


Assim, brotando do imo da pessoa, irradiando para os relacionamentos intersubjectivos e daqui para as formações comunitárias de todos os tipos, desde os grupos naturais, até às associações, empresas, organismos e serviços de qualquer género, para finalmente condicionar, acentuando ou diluindo traços do presente onde radicarão possibilidades do porvir, qual o futuro para onde pendemos, o filosofar vivo de cada sujeito, conjugado com o de todos os mais, tem dele pendente a plenitude ou o aniquilamento da humanidade, é de facto o coração ignoto a pulsar clandestino no âmago da História.


Importa analisar com algum pormenor a trajectória-tipo que reveste em cada nível este itinerário, tendo em conta o contexto da sala de aula, do grupo-turma e do professor a gerir a relação pedagógica em situação.




2 – Filosofar enquanto tornar-se pessoa


A primeira dimensão da autodescoberta é a de assumir-se, o que implica atender à própria interioridade, auscultando-se com franqueza para ser capaz de ler-se em autenticidade a nível da afectividade, dos sonhos, dos horizontes de arrebatamento que nos atraem, discriminar o que condiz ou não com a plenitude visada em nosso íntimo. Concomitantemente, isto requer a clarificação daquilo de que se é ou não capaz, bem como do que se é, pura e simplesmente, como ponto de partida e horizonte de referência do que se pretende vir a ser, instaurando o devir que conformará gradualmente o porvir pessoal e colectivo. Esta trajectória redundará inelutavelmente pontuada por um novo discurso, com características cada vez mais fortemente personalizadas, no qual o que é originário se revela gradualmente em maior coincidência-transparência do sujeito a ele próprio e aos demais. É este o primeiro sinal objectivado de que a reconversão rumo à autoconsciência, ao autoposicionamento principiaram a abrir caminho, a gerar uma realidade diferente e típica. Para que na relação pedagógica tal ocorra, educador e educando têm ambos de empreender idêntico trajecto, a ponto de podermos resumir o primeiro vector da personalização, no campo do mais imediatamente constatável na escola, como um assumir-se no sentido de criar um discurso próprio radicado no íntimo, produzindo trabalhos deste originários.


Este degrau de base leva, porém, a um segundo, o de responder por aqquilo a que se compromete. O primeiro efeito da autodescoberta é a escolha duma via de ser, dum projecto de vida dentro duma hierarquia característtica de preferências. Inevitavelmente, isto conduz a tomadas de posição de identificação própria e de rejeição, conforme em cada circunstância as actividades, atitudes, tarefas ou o que quer que seja convirjam ou se afastem das linhas de opção do sujeito em causa e do rumo de vida que tende a implementar. Em todos os casos, é a personalidade em construção que gradualmente assume mais a respectiva identidade, à medida que esta mesma se desenvolve e consciencializa. Na prática isto vai manifestar-se numa cada vez maior coerência entre tomar responsabilidades e responder por elas, de modo gradualmente mais criterioso e firme. Isto que continua válido concomitantemente para educador como para educando, implica desde logo a regra de jogo dos relacionamentos mútuos no grupo-turma, tanto na respectiva definição como no desenvolvimento dos múltiplos encontros intersubjectivos. Quem se principiou a descobrir e construir jamais vai deixar ao acaso ou ao arbítrio doutrem esta instância decisiva, matriz primária de realização pessoal. A marca de cada sujeito vem logo imprimir-se aqui, nos múltiplos níveis dos feixes relacionais, com a tónica característica de tomar à própria conta o desenvolvimento e aproveitamento mais adequado de cada experiência intersubjectiva. É na rede de laços assim tomada em mãos que vão combinar-se cooperações, distribuir-se tarefas visando resultados ou produtos finais. Na aula, estas constituem por norma reflexões escritas relativas aos problemas em análise, mas nada impede, pelo contrário, que se visem realizações doutra envergadura. É neste contexto da senda de personalização que encontrámos educandos e educadores solidariamente empenhados na criação de banda desenhada, de diaporamas, de dramatizações, de teatro a partir dos programas, na organização de colóquios e debates, na montagem de jornadas e semanas de filosofia, de cultura e de pedagogia. Tudo isto implica que se transpôs o limiar em que cada um é capaz de responder por quanto entende assumir, na conjunção com os demais.


Já no patamar descrito aflora um novo limiar, o de ser capaz de propor-se. Se num primeiro momento de autodescoberta é mais viável integrar as aventuras comuns tomando nelas parte sem grande poder de iniciativa, dado que esta ainda é germinal, indecisa, sem grande poder de discriminação, já depois duma boa partilha no grupo, duma permanência demorada quanto baste na convivialidade e duma comunhão nos projectos em curso, o sujeito começa a viver o imperativo de se manifestar a partir do que de mais típico e autêntico vai experimentando, como contributo próprio para a aposta comum. Principia então a exprimir opções, a clarificar e hierarquizar valores, a sugerir prioridades e até, eventualmente, a adiantar projectos. Após a ponderação comum e deliberados os rumos a seguir, a autoproposição culmina na capacidade de manter aberto o diálogo e a reformulação, tanto dos pontos de partida e chegada próprios, como dos demais, numa disponibilidade permanente ao desenvolvimento indefinido e solidário. É isto que leva educador e educando a implementar individualmente, em grupo, na turma ou na escola os sentidos que os orientam, os sonhos por que se pautam, sempre atentos tanto a reformulá-los, reconvertê-los ou aprofundá-los, quanto a colocá-los ao dispor doutrem como estímulos a novas tomadas de consciência-acção, em cadeia, interminavelmente.


O último limiar na trajectória da personalização é transposto no momento em que educador e educando se afirmam em todas as dimensões de ser, situar-se e agir. Isto implica o empenhamento em corpo inteiro nos projectos de trabalho que se entendam levar avante, nas intervenções a implementar em terreiro, em qualquer que seja o âmbito ou nível. Aqui é o leme da vida que se toma em mãos e o rumo dela que pretendemos encaminhar no sentido que se nos antolha mais pejado de plenitude humana. Somos timoneiros da história, por mais ambicioso ou humilde que seja o contributo em concreto em curso. A maturidade plena da auto-afirmação em que culmina o itinerário da personalização inaugurado pelo filosofar vivo do sujeito, implica a disponibilidade para reformular e reconverter quaisquer modalidades de efectivação do roteiro em marcha, de forma a garantir de facto, em cada caso concreto, os fins almejados. Isto requer a simbiose permanente entre teoria e prática, entre consciência e acto, numa tensão dialéctica interminavelmente dinâmica, rumo ao saber e ao ser absolutos, inatingíveis decerto mas indefinidamente aproximáveis.


Todos estes graus de progressivo aprofundamento, integração e abrangência da pessoa podem implicar-se e desenvolver-se com qualquer que seja o programa de filosofia, sobre quaisquer que sejam os temas. Identicamente, podem ser ignorados ou desprezados até. Constituem de facto um currículo latente fatalmente presente no decorrer do ano lectivo e que opera reproduzindo a ordem dominante e respectivas alienações e dogmatismos quando não é assumido, podendo-devendo recuperá-la e ordená-la quando consciencializado e lúcida e voluntariamente atendido. Acolá constituirá, num curso de filosofia, a destruição desta pela raiz, uma vez que a fará correr à margem do que de formativo ou deformante vitalmente experimentam educador e educandos, no contexto escolar e das aulas em concreto. Acolhida, ao contrário, tal componente devirá numa dimensãpo integrada e explorada que contextuará e potenciará qualquer item programático, conferindo-lhe o estatuto dum filosofar ao vivo e para a vida real que está neste momento ocorrendo e se vai projectar além-muros. Apenas então o vector institucional não logrará apunhalar pelas costas o que de fundamental tem a filosofia a revelar a cada sujeito – a identidade própria sem máscaras, a caminho do infinito em todas as dimensões da respectiva radicalidade.




3 – Filosofar enquanto assumir que tornar-se pessoa é relacionar-se, ser é amar


O mais curto trajecto de cada um a si próprio abraça o mundo. Nem há meio de personalizar-se a não ser pela mediação doutrem. Cada eu apenas se descobre através da interpelação dum tu com que se confronte, que lhe sirva de espelho. É por isto que os patamares da personalização implicam inelutavelmente o encontro intersubjectivo, tanto enquanto terra prometida onde a revelação vai ocorrer, como jeira de cultivo por onde proliferarão os novos frutos da plenitude almejada.


Na escola, o educador terá de focar-se nos feixes cruzados dos relacionamentos professor-turma ou grupo e da camaradagem entre alunos. Estes privilegiam na vivência a convivialidade entre colegas que se torna em geral a experiência mais gratificante e recordada pela vida fora. Ora, o pedagogo avisado irá retomar esta constante, fomentando o cultivo de tais laços, levando a tematizá-los, de forma a serem lucidamente assumidos, aprofundados e postos a render no labor da turma, na exploração dos itens programáticos e no desenvolvimento dos projectos de trabalho que as motivações e circunstâncias provoquem. Assim, os liames interpessoais envolverão todos tendencialmente, de modos vários, tanto o docente como os discentes, e tanto mais quanto mais suscitarem empenhamentos em profundidade nas actividades, intervenções e movimentos em que pretenderem envolver-se. Para optimizar este primeiro patamar dos feixes relacionais importa que eles se desenvolvam no clima que decorra e se alimente do íntimo dos participantes. Para tal, quanto se empreenda terá como fonte alimentadora privilegiada os motivos e as expectativas mais fundas e duráveis de qualquer interveniente na aventura, professor e alunos. Apenas isto não trairá, antes robustecerá a personalidade autêntica de cada um, através da mediação de todos, em todas as manifestações que ocorrerem em cada ano lectivo e projectando-se para além no tempo, no espaço e na sociabilização.


Com efeito, é praticamente impossível animar os relacionamentos em gradual solidarização sem com isto saltar o muro da aula. É que, desde logo, os que se criaram amigos vão sê-lo no tempo seguinte e no anterior, no recreio, na sala de convívio, nas atitudes perante a comunidade escolar. É o segundo nível de aprofundamento e expansão dos feixes relacionais. O filosofar que despertou a pessoa, lançou-a ao encontro dos demais e isto amadurece gerando comunidade, a principiar na própria escola. O pedagogo fomentará este desenvolvimento, mormente privilegiando as actividades interdisciplinares e circum-escolares, levando a irradiação do empenhamento educativo a cruzar-se com as disciplinas e professores cujos programas e opções mais de imediato convirjam no mesmo rumo de personalização lúcida e madura dos intervenientes, educadores e educandos. Com tal escolha vai privilegiar a reconversão programática e institucional, o que é de momentosa urgência, dado o alheamento generalizado em que os currículos e a mole do sistema escolar persistentemente operam relativamente à vivência e ao desenvolvimento em autenticidade dos respectivos utentes, alunos, professores e funcionários.


Tal prioridade, reconvertendo por dentro a instituição e o que nela ocorre, mudando o docente em educador, transformando-o de funcionário em pessoa e arrastando com isto os discentes que se transmudam de alunos em agentes cônscios e autónomos, se não fora todo este acervo de vantagens tem ainda a outra de não distrair do que é fundamental nem de operar o fundamental à margem do sistema, deixando este intocável e defendido pela válvula de segurança que em paralelo o descongestiona. Para todos é importante que a autenticidade da educação ocorra no seio da instituição a tal votada, sob pena dum incomensurável esbanjar de recursos e da manutenção dum tentacular cancro social sem cura nem alternativa. Por outro lado, as disponibilidades de tempo, energias e motivações têm limites em cada um e, mormente para os professores, é imprescindível que as reconversões ocorram durante o período normal de trabalho e não noutros horários nem com outras componentes e valências. Mesmo a circum-escolaridade não é dinamizável por eles senão quando integrar o respectivo horário laboral. A disponibilidade discente é maior mas tem como limite a motivação, quando opera na animação associativa ou comunitária. Daí a premência e o sentido que toma o entrosamento das duas vias, a do currículo-instituição e a da personalização gradual dos comparticipantes ao servirem-se e trabalharem nela, a fim de optimizar o aprofundamento e expansão dos relacionamentos e respectivas revelações e promessas.


Assim como os encontros interpessoais gratificantes extravasam da aula até atingir a comunidade escolar inteira, talhando-lhe o clima relacional que se respirará em todo o ambiente, tornando-o ora meramente amistoso, ora eventualmente entusiástico, de igual modo tanto o padrão deles quanto as iniciativas que desencadeiam, os projectos e trabalhos que animam vão pular o muro da escola e interferir com o meio mais íntimo de cada participante, a principiar na família. Desde logo a urgência de encontrar recursos, de testar atitudes e valores que nos debates na turma foram consciencializados, de implementar tarefas, de levar à prática opções porão em linha de imediato aqueles com quem cada educando mais de perto lida, com que logo topa ao transpor o portal do estabelecimento. Mais profundamente, porém, são os laços familiares e íntimos em geral que principiarão a reconverter-se, rumo aos senttidos de optimização encontrados e trabalhados no âmbito da relação pedagógica, muitas vezes sem os atingidos até se darem conta de tal, num trajecto espontâneo subconsciente. Tudo tende a reforçar solidariedades entre pessoas, entre a escola e a vida concreta, entre as instituições familiar e escolar, reconvertidas ambas rumo à autenticidade da vivência comunitária de quantos as animam ou por elas são de qualquer modo tocados. O que então ocorre é a tomada de consciência deste itinerário, levando à descoberta e alteração de valores e prioridades existenciais, reconvertendo os padrões relacionais, experimentando novos modos e perfis de vida.


É privilegiada nisto (embora não exclusiva) a direcção de turma, figura institucional basilarmente vocacionada para estimular todo este campo de intervenção pedagógica e que só em tais parâmetros recupera sentido, toma corpo e ganha alma. Se o filosofar desemboca por vocação aqui, o professor de filosofia é o primeiro a dever vivê-lo e implementá-lo, velando além do mais por que nos comparticipantes, em todos os níveis de projecção, a consciência crítica e a vontade esclarecida pontuem, reforcem e vigiem a pureza da rota em curso, de modo a não deixar perder-se possibilidade nenhuma de fazer ascender à reflexão explícita quanto vai derivando em regime de espontaneidade e precariamente.



4 – Filosofar enquanto assumir a responsabilidade pela vida comunitária


Um novo patamar é atingido pelo filosofar em situação real quando a pessoa interioriza e responde pela vida comunitária, integrando no projecto próprio de realizar-se modalidades, quaisquer que sejam, de intervir e compartilhar do destino colectivo, imprimindo neste também a sua marca característica, o pendor para que tende. Quando a escola e o meio entram em diálogo e geram tensões dialécticas criativas, mobilizadoras e gratificantes para quantos nelas se empenham, então é viável explorar este degrau mais elevado da irradiação do movimento personalizador rumo à plenitude que o filosofar instaura em cada um. Urge, pois, que o professor descubra quanto é imperativo que primeiro promova a quebra do isolamento institucional de modo que se abatam as barreiras entre o estabelecimento e a comunidade em que se implanta. Isto tanto pode e deve ocorrer em termos particulares da sua intervenção com os respectivos alunos, de modo que eles se constituam em veículos de circulação de fora para dentro e vice-versa de quanto de significativo em ambos os campos se implemente, como ainda em termos institucionais entre a escola e as entidades representativas do meio (autarquias, agremiações, clubes, empresas...), de maneira a criarem-se linhas de intercomunicação potencialmente contínua, campos abertos disponíveis ao investimento criador de cada um, de cada grupo ou turma.


Entretanto, quando isto não ocorre ou é inviável muitos não se dão conta que a outro nivel, de modo menos óbvio mas não menos eficaz quantas vezes, o mesmo trajecto irradiante prossegue obscuramente, discreto, porventura subliminarmente. É que todos os que foram tocados pelo despertar pessoal do filosofar tendem a não parar jamais na procura duma plenitude tendencialmente infinita. Isto vai acontecendo subterraneamente nesta dimensão da projecção comunitária enquanto não há outros meios (ou poder de gerá-los) mas o nível jamais fica ausente. Aliás, através de intervenções pontuais, aparentemente desconexas para o observador desatento ou esporádico, ela tende a incrementar-se de modo coerente e persistente, como a ferroada do moscardo, pela vida além do indivíduo que a propugna. Logo por esta via obtém efeitos que amadurecem os frutos, por vezes a serem colhidos decénios depois, em plena adultez. É o que acontece com a maioria dos alunos que acordaram para uma vida consciente e interventora. À partida não dispõem de meios eficazes, nem credibilidade, nem deparam com permeabilidade aos sonhos e expectativas que os animam. Principiam por influir no ambiente familiar e convivial, atiram frechas à formação comunitária em quanto se lhes desvia dos rumos pretendidos, apoiam e cooperam quando podem em quanto se lhes coadune. Sendo vozes menores habitualmente desprezadas ou pelo menos ignoradas dos mentores sociais de ocasião, é por estas vias travessas que preparam o terreno para quando lhes chegar a vez.


O professor de filosofia não pode ignorar tudo isto que está permanentemente a amadurecer em redor e deve ajudá-lo a tomar consciência e consistência, para que os rumos concretos empreendidos devenham os mais construtivos pessoal e comunitariamente.


Este patamar de irradiação opera a dois níveis. O primeiro tem por fito reanimar a comunidade e é o que menos bole com a ordem ali à partida implantada. Assenta mesmo na recuperação, redescoberta e comemoração dela, a fim de explorá-la em todas as virtualidades que tragam felicidade e autenticidade aos respectivos membros. Com isto têm a ver todas as intervenções e projectos que coloquem a sociedade perante ela mesma, no que tiver de melhor, potenciando quanto permita sublinhar e aprofundar os laços interpessoais e os traços característicos do agregado com os quais os indivíduos e os grupos locais se identificam. A escola tem assumido aqui muitas vezes o papel de espaço de descoberta e exposição, bem como de celebração e festa de tudo o que são caracteres locais e regionais típicos (artesanato, festividades, tradições, contos populares, gastronomia e doçaria...), bem como de estimulador das potencialidades comunitárias a nível de capacidade criativa no âmbitto da arte, da cultura, do empreendimento (semanas culturais, ciclos de cinema, imprensa e rádio locais, comparticipação em projectos económicos, industriais, de saneamento, investigação ecológica, arqueológica, espeleológica...). Ora, tudo isto pode e deve cruzar por dentro das aulas e dos programas que se estão laborando no âmbito lectivo. O professor de filosofia encontra aqui um campo inesgotável de inspiração-intervenção em que se pode e deve solidarizar com quanto conduza a comunidades mais solidárias, conscientes delas próprias e do que as distingue e complementa com as demais, em cujo cadinho a identidade pessoal logre desenvolver-se até ao fim.


O segundo nível, mais exigente, em que as personalidades vivas irradiam para o meio é o de recriarem comunidade. Com efeito, o reencontro e a festa constituem apenas o primeiro passo dum diálogo que se projecta num aprofundamento inesgotável das potencialidades de realização que o grupo oferta ou denega a cada um. Neste vector vai alimentar-se uma tensão dialéctica tendente a iniciativas que propendem a aumentar a consciência que se tem de si e do grupo, da validade de tradições, valores, perfis de relacionamento, padrões familiares, atitudes perante a vida e os outros e assim por diante. Isto, a prazo, gera tensões, rupturas, novas sínteses, reconversões em que indivíduos e grupos optam por diferentes valores, outros modelos comportamentais, alterando com isto o equilíbrio comunitário, uma vez que levarão a formar inéditos grupos e tendências na formação social, bem como atitudes divergentes, porventura inauditas, nos modos como se toleram ou não, como acatam, defendem ou promovem a ordem a instaurar. Com o tempo isto pode ir fermentando uma cultura inteiramente outra naquele agregado em concreto, resultante das novas sínteses a que as tensões geradas deram lugar, no esforço à procura de novos entendimentos e consensos.


Como tudo isto está potencialmente em curso logo desde o primeiro despertar para a consciência de si que o filosofar na vida desencadeou num aluno, o professor de filosofia não pode alhear-se deste itinerário, antes urge tomá-lo em mãos, explicitando-o e propondo-o como componente inelutável que pulsará no coração de qualquer projecto ou actividade, como eco mais longínquo que elas sempre tendem a acordar em redor. Assim, reanimar a comunidade e recriá-la devirão de programa latente em currículo explícito, vasto mar da reconciliação colectiva e do reencontro das raízes e dos recursos, em ordem a que os sonhos colectivos algum dia ganhem carne.




5 – Filosofar enquanto assumir o peso do mundo e da História que é assumir o peso de homem


Habitualmente deixamo-nos ofuscar pela dimensão que neste derradeiro nível atingem os grandes luminares da filosofia e da assunção do humano através da História, a ponto de não enxergarmos o que é que a nossa pequenez e, por maioria de razão, a dos alunos, pode ter a ver com isto. Entretanto, desde logo tem um impacto neste grau maior de universalização em extensão, tempo e sentido, o próprio facto de se inflectir e aprimorar a vida comunitária. Com efeito, como todos vivemos em sistema aberto (nem sobreviver é viável em nenhum outro modelo, a qualquer grau biológico, desde o mais rudimentar), é inevitável a intercomunicação e o correspondente impacto irradiante em grupos afins e cicunvizinhos, bem como na natureza ambiente. As nossas marcas históricas, queiramo-lo ou não, ateiam fogos em redor e no nosso rasto que perduram por séculos e milénios, ninguém pode prever até onde nem quando. Não é verdade que continuamos em busca do pithecanthropus e o que dele nos vai chegando persiste eficaz em inflectir o rumo da cultura e da história? Quanto mais as formações socioculturais contemporâneas!


O mais relevante desta projecção final do filosofar é a abertura ao porvir que alimenta, as possibilidades que gera, os riscos que desvia, as destruições que impede. O retorno ao pretérito é-nos vedado mas não a gestação do vindoiro. É nesta que importa apostar toda a lucidez e previsão de que formos capazes. É nela que convém concitar inteligências e vontades, mormente das novas gerações que os educandos constituem e que mais directamente lhe irão sofrer os efeitos.


A um nível menos exigente, urge primeiro reflectir no porvir. Aqui importa descobrir, divulgar e eventualmente criar modelos englobantes do projecto humano no tempo e no espaço, de modo a orientar e alimentar um amanhã de esperança para a humanidade. Isto é mais viável, à partida, a nível de pequenos aspectos e problemas da contemporaneidade (poluição do meio de inserção da escola, mecanização do homem no labor industrial, exploração do trabalho, alienação na droga, prostituição ou marginalidade, massificação do urbanismo actual...), relativamente aos quais a tomada de consciência é imediata e as linhas de reconversão desejáveis, pouco menos que óbvias. Depois é mais fácil ir perfilando leituras de síntese em que os múltiplos factores de ameaça e perversão se conjuguem em propostas de reorientação da civilização e cultura e respectivos poderes motores. A partir daqui, as origens mais abscônditas das destruições e riscos poderão ir-se desvelando e denunciando, para que novas adesões lúcidas e convictas ocorram a imprimir força à libertação almejada da humanidade.


Quando aqui chegamos, porém, urge intervir na prática. Se a escola e o professor são parcos de meios e poder nas instâncias decisórias soberanas, não o são a nível do trabalho de sapa que o despertar de consciências e personalidades constitui. Ora, é aqui que a prazo tudo acabará por jogar-se. Esta matriz-chave é justamente a que é gerida pelo docente e alunos na relação pedagógica em aula, no laboratório, no trabalho de campo, no projecto. É aqui, pois, que o filosofar empreendido por educador e educandos pode tentar a irradiação mais vasta, mais ambiciosa e também mais arriscada. Trata-se de participar, promover e divulgar quanto permita reconverter os rumos ameaçadores e destruidores da civilização e cultura actuais, implementando e vivendo em concreto outros que os substituam e em que se antevejam probabilidades de maior comunhão e consenso tendencialmente mais universdal da humanidade, no espaço e no tempo. Neste sentido, a escola pode mesmo vir a assumir-se eventualmente como um microcosmos exemplar, onde se testam alternativas tanto a ela própria como à humanidade até, em aspectos decisivos para um porvir que valha a pena (as escolas sulafricanas, por exemplo, que se organizam como plurirraciais em contextos e guetos racistas entenderam quanto isto é imperativo e opera eficazmente, espatifando a credibilidade e eficácia de tudo o que impede a livre intercomunicação e comparticipação dos cidadãos).


Mais simplesmente, porém, e no contexto de qualquer que seja o item programático em estudo, o professor de filosofia, o aprendiz de filósofo que ele e o aluno são, poderão e deverão permanentemente explicitar a repercussão colectiva e nas formações sociais, através da história e no amanhã que se entrevê, das interpretações e valorações contrastantes que a pretexto de cada aporia se confrontem. Que cada um descubra quanto é a insignificante gota de água que sempre pode levar a extravasar um oceano. Como este pequeno nada que é tudo lhe está na mão, é ele próprio, para bem ou para mal de todos nós, tomar consciência de tal e aproveitá-lo na prática do modo mais significativo à consciência própria, eis a arma viva que somos enquanto educadores-educandos num sistema escolar. Em última instância, está em nosso poder o destino do mundo, o perfil derradeiro da humanidade, a dimensão última que entendamos dar ou recusar ao Homem.


Meta final do filosofar, estranho seria que dela enquanto educadores nos demitíssemos, até pela gravidade que tal atitude revestiria pelo incomensurável peso do que põe em causa, ao votá-lo ao abandono, entregue ao sabor do acaso, ao arbítrio de quenquer ou da respectiva inconsciência, mesmo bem intencionada. Se nos viermos a aniquilar planetariamente, que ao menos seja em plena consciênia e por decisão voluntária que alguém ou todos assumam. Não recaia tal cataclismo no alheamento dos profissionais que têm por primeiro imperativo deontológico prevenir a alienação pessoal e colectiva, através do estímulo à consciência crítica de todo e qualquer problema que ao homem alguma vez se haja colocado: os filósofos e os professores de filosofia. Com efeito, não podendo nenhum deles demitir-se de filosofar, terão por isto de tentar levar, conseguintemente, a humanidade inteira, em toda a parte e momento, a aceder à vida verdadeira, segundo a vontade e consciência esclarecidas e empenhadas de cada pessoa que a integra e solidariamente com ela se perderá ou salvará, inexoravelmente. Tudo pode principiar numa sala de aula porque tudo passa irremediavelmente também por lá, mesmo quando fechamos os olhos para o não vermos.






II PARTE


ESCOLHOS




Avaliação como estratégia formadora

Uma aplicação em filosofia, uma filosofia de aplicação


1 – Tipos e funções

a) avaliar, condição de desenvolver-se: auto-avaliação e hetero-avaliação; avaliação formal e informal


Auto-avaliação e hetero-avaliação: todos os actos da vida são por nós avaliados e neles tanto nos avaliamos a nós próprios como aos demais comparticipantes, mesmo quando não tomamos consciência de tal. Na actividade pedagógica ocorre o mesmo, pelo que tudo o que vai decorrendo é concomitantemente avaliado tanto pelo professor como pelos educandos. Trata-se, pois, duma avaliação recíproca, espontânea, em que todos operamos mutuamente num jogo de espelhos tendente à comum conjugação e optimização das tarefas empreendidas. Nestes termos, é importante não apenas tê-lo em conta como aproveitá-lo em benefício comum. Há uma auto-avaliação constante do aluno e uma hetero-avaliação tanto por parte dos colegas como mormente do professor, revestindo a deste uma função axial pelo peso institucional, social de prestígio que a figura do educador reveste. Igualmente ambas existem incidindo no docente, constituindo o espelho dos alunos um dos melhores e mais ignorados quando não desprezados recursos a que se pode deitar mão para ir permanentemente melhorando e adequando a relação pedagógica a cada educando e grupo, bem como para cada um se ir adestrando nas capacidades e sensibilidades requeridas para bem geri-la.


Avaliação formal e informal: pouco habituais no uso, não é por acaso que sobre estas ocorre a greve do silêncio. É que ao poder e ao sistema escolar enquanto braço estendido dele importa deixar cair no olvido a matriz primordial da avaliação que é justamente a que quotidiana e sobre todos os aspectos constante e inelutavelmente praticamos, queiramo-lo ou não, tenhamos ou não consciência dela. É desta avaliação informal que nos pontua cada atitude, gesto e acontecimento que depois o sistema consagra a formalização de algumas modalidades, ora por conselho, ora por imposição. Importa sempre ao poder fazer ignorar aquela matriz primitiva, uma vez instituídas modalidades formais, uma vez que assim estas perdem o cordão umbilical que as liga à vida real do processo social, ficando apenas dependentes da fonte legal e institucional que então o poder joga e preenche a seu bel-prazer. A escola será tanto mais submissa e fiel à hierarquia que termina no soberano-ministro quanto mais esta for a lógica respeitada, uma vez que não terá outra fonte alternativa de inspiração e recurso para se alimentar, preencher de conteúdos e valores. Quanto mais a avaliação informal for a conformadora das modalidades formais, tanto mais estas mergulharão no tecido da vida real em concreto e menos se inspirarão nas ordens vindas de cima ou na tradição institucional de rotina. Ora, isto sempre acaba por introduzir, a prazo, inesperados e contestações à ordem escolar implantada. Ora, para a filosofia é fundamental a exploração desta dialéctica que no terreno se implanta, se quiser rumar até ao filosofar de cada educando, uma vez que este se ordena ao respeito integral da assunção da vida pessoal, comunitária e universal por parte de cada aluno, o que só resultará se toda e qualquer avaliação formal se radicar e alimentar na informal, bebendo nesta o sangue da realidade vivida e compartilhada.



b) Avaliação institucional – estratégia para domesticar: avaliação diagnóstica, formativa e sumativa; avaliação contínua e intermitente; avaliação qualitativa e quantitativa


Avaliação diagnóstica, formativa e sumativa (qualitativa e quantitativa): modos mais comuns de designação e uso, a primeira tem por função descortinar qual a situação dos alunos à partida, em termos cognitivos habitualmente, ignorando os aspectos sócio-afectivos e relacionais fundamentais para uma adequada didáctica do filosofar; a formativa entende-se como tendo por função fazer a reaferição da caminhada percorrida e do ponto em que o aluno está, com indicações de estratégias de superação para dar continuidade ao desenvolvimento dele; a sumativa é terminal e faz o balanço do trajecto percorrido, em termos descritivos e qualitativos ou quantificados, por referência a uma meta final totalizante, pressuposta ou explícita, personalizada ou abstracta.


Avaliação contínua e intermitente: aquela pretendeu justamente institucionalizar a avaliação informal no sistema, como acha fundamental para revitalizá-lo. Foi por este recuperada e deformada numa contínua (ou várias formas de) avaliação intermitente. Esta, por ser pontual, corre o risco de ser abstracta e arbitrária se não mergulhar e servir de complemento e clarificação, tira-teimas da outra. Neste momento, o que temos na escola reduz-se a múltiplas formas de avaliação intermitente, mais ou menos separadas no tempo, e uma ignorância da matriz primitiva da avaliação contínua que todos afinal praticam sem se darem conta, nem tematizarem, nem aproveitarem, continuando, portanto, cortados, em termos de consciência, do fluxo existencial concreto que, apesar de tudo, não podem deixar de viver, quando intervêm na avaliação.


Avaliação qualitativa e quantitativa: tendem a funcionar, em termos formativos, com sinal contrário. Enquanto a qualitativa mergulha e deriva directamente da avaliação informal que nos pontua cada gesto e constitui o real monitor dos nossos sentidos, opções e rumos de vida, constituindo, quando formalizada, um prolongamento natural de tal fonte originária, a quantitativa tem origem e missão diversa. É uma imposição do poder, constituindo o controlo, o policiamento dele sobre todos e cada um, bem como sobre o papel social da instituição inteira. As sanções legais a ela ligadas retiram-lhe qualquer função formativa, a não ser a de conformação ao poder e respectivas imposições. A quantitativa opera por constrangimento, condicionando de fora as respostas; a qualitativa parte (pode partir) dos motivos pessoais e radica então dentro de cada um.



2 – Estratégias para a desdramatização da avaliação


a) Reconverter o institucional no formativo


Geradora de tensões é a classificação, podendo e ocorrendo por isto tornar-se arbitrária e, em casos-limite, intolerável. Importa listar meios para tornear tal obstáculo, o que é tanto mais premente quanto mais a avaliação classificativa tende a operar não formativamente mas antes de modo deformante ou, pelo menos, altamente condicionante do desenvolvimento do educando e à margem ou na ignorância dos respectivos motivos íntimos bem como dos das comunidades interiormente por ele assumidos e propugnados. Por outro lado, evitar angústias e tensões desnecessárias é ainda parte da tarefa do professor de filosofia que opte por ajudar os educandos a irem conseguindo filosofar, uma vez que isto requer assumir e ultrapassar as contradições da vida real de cada aluno, com todas as implicações. Ora, as perturbações e dificuldades da escolaridade não são para ele um problema menor, bem ao contrário e durante largos anos.


A primeira medida e a mais calmante de fundo é a de fazer rdicar toda a classificação na avaliação informal e contínua e explicitá-lo perante os alunos. O mero facto de as avaliações intermitentes não serem sem recurso e de se contar com todo o tipo de manifestações ocorridas no processo pedagógico para ponderar as classificações é factor de segurança e acalmia. Isto implica, entretanto, múltiplos e constantes registos de todos os pormenores significativos de cotio, o que nem smpre é fácil.


Outra estratégia usada e eficaz é a repetição sistemática de pequenas avaliações pontuais qualitativas sobre aspectos parcelares, por escrito, ao fim de cada unidade ou de cada semana de aulas, e que no fim do período se transformam em classificações, eventualmente ainda ponderadas com outras informações relevantes entretanto ocorridas.




b) Inverter pedagogicamente o institucional


Uma outra fórrmula que tem resolvido o problema é a de atribuir a cada aluno a gestão da sua classificação: dão-se-lhes os critérios, fazem-se exercícios exemplificativos para eles os compreenderem com rigor relativamente a qualquer matéria, combinam-se as modalidades de comprovação que se vão adoptar, as datas em que haverá quaisquer provas intermitentes e depois cada um pode tratar de situar-se ao nível que entender. O professor aqui vai apenas dando a informação, em cada momento do processo, de qual o ponto em que o aluno está, de modo a que o educando possa decidir se lhe satisfaz ou se pretende mais. Pode ser preciso dar-lhe indicações suplementares de estratégias de superação para dificuldades particulares que por ele sozinho não logre ultrapassar ou então encaminhá-lo ou oferecer-lhe novos recursos, outras fontes de informação ou campos de aplicação e exercitação. De qualquer modo, o processo é autogerido e o nível final é escolhido e prosseguido por iniciativa própria, fornecendo o professor, neste domínio, apenas a informação de retorno sobre o ponto ou nível em que ele vai ficando em cada momento significativo do trajecto. É aconselhável, quando a estratégia é esta, dar indicadores de classificação bastante antes do termo de cada período (três semanas, por exemplo) para viabilizar constantemente quaisquer tentativas de recuperação que o educando eventualmente entenda encetar, o que requer sempre um lapso de tempo razoável para poder dar frutos palpáveis.


Um processo mais simples e mais comum situa-se num meio termo entre a gestão desta avaliação pelo professor e pelo aluno: trata-se de oferecer várias oportunidades de reclassificação após um primeiro momento em que se determina qual a nota em que o aluno se situa. Também aqui se requer que esta indicação e as formas de avaliação de que resulta não ocorram demasiado próximas do termo de cada período, para permitir estratégias de recuperação e contraprovas do nível atingido. Em muitos casos a reclassificação tem apenas o estatuto de melhoria de nota, o que nos educandos garante ainda mais segurança e acalmia. Como a prática demonstra que a generalidade de cada turma acata como satisfatória a primeira indicação de classificação, então as novas provas e tentativas de superação limitam-se a uma franja de meia dúzia de alunos por turma, o que não perturba muito a continuidade normal do trabalho lectivo com todos. Optimizamos o efeito se simultaneamente nos dispusermos a ajudar com recursos, indicações de estudo ou de práticas necessárias os insatisfeitos e, ao mesmo tempo, aceitarmos múltiplas formas de contraprovar os níveis atingidos, seja oralmente ou por escrito, em teste, em pesquisa por ele elaborada e a ser em comum analisada e assim por diante.


Importa, em qualquer caso e modalidade, velar por que o aluno saiba que nenhuma prova é definitiva, nenhum momento é derradeiro e sem recurso. É este aspecto o que se revela mais perturbador e igualmente é o mais arbitrário e agressivo de certas formas e práticas com que deparamos nas escolas e que assim consagram, mesmo sem o saberem, o despotismo do poder e a sua pretensão a utilizar as pessoas como joguetes inertes, meras marionetas dos seus jogos anónimos, violando o respeito pelo sujeito que o efucando é e o sentido de serviço da instituição educativa.




3 – O efeito de Pigmaleão e as precauções a tomar para optimizá-lo formativamente


a) A formatividade do efeito de Pigmaleão


Dada a posição institucional do professor que lhe consagra o saber sancionando-o com o poder, bem como o relevo social, em termos de prestígio e expectativas sobre a função docente que a colectividade alimenta, há a tendência de a imagem ou preconceito que o educador tem do aluno acabar por conformar este, de modo que, a prazo, ambos se ajustam por gradual transformação do educando no modelo que dele se formou e se lhe vai impondo, mesmo inconscientemente. Ora, se o professor tem o poder de moldar o aluno, então convém tomar consciência de como ele opera para lhe aproveitar a formatividade e evitar a perversão.


Em primeiro lugar, se o docente crê que o aluno é bom ou genial (mesmo que não tenha revelado ainda tais qualidades) há a tendência para sobrevalorizar quanto de positivo ele manifeste, seja em termos de o estimular com reforços positivos, seja de o avaliar exclusivamente pelo que ele vai conseguindo, ignorando ou desvalorizando o que ele ignora ou falha (a pretexto de distracção, de esquecimento ocasional ou da facilidade com que se pode recuperar a qualquer momento...). Isto oferece uma vertente positiva que é a de optimizar a estimulação do educando, solicitando-o a desenvolver-se cada vez mais, encorajando-o, convencendo-o de que é capaz, de que vai conseguir atingir as metas que se for propondo alcançar. Há, porém, uma vertente negativa e mistificadora que pode trair o professor. É que ele tende a tornar-se irrealista nos juízos que faz, minorando os erros, falhas, ignorâncias e todas as deficiências em geral do educando, eventualmente tornando-se cego a elas e obcecando-se com as vitórias e desenvolvimentos que for constatando. Isto vai conduzir o aluno a ter uma visão falsa dele próprio, tornando-se eventualmente triunfalista e com excesso de confiança ou então deixando-se dormir preguiçosamente sobre os louros conquistados.


O equilíbrio da atitude positiva requer a lucidez de não deixar jamais tornar-se exclusivista a tónica posta nos sucessos, de modo a ter sempre presente as deficiências, erros e lacunas, perspectivando-os permanentemente como o caminho a percorrer de futuro pelo educando, a partir dos níveis já anteriormente atingidos no seu itinerário escolar. Mas igualmente impõe que jamais a constatação das deficiências ocupe o primeiro plano, sirva de pano de fundo ao perfil que se tem do aluno, ao contrário. Terá sempre de ser o que o educando vai realizando correctamente que terá de constituir o centro do juízo e ideia geral que dele o educador deverá cultivar. Esta é que então devirá fermento para a conquista dos novos conhecimentos e níveis de desenvolvimento.



b) A ameaça do efeito de Pigmaleão


Quando o docente encara o aluno como mau ou destituído de faculdades tem a tendência para sobrevalorizar quanto de errado ou negativo ele faça, avalia somando erros e faltas e ignorando ou desprezando o que de correcto e acertado ele consiga. Isto tende a desmotivar o aluno, uma vez que lhe concentra a tenção nas incapacidades e fracassos, levando-o a perder a confiança nele próprio, a encarar-se como um destroço humano desprezível, sem valia nem préstimo nenhum. Quanto mais se convence disto, mais tende a reproduzir tal modelo, afundando-se de falhanço em falhanço e assim fundamentando ainda mais a convicção de que aquela imagem negativa dele próprio é objectiva. O professor, no limite, acaba por ignorar quanto de positivo ele, apesar de tudo, vai conseguindo, somando apenas as deficiências que constate. Isto é inteiramente falho de objectividade, muito embora a simule e torne difícil de desmascarar, uma vez que se funda em realidades constatadas; o erro consiste em eliminar o outro lado desta realidade ou em subestimá-lo tanto que a visão resulta deformante relativamente à totalidade das facetas observáveis.


O efeito negativo disto consiste primeiramente na desautorização do educando que tende a assumir tal julgamento, crendo-se impotente e tropeçando assim cada vez mais, desmotivando-se e descrendo dele mesmo. Mas um outro resultado não menos gravoso ocorre do lado docente: o mestre desinteressa-se de tal aluno, cada vez se importa menos com ele, não o solicita, não o apoia, nem questiona, nem ajuda, nem lhe dá recursos. Abandona-o depois de o ter apunhalado, mesmo inconscientemente. Quando a incongruência e iniquidade do processo atingem limiares gritantes, um efeito positivo pode resultar dele. É que o aluno pode sentir-se vítima de discriminação arbitrária e revoltar-se. Então, para fazer finca-pé, torna ponto de honra demonstrar a quem o esmaga que é o contrário do que julgam e desata a afirmar-se, quer pela contestação directa das atitudes e critérios do professor, quer pela indirecta da luta pela melhoria do aproveitamento escolar para depois obrigar o docente a rever juízos ou então, quando o não faça, a confrontar-se com as provas da sua falta de objectividade e equilíbrio (revisão de provas, protesto de notas...). Sendo uma resposta salutar que não é a mais comum e que só tende a aparecer quando o irrealismo do professor se torna evidente, o que não é vulgar, esta atitude não pode jamais justificar a perversão da relação pedagógica de que parte e que por norma vitima em massa os educandos, pese embora esta excepção. Mesmo ela, porque decorre e se alimenta do conflito docente-discente não é jamais equilibrada sem percas nem desvios, nunca constituindo uma solução optimizada, mas uma saída de menor perda que algumas personalidades mais fortes logram protagonizar para sua autodefesa.


A prazo, o efeito de Pigmaleão provoca a conformidade entre a realidade do aluno e a imagem que dele tem e projecta o professor. O mecanismo positivo que aqui conduz resume-se a isto: se a imagem do educando é boa, o educador estimula-o positivamente, mantendo-lhe permanentemente ante os olhos os sucessos, gerando-lhe e alimentando-lhe um conceito de si próprio convicto das próprias capacidades, optimista e capaz de retirar forte compensação de cada actividade escolar; por outro lado, o professor acentua e selecciona na avaliação tudo o que de bem conseguido o aluno logra, o que foca a atenção deste nas vitórias e permite que ele encare o trajecto vindoiro como a continuidade da caminhada auspiciosa até cada ponto já vencida; a gratificação da relação pedagógica para ambos os protagonistas leva-os espontaneamente a procurá-la mais e a aprofundá-la indefinidamente, pelo que o docente tende a centrar-se nestes alunos esquecendo os outros, se não estiver prevenido e conscientemente contrariar tal tendência.






MÉTODOS PEDAGÓGICO-DIDÁCTICOS ACTUAIS



Como os métodos e técnicas didácticas não são específicos da filosofia (ou psicologia) mas utilizáveis em qualquer disciplina, exemplificá-los-emos em múltiplos contextos programáticos. Antes, porém, importa atender a alguns pressupoostos fundamentais a ter em conta para se escolher criteriosamente por qual ou quais deles optar, quando entramos na sala de aula.



1 – Pressupostos científicos


a) Retenção de informação nova:


1 – Por todos os sentidos, excepto vista e ouvido – 20%;

2 – Só pelo ouvido – 20%;

3 – Só pela vista – 30%;

4 – Pelo ouvido e pela vista – 50%;

5 - Pelo ouvido, vista e com discussão – 70%;

6 – Pelo ouvido, vista, com discussão e acção – 90%.



b) A pirâmide da experiência:


Lei geral: experiência cada vez mais directa, efeitos cada vez mais poderosos.


Ordenação do mínimo ao máximo:


1 – Palavras – (só ouvido) faladas

(só vista) escritas


2 – Ilustrações – (só vista) mapas, gráficos, diagramas, organigramas


3 – Experiência imaginária passiva – (só ouvido) rádio, gravações

(só vista) fotografia

(vista e ouvido) filme fixo e animado, televisão, vídeo/DVD...


4 – Experiência real passiva e estática – (vista e talvez outros) modelos estáticos, exposições, museus, laboratórios e fábricas em repouso


5 – Experiência dramatizada passiva – (talvez todos) observação de sociodramas, modelos em acção, demonstrações


6 – Experiência dramatizada activa – (todos) participação em representações, análises de casos, sociodramas, demonstrações


7 – Observação da experiência real com fim definido – (todos) trabalho no próprio local, visitas de estudo durante funcionamento


8 – Experiência real com um fim definido – (todos) participação na vida



c) Modelo de comunicação (aspectos a ter em conta)

Há sempre:




2 – Principais métodos

Reforçáveis por uso criterioso de audiovisuais fixos ou com movimento



a) Exposição (conferência, curso magistral)


Características e traços:


Exemplos recolhidos em campo:



b) Conferência activa (colóquio)


Características e traços:


Exemplos recolhidos em campo:



      1. Discussão


Características e traços:



Exemplos recolhidos em campo:



      1. Método da colmeia

Características e traços:


Exemplos recolhidos em campo:




3 – Variantes dos métodos principais



a) Painel


Características e traços:


Exemplos recolhidos no terreno:



b) Simpósio


Características e traços:

Exemplos recolhidos em campo:


      1. Grupos de trabalho

Características e traços:


Exemplos recolhidos em campo:



      1. Círculo de estudo-acção (círculo cultural)

Características e traços:

Exemplos recolhidos em campo:




4 – Métodos mais envolventes



a) Técnicas para dinâmica de grupos

A ordenação abaixo reportada obedece ao seguinte princípio antitético: opções cada vez mais longe da vida real e cada vez implicando maior envolvimento pessoal


1.ª – Análise de casos


Características e traços:


2.ª – Representação e sociodramas


Características e traços:


3.ª – Simulação


Características e traços:


4.ª – Jogo educativo


Características e traços:


Exemplos recolhidos em campo:



b) Inquérito (aprendizagem por descoberta, ensino programado)


Características e traços:


Exemplos recolhidos em campo:



      1. Projecto


Características e traços:

Exemplos recolhidos em campo:






A RELAÇÃO PEDAGÓGICA



      1. Pedagogia e relacionamento interpessoal


a) Alguns aspectos a ter em mente:




b) Tipos-limite de referência





2 - A relação interpessoal sadia


a) Alguns aspectos a ter em mente




b) Alguns tipos dominantes de potencialidades dimunuídas





3 – Primeira condição para optimizar a relação pedagógica: ver-se ao espelho e não fugir



a) Alguns aspectos de acerto e desacerto, relativamente à primeira condição do bom relacionamento pedagógico:



b) Alguns tipos de olhar-se que se tornam autocastradores:




4 – Segunda condição para optimizar a relação pedagógica: acolher o outro enquanto diferente e, por isso, prometedor



a) Alguns aspectos típicos de acerto e desacerto, relativamente à segunda condição do bom relacionamento pedagógico:




b) Alguns tipos de encontro com outrem que lhe estreitam os horizontes:





5 – Terceira condição de optimizar a relação pedagógica:dar as mãos é caminhar para o infinito



a) Alguns aspectos típicos de acerto e desacerto, relativamente à terceira condição do bom relacionamento pedagógico:




b) Alguns tipos de exploração do encontro:




6 – Quarta condição para optimizar a relação pedagógica: caminhar é partilhar-se, partilhar-se é exprimir-se, é expor-se



a) Alguns aspectos a ter em conta:



b) Alguns tipos de atitudes perante a necessidade de expor-se:







DISCIPLINA NA ESCOLA




      1. Disciplina e autoridade


a) Os dois modelos de disciplina:




b) Os dois modelos de autoridade




c) A fuga de professores nos primeiros anos e a incapacidade de assumir um modelo




2) A autodisciplina como ideal



a) O educador autodisciplinado e as hesitações dos principiantes



I – Consciencializar e desenvolver um modelo pessoal de ser educador, tendo fundamentalmente em conta


II – Tomar precauções para dominar a situação em vez de ser por ela dominado,



b) O educando autodisciplinado e o desenvolvimento da personalidade




      1. O educador enquanto animador do grupo


a) Primeiro objectivo – quebrar o anonimato, através da seguintes estratégias, por exemplo:




b) Segundo objectivo – criar a regra do jogo através de estratégias como, por exemplo:




      1. Terceiro objectivo – cumprir a regra do grupo através de estratégias como, por exemplo:




      1. Quarto objectivo – administrar as aspirações através de estratégias como:




      1. O relacionamento para a autodisciplina



a) Equilibração do encontro:




b) Encontro em dinâmica de grupo




      1. A integração do indivíduo no grupo



      1. Achegas para criar ambiente para o grupo





      1. Os condicionamentos sócio-ambientais


a) Aspectos a ter em conta na escola




b) Aspectos a ter em conta no meio





      1. A primeira aula, paradigma para todo o ano


A primeira aula do primeiro período, aula de apresentação, é o momento crítico mais relevante para a criação e manutenção da discipliona ao longo do ano inteiro. Nestas condições, urge atender aos seguintes aspectos:


a) Precauções prévias


- Elaborar um plano para o primeiro dia com particular cuidado,



- Os materiais necessários devem estar preparados no princípio da aula, imediatamente e a qualquer momento utilizáveis;


- A sala deve estar limpa, arrumada, em condições de temperatura e luminosidade adequadas e com tudo o que vier a ser utilizado ordenado.



b) Cuidados a ter no decorrer da aula




      1. Sugestões para a prevenção disciplinar à partida







CONCLUSÃO


RUMO À INFINITUDE




Os meandros do desafio



      1. O saber e o sabor


Aprender a reflectir e ajudar quem o pretenda decorrem em paralelo tanto do conhecimento quanto da arte. A disputa pedagógica sobre qual dos vectores deverá predominar é secular e, à partida, não tem sentido, uma vez que ambos os aspectos se têm de imbricar e operam mutuamente em termos dialécticos a fim de optimizarmos o desenvolvimento individual. Relevante é caracterizarmos os dois pendores e o modo como convém que se interliguem, em ordem a levar cada pessoa ao limite das respectivas potencialidades.


O saber que o pedagogo em geral e o educador do filosofar particularmente terão de dominar releva de quanto atrás vem perspectivado e proposto e doutros domínios secundarizados por menos centrais ou de pertinência mais sectorial, como por exemplo o da psicopedagogia da puberdade, adolescência e juventude, fases etárias em que por ora dominantemente topamos com os alunos. Todo o conjunto acumulado de conhecimentos, bem como o feixe de opções e alternativas a enfrentar neste domínio, dando sentido ao agir do educador, tanto por lho mostrar ao espelho como por lhe permitir modelá-lo com lucidez, com conhecimento de causa, não basta, porém, para gerar um pedagogo. Constitui um pano de fundo, um contexto em que os encontros educador-educando irão decorrendo. Oferecem a estes um quadro de leitura do que neles ocorre, permitem valorá-los por confronto com referenciais testados e críticos, estimulam-nos a reordenarem-se permanentemente para optimizar o efeito das práticas pedagógicas, suscitam projectos e sonhos que reanimam quanto na rotina de cotio tenda a definhar. Aqui termina, porém, o relevo e função do vector do saber. Com efeito, não são os que mais e melhor conhecem quem na relação educativa é mais perito. Pelo contrário, é irritantemente comum uma enorme lonjuraa entre as propostas da generalidade dos pedagogos e o que operam nos cursos com os respectivos alunos. Isto intriga sempre quem não tenha descoberto o abismo que medeia inelutavelmente entre teoria e prática. Na verdade, constituem dois campos de aprendizagem autónomos que requerem caminhos inteiramente diferentes para se cultivarem a contento. É generalizado o preconceito de que através do domínio cognitivo do primeiro se logra automaticamente o depuramento activo do segundo, por mero reflexo ou transferência. Isto é tão comum que o sistema escolar persiste no erro de que gera cidadãos equilibrados e profissionais satisfatórios, com o mero aparelhá-los de grandes doses de conhecimentos, através dos currículos. O efeito em massa mais notório do desajustamento em causa é a total imperícia dos diplomados para a vida prática e profissional para que os diplomas, entretanto, os presumem, em princípio, integralmente habilitados. É tão gritante a discrepância que nem vale a pena insistir nela. A mestria do pedagogo e do educador do filosofar, enquanto isto implica e requer apuramento da sensibilidade no encontro intersubjectivo em acto, não derivam do saber mas doutra instância, a do sabor que no íntimo repercute e cativa cada interveniente quando se dão as mãos na aventura da vida.


Saborear o encontro educador-educando, buscar-lhe o aprofundamento implicam o cuidado pela qualidade da relação interpessoal, pelo que nela se intercomunica, tanto de cariz cognitivo como afectivo ou activo, requer empatia e atendimento ao que esta impuser, envolve partilha de expectativas e projectos e a entreajuda para viabilizá-los. O desenvolvimento das aptidões para tudo isto requer a prática em concreto, com empenhamento, concentrada e crítica relativamente a cada experiência vivida, bem como impõe o acatamento do ritmo próprio de maturação destas capacidades que não se adquirem instantaneamente (como ocorre no domínio do intelecto, do insight, quando nele desponta a luz), antes crescem lentas, esforçadas e tanto ou mais dependentes do subconsciente e da espontaneidade quanto da consciência e da vontade nelas apostadas. A arte de educar e, particularmente, a de ajudar a reflectir assumindo a vida, decorre primordialmente desta atenção ao concreto, do gosto que por este se cultiva e desenvolve, cuidoso da qualidade do que nele vai ocorrendo e pressuroso em optimizá-lo, redundando a prazo numa profunda alteração das pessoas envolvidas, educador e educandos, bem como dos laços que à partida os ligavam, gradualmente derivando da estranheza à intimidade, da indiferença à simpatia e convertendo os encontros de frios, funcionais, em momentos interessantes, motivantes e, quantas vezes, entusiásticos.


Ora, se o saber é de validade tendencialmente universal e os itens dele pretendem revestir carácter objectivo em maior ou menor grau, o sabor é doutra natureza. Implica, à medida que entramos na correnteza da vida, a trajectória individualizada, de perfil único, irrepetível, intimamente assumida pelo eu de cada um e segundo as equilibrações mais adequadas à respectiva personalidade. Apenas com tais cuidados se logra visar a optimização do itinerário que transmuda um sujeito qualquer num pedagogo e, em particular, num mestre do filosofar. Se além há princípios, lei e normas com a pretensão de a todos e sempre poderem aplicar-se, aqui há o depurar da arte que apenas o saborear dos eventos no imo de cada um permite sublimar, na vigilância e adequação permanente às infindas refracções e variabilidades das circunstâncias. Qualquer definição, teoria, classificação ou categorização leva neste âmbito ao risco de alhear da vivência concreta, cuja assunção adequada é a única via que importa, a matriz sem alternativa para alguém vir a desembocar algum dia na mestria de educar como uma constituinte da personalidade própria.


Ora, este é o ponto terminal visado pela metodologia e que se apura mormente durante e na didáctica da filosofia, em plena aula, na relação pedagógica. Aqui os operadores são afectivos e activos em primeira linha, constituindo os cognitivos, a partir de então, um pano de fundo e uma antítese dialéctica. Não é de conhecimentos que precisamos primordialmente quando aqui chegamos, mas de acompanhamentos em acto, verificações ao vivo, observações factuais e ocorrências que nos desafiem e solicitem. As aulas observadas mutuamente, as trabalhadas em comum, mesmo e principalmente durante a execução, os projectos implementados e comparticipados, as emoções convividas, os valores compartilhados, o quotidiano entrelaçado entre formador e formandos, educandos e educadores – apenas experiências-vivências destas permitirão optimizar esta caminhada transformadora da pessoa inteira por dentro dela própria e não já quaisquer teorias, mormente se encerradas nelas mesmas. Aqui é a empatia e a interinfluência inconsciente de carácter afectivo-activo que predominam na eficácia do efeito a produzir. Tal é, por isso, o ponto de chegada que o mestre do filosofar visará, tentando atingi-lo pela vida fora em cada vez maior plenitude.



2) O sabor do saber


Quando a relação pedagógica adquiriu o sabor duma arte de ajudar a reflectir bem apurada, então a dialéctica entre os dois aspectos da formação do pedagogo manifesta uma imbricação mútua muito mais rica. É que o estatuto do próprio saber se altera, buscando nele próprio a razão de ser da respectiva procura. Exprimimo-lo relativamente aos alunos afirmando que vivem motivados pelas problemáticas em estudo. O professor redescobre o mesmo no âmbito do gosto de saber e de saber ser educador, iniciador ao filosofar. Nesta perspectiva, todos os conhecimentos que em tal domínio à partida se lhe antolharam estranhos, deixando-o indiferente ou até na deefensiva (perante eles e quem lhos requeira), após a caminhada na rota do atractivo da prática, reconvertem-se num domínio imprescindível cada vez mais apaixonante, onde descobre os segredos gratificantes da vida profissional, os tematiza, lhes empresta a força da consciência e do controlo voluntário, bem como da lucidez crítica entre as respectivas potencialidades, perante o sonho que permitem ir cultivando.


Por este ângulo, o saber ganha sabor e este vem gradualmente alimentando aquele por dentro. Com isto, porém, o conhecimento deixa de ser alheio e de provocar eventualmente a alienação do professor perante a própria intimidade acolhida em consciência. É que, a partir daqui esta área cognitiva devém revelação e projecção dele mesmo, no que de mais significativo vive no íntimo e logra empenhar enquanto trabalha, realizando-se deste modo profissionalmente no sentido mais pleno. Na mesma linha de rumo, torna-se então viável a síntese entre o filosofar e o ajudar outrem a aprendê-lo, através da ponte vivencial comum que consiste em saborear o saber relativo a cada um dos aspectos. Ocorre mesmo que aquele que se vai desvendando como educador e cultivando a alegria que tal leva a desabrochar entre todos, mesmo quando ainda não haja bem tomado o gosto ao filosofar, acaba transferindo para este a festa que acolá ocorre. Então a relação pedagógica viva e gratificante que num primeiro momento se transfundiu para o saber que a enquadra e tematiza, doravante extravasa para mais longe, iluminando e dando sentido à própria temática curricular que por dentro dos encontros interpessoais vai ser então redescoberta como o vector que cria densidade e interesse a cada qual e à vida inteira compartilhada com todos na humanidade.


Nesta perspectiva, o mestre do filosofar aproxima-se da atitude ideal de ser que consiste em sintetizar ao vivo, incarnado nele próprio, o fundamento comum ao agir-se, conhecer, relacionar-se e projectar e que, sendo de facto o sabor de saber é, concomitantemente, o saber do sabor: - sabendo e saboreando a relação com outrem, primícias do encontro-comunhão com o Tu, início do Nós universal que unificaria em consumação final o tempo e o espaço, o grande sonho da Humanidade transfigurada em plenitude.



        3) O saber do sabor


Por outro lado, a dialéctica implantada entre conhecimento e arte de educar leva a que, no intuito de melhor apreender e potenciar a aptidão de auxiliar a aprender, o mestre do filosofar tenta captar o inefável, a volúvel e irremediavelmente surpreendente circunstância. Neste esforço por lobrigar um fio condutor através da permanente variabilidade e da transfinitude de aspectos em tensão interminavelmente mutável, algo vai sendo de facto desvendado, há identificações viáveis, posicionamentos e perfis pessoais que se delineiam, dinâmicas que se logram ir caracterizando. É então o sabor que difícil e laboriosamente vem acedendo ao saber, é a inteligência que o vai penetrando, iluminando-lhe recantos menos arredios, em permanente desafio, em infatigável canseira.


Por este meio nova simbiose ocorre que imbrica profunda e duradoiramente a consciência no acto, criando o que teremos de designar por uma sabedoria, síntese cognitivo-activa que ilumina, robustece e atribui uma força inédita à personalidade, um poder invulgar a quem a logra e tanto maior quanto mais em tal senda avançar. Fruto de experiência-vivência crítica acumulada e constantemente depurada a ambos os níveis, o cognitivo e o afectivo-activo, é a premência de garantir e melhorar o sabor de educar que impele à procura de tal saber. Com efeito, apenas este lhe pode ofertar a segurança que tomar consciência lhe dá, só ele rasga pistas à vontade para promover aquele com precisão e economia, ele somente permite identificá-lo, implementá-lo, distingui-lo e maravilhar-se com ele onde quer que aflore.


Neste filão em que busca o saber do sabor reencontra o mestre do filosofar, afinal, o fio condutor de toda a filosofia na vida. Que é, afinal, esta senão o intento jamais acabado de desvendar até ao fim o mistério de quanto nos toca, de quanto nos fere a sensibilidade com qualquer que seja o sabor em concreto? E, no perene fluir do real que nos desafia neste domínio, retomamos a faceta mais desconcertante com que tudo se nos revela à consciência. Aliás, a variabilidade na arte do pedagogo em acto pode ir a um extremo tal que, no limite, a tornaria inteorizável por absolutamente inapreensível em conceitos (por definição abstractos, universais, consumados, portanto, fixos, estáticos, por mais dinâmicos que os pretendamos e enfoquemos). No limite, deparamos aqui com um desafio total ao poder de filosofar.


E assim, no saber do sabor culmina a síntese dialéctica do mestre filósofo, reencontrando a terra prometida à medida que se reencontra, buscando o paraíso perdido por dentro e para além dele próprio, através da mediação da relação pedagógica em acto e do desvendamento possível dela, sempre a negacear-lhe ao longe, sempre a deixar-se aproximar sem jamais poder ser agarrado, projectando-o irremediavelmente rumo ao infinito. Para a infinitude de ser conhecendo-se: o total saber do sabor, o pleno sabor de saber.


A arte do pedagogo, nestes termos, se pode viabilizar a libertação de alguém, principia por desencadeaar a libertação do próprio educador, do mestre do filosofar. Aliás, só porque e enquanto é capaz de a ele mesmo se projectar ao infinito é que igualmente para os demais se pode constituir em penhor e fermento da plenitude possível da humanidade. Tal é, ao fim e ao cabo, a vocação derradeira e mais nobre da filosofia. Por aqui se patenteia quanto é incindível filosofar e ser pedagogo disto mesmo perante toda a gente, a principiar nos educandos que a cada ano calham em sorte ao professor. Ignorá-lo ou recusá-lo é perverter todo o sentido e a potencialidade transformadora da filosofia na cultura e na história. Com isto, porém, liquidaríamos radicalmente qualquer esperança dum porvir que valha a pena para a humanidade. Ora, quem pretende carregar aos ombros tal responsabilidade? Quem aceitaria inculpar-se de tal tragédia?


Porque recusamos o suicídio e optamos pela vida é que aqui avançamos as propostas e alternativas que se nos antolham mais correctas e mobilizadoras, na expectativa de que também elas fermentem novas escolhas e revelações em outros colegas, a fim de que todos juntos criemos um mundo onde cada dia mais a história seja a festa da vida, porque será então a Vida em festa.



FIM