No Trilho Secreto dum Imortal
CANTO I
Há muito tempo, na floresta densa
Que cercava Benares, urbe santa,
Muito trabalho havia, o que compensa
O lenhador cujo labor se implanta
No matagal cerrado, em freima intensa,
Cortando lenha enquanto a voz lhe canta.
O belo Satyavan, que a primavera
Ama de Savitri, um deles era.
Custava-lhe sair dos braços dela,
Muitas manhãs, no bosque, se atardava
Da cabana a sair, cerca singela,
Mas, cumpridor, em breve se alongava
Pelo trilho sombrio. O adeus à estrela
Num beijo derradeiro lhe acenava.
Um dia, Savitri sonha acordada
Na cama, de feliz, plenificada.
De súbito, repara na figura
Sentada na clareira poeirenta
Que é seu pátio de entrada, em tal altura.
“Um monge itinerante” - cuida atenta.
Arroz e vegetais logo lhe apura
E oferecer ao monge o cibo tenta
Com hospitalidade, que é sagrado
O dever de à visita o pão ser dado.
O estranho - “Não preciso de alimento” -
Lhe diz e afasta a taça a Savitri
No solo mosqueado a sombra e vento.
E acrescenta mui parco: - ”Espero aqui.”
Horrorizada, a moça vê-lhe o intento:
Um hóspede não é que tem ali,
Mas sim a própria morte, o senhor Yama
Que das horas deslaça toda a trama.
- ”Quem espera?” - pergunta, em voz tremida.
- ”Espero Satyavan” - diz, educado,
Que tinha autoridade indiscutida
Sobre os mortais que a vida lhe há ofertado,
Absoluto poder, sina temida
Desde que se lembrava, eterno fado.
- ”Satyavan!” - exclamou já Savitri,
Quase desmaia ao nome que ouve ali. -
“Mas ele é bem saudável, muito forte
E amamo-nos com grande coração.
Porque é que há-de morrer quem tem tal porte?”
- ”Porque tudo será de tal feição
Que é como deve ser” - e diz que é sorte,
Os ombros encolhendo, como não
Tendo interesse aquela contradita.
Indiferente, os olhos no chão fita.
- ”Mas se importa tão pouco” - Savitri
Recupera de espírito a presença -
“Porque não um qualquer outro daqui?
Há infelizes, doentes que a sentença
Duma libertação querem de si.
Vá visitá-los, não quem me pertença!”
- ”Vou esperar aqui” - repete Yama
Ao choro invulnerável que lhe clama.
Em Yama Savitri lê o que era um mundo
Em que tudo era anónimo, impiedoso.
Retornou ao tugúrio, bem ao fundo,
Percorre-o agitada, que é penoso
Cuidar que seu marido vem jucundo
Para o lar encontrar morte, não gozo.
O tigre a Satyavan teme o machado,
Mas à morte arma alguma há já tocado.
Desesperada, foge das traseiras
Para a floresta em busca dum lugar
Sagrado na montanha, umas clareiras
Com copa baniana, a conformar
Das raízes, cavernas com esteiras,
No escuro uma frescura a germinar,
Onde afamado santo há muito vive.
Talvez ela com rogos o cative.
Não sabia o caminho e a cobrir
Breve se encontra trilhos de veados,
Ravinas bordejando, a deixar-se ir.
Impele-a o medo em passos esforçados,
Vai até onde a força o permitir,
Trepa sem um destino, é com os fados...
Exausta, cai no chão, um tempo dorme,
Até que o sol dum novo olhar a informe.
CANTO II
Ao acordar, repara que aos pés foi
De baniana enorme árvore e perscruta
O escuro cavernoso. A dor a rói
E ela espera avistar do santo a gruta,
Que a morte não destrua o que destrói
Savitri, se seus planos executa.
Antes de ter coragem para entrar,
- ”Vai-te embora!” - ouve dentro alguém gritar.
- “Eu não posso ir-me embora” - respondeu
Savitri com a voz a lhe tremer.
O desespero explica que lhe deu
Com a morte a espreitar onde estiver.
- ”A morte atrás de nós sempre correu,
Em que diferes tu doutro qualquer?” -
Diz-lhe da escuridão a voz soturna.
Em lágrimas os olhos, frente à furna,
Insiste Savitri: - “Se és o mais sábio,
Algo mais deves tu ter para mim.”
- ”Negociar com a Morte? Dela o lábio,
Se beija, faz falhar o mais: é o fim.
Todos os que o tentaram, falham, gabe-o
Embora em mil falazes tons, enfim,
Gabe-o embora o que correr o mundo” -
E a voz cai no silêncio mais profundo.
Savitri limpa as lágrimas de pé:
- ”Então que Yama, em vez de meu marido,
Me leve a mim, pois que o desejo até.
Definitiva é a morte. O meu sentido
É que ela a mim me mate e não quem é
Indigno de morrer: pouco há vivido...”
Decidida, a postura, em desespero,
É dum amor gratuito, é o amor mero.
A voz ficou mais branda e diz: - ”Tem calma.
Há uma maneira muito singular.”
E o homem que de sanro tem a palma
Emerge da caverna a tentear.
Era um asceta magro, feito de alma,
Tanga cingida, seda a rebrilhar
Do xaile sobre os ombros monacais.
É Ramana e de jovem tem sinais.
- ”De derrotar a morte há uma maneira?
Diz-ma!” - Savitri pede, em frenesim.
Ramana fecha os olhos, dela à beira,
Depois olha-a de olhar que não tem fim,
Do chão apanha a flauta de caneira
E diz-lhe: - “Vem, talvez aprendas, sim.
Nada prometo ao termo da jornada,
Mas é certo que estás desesperada.”
Como esquecido dela, toca a flauta,
Descendo por um trilho de veado.
Savitri, como músico sem pauta,
Pára desalentada, olhando ao lado,
Sentindo-se confusa (oh, sorte incauta!)
Mas como, mata adentro, o som tocado
Se vai desvanecendo, a alternativa
Atrás dele é correr na trilha esquiva.
CANTO III
À medida que trepam a montanha,
Savitri vai ficando mais ansiosa,
Mas ao monge Ramana nada ganha
Uma atenção qualquer mais prestimosa.
Um atalho ele entre o penhasco apanha
E ela perde-o de vista na rochosa
Muralha abrupta que se lhe ergue em frente.
Trepa atrás e um regato vê fremente.
- ”Deves estar cansade, terás sede” -
E o monge lhe apontou para o regato.
Toma a flauta escondida dentre a rede
Da esfiapada túnica e, pacato,
Desatou a tocar ária a que acede
Tal se ali mais ninguém houvera em acto.
- ”Minha música não te faz sorrir?” -
Questiona dela as ânsias a fremir.
Mas ela não consegue vislumbrar
Senão a morte à espera em frente à casa.
- ”Temos tão pouco tempo! O que ensinar
Me quiseres ensina, o medo arrasa.”
- ”E se eu pudesse a morte, enfim, curar?”
- ”Mas toda a gente morre! Alguém se atrasa?!”
- ”Então crês em boatos, infeliz!
Crês, por mim, que infeliz és na raiz?”
- ”Claro que não! Feliz fui de manhã,
Antes de principiar todo o problema.”
E Ramana assentiu, a fronte chã:
- ”De nós sermos felizes sempre é o tema
Que todos recordamos, vida sã.
Ninguém já nos convence que outro é o lema.
Deixa-me então propor questão furtiva:
Lembras-te tu de não estares viva?”
- ”Não...” - geme Savitri, muito hesitante.
- ”Esforça-te mais, tenta recordar
Quando eras bem pequena, ainda infante.
O não estares viva é de evocar,
Porque isto, Savitri, mesmo é importante!”
- ”Está bem...” - Savitri sempre a tentar,
Faz o melhor que pode, mas jamais
De não-viva terá memórias tais.
Ramana aponta então um gafanhoto,
Sobre a cabeça dela preso a um ramo:
- “Se vês este da terra vir remoto
Após anos de sono, crês que aclamo
O que antes era morto enxerto boto,
Que nada houve do vivoque proclamo?”
Savitri nega então com a cabeça
Que nada, antes de nado, é morta peça.
- ”Todavia, acreditas que nasceste
Apenas por teus pais testemunharem:
Creram ver o momento em que vieste,
Bastou para o boato lá espalharem.”
Já Savitri se espanta com todo este
Teor de pensamentos a aflorarem.
Ramana se tornou mais insistente:
- ”Olha aqui do regato esta corrente.
O que vês é pequena extensão dele.
Dirias saber onde ele começa
Ou onde acaba a pressa que o impele?
Aceitas, Savitri, da morte a peça
Só porque o nascimento se revele:
Aceite ele, teu pé nele tropeça.
Tens morte por ter antes nascimento,
Um acompanha o outro, é o mesmo evento.
Ignora o boato de se haver nascido:
É tal a cura única da morte.”
Ramana pôs-se em pé e, após metido
A flauta haver na túnica, o seu porte
É de quem caminhar tem no sentido.
- ”Acreditas em mim?” - pergunta à sorte.
- ”Queria acreditar, mas muito medo
É o que eu encontro em mim e a quanto cedo.”
- ”Então continuemos” - diz Ramana.
Começa a se afastar, Savitri o segue,
Pondera o que ele diz, que não engana:
Parece irrefutável o que pregue,
Pois que, se não nasceu, a morte ufana
Não poderia ser o que a persegue.
Seria tal, contudo, então verdade?
Ramana informa ali do que a persuade:
- ”Não podemos basear o que é real
Senão no que lembramos, não no ignoto.
Toda a gente se lembra de, afinal,
Ser, de somente ser e nunca anoto
Que alguém lembre não ser.” O que é fatal:
Que memória transpõe tal maremoto?
Savitri leve aflora-lhe seu braço:
- ”Toca. De ser feliz quero um pedaço.”
Duas horas após de caminhada
Pela mata, Ramana e Savitri
A uma bifurcação chegam da estrada.
- ”Dar ao castelo de Yama é por ali.
Sabias que tão perto era a morada?”
- ”Era bom nem saber quem mora aí.”
- ”Era mesmo?!” - Ramana surpreendido
Fica de medo tal nela escondido. -
“Dei-lhe com o castelo por acaso,
Ao andar” - continua - “por aí.
Tinha curiosidade, a longo prazo,
Em enfrentar a Morte que entrevi.”
Savitri se assustou com este caso
Só de se recordar do medo em si.
Ramana lhe pegou então na mão:
- ”Anda, que irei contar-te a ocasião.”
Savitri bem mais calma se sentiu
Como se a força dele a si passara.
- ”Soube que tinha dado” - prosseguiu -
“De Yama com a casa porque a rara
Entrada de caveiras me surgiu
Em estaca espetadas, dele a cara
Em volta do portão. Lá me sentei
E pelo anfitrião eu aguardei.
Só no terceiro dia Yama volta.
Quando me viu, ficou mui perturbado:
- 'Fiz-te esperar,' - a voz tem a revolta -
'Mas hospitalidade é a meu cuidado.
Três desejos te dou, cada de escolta
A cada dia aqui por ti passado.'
'Isso muito me agrada,' - respondi -
'Pois há muito queria ver de ti,
Que és o mais sábio ser da Criação,'
Yama fez uma vénia majestosa.
'Meu primeiro desejo' – digo então -
'É conhecer a trilha mais gozosa,
Aquela que me torne ao meu torrão.
Não desejo ficar aqui na prosa
Contigo para sempre, em fuga à vida.'
Yama sorriu, aponta-me em seguida
Para oriente: - 'Encontras o caminho
De retornar aos vivos se ali vais,
Por onde nasce o sol, quente cadinho.'
- 'Meu segundo desejo,' - digo mais -
'É saber se sentiste algum carinho.
Sentes amor, tal sentem os demais?'
Yama respondeu mui relutante:
- 'O amor cria. Eu tudo mato adiante.
Não tenho precisão de tal amor.'
Tive pena de Yama, porém ele
Indignado e orgulhoso quer-se opor
A qualquer compaixão que a mim me impele.
- 'Agora te despacha, vais propor' -
Diz-me ele - 'o outro desejo.' Eriço a pele
E digo: - 'Sobrevive qualquer alma,
Após a morte vive em paz e calma?'
Yama, o rosto ensombrado, diz furioso:
- 'Uma vez obrigado a responder,
Eu digo-te a verdade, ó curioso.
Na vida há dois caminhos a escolher:
O da sabedoria, subtil gozo,
E o da ignorância, de buscar prazer.
O sábio perseguir vai no imo um Eu,
O ignorante, o prazer que será seu.
O prazer, temporário, cai na morte
E os ignorantes tombam-me nas garras.
O Eu da imortalidade é a luz mais forte,
Eternamente brilha sem amarras.
Poucos serão espertos de tal sorte
Que a luz neles verão a que te agarras
Lá no íntimo e em mais nenhum lugar.
Ora, o Eu é a luz de alma a iluminar.
Agora vai-te embora! É meu prazer
Jamais ver o teu rosto à minha frente.'
E afastou-se em passada a referver.”
Savitri julga o conto que é atraente
Mas ficou intrigada: - ”Vou poder
Alma não encontrar em mim presente?!”
Ramana pára, olhou em volta, avista
Uma poça da chuva, a ela enrista.
- ”Vês do Sol o reflexo nesta poça?”
Savitri concordou: - “Claro que vejo.”
Ramana patinhou perante a moça
Até de lama tudo ser despejo.
- ”Logras ver algum Sol numa tal fossa?”
Savitri diz que não sem nenhum pejo.
- ”Por isso não descobrem qualquer alma,
Em correrias enlameada a calma,
Infrene actividade e confusão.
Destruí o reflexo ali do Sol,
Porém não o matei. É eterno, então
Não posso retirá-lo de meu rol,
Finá-lo não está na minha mão.
De alma tal é o segredo que em ti bole
Que nem a morte o irá nunca extinguir.”
- “Bem quero nisso crer, na vida ao ir.”
- ”Ainda tens medo,” - diz Ramana suave -
“Porém fica a saber o grande lema:
Se queres ver o real que em ti se grave,
A reflexos não fies teu esquema.”
Savitri mergulhou do imo na cave
Pensando, ao caminhar, em tal sistema.
Desde o momento em que saiu de casa
Savitri conta o tempo que se apraza
Até que Satyavan de seu trabalho
De lenhador retorne ao lar fatal.
Agora, todavia, neste atalho
A mente lhe acalmou, quer ao fanal
Do saber de Ramana, quer do galho
Que pelo bosque além pisa, afinal.
O fado tinha em mente um qualquer plano
Para Savitri ver Yama sem dano.
CANTO IV
Apenas de manhã vira o marido
A topar com a morte em pleno lar.
Agora não vê nada, o que, vivido,
Pode ser bom sinal, pois que a falar
Ramana principia: - “Tens querido
Conseguir Satyavan do fim salvar.
Ora, houve outros escapos ao abjecto
Beijo fatal da morte. É um bom projecto.”
O ânimo em Savitri logo aumentou.
- ”Lembro-me dum rapaz que a maldição
Marcara desde o berço” - ele ditou. -
“O pai dele era um sábio, na região
Respeitado em redor. E desejou
Um filho mas estéril ei-lo então.
Por fim, a Deus decide exigir prole,
Que Deus nos abençoa em quanto bole.
Mas Deus se recusou a aparecer.
Porém, o sábio era paciente
E de ano em ano é que lho dê que quer.
Por fim, Deus aparece, a voz fremente:
- 'Vou dar-te descendência de escolher:
Cem filhos, longa vida, mas demente
Cada qual, ou um só que morra novo
Mas sábio qual nenhum entre teu povo?'
O sábio nem hesita, o inteligente
Quer. - 'Então vai durar dezasseis anos' -
E Deus desaparece de repente.
Do casal a alegria vai sem danos,
Nasce-lhes um rapaz, brilhante mente,
Mais de estima por mor dos desenganos
Da maldição que nele já trazia.
Querem contar-lho os pais, mas tudo o adia.
E no décimo sexto aniversário
O rapaz continua sem saber.
O pai, ao dar-lhe a bênção, diz sumário:
- 'Hoje aqui fica, vou querer-te ver.'
Eis intrigado o moço, ao ver o vário
Rosto do pai, de lágrima a correr.
Cala obediente ali o dia inteiro
Até que o pai saiu do cativeiro.
O filho aproveita a ocasião,
Sai a correr da porta das traseiras.
Tinha uma oferta a Deus em gratidão
Pelos anos seus, prendas bem cimeiras.
De pé perante o altar, não vê no chão
Yama por trás de si, mãos traiçoeiras
O laço a armadilhar com que vitima
Quantos de quem na sombra se aproxima.
Lança-o sobre a cabeça do rapaz,
A fim de o arrastar consigo à morte.
Porém, nesse momento baixa em paz
A cabeça ante o altar, mui grato à sorte,
O moço agradecido. Então, falaz,
O laço falha de Yama o vão transporte
E acerta nas imagens que há no altar,
Tomba-as no chão, partindo-as, ao findar.
Quando se partem, Deus ergueu-se em salto,
Muito encolerizado com o insulto.
Do templo expulsa Yama e, num dom alto,
Adia ao moço a sorte por seu culto.
Contam que um pontapé no Yama falto
Tão poderoso deu que mata o estulto.
Mas devolve-o à vida ao perceber
Que, de tão habituadas a morrer,
As gentes não podiam já passar
Sem isso.” Savitri ouviu atenta,
A intuir que Ramana, a murmurar,
É o tal rapaz que a morte não atenta.
- ”Com isso que aprendeu?” - quis perguntar.
- ”Se a morte te buscar, faz que o que tenta
Antes agarre Deus: se Ele em ti está,
O laço de Yama sempre falhará.
Este é o segredo de escapar-lhe às garras.”
Um prado atravessavam onde as flores
Brilhavam na clareira. - ”Pago as arras
Que esqueci, por estar viva e com cores.
De tão ansiosa prendo-me em amarras,
Nem agradeço por tão grãos favores...”
Sentam-se à luz da tarde, oiro brilhante,
E Savitri medita, de alma hiante.
CANTO V
- ”Gostava de saber se Yama a si
Se engana como engana toda a gente” -
Reflectia Ramana, um colibri
Olhando numa flor aberta à frente.
- ”Falas como se esteja, ao que te ouvi,
Partidas a pregar” - diz ela, ausente.
A longa permanência anda a pesar-lhe
E o tempo a se esgotar é dor a dar-lhe.
- ”Pois Yama está pregando uma partida” -
Ramana concordou. - “Nem fugirias
Se o souberas então.” Logo em seguida
Cala-se, tal se aponta as óbvias vias.
- ”O truque” - Savitri diz, comedida -
“Mostra-me como opera nestes dias.”
- ”Irei contar-te a história dum macaco
Dum castelo na torre preso e fraco.
Nada na divisão acontecia
E o macaco inquieto sempre estava.
Distrair-se somente conseguia
Indo à janela olhar que mundo obrava.
Durante algum tempo isto o distraía,
Porém na situação logo pensava:
Como é que à torre fora então parar?
Como é que o capturara tal lugar?
Sua disposição vai ensombrar-se,
Não há nada a fazer, com quem falar...
Isto o deprime mais e sem disfarce,
As paredes parecem se fechar,
O macaco desata a transpirar-se
Ansiosamente. - 'Não, não é um lugar,' -
Vê repentinamente – 'estou no inferno!'
E logo a depressão seu mundo interno
Muda em angústia e esta num tormento.
Já o macaco os demónios viu em volta
Todo o tipo a infligir de sofrimento.
- 'Estou no inferno, com o diabo à solta!'
E continuava a dor sempre em aumento,
Agravando-se mais com tal escolta.
O macaco não via, pois, saída,
Contudo habituou-se a uma tal vida.
Gradualmente, que tempo é já passado?
O macaco não logra recordar-se,
Mas sente-se melhor olhando ao lado,
A cela não é má, pode dançar-se,
Agrada estar sozinho, a olhar do alçado
A paisagem que pode vislumbrar-se,
Pode-se ver a vida fascinante
Que lá por fora corre, de nós diante.
Pouco a pouco os demónios já deixaram
De magoar o macaco e se retiram.
Sente-se bem melhor. Dias lavraram
As leiras optimistas que o reviram.
Fica o macaco alegre e então...” Pararam
As falas de Ramana. - “Aonde miram
As voltas desta história, Savitri?”
- ”Vai o macaco ao céu, já percebi.”
- ”Precisamente. Vai melhor sentir-se
Até se imaginar no Paraíso,
Já os demónios não andam dele a rir-se,
São anjos que o confortam com juízo.
- 'Na bem-aventurança a confundir-se
Anda' – medita – 'a vida que baptizo'.”
- ”Até se entediar!” - diz Savitri.
Ramana confirmou: - “Digo-te a ti
Que este macaco é a mente a sós sentada
Na torre solitária da cabeça.
À medida que em dor contrai a estrada
Ou em prazer se expande numa pressa,
Cria todos os mundos de assentada
E deixa-se enganar, quando começa
Pelas criações próprias que erigir.
Crê no céu por um tempo e, a seguir,
Mal o tédio se instale, má semente,
O descontentamento logo o arranca
Do céu, levando-o atrás contra a corrente
De volta para o inferno.” Uma carranca
De desânimo cobre, mui dolente,
O rosto a Savitri: - “Para ser franca,
Encurralados todos é o que estamos.”
- ”Só se tu concordares, nos teus ramos
De crenças, na tua mente, em acabar
Encurralada. A torre nem à chave
Eu disse que fechada deve estar.
Há um infinito mundo além da grave
Muralha do castelo. Vais levar
A mente além dos muros, teu entrave:
Lá fora é a liberdade e, ao alcançá-la,
Nem inferno nem céu são tua sala.”
- ”Profundamente grata estou por tudo
Aquilo que me ensinas” - diz a jovem.
Fazia-se já tarde e, sobretudo,
Desesperava, enquanto ambos se movem,
De à cabana voltar. - “Já não me escudo
Em não viver sozinha. As horas chovem
Sobre mim resignada. Talvez venha
Visitar-te e aprender mais outra senha.”
CANTO VI
- ”Alguém alguma vez estará só?” -
Diz Ramana. A floresta em sombra envolta
Não deixa ler-lhe o rosto: é paz ou dó?
- ”Sinto-me só” - diz ela. - “A emoção solta
Nem sempre é confiável, grão de pó” -
Ramana salientou. Então em volta
Arbustos restolharam no caminho.
Savitri salta atrás, gesto adivinho.
- ”Que foi isto?” - exclamou, de novo ansiosa.
- ”Fantasmas” - e Ramana já estacou. -
“Tempo é de os conheceres, pois que goza
Qualquer um cuja vida se finou
Do dom de entretecer a sua prosa
Com o muito que a vida lhe ensinou.”
Fica imóvel e fê-la ficar quieta,
Com o enorme arrepio que a acometa.
Do escuro da floresta surge então
Uma menina titubeante, ali,
Duns dois anos de idade, em direcção
A eles, sem olhá-los. Savitri
Já queria correr, mas ouve um “não!”
De aviso de Ramana, atento a si.
A bebé olha à volta, inexpressiva,
Cruza o caminho e se no bosque esquiva.
- ”Reconheceste-a?” - perguntou Ramana.
- ”Não! Como é que podia? Anda perdida?”
Savitri está confusa: não se engana
Com aquilo que vira? - “De seguida,
Virão mais, que a atraí-los e com gana
Tu já estás” - é Ramana, assim revida.
No momento aparece outro fantasma:
Menina de quatro anos. E ela pasma!
- ”Conheces tu aquela?” - ele questiona.
- ”Sou eu!” Nesse momento a miúda espreita
Em sua direcção e, como à tona
Da correnteza, corre embora à deita.
- ”A miúda era eu!” - ela se adona.
E Ramana, acenando: - ”Agora aceita
Que cada anterior eu que abandonaste
Hoje é um fantasma teu que libertaste.
Teu corpo já não é o duma criança,
Teus pensamentos, medos e desejos
Mudaram para além do que se alcança.
Terrível era andar aí nos brejos
Teus eus mortos puxando em falha dança.
Deles, pois, te liberta com uns beijos...”
Savitri não lograva dizer nada,
Dela aparições vinham em parada.
Com dez anos se viu, a mãe ao lado,
Sentadas na cozinha. E, com doze anos,
Corando de um rapaz lhe haver falado.
E a jovem obcecada com os danos
De seu primeiro amor, do namorado.
Dos últimos fantasmas, o de enganos
É mesmo o derradeiro porque a espelha
No xaile até da fuga à morte velha.
- ”Até o eu que tiveste hoje é um fantasma” -
Ramana comentou. Savitri pede:
- ”Que têm a ensinar que em mim se plasma?”
- ”Que a morte tem estado em tua sede,
Contigo, a vida inteira. Então tu pasma:
Sobreviveste a mortes mil adrede
Enquanto teus antigos pensamentos,
Células, alegrias e tormentos
E mesmo tua antiga identidade
Iam chegando ao fim. Na outra vida
Todos, enfim, vivemos, na verdade,
Neste preciso instante. Quem duvida
E que é que é de temer?” - “Que mais me agrade
É que eram tão reais!” - Savitri lida
Com uma hesitação sempre a tolhê-la.
- ”Reais como no sonho duma estrela,
Mas tu estás aqui, não no passado.”
Savitri não se vira deste modo
E a visão um fervor dá-lhe inovado.
- ”Estou determinada a ter o bodo
De a morte derrotar, que retornado
Quero ter Satyavan no colo todo.
Mas se Yama me vencer, então já sei:
A fantasmas jamais me agarrarei.”
CANTO VII
Savitri sempre creu na própria alma,
O habitante interior, no fundo do imo,
O seu eu superior que tudo acalma,
Imortal, mas que aqui não lhe é de arrimo.
- ”Como saber que do imo tenho a palma?”
- ”Não o podes saber, nem lá no cimo.
Qualquer alma segreda. Mesmo assim
Poderei ouvir só ecos de mim.”
- ”Então pode alma ser uma ficção?”
- ”Só por ser invisível? Ficção, nunca!
Olha” - Ramana aponta de aranhão
Uma teia suspensa que o chão junca.
Ondula a cintilar ao vento suão.
- ”A aranha fez a teia. Nada a trunca,
Por isso o labor vês, não vês a aranha.
Ali segura um fio que ela apanha
E lhe dirá quando algo cai na teia.
Aonde é que ela foi? De pouco importa
Desde que a ligação fiel lhe ameia.”
Mas Savitri teimava: - Ӄ falsa a porta
De imaginar que tenho uma alma cheia.”
- ”Mas esse é que é o fascínio” - ele exorta,
O rosto iluminado, de repente
Inspirado, com voz mui convincente. -
“A natura as aranhas imagina,
Pequenas e peludas, grandes, lisas,
As de água, de ar, de terra, de cor fina,
Brancas, pretas, de tons mil que divisas.
Pensa na que no lago já se inclina,
Na pequena que voa pelas brisas.
Somos tolos pensando que é uma coisa,
A aranha é turbilhão que não repoisa,
De qualidades sempre em muda enorme.
Qualquer alma também. Como a imagines
Assume a qualidade em que isso a forme
E continua além donde a defines
Com potencial infindo que a transforme,
De sobra salta a raia onde a confines.
Tal alma onde é que está? Não num lugar,
Mas num potencial é que há-de estar.”
Ramana, fascinado, fica fixo
E Savitri acaba fascinada.
Não sabia que aranha havia infixo
Nos arbustos a teia elaborada,
Mas sabe que é real como um prefixo.
Também não sabe de alma ou que é na estrada
Além da morte. Um fio tem presente
Invisível. Será suficiente?
- ”Sim” - disse-lhe Ramana - “que hoje ouviste
Com atenção.Estás mesmo a aprender.”
Savitri lhe sorriu. Tanto que aliste!
De repente, cansada, vai pender
Num talude de musgo e nem assiste
Quando os olhos fechou e a esquecer
Principiou onde estava e os perigos,
Pois lhe basta dormir nestes pascigos.
CANTO VIII
Quando acordou, Savitri viu que haviam
Retornado à enorme árvore baniana
Onde o trilho iniciado antes teriam.
Sentou-se, os olhos fecha, o sol empana:
Como é que altos os raios ser podiam?
Ao lado de pé viu que era Ramana
Arvorando atitude misteriosa:
- ”Ainda não partimos” - dele é a prosa. -
“Quanto a Satyavan, faltam muitas horas
Para o retorno a casa.” Com esforço
Savitri se ergue em pé, mas com demoras
Olha o estranho monge como escorço
Dum mágico: - ”Que fazem teus emboras?”
Ramana encolhe os ombros: - ”Sem remorso
Dormiste de exaustão. Mas eu não vivo
Para te dar um sonho produtivo.”
Sem mais, pegou na flauta exactamente
Como houvera feito antes, pôs-se a andar.
Desta vez Savitri seguiu-o em frente,
Doravante sem mais nisto hesitar.
Não treparam o monte anteceddente
Mas trilho descendente, ao caminhar.
Ramana comentou pouco depois:
- ”Quando era novo, um adivinho ou dois
Montaram junto ao Ganges uma tenda.
Em Benares morrer quer o devoto,
Ao funeral vai a família. A venda
Do adivinho dá lucro nunca boto,
Especialmente àquele, pois desvenda
Da morte o dia a quem lhe cai no goto.
Porém, eu recusei-me a ir ali.”
- ”E porquê?” - perguntou-lhe Savitri.
Ramana riu-se bem: - “Já diferente
Eu era em tal altura. Costumava
Ver que é fácil prever futuro à frente.
Ao adivinho irei que tire a trava
Que nos entrava a vista do presente:
Difícil é o que aqui nos encarava.”
- ”Podes explicar?” - pede Savitri.
- ”Falar de Maya ouviste por aí?”
- ”Claro que sim, é a deusa da ilusão.”
- ”Que será uma ilusão? Uma magia
Que a realidade esconde atrás da mão?
Irei dar-te um exemplo de hoje em dia.
Um pedaço de gelo mostro então,
De vapor uma nuvem e a alegria
Dum floco de nevar: viste água alguma?
Se disseres que sim, então, em suma,
Já dominaste Maya: aquelas formas
De gelo, vapor, neve, não te enganam.
Foste à essência, que é facto que transformas
Água neles, pois nela é que se aplanam.
Se disseres que não, tombas nas normas
Em que os véus da ilusão a ti te danam.
Gelo, vapor e floco te atraíram,
Perdeste a essência e nisto te traíram.
Não foi precisa a deusa a te enganar,
A mente consentiste distraída.
Com qualquer alma é o que anda a se passar.
Olhamos para outrem e a medida
É a duma superfície: pois, a par,
Feio, bonito, rico é sempre vida,
É sempre a mesma essência atrás das citas,
Escondida sob formas infinitas.”
- ”Isso é o que vês?” - pergunta Savitri.
- ”Sim, e foi o que viste quando amaste
Satyavan” - diz Ramana para si.
Olhou-a intensamente, é flor em haste:
- ”Sei tudo a teu respeito, o que é de ti.”
O rosto a Savitri arde que baste.
Ramana descobrira-lhe o segredo:
É a princesa dum rei de meter medo.
CANTO IX
Quando a altura chegou de se casar,
Ela insiste em buscar o homem certo.
Das preocupações bem apesar,
Com uns nobres a manda, longe ou perto,
O rei a descobrir qual dela o par
Que o coração lhe quer, ora deserto.
Savitri mais os guardas na floresta
Com o lenhador dão na casa honesta.
Mal viu o Satyavan humilde e pobre,
Savitri resolveu casar com ele.
Quando isto anunciou na mansão nobre,
O pai desiludido fez que vele.
Mas vendo o lenhador que ama que sobre,
O grande coração que tanto o impele,
Aceita relutante o rei a escolha
Da filha que à floresta então recolha.
Aconteceu depois, perturbador,
Nas três noites atrás do casamento,
Que Savitri sonhou com o senhor
Yama que lhe fez um juramento:
Satyavan morreria no sol-pôr,
Um ano após casado, num momento.
- ”Então tu já sabias” - diz Ramana. -
Casaste mesmo assim. Porquê tal gana?”
- ”Ora, porque o amava” - ela murmura.
- ”E que é o amor deveras mais senão
Conhecer que tem alma e ali figura
Noutrem? Se logras ver, não a ilusão,
Mas além da que Maya te inaugura,
Sempre comungarás na vida então
Com uma fiel alma em Satyavan,
Quer seja a vida boa, quer malsã,
E ocorra o que ocorrer ao corpo dele.”
Toca de Savitri Ramana a testa
E logo ela viu corpos, nua a pele,
Em pira funerária mui funesta
A arderem junto ao Ganges. Cinza impele,
A dispersá-la, o vento. - “De olhar esta
Cena como evitar?” - diz-lhe Ramana. -
“Nenhum olhar viu alma, isto é que engana.
Portanto, ao não ver nada, faz-nos crer
Na morte.” Os termos deixa que se entranhem. -
“Julgas que lograrás não crer em ver
Agora, embora os olhos se te assanhem?”
Savitri diz que sim, acena e quer
Sentir que as almas de ambos já se apanhem,
De Satyavan e sua, a se fundir
Tal no instante que os viu se descobrir.
CANTO X
- ”Estás a ver aquilo?” - diz Ramana.
Aponta onde verão rastos de fumo.
- ”Uma fogueira aquilo ali o emana?”
- ”Vai lá e descobre. Eu fico a ver teu rumo.”
Ramana confortável senta em cana
De bambu grossa que ali resta a prumo.
Savitri se encaminha para além,
Só árvores queimadas vê que tem,
Mais carroças de bois todas desfeitas
E de destruição sinais em tudo.
É uma aldeia deserta, que despeitas
De soldados queimaram-lhe o conteúdo,
Invasores vizinhos, mãos afeitas
A andarem devastando o povo mudo.
Tudo em cinzas, excepto uma só casa
Que não fora tocada pela brasa.
Savitri se encaminha para a porta
Onde uma idosa estava ali sentada.
- ”Tudo foi destruído, a aldeia, morta,
Porque é que tua casa foi poupada?”
Respondeu a anciã: - ”A aldeia corta
A raia desta guerra declarada.
Quando os soldados vieram com o fogo,
Eu disse: - 'Acudam, venham aqui logo,
Pois ninguém tem coragem para entrar.
Lá dentro escarlatina todos têm,
Ajudem meus doentes a tratar!'
Assustam-se os guerreiros já também,
Nem mais um passo, fogem do lugar.”
Savitri do sari tira um vintém,
Dá-o à idosa, atrás torna por Ramana.
- ”Porque é que me mandaste a tal choupana?”
- ”A anciã repeliu a soldadesca
Com uma só palavra: escarlatina.
Sabe o sábio que a morte se repesca
Por dois termos que invertem dela a sina:
Eu sou.” Mas Savitri diz: - ”Me refresca,
Que nada entendo.” E nem o fumo atina
Como desaparece: é limpo o céu!
- ”Aquela aldeia símbolo era teu!”
- ”De infortúnio, tristeza?” - ela questiona.
- ”Disso, não. Simboliza a impermanência.
Repara, Savitri, que vem à tona?
Jamais há nesta vida permanência,
Os bens vêm e vão que o mundo abona
E os outros por igual, tal é a ocorrência.
De algum modo enfrentamos esta perda
Crendo-nos permanentes. Quem deserda
Não bole em nosso mundo, assim eterno.
Mas isto é errado. A morte é gananciosa
E destrói tudo, exército de inverno.
Basta estendermos braços e à dolosa
Dizermos logo: 'Eu sou'. Ao toque terno,
A morte recuará, de nada goza,
Que nada encontra em nós a destruir:
'Eu-sou' não tem prender nem possuir.
Contudo, é tudo o que és, de que jamais
Precisas neste mundo e no que vier.”
Nobre, Ramana traz calmos sinais
De ajuda a Savitri: - ”Mas a mulher
Mentiu da escarlatina aos sons fatais.
Tu, porém, a verdade hás-de dizer
Ao dizeres: eu sou. Já preparada
Estás quase durante esta jornada.”
- ”Como posso verdade vir torná-lo?” -
Pergunta Savitri muito empenhada.
- ”Não é difícil. Quando for o abalo
De ser feliz que sentes, vê, de entrada,
Aquela a que a alegria anda ancorada.
Se for triste, olha o imo sem regalo
Que é quem esta tristeza vivencia.
É o mesmo imóvel ponto que vigia,
Que tudo observa e tudo testemunha.
Nesta imobilidade, se puderes,
Mantém-te e olha-a bem, sem caramunha,
Em vez de lá passar sem nunca a veres.
A familiaridade é a tua alcunha,
Teu aliado: eu-sou és tu a seres.
Não há nada de estranho, simplesmente,
Neste facto de ser, em ser somente.
De início, o ponto imóvel é vivência
Mui pequena deveras, todavia,
Sem limites crescer pode na essência.
Quando morres, por fim nada haveria
Que agarres: é do eu-sou esta evidência
Que o Cosmos todo inteiro preencheria.
Os sábios repetido o têm muito,
Porém descobre o eu-sou em ti fortuito
E ele se expandirá te preenchendo.
Quando isto acontecer, ficas segura.
Teu ser vai ser o mesmo que alma sendo.”
Savitri com Ramana se assegura
Mas as horas do dia vão correndo
E o tempo a preocupa, pois apura
Que ao lar tem de voltar, vencer Yama,
Pois de Satyavan muito a queima a chama.
CANTO XI
Perdia tudo, pensa. Então Ramana
Virou-se para ela: - ”Faz-te medo
Isso de perder tudo?” Não o engana,
Lê-lhe ele o pensamento, tarde ou cedo.
- ”Claro” - diz Savitri, perdida a gana.
Ramana aponta em frente. Rural credo
Mantém um santuário lá na beira:
Vishnu protegem ramos de pinheira,
Vishnu, pendor de Deus que sustém vida.
Ela corre a apanhar algumas flores
Silvestres, no altar prenda oferecida.
Deve ser um sinal, pensa em tremores.
Ramana fica atrás, pois, recolhida,
Savitri de Vishnu pede os favores.
- ”Eu farei qualquer coisa” - suplicou.
Abre os olhos, Vishnu se levantou,
Fica aterrada Savitri. - “Por mim” -
Diz Vishnu - “tu farás tudo se salvo
Teu marido da morte for por fim?”
Savitri respondeu, de olhos em alvo
Mas fervorosamente, pois, que sim.
- ”Vai tu ao rio, do socalco calvo
Traz-me água de beber.” Savitri fez.
Ramana não se via mas talvez
Ela dê com o rio, próximo era...
Ajoelhou na margem, perguntando
Como água transportar quando a colhera.
Contudo, mais alguém a estava olhando,
Na margem: Satyavan! Mal percebera,
Savitri o abraçou, logo chorando.
Satyavan perguntou que é que a afligia,
Ela diz que perigo ele corria.
- ”Então não voltaremos para casa” -
Fez Satyavan e agarra-a pela mão.
Caminham pelo rio, o passo atrasa,
Até se aperceberem, num mouchão,
Dum barqueiro atracado em maré vasa.
Cordial, ele saúda-os então
E, apontando uma ilhota a meio rio,
Diz-lhes: - ”Eu moro ali, terra em pousio.”
Satyavan negoceia brevemente
A ficar de ajudante a tal barqueiro.
Vão para a ilha dele, que o consente,
Começam vida ali de pioneiro.
Savitri mui feliz então se sente,
Yama já largara seu parceiro.
O marido aprendeu de pescador,
Juntos e em paz na ilha, é tudo amor.
Muitos anos passaram, têm filhos,
Dois que eram a alegria duma vida.
Certa noite, porém, vêm sarilhos,
Um furacão soprou, a ilha é varrida,
A ventania uivava e nos colmilhos
Trepa o rio sem marca nem medida.
Quando a manhã chegou, tudo há levado
E apenas Savitri se tem salvado.
Logrou encontrar barco, rema a terra,
Porém, de destroçada, nada faz,
Senão gemer na areia quanto a aterra.
Uma sombra avultou de si atrás.
Era Vishnu descido de alta serra.
- ”Lembras-te de ir por água?” - diz-lhe em paz.
Savitri olha espantada o igual sari
Que anos antes vestira ao ir ali.
Quando se debruçou para dar-lhe água,
O reflexo mostrou-lhe a mesma jovem.
- ”Que aconteceu?” - pergunta, já sem mágoa.
Vishnu conta-lhe: - ”Os tempos não me movem,
Além da morte sou, do mundo frágua.
O tempo é ganho e perda e, se comovem,
É que no tempo estás e é uma ilusão
Cuidar que evitas perda, a nomeação
Outra para a mudança.” - “Satyavan
Ainda pode estar vivo e salvo ser!” -
Diz Savitri. Vishnu é sombra vã.
Ela tenta agarrá-lo, é o ar colher.
Ao virar, vê Ramana em trilha chã:
- ”Vês? O que quer que seja que perder
Receies é irreal. A morte não
Toca no que é real, é como um dom.
- ”Não é o que vejo” - deprimida diz.
- ”Ao morrer , tudo perdes e algo fica:
Alma tua que é real. Deves feliz
Honrar então a perda: simplifica.
O acessório da vida cai num triz,
A essência permanece, fonte em bica.
E, acredites ou não neste menu,
Aquela essência eterna és sempre tu.”
CANTO XII
- ”Agora o suficiente aprendi já?” -
Pergunta Savitri, mudar sentindo.
Muito do que antes real fora acolá
Agora espectros são no ar se esvaindo.
O real profundamente é que estará
No reino do invisível evoluindo.
- ”Creio que sim,” - Ramana observa - “embora
Vai, para o teu tugúrio.” - “Vens na hora?”
- ”Não, que matar não quero Yama de medo.”
Sobressalta, porém, Savitri tal:
- ”Mas como retornar? Lá como acedo?”
- ”Tu cuidas que não sabes.” Faz sinal
Para a floresta escura e logo cedo
Uma nuvem de luzes sem igual
Savitri vislumbrou. São pirilampos?
Não, a tarde ainda é meia, vê-se os campos.
- ”Sei que cuidas que não serei contigo.
É só imaginação, contudo, tua.”
Olhando-a, relutante, o monge a abrigo
Se põe, baixa a cabeça, inverte a rua:
- ”Tudo deverá ser, enquanto sigo,
Tal como deve” - diz, a fronte nua.
Savitri sobressalta-se, que ouvira
Aquilo mesmo de Yama, quando o vira.
Que podia fazer? Detém-se instantes,
Ramana a se esvair vai selva além.
Depois se encaminhou para as brilhantes
Luzes suspensas: crescem quando vem,
Donde viu que eram anjos adejantes.
- ”Quem são vocês?” - pergunta-lhes, porém. -
“Da floresta os espíritos?” É crença
Que tudo tem um anjo por sentença.
Em vez de responder, as luzes correm
Para bem longe dela. Terão medo?
Savitri diz que voltem, que não morrem.
Uma luz lhe retruca: - ”Porque acedo
A voltar, quando tu, aos que te acorrem,
Só quererás matar?” A voz é um ledo
Murmúrio não da mente dela fora,
Mas antes no interior, onde ela mora.
Savitri fica em choque: - “Matar, eu?!
Nunca faria tal!” A voz responde:
- ”Estás fazendo agora. Somos teu
Lote de anjos que no íntimo se esconde.
Fomos-te atribuídos, mas de seu
Cada qual tem mui débil sempre a fronde.”
Savitri pede: - “Diz-me como o fiz.
Ajuda quero vossa de raiz.”
Torna a luz: - “De tristeza tens estado
Secreta muito cheia. Andas ansiosa
Em relação à morte. E após mostrado
Desconsideração por nós é a glosa
De teus dias: por nós nunca hás chamado.
Assim tentas matar-nos em tua prosa.”
Savitri nunca tinha os anjos visto
De atenção precisando em quanto existo.
Mas agora a menção da morte aviva-
-Lhe o medo e logo as luzes mais pequenas
Ficam de intensidade murcha, esquiva.
Ela exclamou: - “Esperem, minhas cenas
Não deixem que vos matem!” E a luz viva:
- ”Não logras, que imortais somos e plenas.
Não é fazer-nos mal que vás, furtiva,
É poderes quebrar a ligação:
Queremos teu amor, tua atenção,
E em troca ajudar-te-emos.” - “Como assim?”
- ”É pela inspiração, trago mensagens.
Posso deixar que tu vejas-me a mim,
O que ajuda a ver tuas viagens,
Teu lugar no divino plano, enfim.”
- ”Aí Satyavan morre entre as ramagens?”
Anjos que aproximado já se tinham
Dela fogem agora, ao que adivinham.
Savitri recompôs-se, fundamente
Respira, de esperança é que precisa
E de coragem. Pede-as, bem premente.
As luzes se aproximam desta guisa,
Movendo-se prudentes, cautamente.
É a vida em si o plano que Deus giza,
Inclui as criaturas no lugar.
O devido lugar de homens é, a par,
Primeiro, a eternidade e a terra, após.
A morte é como pausa em quem respira,
Duma pátria atravessa a outra, a sós.
Savitri sente grata quanto vira
E as luzes se aproximam, dela à voz,
Iluminam o trilho, dela em mira.
Savitri viu que não andou perdida,
Corre ao lar por mil luzes conduzida.
CANTO XIII
O sol já mergulhara sob as copas
Quando Savitri foi para a cabana.
Espreitou à frente Yama sob as opas
Das sombras que o recobrem, não engana:
Irá só desistir se enfim o dopas.
Savitri reúne forças com mais gana,
Reza a última vez, sai a enfrentá-lo.
Encena um espectáculo, regalo
A Yama, de bem-vindo. Satisfeito,
A Savitri um bónus lhe concede.
Ela então, de imediato, num trejeito,
Diz que o bónus da vida é o que lhe pede.
- ”Mas tu ainda estás viva!” - diz sem jeito.
Ela insiste e então Yama, enfim, lho cede.
Mas quando ia dizer-lhe: - ”Dás-me a vida;
Ora, sem Satyavan ela é perdida”, -
Considerou que a astúcia venceria
Yama, mas ela finda descontente.
Viu que os medos passado são que se ia.
Dançou ainda mais graciosamente
E, quando terminou, a fronte enfia
No colo dele: - ”O tempo é insuficiente
Para satisfazer o meu anseio
Por ti, de minha vida aqui no meio.”
Encantado, retruca Yama: - “Temos
A eternidade inteira para nós.”
Mas Savitri negou: - “Juntos queremos
Do eterno além viver, um nada após.
Apenas um segundo ao que somemos
Acrescenta ao eterno, por que a sós
Te ame mais do que alguém jamais te amou.
É tudo quanto peço.” Yama pesou
Como jamais amor há recebido,
Como nunca decerto duma jovem
Que razões há-de ter de o ter temido.
O segundo concede, que o comovem
De Savitri os modos que há sentido
E assim foi derrotado: os tempos movem
Os anos de tal modo que um segundo
Dos deuses são cem anos neste mundo.
Neste segundo a mais Satyavan torna
Ao lar e logo abraça Savitri.
Entraram na cabana, finda a jorna,
E vivem tal como antes sempre ali.
O pai de Savitri, de idade, amorna
Velhas severidades, junto a si
Quer tê-los, com os netos já crescidos:
Ao palácio do rei são devolvidos.
Savitri na velhice se interroga
Se afinal não pediu tempo demais.
Satyavan há decénios que se afoga
Já de velho na noite dos mortais
E ela a sobreviver! Já nada advoga,
Medita, iluminada mais e mais.
Quando o segundo a mais enfim se esgota,
Yama fica espantado ao tomar nota
De que Savitri não tinha enganado:
Ela amava-o deveras como se ama
Desta vida o total, não só dum lado.
Tinha por fim tecido, em sua trama,
Do real os dois pendores, religado
Vida e morte num todo que proclama
Que tudo e todos um somos por fim
Na raiz derradeira que haja assim.
CANTO XIV
As monções a montanha, pela noite,
Desceram desbragadas. Ouve então
Ramana enquanto dorme, tal se acoite
Um surdo ribombar no tecto vão
Ou dos deuses se à porta toca o açoite.
É bastante o ruído à inquietação
Mas não para acordá-lo por inteiro.
Cuida vago em cerrar-se ali ligeiro.
Lembrou-se do orifício no telhado
De que um balde por baixo os pingos colhe.
Não sentia, porém, na fresta ao lado
Os pingos a bater nem que o chão molhe
O gotejar do tecto mal vedado.
“Como é estranho!” - a dormir o sonho acolhe.
O surdo ribombar durou cem horas,
De Ramana demais para as demoras.
Abre os olhos Ramana: o parapeito,
Por baixo do buraco, - tudo seco.
Onde estavam as águas, de que jeito
Estava a trovejar, se o som é peco?
Então soube, ao bater de Deus afeito:
Com a monção a morte viera ao beco,
Na estação que Ramana mais amava.
Não se espanta se em corpo ainda tocava
Nem por o quarto intacto se manter.
O seu antigo mestre que morrera
Sessenta anos atrás acontecer
Dissera-lhe o que iria. Porém era
Mesmo sessenta? Pode acaso ser?
A idade de repente se esbatera
Dele próprio: setenta e cinco, oitenta?...
A confusão lhe muda o que ele tenta,
Sente o corpo mais leve, foge a idade,
Ele estava a elevar-se e o quarto todo.
O surdo ribombar breve se evade.
Ramana se interroga, de algum modo
Vai desaparecer, se persuade,
Mas do mundo primeiro morre o engodo.
Não crera muito nele, surpreendido
Não fica nem sequer desiludido.
Num último momento, ainda na cama,
Viu ir o céu de azul a branco suave.
O quarto se esvanece, o branco chama.
Olha debaixo o corpo que o entrave,
Mas desaparecera e nem reclama.
Tão fácil no sumiço, lembra o grave
Comentário do mestre: - ”O corpo é capa.
O iluminado morre? Ela lhe escapa,
Deixa-a cair ao chão. O que o não for
Sente arrancar-lhe a capa tal cosida
Lhe fora à pele inteira.” Que supor
Que desaparecer vai de seguida?
Ramana reparou que anda a propor
Questões mentais ainda, a mente lida.
Viu-se aos doze anos, quando o mestre aborda
Nesta canto a viver donde ora acorda.
O ancião, sentado em posição de lótus
Sobre uma gasta pele, perguntara:
- ”Vens aprender comigo?” - olhos remotos
Ele concorda. - “É, pois, teu lar que aclara
Que é bom, não é verdade?” Os pés imotos,
Concorda novamente. Assinalara
O mestre com a mão saída aos pais.
A sós lhe disse então: - “Não venhas mais
Senão quando for tal o teu desejo,
Nunca por de teus pais enfim o ser.”
- ”Porquê se meus pais buscam só o ensejo
De quererem meu bem em quanto vier?”
- ”Não é suficiente, pois não vejo
Como como os mais não findar a ser.
Comum é precisar de ter família
Para de solidão não ter vigília
E na comunidade ter apoio,
Senão nem lar terão nem mais amigos.
Precisam de seu corpo, senão mói-o
A fome até morrerem sem abrigos.
E precisam das mentes, porque o joio
Da loucura os ataca em mil perigos.”
- ”Não vejo porque está dizendo-me isso...”
- ”Se perderes família, neste enguiço
Amigos, corpo e mente irão também.
É o que terá de ser, porém não quero
Que morras, mas libertes para o Além.”
Só dez anos depois o rapaz vero
Voltou e o mestre riu, dizendo bem,
Que despachado foi, veloz, sincero:
- ”Depois do que te disse a maioria
De mim definitiva fugiria.”
Enquanto foi discípulo, Ramana
Achara mui difícil aprender.
Tropeçou várias vezes mas, com gana,
Logrou nunca cair. O mestre, ao ler
O futuro, previu com soberana
Precisão quanto veio a acontecer.
Em fases sucessivas, chega a altura
Em que do lar não quer mais a figura.
Mas não fora uma perda, pois passara
A vê-lo com enorme compaixão.
Como a comunidade não buscara,
Mas não era uma perda, que a visão
Tinha de parte ser da humana cara.
Deixou de ter do corpo precisão,
Pois ele bem melhor de si cuidava
Se com ele ninguém se preocupava.
Ramana não prescinde inteiramente
Apenas dum apoio: a mente sua.
- ”Tens medo de morrer, não tendo a mente” -
Comentara-lhe o mestre, a cara nua,
Num jeito que é cortês, mas paciente.
Ramana igual paciência nele actua,
Aprende a introspecção, busca o silêncio
E anos fora tal habitat convence-o,
Lugar liberto do hábito constante
Da mente sempre a agir. Naquele dia
Em que o mestre morreu, Ramana diante
Da cama ajoelhou, chorou, carpia.
- ”Cuidas, pois, que te deixo” - murmurante
Era do mestre a voz. - “A mente fria
Ainda te retém sob seu encanto.” -
Comentou, afectuoso, sem quebranto
E sem reprovação, o que consola.
Uma hora depois, o mestre entrou
No mais fundo silêncio que o imola.
Ramana não sabia o que durou
Recordar tudo agora em que se isola
Também ele enfim morto. Em volta olhou.
Todos o recebiam, mestre e lar,
Perdeu então a mente e seu pensar.
Deslizou espontâneo para onde
Mente alguma seria já precisa.
Nem a luz nem o escuro, a mental fronde
Na alegria se esvai quando desliza
Dos sentidos além onde se esconde
O silêncio da festa que ele visa.
Mundos inteiros queriam entrar nele,
Algo lhe retirar à nova pele,
Mas apenas deslizam ao de leve,
Como penas em rocha inamovível.
Ficou impenetrável (nunca o esteve),
Imutável e sólido, invisível
Como era a eternidade. E nem susteve
Um Universo, Deus, amor vivível,
Que todos eram termos reais da Terra
E ali nele nenhum já se lhe aferra.
Vivenciara num fôlego tudo isto
Que talvez há durado dez mil vidas
Ou talvez dez mil vidas em que existo
Um fôlego são só nestas medidas.
Da intemporalidade no registo
Sorveu as inefáveis não-bebidas,
Outro fôlego sente que o convida
Em mãos a retomar inteira a vida.
Não por querer viver aqui na Terra,
O que teria sido um pensamento.
O fôlego é a razão que tudo encerra.
Algo torna com ele como um vento,
Presença, Amor, um Deus que ao peito o cerra,
Indescritível plenitude, invento
Que o faz vibrar, todo ele sensação
E, dum instante apenas em fracção
Por não voltar podia então optar,
É paz eterna viável e outra vida:
Era livre, então deu em reparar.
É sua a vida humana e a paz querida,
As duas em conjunto, sempre a par.
Ramana, pois, sorriu, nesta medida
Em que dizer-se pode, interiormente,
Que o Cosmos, afinal, no íntimo sente.
Descontraído, deixa-se levar
Em breve inspiração de volta à terra,
Até numa monção vir-se a tornar
Montanha abaixo, inundação que aterra,
Os deuses a bater, tamborilar.
Não conseguia ver que lar o encerra,
Se num imo irá ser luz de intuição,
Fonte de cura, mística visão
Ou uma aparição provocadora,
Acaso em senda de Emaús parceiro
Que ninguém adivinha que Além mora
E connosco convive um ano inteiro...
Conhece bem, contudo, o que o demora:
Mostrar de sonhadores ao viveiro
Que os humanos são sempre e que tanto ama
Como acordar de vez da térrea cama.