UMA RÉSTIA DE SOL
BARTOLOMEU VALENTE
Lisboa, 2012
PRIMEIRA RÉSTIA
AO SABOR DO PÉ QUEBRADO
Dentro
Por dentro da estrada
Do fado meu
A terra está recheada
De céu.
Abrigo
Abrigo a felicidade, abrigo,
No conforto e na alegria
Da companhia
Dum amigo.
Sê
A felicidade por um triz
Apenas se não vê:
- Se queres ser feliz,
Sê!
Cansa
Olha para o presente no traslado
Que teu amanhã te acalma.
Olhar demais para o passado
Cansa qualquer alma.
Alegria
A alegria nunca está
Nas coisas nem delas nos górdios nós,
Reside fatalmente apenas cá,
Em nós.
Pobre
Ser pobre sem a tristeza
Da miséria, deselegâncias, perversidades,
- Só preferindo alcançar riqueza
Reduzindo necessidades.
Dever
Não há nenhum dever
Com menosprezos mais subtis
Que o de ser
Feliz.
Mudar
Que o mundo não se iluda
Com o teor de seu lugar:
- Nada muda
Se você não mudar.
Planos
Os planos, movediça areia
Que jamais discerni:
O homem planeia,
Deus sorri.
Controla
Ninguém controla, afinal, nada,
Sejam quais forem os modos.
Deus, do Cosmos na morada,
É que, por trás, nos controla a todos.
Freio
Um rei que, afinal,
Não ponha qualquer freio à vontade,
Não é o grande rei do historial,
É um monstro de verdade.
Livro
Um livro pode ser
Tão perigoso como uma espada
Se o depuser
Na mão errada.
Risco
A vida é uma estrada
Onde não há nunca um aprisco.
Mesmo quem não fizer nada
Corre risco.
Escuridão
Não temas a escuridão, não é a morte
Que te ferra:
Árvore bem forte
Tem raiz no mais escuro da terra.
Estradas
Poderão ser encontradas
As estradas.
Nunca, porém, enquanto
As não procurarmos, de canto a canto.
Importo-me
Importo-me, sumário.
É a via:
Porque, de contrário,
A vida era vazia.
Temer
Aquilo que eu temer,
A par
Poder-me-á fortalecer:
- Pode curar.
Excessivamente
Quando uma vida
Excessivamente é controlada,
Menos vida, de seguida,
A controlar há na chegada.
Matilha
Deixa teu imo respirar,
Por mais que soe a selvagem armadilha.
Lobo que não sabe uivar
Jamais encontra a matilha.
Belos
Complicados ou singelos,
De corpo bem feito ou com malformações,
Somos, afinal, tão belos
Quanto forem nossas acções.
Vazio
Ante o vazio que te magoa
Aprende, singelo:
Só voa
Quem se atrever a fazê-lo.
Saciado
Mantém-te por inteiro saciado
Dentro em ti, manso, de ponta a ponta:
- Não mordas o meu dedo apontado,
Olha o horizonte que ele aponta.
Encontradas
As estradas podem, aqui ou além,
Ser encontradas.
Nunca, porém,
Enquanto não forem procuradas.
SEGUNDA RÉSTIA
PEGADA PROCESSIONAL
Recordar
O modo mais importante
De outrem sempre recordar
É ser o que de nós fez:
Viver o que ele, apoiante,
Vida fora, singular,
Me ajudou alguma vez
Deveras a delinear.
Vislumbres
Não creio que nós tenhamos
Vislumbres de ser feliz
Uma vez e nunca mais.
Da felicidade os ramos
Dentro em nós têm raiz,
Germinam, embora à sorte,
Virentes como jamais,
Certos como é certa a morte,
Como a vida, geniais.
Ocupar
O tempo ocupar:
E a felicidade
Ei-la logo aí,
Sem haver lugar
Da culpa à vaidade
Nem ao elogio
Que não mereci
De mim no arrepio.
À felicidade
O tempo ocupar
Dá-lhe densidade.
Não fica no ar
Sem que então ninguém
A logre agarrar
Nas mãos que não tem.
Fundamenta
A felicidade a si
Própria bem se fundamenta.
Aquilo que belo vi
Um bem é que se implementa
E uma verdade que busco,
Entrevista em lusco-fusco.
Actos que dali vão meus
São os que agradam aos céus.
O sábio tem um sentido
Interior de quanto é belo
E o mais alto aqui vivido,
Sabedoria a que apelo,
É fiar-se na intuição,
Dela ser guiado então.
Ao apelo derradeiro
Do que é justo por inteiro
A resposta moraria
No imo da própria pessoa.
Em ti próprio, pois, confia,
Não vivas a vida à toa.
Escolher
Se eu tivera de escolher
Paisagens, sons e fragrâncias
Que desejaria ver
Do mundo dentre as instâncias
No meu dia derradeiro,
Isto escolhia pioneiro:
De manhã uma cotovia
Vem cantar-me o despertar;
Ao calor do meio-dia
O pinhal irei cheirar;
Vejo a libélula ao sol
A cintilar, que mal bole;
Lá pelo interior da mata
Canta o melro altissonante
Quando a tarde se precata
Ante o crepúsculo adiante;
E, ao sol-pôr, o melhor são
Nuvens cúmulos que vão
Flutuando, catedral branca,
Rumo aos céus onde se abanca.
Nelas embarcado, indo
Vou por tudo quanto é lindo.
Sozinho
É deveras salutar
Estar sozinho a maior
Parte do tempo que houver.
De companhia ficar,
Mesmo até com a melhor,
Em breve se há-de volver
Em vivência cansativa,
Perda de tempo furtiva.
Eu gosto de estar sozinho,
Nunca encontrei companhia
Melhor do que a solidão.
E mais vezes me adivinho
Bem mais só quando me via
No meio da multidão,
Do que quando, enfim, me sento,
Sereno, em meu aposento.
Quando alguém pensa ou trabalha,
Sempre está sozinho então.
Deixem-no estar onde quer.
Não é a lonjura que calha
(Ao medir a solidão)
Entre um e outro qualquer:
Um estudante aplicado
Num favo superpovoado
De Universidade, ao certo,
É eremita no deserto.
E, se estou de bem comigo,
Não há mais nisto castigo,
Antes meu juro implementa
De tudo o que a vida inventa.
Esforços
A felicidade advém
De nossos próprios esforços,
Quando conhecemos bem
A receita dos escorços
Requeridos para obtê-la:
Gostos simples e coragem,
Despojamento que vela
Para eu ser conforme a imagem,
Muito amor pelo trabalho
E uma limpa consciência
A ponderar quanto valho
Sem pesos de má valência.
Felicidade não é
Apenas um sonho vago,
É uma certeza de pé
Que pelos passos meus trago.
Riqueza
O problema da riqueza
É de a um arco-íris ir.
Nem dum avião é presa
Quando o tentar perseguir:
No fim apenas se ausenta
Numa neblina cinzenta.
De riqueza uma procura
É freima tão exigente
Que aquele que em tal se apura
Breve ignora, no presente,
Que é que esperaria obter
No princípio ao proceder.
E, embora ainda se lembre,
Já está tão velho e cansado
Que a estrela faz que desmembre
Que ter quisera alcançado,
Feita apenas de neblina
Cinzenta que o não fascina.
O que pensávamos que era
A vera felicidade
Mui raro é mais que quimera,
Tem sempre outra identidade.
Nem sequer a imaginávamos
Naquilo que nós pensávamos.
Degraus
Quanto mais eu vivo
Tão mais me convenço
Que o vero motivo
Pelo qual eu venço
Os degraus da vida,
Por que vale a pena
Viver em seguida
E aplaudir a cena,
Será o privilégio
De tornar alguém
Feliz, num dom régio,
E útil mais também.
Quem faz qualquer coisa
Para o semelhante
Erguer donde poisa,
Não lhe dói o instante,
Não faz sacrifício:
- Inaugura o início.
Vale
De que vale a vida
Se, ao tanto cuidar,
Nem tenho, em seguida,
Tempo para olhar?
Se, entre os pinheirais,
Nem sombra me resta,
Como aos animais,
De dormir a sesta?
Se, ao cruzar o mato,
Eu nem reparar
Que esquilo a recato
Põe a noz que achar?
Se o rio cintila
E eu sem anotar
Que nele perfila
Noites de luar?
Se a beleza dança
E eu sem ver-lhe os pés,
Que os jamais alcança
A freima de vez?
Se, ao sorrir os olhos,
Nem tempo me dou
De tantos escolhos
Ver quem superou?
Que vida triste esta
Se, de tanta freima,
Nem tempo me empresta
Nem de olhar tal teima!
Pouco
Será mesmo pouco
Ter gozado o sol,
Ter vivido alegre
Cada verão louco,
Dos anos o rol
Além do que os regre,
Ter amado, agido,
- Será mesmo pouco
Desvelar sentido?
Epifenómeno
O epifenómeno estranho
Que provém da fundação
De qualquer religião
É a produção, como ganho,
O grão desenvolvimento
Da maior hipocrisia
E da megalomania,
Psicopatas em aumento.
E são vítimas primeiras
De estabelecer a fé
As intenções que de pé
Quis que fossem verdadeiras
Quem foi delas fundador.
Jesus, Maomé, carrancudos,
Comparam notas, sisudos,
No Paraíso, ao sol-pôr,
E vão coçando as cabeças
Enquanto irão lamentando
Os desperdícios de quando
No esforço juntaram peças
Com inúteis sofrimentos,
De que apenas resultaram
Gestos que eles condenaram,
No ébrio sabor dos ventos:
- O germe, em todos os lados,
De mil sepulcros caiados!
Mulher
Se a mulher bela sorri
Para um homem que a olhou,
É dar-lhe um presente ali,
Recompensa que bastou
A torná-lo mui feliz
Todo o dia, de raiz.
Porém, se ela cara feia
A um homem fizer acaso,
É uma facada que ameia
E o coração fica raso,
Já não é mais pioneiro,
Infeliz o dia inteiro.
É o belo que é poderoso
E aqui é que está o prazer:
É príncipe ou é leproso
Conforme o olhar da mulher.
É o mistério do que é belo:
Inferno e céu tem no apelo.
Mau
Algo poderá ser mau
No facto de alguém ser belo:
Pode ignorar, mui singelo,
Os demais que andam no vau.
É tal qual como ser rico,
Rei, sultão que está no pico:
Sempre alguém quer conhecê-lo,
Nunca, pois, este é importante.
Acaba a perder adiante
Quem amar, só de nem vê-lo.
Depois é desconfiado:
Quem busca, busca que agrado?
Quem o ama é porque ama mesmo
Ou aproveita-se a esmo?
Ignora quão verdadeira
É uma amizade de amigo.
Tem de prová-lo, em castigo,
Vai longe e até se encegueira
Além demais ao correr,
Finda o amigo por perder.
É um tipo de solidão
À qual ele nunca escapa.
Só se renuncia à capa
De furtar o coração
É que a beleza é a perfeita
Protecção a que se ajeita.
O isolamento então há-de
Conseguir-lhe a liberdade.
Feia
Se ficar feia por dentro,
Feia por fora ficar
Há-de a mulher, se me centro
No que a beleza durar.
Sempre a beleza não dura
E, se a mulher não tentar
Manter alma bela e pura,
Logo tal se irá notar.
Então as pessoas não
Vão a mulher querer mais.
Finda ali a sedução
E não renasce jamais.
Criatura
Somos esta criatura
Feita duma tal maneira
Que de amigo a sepultura,
Dum vizinho à minha beira
Tem efeito mais profundo
Que as de cem mil pelo mundo.
Ora, o que salva uma vida
Numa vida salva o mundo
E quando um morre, em seguida,
Então, no mesmo segundo,
Com ele, quando me inteiro,
Ali morre o mundo inteiro.
Recursos
Há quem veja nas crianças
Recursos e não pesssoas:
É um valor útil que alcanças,
Valor de troca que ecoas.
Discutem a perfeição
Que ainda está por fazer
Nos rumos da educação,
Para a economia ter
Ganhos em competição,
Em vez de salvaguardar
A pessoal evolução
De cada qual se tornar
Seu próprio centro de escolha:
- Agente do potencial
De realização que acolha
Seu íntimo por fanal.
Dê o que der à economia
De ser si mesmo esta via.
Currículo
Não é predeterminado
O currículo que tente
Desenvolver toda a gente
No potencial de seu fado.
Crescer organicamente
Vai como for reagir
Ao que cada qual sentir
Na fundura em si presente.
Contra uma aculturação,
É despertar e apoiar
Este tesoiro, em lugar,
A meta da educação.
Rega a personalidade
Funcional e criativa
Com sabedoria viva
E fértil vitalidade.
Pendores
Quando nós reconhecemos
Novos pendores no aluno
Inatos, onde ele é uno,
Por ali logo entrevemos
Papel novo ao professor:
De informação e saber
Ele deixa então de ser
O fiel dispensador,
Para devir jardineiro
A nutrir seres humanos
Em crescimento sem danos,
Para que a crescer certeiro
Todo o potencial inato
De cada um florescer
Possa e venha a oferecer
O fruto que quer de facto.
Requisito
O radical requisito
De aprendizagem do aluno
Vem deste fundo quesito:
Quer aprender quando o muno
Do que autêntico for nele,
A descoberta empolgante
Para que o íntimo apele,
O que ali for relevante,
O que lhe dá iniciativa
De explorar e de exprimir
Toda a agenda criativa
Que dentro dele fremir.
Foco
Um aluno criativo
Diminui e aumenta o foco
Conforme o tema for vivo
Ou nem tanto, quando o evoco,
Conforme ecoa ou hiberna
Pela sua agenda interna.
Conforme experimentarem
Actos em conformidade
Com os apelos que ararem
Plena a interioridade,
Duma expressão criativa
Sendo sempre invocadores,
A entrega focada aviva
Caminhos prometedores,
Quebra qualquer tentação
Duma anterior distracção.
Aprende e se disciplina:
- De formar há melhor sina?
Questão
Os pais, os educadores
Não entendem que as crianças
Não são o problema. As dores
São que fazem mal as tranças:
A questão provém da forma
Como os adultos actuam.
O efeito então é, por norma,
Que as crianças tudo acuam,
Portam-se mal e, na escola,
Fracassam em toda a linha.
Acabam no efeito em bola
Com diagnóstico-adivinha,
Mal feito nos elementos,
E a tomar medicamentos.
Acabam em mortos-vivos
Das ignorâncias cativos.
Medida
A medida do sucesso
Não é do lucro acrescido
Mas do grau em que me meço
Em meu íntimo vivido.
É o autoconhecimento
E autodesenvolvimento
Físico, espiritual
De quem for participante
Numa empresa laboral.
Tal é o lucro visto adiante
Pelo líder do futuro:
Um objectivo final
É um retorno que procuro
Em realização pessoal
Como em gratificação
Que não tolera ameaças
Dum retorno em lucro vão
Que só de aumentar tem traças,
Sem jamais medir se o custo
Sobre as pessoas é justo.
Deseja
Quase nunca ninguém foca
Aquilo que mais deseja:
Demais se prende ao que evoca
O que jamais quer que seja.
Nem sequer tem consciência
Que este é seu pensar, na essência.
Ao focar o que não quer,
Vai atrair deste a história:
O que não quer vai colher,
Contra a vontade e a memória,
Má cabeça ao coração
O quadro a traçar no chão.
Prender-se naquela imagem
Fará que do imo provenha.
Vai sentir, na má triagem,
Que o coração lá se atenha.
Então, lhe arrumando a vida,
É o que atrairá de seguida.
Semeia
Quando o agricultor semeia
Sabe que há-de haver cenoura,
Não vai cavar volta e meia
A ver que é que a terra agoura.
Muita gente se dispersa
Ao manifestar desejos:
Foca-se na vida adversa
Que tem. E não tem ensejos.
Não entendem que seu foco
Naquilo que não desejam
É que os trouxe até ao toco
Fruste do que quer que sejam.
O Cosmos sempre nos dá
Aquilo em que nos focamos,
Queiramo-lo ou não nós cá:
É aquilo por que vibramos.
Basta então trocar de vez
Aquilo que não queiramos
Pelo que se ainda não fez:
O homem novo por que ansiamos.
Multidão
A multidão cortejada
Pode ser e, docemente,
É donzela apaixonada.
E, a seguir, mui simplesmente,
Torna-se tão vingativa
Como a negligenciada
Matrona mais agressiva.
Moeda
Na cunhagem e na vida
A má moeda afasta a boa.
A alegria mal fingida,
Os prazeres mais à toa
Ocupam tempo a quenquer,
A exigir sem se deter.
O melhor, um amor vero,
Do imo a vida espiritual,
Com Deus um encontro mero,
Tudo vai no vendaval
Do dia-a-dia levado,
Tal se fora malfadado.
É difícil arranjar
Momentos para a vivência
Preciosa que aflorar:
Intervém a experiência
Do que é banal a fazer
E tudo deita a perder.
Adora-o
Ela adora-o, é a paixão
Em sua primeira fase,
Despertar do coração.
Cuida, quando ali se abrase,
Que nasce nos olhos dele
O sol com que o mundo case.
A opinião por que ele apele,
Única sábia deveras,
É a que ouve num mundo imbele.
A voz dele é que, nas eras,
Diz verdades acertadas,
Única pelas esferas.
Dele o sorriso as portadas
Do prazer único dela
Abre em todas as jornadas.
Nada adianta a procela
Das queixas mais bem fundadas
Nem a zanga, na sequela.
É uma jovem na loucura
Do Infinito que procura.
Arco-íris
Um amor é tão durável
Como arco-íris de fulgor.
É belo, além observável,
Mas igualmente é provável
Que morra logo ao sol-pôr.
Ponto
Para se partir dum ponto
Em que não havia nada
Até chegar onde conto
Com toda a malha enredada
De neurónios combinados
Para os actos acertados
Muito foi preciso andar.
Ainda mais espantoso
É mesmo assim, se calhar,
Conseguir o melindroso,
Para quem foi tão sortudo,
Efeito de estragar tudo.
Par
Quando com o nosso par
Há tantos anos vivemos,
Ele é o mapa singular
Que no porta-luvas temos,
Que usámos até rasgar
E dobrado aos cantos vemos
No rumo que conhecemos
Até de cor o traçar
E por isso é que o levamos
Connosco, se viajamos.
E, no entanto, um dia abrimos,
Quando menos esperamos,
Os olhos e, pelos cimos,
Numa estrada reparamos
Transversal desconhecida,
Uma faixa anteriormente
Por nós jamais pressentida,
- E paramos de repente!
Tal ponto de referência
Não é talvez novidade.
É uma não vista evidência,
Desde início opacidade.
E anda algures escondida
A armadilhar-nos a vida.
Menina
Os irmãos só lhe batiam,
A menina só chorava.
Pais e mestres bem arguiam:
- “Não batam! Não é uma escrava...
Olhem como a pequenita,
Afinal, é tão bonita!”
Um pouco antes da reforma,
A educadora chegar
Viu dama que se conforma
Ao mais alto patamar,
Elegante, mui distinta,
De si dona que não minta.
- “Já não se lembra de mim,
Todavia sou aquela
A quem os irmãos sem fim
Batiam, cruel sequela,
Aquela que, feita escrava,
Apenas muito chorava.
A senhora bem dizia
Sempre quanto eu era linda,
Que não batessem pedia...
Como acreditei e ainda
Creio em sua palavra!
E aqui estou: eis sua lavra.”
Lugar
Pertencer a um lugar
É deveras importante.
Vamos connosco levar
O lugar a todo o instante,
Sejamos o que sejamos,
Para onde quer que vamos.
Curioso é que voltemos
Sempre, sempre, vida fora,
Ao mesmo lugar que temos.
Pouco importa, na demora,
Quanto tempo nós vivamos,
Sempre é lá que nos sentamos.
“O vosso pai é daqui,
É daqui que vocês são.”
E o que mais eu sinto ali
É sólido me dar chão.
Já posso olhar-me ao espelho:
Sopro de ar não sou do quelho.
Contentes
A nossa realidade
É a de nunca estar contentes
Com o que hoje é de verdade,
Porque as condições presentes,
Mesmo estando tudo bem
Na saúde e mais além,
Levam a ficar à espera
De ser feliz ao comprar
Carro, casa, uma quimera,
Ao ver as férias chegar...
E é uma pena, que devemos
Ser felizes do que temos,
Felizes no dia-a-dia
Com quem estamos aí
E onde estamos, na magia
De viver a vida aqui.
É a lição da vida plena
E a que mais gente condena.
Arte
É fatal uma obra de arte
Devir uma realidade
Num vazio, num aparte.
Um propósito a invade,
Tal como um prato na mesa:
É de a fruir quem a preza.
Para além do compromisso
Consigo próprio, escrever
Visa informar com feitiço,
Transformar, esclarecer...
Mesmo o erro de apreciação
É um relevo e tem condão.
Potencial
Todo o meu potencial
É o dos inúteis tesoiros
De galeões no areal
Do fundo do mar dos moiros:
Nunca de lá treparão
À planura do mar chão.
Os meus dias são traslado
Tendo diante dos olhos
O meu tesoiro afundado
Lá num canto, nuns refolhos.
Tudo o que disse até aqui
Mora lá, foi lá que o vi.
Tudo do ponto de vista
Parte do que é tal recanto.
Não sou batuta nem lista,
Só executo de lá o canto,
Cumpro meu fado a preceito
E nem ganho com tal preito.
Cuidei ver-me livre dele,
Porém ele nunca morre,
Nunca está morto e me impele.
Sei lá como o mundo corre!
Sei que, enfim, ele é meu todo
E me alimenta a seu modo.
Moral
Em vez da vulgar moral,
Convenção religiosa
Já tornada social,
Assente na preguiçosa
Concordância para algum
Modo de vida em comum,
Teremos cada vez mais
Este facto insofismável
De sermos os tribunais
De nós próprios, o implacável
Juiz cada qual de si
Na escolha que houver aí.
Porque de escolhas capaz,
É cada qual obrigado
A aceitar, pelo que faz,
Ser responsabilizado.
Que, se em actos me inauguro,
Mais inauguro um futuro.
Selvagem
Pode alguém ser mais feliz
Que um selvagem num bom clima?
Não por dançar de raiz
Na fogueira que ele quis
Do terreiro atear em cima,
Mas por delicado e ameno
Ser em múltiplos aspectos.
Goza de saúde, é pleno
E vive conforme o aceno
De nossos fadados tectos:
- Comungando a natureza.
Não vê o sol pela janela
Do escritório que despreza,
Nem a lua sem beleza
Das chaminés entre a tela.
É mais feliz do que nós:
Preza menos o que tem
Do que os laços preza e nós
Com o mundo e os mais após
Com quem dança vida além.
Escondia
A humana sabedoria
É duma tal natureza
Que do homem se esconderia
E este nem se apercebia
De tal no que tanto preza:
É assim que em nós a intuição
É sorrateira irrupção.
Vinda donde? Vinda donde?
- Só o silêncio nos responde.
Chamo
Tempestade à tempestade
Chamo como morte à morte,
Nascimento o parto invade
E estas palavras à sorte
Dominam de marear
Cartas, as leis dos ciclones,
Obstetrícia em meu lidar...
O saber de que te adones
Tornar-nos-á meio cegos,
Hipnotizados com nomes,
Termos pregados a pregos
Na memória que consomes.
Com nomes e com palavras
Pensamos, pois, doravante,
Não com ideias que lavras.
O lugar-comum impante
Triunfa, não o intelecto,
Esmagado sob o tecto.
Quem não ficar vigilante
Fica vazio no instante.
Trinta e seis
Já lá vão trinta e seis anos,
Trinta e seis degraus de escada
Sempre a acertar a passada
Tão a custo emparelhada,
Fugindo a perdas e danos.
Quantas vezes tropeçou
Nosso pé desajeitado!
Mais o meu, que de meu lado
Jamais ele foi dotado
Do jeito que te dotou.
Mas tiveste a paciência
De esperar por um acerto.
De mais longe ou de mais perto
Mantiveste-me desperto,
Agarrado à persistência.
Hoje é um patamar mui alto
Donde olhamos nosso lar.
Lonjuras a germinar
Vão dos filhos começar
A erigir novo ressalto.
Além de fonte de vida
És, mulher, motor que move,
Que tudo faz que renove,
Tudo o que a ternura aprove
E que a amar todos convida.
És o portal da alegria
E por isso em ti repouso.
E nem sei como é que eu ouso,
Quando os olhos em ti pouso,
Colher de ti tal magia.
Entrançado
Fazer anos, desfazer
Este entrançado da vida:
Um ano, um nó descoser
Até o derradeiro, à ida.
Mas é do lado de fora
Onde a vista se demora.
Quando é do lado de dentro,
Opera tudo ao contrário:
Quando operas em teu centro,
Teces o imo solidário,
Cresces tanto em laços mil
Que infinito é teu perfil.
Parabéns, pois, que teu rumo
É por aqui que caminha.
E teu trilho é o trilho sumo
Que o meu partilha, avizinha.
Juntos trepamos, no fito,
De ir chegando ao infinito.
Funcionário
Funcionário atencioso
É com quem detém poder,
Na mó de cima, gozoso.
Se a estrela empalidecer,
Deles o mais generoso
É aquele que vira costas
Sem as unhas ir cravar,
Rasgando o ex-poder às postas
Sem lhe a consciência pesar.
Pista
Pouco importa o grande esforço
Para descobrir a pista.
Aceito-a, mal num escorço
Me cai à frente da vista.
É que a vida é mesmo assim:
É quando de me esforçar
Acabo que então, enfim,
A meta findo a alcançar.
A luz não vem da vontade
Nem a razão é que a acende:
De estranheza nos invade
E sempre ao mistério prende.
Silvestre
Nosso imo silvestre
Sempre é visceral,
Nunca cerebral.
No entanto, ele é o mestre:
Sabe rastrear,
Correr, repelir
Quanto convocar
E fundo sentir,
Amar fundamente,
Disfarçar acaso.
Na intuição assente,
Às normas deu azo.
Saúde mental
É o que provém dele.
Acrescenta à pele
Forro espiritual.
Histórias
As histórias implementam
A nossa vida interior
E mais pesam se a fomentam
Quando é presa de temor
E ali vive encurralada,
Perenemente assustada.
As histórias lubrificam
As engrenagens internas,
Adrenalinas aplicam,
Mostram saída às cavernas
E contra a dificuldade
Abrem portas de verdade
Na parede antes fechada,
Aberturas que nos levam
Dos sonhos à terra herdada,
Que o amor em tudo cevam,
Conduzem à aprendizagem
Dos dias em cada viagem.
E eis como elas nos devolvem
A nossa vida deveras,
Silvestres ecos envolvem
Em nós a marca das eras,
Tornam-nos os pés capazes
Com olhos enfim sagazes.
Equilíbrio
Faremos meditação
Para lograr equilíbrio.
Psicoterapia é o chão
De evitar qualquer ludíbrio.
Analisamos por isto
Os sonhos, criamos arte.
O I Ching, o tarô que aliste
Também dali farão parte
Como os que dançam, batucam,
Fazem teatro ou arrancam,
Quando dentro se cotucam,
Poemas que na dor abancam
Ou a iluminada criam
Oração predestinada...
Os nossos passos aviam
Por isso toda a jornada.
É a freima de reunir
Todos os ossos esparsos.
Depois é de decidir
Ante o fogo de oiros garços
Que cantiga é de cantar
Para os ossos recriar.
E as verdades que dissermos
Da canção formam os termos.
Existem boas perguntas
A fazer enquanto juntas
As decisões da canção,
Nosso vero cantochão.
Que é que com minha voz de alma
Ocorreu que leva a palma?
Quais os ossos enterrados
De minha vida aos bocados?
Com o meu imo instintivo
Que relação tenho ao vivo?
Quando a derradeira vez
Corri livre por meus pés?
Como fazer com que a vida
Volte a ser vida vivida?
Cacto
Muitas vezes nos sentimos
Vivendo em lugar vazio
Onde há um cacto preso ao fio
Da vida de secos limos.
Resta a flor vermelha viva
E, em todas as direcções,
Mil quilómetros de esquiva
Paisagem de vãos sertões.
Mas a quem se propuser
Mil e um quilómetros ir,
Algo existe a recolher:
Uma casa com porvir,
Um lar pequeno admirável
E uma velha sábia que era
Uma prenda inestimável
Desde sempre ali à espera.
Seres
Num único ser humano
Vivem muitos outros seres,
Todos com valor e dano,
Motivos, projecto, haveres...
Psicológicos modelos
Querem que os prendamos todos,
Numeremos os apelos,
Classifiquemos os bodos,
Que os forcemos a aceitar
Nosso comando de vez
Até nos acompanhar:
Escravos de trela e arnês.
Agir assim equivale
A impedir danças de luz
Selvagens em nosso vale,
Faíscas proibir traduz,
Reprimir toda a emissão
Das estrelas noite fora.
Em vez da deturpação
Da beleza que os decora
Nossa tarefa consiste
Em abrir a todos eles
Uma paisagem que existe
Selvagem em nossas peles,
Em que os artistas que houver
Entre eles possam criar,
Amantes vão bem querer
E os xamãs irão curar.
Pergunta
A pergunta que é correcta
Provoca a germinação
Da mente, apontada seta.
Bem formulada, é função
Duma curiosidade
Fundamental a respeito
Do que lá por trás se evade.
Dá-nos as chaves que, a eito,
Fazem que as portas secretas
Da psique ou do mundo externo
Se escancarem, predilectas,
De luz num festim superno.
Alimentar
Alimentar a intuição
Para andar sempre nutrida,
Responder à petição
Que lhe fizer qualquer vida,
Esquadrinhar cercanias
Nos espaços e nos dias...
De vida é que a alimentamos,
Pois de vida se alimenta
Quando atenção lhe prestamos.
De que vale a voz atenta
Que do mistério perceba,
Sem o ouvido que a receba?
Trabalho
Ter a boa intuição
É um poder considerável
E trabalho a esmoer chão.
Gera labor inadiável,
Primeiro na observação,
Depois na compreensão
Das forças, desequilíbrios
Que nos forem negativos,
Fintando deles ludíbrios,
Jeitos escusos e esquivos,
De fora a dentro, uma hora,
Ou de dentro para fora.
Depois provoca o esforço
De reunir disposição
Para traçar logo o escorço
Do que fazer da questão,
Seja por bem, no equilíbrio,
Seja para, sem ludíbrio,
Deixar algo, enfim, morrer.
É mais fácil jogar fora
A luz por mão de quenquer,
Pôr-se a dormir desde agora.
Difícil é segurar
A luz diante e caminhar.
Deliciar
Quem não se deliciar
Com qualquer aprendizagem,
Quem atraído ao lugar
Não for da nova viagem
Das ideias e experiências
Nunca logrará passar,
Na avenida das vivências,
Além do marco miliar
Junto do qual estiver
A descansar desde agora.
Se uma força é de reter
Que alimenta a toda a hora
A vera raiz da dor
É a recusa permanente
De aprender seja o que for
Além da hora presente.
Encadeado
Quem fugir à natureza
Do encadeado morte-vida
Cuida que o amor que preza
É só dádiva seguida.
Ora, o amor em plenitude
É morte e renascimento:
Deixo que uma fase mude,
Um aspecto que alimento,
E entro em outra já diversa.
A paixão morre e após volta,
A dor, bem longe dispersa,
Torna mais adiante à solta.
Amar é o lema abraçar:
Como inúmeros finais
Igualmente suportar
Com recomeços iguais?
E esta intérmina função
É uma e mesma relação.
Dança
O encadeado morte-vida
Nos ensina a acompanhar
Sua dança retorcida
E mostra, nesta medida,
Solução ao mal-estar
Que reside no contrário:
Para o tédio, actividade;
Para o sozinho, um rosário
Dos gestos que são sumário
De qualquer intimidade;
E, se for a sensação
De que é o território escasso,
Vai ser mesmo a solidão
Que me responde à questão
De sentir falta de espaço.
Ensina
A mulher ensina o homem
A criar a vida nova.
Mostra-lhe, quando se movem
Para enfrentar esta prova,
Que é o rumo do coração
A via de criação.
Mostra que criar é sorte
De saber encadear
O nascimento com morte.
Acaba por ensinar
Que excesso de protecção
Nada cria, tudo é vão,
Que o egoísmo não cria,
Que agarrar-se a qualquer coisa
Culminando em gritaria
Não resulta, em nada poisa...
- Só soltar o coração
Dá no fim em criação.
Silvestre
Minha silvestre natureza
É persistente, persevera.
Ninguém a faz porque é o que preza,
Algo é que o é de inata esfera.
Se não houver a condição
Que nos permite vicejar,
Vamos adiante, a cobrir chão,
Até podermos retomar.
E seja o nosso isolamento
De nossa vida criativa
Qualquer forçado afastamento,
Uma cultura morta-viva,
Religião que nos rejeita,
Ou um exílio da família,
O banimento duma seita,
Sanções impostas em quezília
Contra qualquer meu movimento
Ou pensamento que tiver
Ou, porventura, um sentimento,
- Este silvestre, íntimo ser
Nas profundezas continua
E nós por ele persistimos.
Nunca exclusivo é duma rua,
Estirpe ou clã: todos nele imos.
Primavera
É chegada a primavera,
Principia a vida nova,
A oportunidade impera
De tentar tudo o que inova.
Importante era esperar,
Aguentar por nossa vida
Criativa ter lugar,
Pela solidão perdida,
Por nosso tempo de ser
E de fazer à medida,
Por nosso ritmo ocorrer
Até que desponte vida.
Esperemos, que a promessa
Da natureza silvestre
É que o inverno atravessa
E depois, com mão de mestre,
Inaugura, em cada era,
Sempre, sempre a primavera.
Rejeitam
Os que rejeitam o imo seu silvestre
A coerência querem permanente,
Que sejas hoje exacta, exactamente,
O que foste ontem, sem ter quem te amestre,
Que nunca mudes ao correr dos dias,
Que permaneças fiel ao teu início.
Questiona o lar, se não será o resquício
Desta coerência que murcha as magias.
Afirmativa te darão resposta:
“Não, jamais tudo”, - dizem - “só o que importa!”
Seja qual for o valor desta porta,
Inaceitável sempre ela é uma aposta
Para a silvestre natureza nossa.
Infelizmente o que lhes mais combina
Jamais combina ao que importar à sina
Da criança silvestre que os remoça.
Socializar
Socializar a criança
É deveras importante,
Mas grave é quando isto alcança
Ir matando, instante a instante,
A criatura interior:
Morre a criança, ao pendor.
Ser duro com a criança
Do corpo finda a afastar
Qualquer alma que ali dança
Uns metros só, se calhar,
Mas pode o longe da estrada
Perder-se na caminhada.
Preocupa
Aquilo que preocupa
No que for bem comportado
É se ele é, no que se ocupa,
Bem comportado demais.
Por vezes, no rosto dado,
Tem nos olhos os sinais
De alma fraca, a se exaurir.
Algo ali não rima certo.
Alma saudável a rir
Aparecerá brilhante
Da persona atrás, decerto,
Dia além, a todo o instante.
Noutros dias há-de arder
Como chama de fogueira.
Quando calha o dano ser
A sério, tudo se estraga.
Alma débil na carreira
Vai fugir, de fraga em fraga.
Escultura
O corpo como escultura
É um erro de perspectiva,
Não é mármore a figura
Nem o fim que nele arquiva.
A sua finalidade
É de proteger, conter,
Apoiar e atiçar
Dentro, na interioridade,
Todo o espírito que houver,
Alma que lá borbulhar.
Vai ser um repositório
De infindas recordações,
Sempre a encher-nos do envoltório
De intérminas sensações.
É o sumo, quando se aplique,
Sumo alimento da psique.
Assim nos há-de elevar,
A trepar o muro a pique,
E tem de nos impregnar,
A provar quanto existimos,
Que nós estamos aqui,
A dar-nos de laços limos
De ligação com a terra,
Dar volume ao que vivi
E peso que ao chão me aferra.
Pensar no corpo era errado
Como o lugar que abandono
Quando voo noutro lado
E do espírito me adono.
O corpo é o detonador
De tal experiência-mor.
Sem corpo não haveria
A sensação duma entrada
De algo novo na magia.
Nem havia elevação,
Altura, leveza. A estrada
Jamais me erguia do chão.
Do corpo provém tudo isto,
É o lançador de foguetes.
Deles na cápsula existo,
Espio do imo lá fora
Do céu os mil manteletes
E deslumbro-me na hora.
Evitar
A evitar ardis, engodos
Que o tempo nos propicia
No cativeiro e na fome,
Precisamos então todos
De os prever em cada dia,
Para que cada qual tome
O desvio de escapar
Para seguro lugar.
Temos de desenvolver
Nova intuição e prudência,
A fim de vir a aprender
Desvios da pestilência.
Para poder distinguir
As escolhas mais correctas
Temos de ver e de ouvir
As erradas, falsas metas.
Então é que ardis e engodos
Previno de quaisquer modos.
Participação
Sem a participação
Da natureza silvestre
Cairei numa obsessão
Pelo que melhor me adestre,
Melhor me fizer sentir,
Pelo que me deixe em paz,
Quem queira amar-me, a seguir,
Falso amor de Deus atrás...
Quando alguém está esfaimado,
Qualquer substituto serve,
Mesmo aquele que provado
Nada haver tem que lhe averbe,
Ou que seja destrutivo,
Ou perigoso também,
Que o tempo perca em arquivo
Como o talento que tem,
Ou que nos exponha a vida
Mesmo a físico perigo...
A fome de alma convida
A dançar fora do abrigo
De forma descontrolada.
Leva-nos perto e com asco,
Em qualquer curva da estrada,
Junto à porta do carrasco.
Colecções
Colecções nós somos
De muitos volumes,
De múltiplos tomos.
A vida resumes,
Quando um episódio
Desastre é total,
Que há sempre outro bródio
À espera, afinal:
Oportunidades
Outras a acertar,
As identidades
Nossas a moldar
Do eito que entendo
Que elas devem ser.
Não te percas vendo
Só derrota haver!
O fracasso é mestre
E muito eficaz.
Se a vitória amestre,
Logo ele a desfaz.
Resta, pois, ouvir
E sempre aprender
E sempre insistir
Até após vencer.
Sacrifício
A vida e o sacrifício
Andam juntos de mão dada.
O vermelho é tal resquício
Da cor da vida magoada.
Para ter vida vibrante
Precisamos de fazer
Sacrifícios vida adiante
Sempre dum tipo qualquer.
Ir para a Universidade
Requer tempo, quer dinheiro,
Concentração de verdade
Nesta escolha por inteiro.
Quando alguém quiser criar,
A superficialidade
Vai ter de sacrificar,
Segurança que lhe agrade,
E, com bastante frequência,
Ânsia de ser apreciado
Para a intuição da evidência
Vir à tona nalgum dado
Com disparos de luz fortes
E com mais amplas visões.
O custo destes transportes
Custa mais do que ilusões.
Empreendimento
Dum empreendimento a meio,
Seja o que for que sintamos,
Da vida a criar recheio
À medida que avançamos
Fazendo o melhor possível,
Logo ocorre o mais incrível.
Somos por algo inundados
Que diz quão difícil é,
Que há tanta beleza aos lados
Que perdemos mesmo ao pé.
Há um enfeitado caminho
Que é mais fácil, adivinho,
Mais bonito, irresistível.
A carruagem doirada
Abre a porta indefectível,
Cai a escadinha na estrada
E lá entramos, seduzidos.
É a tentação dos sentidos,
Vem com regularidade,
Porventura diariamente.
A escapar quem se persuade?
É difícil, certamente.
Por isto é que acasalamos
Como erro, trocando os ramos,
Porque é vida acaso fácil
Em económicos termos...
Desisto da peça grácil
Em que laborei nos ermos,
Torno à velha e desgastada
Fórmula facilitada
Que tentava melhorar
Com anos de inovação...
Não jogo o poema ao luar
Com toda a refinação,
Fica a meio do rascunho
E recuso-lhe o meu punho...
Cultura
Da actual cultura as caras
Maravilhosas, vitais,
Andam pejadas de escaras
Que ursos fora dos locais,
Em época errada, entalham
Nos quarteirões onde calham.
Abundam cá muito mais
Que em quilómetros de mato.
Os gestos mais cruciais
São que o que eu ato e desato
Com o meu envolvimento,
Com a paixão no que tento,
Tem de ser bem protegido.
Muito nos tenta arrastar,
Forçar, tendo seduzido,
Para bem longe do lar:
“Vem, que noutra hora brilhas...!
- E tudo são armadilhas.
Desafio
Seja qual for a influência
Ou a afiliação de grupo,
O desafio, na essência,
Da silvestre alma que ocupo,
Do espírito criador
Consiste em me não supor
Pertença do colectivo,
Antes bem distinto dele,
Não me fundo, antes me esquivo,
Fujo ao rumo que me impele,
Diverso do que me cerca
Para o ganho e para a perca.
Ergo pontes para além
Mas são as de minha escolha.
Decido qual me convém
Reforçando a que recolha,
Uma mexe todo o dia,
Outra ficará vazia.
Ir-me-ei relacionar
Com que me proporcione
Maior apoio ao larvar
Meu imo de que me adone,
Alma minha mais esquiva,
Minha vida criativa.
Privado
Aquele que foi privado
De vida de alma deveras
Pode limpo e penteado,
Pelas externas esferas,
Parecer, que, lá por dentro,
Nos cantos onde não entro,
Anda repleto, afinal,
De infinitas mãos que imploram,
Bocas vazias, sinal
De que há mil órgãos que choram.
Que é que importa o exterior
Se lá dentro é tudo horror?
Excesso
Atitude exagerada,
De aniquilamento excesso,
De quem é faminto é estrada
Pela vida, onde o que meço
É que tem significado,
Faz sentido ao tresmalhado.
Quando por tempo demais
Nossos ciclos se atrofiam,
Necessidades vitais,
Criativas, não se aviam,
Uma pessoa qualquer
Principia a se exceder.
Álcool, drogas, opressão,
Raiva, ficta intimidade,
Gravidezes, obsessão,
Estudo, promiscuidade,
Organização, controle,
Mirada em tudo o que bole,
Forma física, comidas
Daquelas menos saudáveis...
- Quantas áreas corroídas
De excessos bem deploráveis!
Quando quenquer age assim
Compensar procura, ao fim,
A perda da regular
Expressão que de si tem,
Expressão de alma lunar
Por plenitude indo além.
Quão mais fundo reprimido
Mais explode o que é vivido.
Criativa
Não é o bom comportamento
Mas lúdica actividade
Que é o cerne, a todo o momento,
A artéria que tudo invade
Numa vida criativa.
O lúdico, enquanto viva,
Sempre instintivo há-de ser.
Sem lúdico não há vida
De criação em quenquer.
Se só com o bom se lida,
Tudo mui normalizado
Conforme o hábito herdado,
Finda a criatividade.
Sentados sem nos mexer,
A falar, pensar com grade,
A agir com modéstia e ser
Folha morta na corrente,
Que criação há na gente?
Qualquer grupo, sociedade,
Instituição ou sector
Que pretenda a nulidade
De quanto excêntrico for,
Suspeite do que for novo
Ou incomum desde o ovo,
Que evite o que for vital,
Inovador, veemente,
Despersonalize, o igual
Estendendo a todo o ente,
Aquilo que então procura
De mortos é uma cultura.
Rebeldia
O que há de mais importante
Numa qualquer rebeldia
É o que assume a cada instante
Para eficaz ser um dia.
Por algo qualquer fascínio,
Seja grupo, objecto, ideia,
É rebeldia em declínio,
Impede o fim que medeia.
Já não promove a mudança,
Já não transmite mensagem,
Nenhum despertar alcança,
Acabou-se-lhe a viagem.
Bonzinho
Ao ser bonzinho, meus olhos
Fecho ao que anda empedernido,
Deformado, com escolhos,
Maléfico e sem sentido
Que prolifere em redor,
Contra o qual não vou-me opor.
Simplesmente tentarei
Conviver com tais aspectos.
Os esforços que intentei
Para aceitar tais dejectos
Prejudicam ainda mais
Meus instintos naturais
De reagir, mostrar, mudar,
Combater o que anda errado,
O que não é justo, a par,
O que não é certo, ao lado.
- Que é que restará no fim
De autêntico eu em mim?
Acostumados
Aos golpes acostumados
Contra nossa mais silvestre
Natura, nós adaptados
Nos vemos, por mão de mestre,
À violência perpetrada
Contra a frágil alma alada,
A natureza selvagem
E sábia de nossa psique.
É do bonzinho a viagem
Que inverte o que nos aplique:
Trivializa o anormal,
Perde da fuga o fanal.
Perdemos nosso poder
De lutar por elementos
De alma e de vida, este ser
De que valoro os proventos.
Quando ficar obcecado
Por um outro qualquer dado,
Então o facto importante,
Quer do campo cultural,
Do pessoal, mesmo instante,
Quer de âmbito ambiental
- Findará posto de lado,
De inteiramente olvidado.
Casa
Se não voltarmos a casa
Quando a hora nos chegar,
De ver iremos deixar
Com nitidez, noite rasa.
A nossa pele encontrar,
Vesti-la, ajeitá-la bem
E a casa aproar além,
Tudo isto vai ajudar
A sermos mais eficazes
Quando de voltar capazes,
Tanto à casa que é de pedra
Como à interior que em nós medra.
Professor
Um professor é do aluno
Consciência corporizada:
As dúvidas, com ele uno,
Confirma a cada jornada;
Da eterna insatisfação
Sempre lhe explica os motivos;
De melhorar a intenção
Lhe estimula os actos vivos...
A um aluno o professor,
Espelho à curva da estrada,
Vem os caminhos propor,
Consciência corporizada.
Escolheste-me
A vida traz-nos escolhos,
Em cada escolho, uma escolha:
Levo às costas dela os molhos,
Deito-os fora mal os colha?...
Escolheste-me na vida,
Sendo eu sempre este trambolho
E o carrego, de seguida,
Carregas, pesado molho.
Porque me não deitas fora,
De tanto tolher-te os passos?
Agradeço a toda a hora
A hora em que atámos laços.
Eu, trôpego, em minha estrada
Vi que uma porta se abriu.
Ao entrar à porta, à entrada,
A madrugada nasceu:
As árvores piscam luz,
Da neve a brancura aquece,
Cada estrela nos traduz
Que o Infinito aparece...
Assim foi que o dia inteiro
Aconteceu, afinal,
Que o meu passo foi leveiro
E a vida inteira é Natal.
Não é magia a magia
De ser Natal todo o dia.
Natal
É Natal. E vem o frio
Tudo, tudo a enregelar.
Na lareira só o pavio
Algo pode acalentar.
Mas isto é o frio de fora.
Então e o frio de dentro?
Ao frio que dentro mora,
Só o amor que houver ao centro.
Das prendas não é o valor
O valor que mais importa,
Que mais importa de amor
Quanto repor porta a porta.
É o que em nós acende fogo
Mais forte que o da lareira:
- Deixa-me a ti juntar logo,
A aquecer-me à tua beira.
Aqui o gelo da neve
Em riso então nos aquece
E mesmo a geada, em breve,
Em água fresca falece.
O milagre do Natal
É o de retomar a vida
Na medida principal
Que é de amor qual é a medida.
Mudos
Factos, acontecimentos,
A felicidade, o amor,
Até mesmo os sofrimentos
Findam frustrados em dor
Se se conservarem mudos,
Se a gente se limitar
A suportar os agudos
Travos de experimentar.
Não lhes basta nunca serem
Ao silêncio relegados,
À noite em que acontecerem.
Quanto mais forem tomados
Pela clandestinidade,
Mais sensível a carência
Duma individualidade,
Um confidente de ausência.
De dirigir-lhe a palavra
Que oportunidade oferte
Ao fogo que por nós lavra
De enfim ver o que desperte.
Tambor
O pensar sem o sentir,
Vazio tambor ao vento,
Repete só no porvir
O que dantes tem no intento.
O sentir sem o pensar,
Turbilhão sem rei nem roque,
Atropela no lugar
A vida que haja a reboque.
Importa sentir primeiro
Para a razão, logo após,
Ordenar cada sendeiro
Nos cruzamentos e nós.
Sucesso
O sucesso vem da luta,
Não cai do céu de repente.
Quem sucesso não disputa
Não vai acordar, ausente,
Decénios após e ser
Acolá bem sucedido.
Só por não desenvolver
Hábitos que conseguido
Teriam o que é visado
E que são coisas pequenas:
Acabar o principiado,
Todo o esforço pôr nas cenas,
Cumprir prazos e tratar
Todos com educação...
- O sucesso tem lugar
Onde arroteado é o chão.
Escolher
Quando o cônjuge escolher,
Ser ele bonito é bom.
Mas o belo há-de morrer,
Do eterno não tem o tom.
Pondere então a pessoa,
Mas não o extracto bancário
Nem títulos que apregoa
Num trilho universitário...
Olhe para o coração,
A interior alma que aflore:
Como trata os pais então,
Doutrem que pendão arvore,
Como é que trata as crianças,
Aquelas que não conhece,
Como o trata a si, nas franças
Do que em si cresce e floresce...
Nunca se deve sentir
Menos que seja quem for:
Do espelho doutrem fruir
É uma aurora e não sol-pôr.
Corrida
Uma corrida de fundo
É o que a vida se tornou
E que já ninguém no mundo
Abandona. Nela vou.
Ao mesmo tempo também
Nunca se pode ganhar:
Mais à frente há sempre alguém,
Algo mais a conquistar.
Que rumo então dar à vida
Febril e sem horizonte,
Sempre a correr, desmedida,
Sem para a aurora haver ponte?
Gestos
Pequenos gestos às vezes
Afectam profundamente
Uma multidão de gente
Que em vida só viu reveses.
Mesmo quando assim não é,
Podem ter grande influência
Num só que de ter-se em pé
Nunca em si viu competência.
Pequenos gestos são grandes,
Às vezes, sem que os comandes.
Quando os desprezas, então,
Não sabes arrotear chão.
Ajuda
Um gesto, a viagem de ajuda,
Ou dão mais autonomia
Àquele que quer a muda
Ou mais não dão, nenhum dia,
(E pior, se há mais frequência)
Que aumentar a dependência.
É que é natureza humana
Contra si própria a lutar:
Com presentes quem se dana,
Mesmo quando de alargar
Impedem capacidades
No imo às personalidades?
Sempre
Para sempre ser feliz
Não é um impossível mito,
É um raro, raro matiz
De quem visa o infinito.
Só que os cônjuges não casam
Todo o dia um bocadinho
Mais e já se não abrasam
As brasas no lar maninho.
Pois julgam que a obrigação
De namorar acabou
No casamento malsão,
Contrato que se assinou.
Há uma grande maioria
Que, ser feliz não logrando,
Julga que ninguém seria
Capaz, nem de quando em quando.
Sentirmos concretizável
Por outro a lenda do amor
Faz-nos madrasta execrável
Ou pequeno anão de horror.
Quem não logra ser feliz
Não suporta que outrem seja.
Mal nos toca na cerviz
Envenena o que viceja.
Envenena as convicções,
Adormenta para elas.
Das nuvens entre os bulcões
Já não vemos mais estrelas.
Pára-raios
As histórias das pessoas
Não o são, são pára-raios,
Dão a ver, quando as ecoas,
O que falta nos ensaios.
Obrigam a perceber
Que apenas o amor impede,
Nos impede, enfim, de ter
Vida em que o vulgar sucede.
Só quem nos puser problemas
Transmuda nossos recursos
Em soluções para os lemas,
Rios a talhar os cursos.
Um amor morrerá quando
Aceitamos, afinal,
Ter uma vida findando,
Ter uma vida normal.
Podemos perder o medo
De não devirmos felizes.
Será o compromisso, o credo
Que mais nos lança as raízes,
De surpresa e sem vaidade,
Para o que é felicidade.
Cresceu
Se a humanidade cresceu,
A culpa será da mãe,
Mesmo se crê que valeu
Mais do serviço que deu
Que do coração que tem.
Dois
Ao mesmo tempo amam dois:
O estado de comunhão
Opera em bloco e depois
É cabeça e coração.
Quando dois se sintonizam
Numa reciprocidade,
A fantasia utilizam,
Toda a sensibilidade...
Amar é sempre escolher,
Querer tudo e crer em fadas.
Alguém sem problemas ver?
Tal se crescer nas jornadas
Não fora sempre aprender
Problemas a resolver!
Ter o melhor de dois mundos
É nunca escolher os fundos
De solteiros nem casados,
Sempre à borda dos estrados.
E acabar de mãos vazias
Depois, no termo dos dias.
Desculpa
Há quem, porventura aos berros,
Se desculpe com verdade
E há quem aprenda com erros.
E à responsabilidade
Foge o que outrem põe a ferros,
Pois só quem vive refém
Da culpa se desculpar
Vai tentar (e com desdém)
Com verdades que encontrar.
Repente
Um divórcio de repente
É evento que não existe.
Tudo ocorre lentamente
Em nadas que já nem viste.
Um abraço que esqueceu,
Uma palavra ignorada,
Ternura que se perdeu
Nos atoleiros da estrada,
A rotina bolorenta
Onde apenas pó se inventa,
Dois caminhos desviantes
Que não cruzam como dantes...
Tudo seria ao contrário
Se, ao invés, de mão na mão,
Soldaram, no curso vário,
As peças da comunhão.
Imitam
Há muitos que coabitam
Mas não convivem de todo,
União de facto imitam,
Por dentro são doutro modo:
Um deles se sacrifica
Ao brilho que o outro aplica
Ou ambos se refugiam
Na meta onde à vez se adiam...
Ao sentir o amor fugir
Há fugas para diante,
Carro novo ao adquirir,
Casa nova, num instante,
Ou, maior desgraça até,
Ao querer novo bebé...
- É inúmera a hesitação
Quando o impasse crava ao chão.
Famílias
Famílias que estão presentes
Na doença ou separação
E não há quem as convença
Quando chamadas não são!
E era tão fundamental
Quando se ama, por sinal!
E as que prendas em atraso
Acumulam pelos cantos
De aniversários de acaso
Que ocorrem já sem encantos,
Que poupam mágicos gestos
De ligar nossos aprestos.
Em famílias deprimidas
O amor é anseio demais
E são vítimas fingidas,
Martírios, dele os sinais,
Pois parece que a atenção
Não tem já direitos, não.
Conflitos são evitados
Como se não discutir
Felizes torne os finados
Que já não terão onde ir.
Dos mais vai cada qual indo
Desistindo, desistindo...
Imaginativos
Somos imaginativos,
Fantasiamos, pensamos
De modos mil sensitivos,
Contudo pouco falamos.
Ora, o amor nunca se tece,
Na margem de nossas lavras,
Ao invés do que parece,
Sem precisar de palavras.
O amor requer sons e gestos
E sempre agradece então
Os cintilantes aprestos
Nas lendas do coração.
Algo
Quando vemos algo à noite
Céu além a cintilar,
Diria que são estrelas.
E é falso. O que ali se afoite
É o passado a me chegar,
Tempo além soltando as velas.
Embora raro o vejamos,
É o Cosmos a me alcançar
De há milhares, milhões de anos,
A atingir-nos devagar,
A desvelar-nos arcanos,
Eras, nos infindos ramos,
Lá sobrepostas a par.
A beleza das estrelas
São do tempo as caravelas.
Cumprir
Ao cumprir a obrigação
Há sempre infindas razões
De se não cumprir então
E são razões sem razão...
- Vê, pois, onde teu pé pões.
Chefe
Chefe não és se só vês
Na multidão o escabelo
Por onde trepam teus pés
Rumo ao cume do sincelo.
Só chefe serás de vez
Se tiveres a ambição
De a todos salvar que vês
Dos abismos que há no chão.
Não podes viver de costas
Para a multidão voltadas,
Tuas ânsias são apostas
De a ver feliz nas jornadas.
Esgotar
A verdade esgotar não
Quererás acaso nunca.
Às vezes, por correcção,
Normalmente porque junca
Teus dias de maus bocados.
Ou os de alguém que proteges.
E de cobardia há dados
Que em tudo isto ao fim eleges.
O medo de aprofundar
As camadas do mistério
Ameaça de nos tornar
Homens de vez sem critério.
Erróneos
Porque te magoam tanto
Os erróneos comentários
De ti feitos entretanto?
Bem mais rasteiros sudários
De morte te cobririam
Se as mãos de Deus te saíam
De teu peito entregue à sorte.
Encolhe os ombros, portanto,
E do bem talha o recorte.
Sal
Ânsia de mexer em tudo,
Ser sal de todos os pratos...
Não és capaz, neste entrudo,
De te desfazer nos tratos,
Sempre inadvertido à vista
Como o sal que te conquista.
O pendor do sacrifício
Falta-te em cada função,
Curiosidade em bulício
É o que és em exibição,
É o que aí tu tens de sobra...
- Pouco serve em qualquer obra!
Cala-te
Cala-te, que agarotado,
Criança em caricatura,
Intriguista malfadado,
De linguareiro figura,
Coscuvilheiro danado
É quanto de ti se apura.
Com histórias, mexericos,
Esfriaste as amizades.
Foi o pior dos salpicos
Nas obras de que te agrades.
Se às bicadas de teus bicos
Os muros abalam grades
Fortes da perseverança
E os mais desistem então,
Nenhuma graça te alcança,
O diabo tem-te à mão.
Madeira
Se tens madeira de santo,
É preciso obediência
A quem medeie o encanto
E muita docilidade
Ao imo cuja premência
Discretamente te invade.
Senão, és o tronco informe
Que, sem talha, para o fogo
Ignorado ao canto dorme.
E, se era boa madeira,
Que bom lume desde logo
Se há-de erguer à tua beira!
Vazias
Se nunca te lembrarias
De elevar sem arquitecto
Um bom lar onde vivias,
Como vais chegar ao tecto
Com as tuas mãos vazias,
Em solitário projecto,
Se é para o céu que pretendes
A morada a que hoje tendes?
Se é eternidade o que visas,
Só se em todos a divisas.
Tudo então é medianeiro,
Cada qual é teu parceiro.
No espelho que de ti são
É que os rumos te dirão,
Na palavra que tocar
Teu coração a escutar.
Mostras
Mostras personalidade,
Estudos e posição,
Deténs cargos na cidade,
Património, muita acção
E já tens alguma idade...
Quem te orienta o coração?
Ou é de arbitrariedade
Que o trilho cobre o teu chão?
Ou, pior, a convicção
Que fanática te invade
De perversa persuasão?
Ouve dos mais a lição
Que ao mais fundo do imo agrade,
Que te desperte a visão
Para a universalidade:
Só aqui tens rumo na acção.
Receio
O receio de te veres
Como aos mais de te mostrares...
É uma batalha venceres
Se enfim o medo perderes
De qual és te revelares.
Trata, pois, de ver a tua
Realidade por fim nua.
Companhia
Procuras a companhia
De amigos de afecto e fala
Com convívio de alegria,
De encontros sempre com gala
Que deste mundo o desterro
Transmudam em plano aterro.
Às vezes nos atraiçoam
Mas noutras as asas voam.
Frequenta então cada dia
Com maior intensidade
Da fundura a companhia,
Conversa em profundidade
Com o Íntimo do Universo:
Nunca atraiçoa este berço.
Deste mistério nasceste,
Dá-te asas de leste a oeste.
Simula
Simula inactividade
Comungar com o Infinito,
Falar com a realidade
Que na fundura mal fito.
Mas depois abro a janela,
Vivo de acordo com ela.
Como é difícil sem isto,
Esta oração tão informe,
Agir conforme o que hei visto
No lar meu agora enorme:
É que ao infinito cresce
O meu passo no que investe.
Relógio
Relógio mal acertado,
Bate o espírito a desoras:
Ao meditar, desolado,
Árido é, com mil demoras;
No afazer de cada dia;
No alvoroço da cidade;
- De repente o fogo ardia
Sem qualquer contrariedade.
Do relógio badaladas
Não desperdice quenquer,
Sopra o vento nas estradas
Como o espírito onde quer.
TERCEIRA RÉSTIA
À ESQUINA DO INESPERADO
Devir
Que eu possa devir tão belo
Como meu íntimo de alma,
Que meus bens ecoem em singelo
Acordo com o que dali flébil me acalma.
Que eu considere rico quem é sábio
E que eu só tenha a riqueza
Que quem é comedido tenha presa ao lábio
Porque é o que pode, firme astrolábio,
Aguentá-lo no rumo que preza.
Ver
De tão grácil,
Ver Jesus num bebé,
Que fácil
É!
Muito menos é ver,
Afinal,
Jesus nesta mulher
Doente, cheirando tão mal.
Contudo,
DEle os sinais
Estão aqui sobretudo,
Estão aqui muito mais.
Glória
Toda a glória é uma ilusão,
Só a glória do Infinito, não.
Aliás, é por causa desta
Que nenhuma das outras presta,
Dela cada qual um baço afloramento
No mundo cinzento.
E só por aflorá-la, como promissória,
É que ainda é glória.
Fraco
Da vida o vento norte
Se enregela o mais destemido,
Parte-o, feito um caco.
O castelo forte
Fracamente defendido
É fraco.
Fome
A fome de saber
Vem
Com o ensino que bom houver
Também.
Da infância o mais apetecível,
Obliterados os conselhos,
É a mágica instrução exequível
Pelos magos feiticeiros: os mais velhos.
Preciso
É preciso caçar, pescar,
Colher, moer, levedar com fermento
E cozinhar
O nosso alimento.
Se não tivermos após
Nenhum fio a ligar-nos à civilização,
A natureza desata a fazer-nos a nós
O que ao selvagem faz em qualquer chão.
Reconheceremos então
Que é viável ser feliz
Sem livros nem jornais,
Computador ou televisão,
Sem cartas, contas que jamais
Em tal matriz
Existirão.
A descontracção,
O sono
Um papel decisivo revestirão,
Da natureza germinal em abono.
Reencontraremos a beleza
De sermos o jucundo,
Visceral mundo
Da natureza.
Morte
Não há nada de valor
Sem a morte pela frente.
Sem morte não há lições
A propor
A toda a gente.
Sem da morte as negridões
Onde ter o fundo escuro
Contra o qual se nos perfila
O apuro
Do diamante que cintila?
Apaixonado
O apaixonado corre adiante,
Não dá conta de que à superfície traz
A criatura mais apavorante
Que jamais conheceu, jamais,
De si atrás.
Não vai reparar
Que anda carreando muito mais
Do que tem condições de manejar.
Não imagina que terá
De entender-se com a criatura
E que a ponto está
De ter, por todos os lados
Da cercadura,
Os próprios poderes testados.
E, para que pior acabe,
Ele não sabe que não sabe.
Ao princípio, tal é o estado
De morcego
De todo o apaixonado:
Inteiramente cego.
Os imprudentes
Tendem a abeirar-se do amor
Com os trejeitos impacientes
Do pescador
Que, ao puxar a linha, antecipou
O que apanhou:
“Oxalá seja um bem grande
Que por muito tempo me alimente!
E que seja tão interessante que desande
Com minha vida para a frente:
Que eu me possa gabar
Ante os pescadores do meu lugar!”
É a atitude natural
Do ingénuo ou esfaimado.
O muito jovem, o não-iniciado
Como o faminto e o ferido, afinal,
Giram, em redor da descoberta,
A verificar quem nos troféus acerta.
Os jovens ignoram o que procuram,
Os famintos procuram o sustento,
Os feridos, as mezinhas que os curam
E compensam as perdas que vieram com o vento.
Um mau agoiro,
A prazo,
Tira-lhes da fantasia os véus:
Todos querem que o tesoiro
Lhes caia por acaso
Dos céus.
Fingimos
Fingimos que podemos amar
Sem morrerem nossas ilusões de amor.
Fingimos poder continuar
Sem morrerem nossas expectativas sem valor.
Fingimos poder ir em frente,
Que nossas emoções perdurarão eternamente.
Porém, no amor
Tudo é dissecado
Em nossa vivência interior,
Tudo, por todo o lado.
O ego não quer
Que tal ocorra.
Contudo, é assim que deve ser.
E, antes que tudo morra,
Quem de natureza profunda e silvestre é provido
Prepara, na vida, das freimas a catrefa
Inegavelmente atraído
Por tal tarefa.
Que é que morre, por fatalidade?
As ilusões, as expectativas,
De tudo querer a voracidade,
Pois tudo isto arquivas,
Por querer que tudo o que for vindo,
Tudo, seja lindo.
Pouco importa o que se corre,
Tudo aquilo morre.
Vacila
O relacionamento vacila
Quando trepa da esperança e sonho
A encarar o que o real perfila,
De que é que no anzol da vida disponho.
É assim no laço entre a mãe e o bebé,
Entre os pais e o adolescente,
Em amizades tidas de boa-fé,
No amor duma vida ou recente.
A união atada
Com toda a boa vontade
Oscila e balança na passada,
Às vezes cambaleia de verdade
Quando o patim do enamoramento
Já lhe não acrescento.
Depois,
Ao invés de encenar a fantasia,
Principia
A dois
O relacionamento desafiador
E toda a experiência e habilidade, então,
Precisam ambos de pôr
Em acção.
Não é o fim da magia:
- É a Via!
Amantes
Se os amantes insistirem
Numa vida de alegria forçada,
Dum intérmino desenrolar de prazeres,
Jornada a jornada,
E doutras formas de fruírem
De vivências intensas e entorpecedoras,
Deles feitos teres e haveres
A todas as horas,
Se persistirem
Numa tempestade sexual de faíscas e trovões,
Num excesso de delícias
Sem da luta os tropeções,
Lá se vai, no enxurro das blandícias,
O ciclo da vida-morte-sobrevida
Pelo penhasco abaixo,
De volta às profundas do mar,
Perdida de vez, perdida
A luz do facho
Que nos permite vida fora navegar.
A recusa em permitir
Da vida o ciclo inteiro
No amor que se auferir
Faz com que a natureza, primeiro
Seja arrancada
De nosso interior
E afogada
Num momento posterior.
“Não vamos nunca ficar tristes,
Vamos sempre ter prazer”,
Desagua, após os despistes,
No laço afectivo a desaparecer
De vista,
Vagueando debaixo de água,
Sem sentido que revista,
Inútil, num mar de mágoa.
Penhasco
A vida é atirada de cima do penhasco
Quando não compreendemos bem
Ou temos asco
Aos ritmos transformadores que a sustêm:
Quando qualquer
Itinerário vivido
Tem de morrer
E ser substituído.
Se o par
A trama de vida-morte-sobrevida
Não logra suportar,
Não pode amar jamais,
Em seguida,
Além das descargas hormonais.
O que, para encher da vida a pasta,
Nunca basta.
Declínio
Já que pouca vida nova
Brota sem um declínio
Na que houve antes e se renova
Doravante em novo escrínio,
Os amantes que insistirem
Em tentar tudo manter
No apogeu cintilante que um dia conferirem,
Os dias irão perder
Num relacionamento cujo traslado
É cada dia mais mumificado.
O desejo de forçar o amor
A prosseguir somente
Pelo mais positivo pendor
É o que o leva num crescendo,
Eternamente,
A ir morrendo, morrendo, morrendo...
Inocência
Ignorância é não saber nada
E ser atraído pelo bem.
Inocência é saber toda a jogada
E, apesar disto, tudo assumido,
Como convém,
Pelo bem ser atraído.
Preciso
Se for preciso, os homens pintarão
Céus azuis nas paredes da prisão.
Fiarão mais duma assentada
Se se queimou uma meada.
Se a colheita estiver destruída,
Outra semeadura farão de seguida.
Onde não houver nenhuma
Rasgarão portas em ruma.
E elas abrirão
E todos passarão,
Vidas novas às janelas,
Para novos caminhos, por elas.
Como a vida silvestre persiste e triunfa assim,
O homem também, por fim.
Subterrâneo
Uma vez encontrados
Os estuários e afluentes em nossa psique
Do imenso rio subterrâneo de nossos fados,
Isto à vida criadora faz que se aplique
O ritmo de cheias e vazantes, ondas a pique,
Com o sobe e desce das estações
Como dum rio natural os turbilhões.
Tais ritmos propiciam
Que tudo seja criado, alimentado,
E após recue e definhe,
Como os tempos imporiam,
No prazo dado,
Repetidas vezes, ao que quer que ali se alinhe.
Algo criar num ponto do rio
Alimenta quem vem até ele,
Animais a jusante nutre do fastio
E os das profundezas que a corrente impele.
A criatividade
Não é movimento solitário.
Nisto lhe reside o poder que nos invade,
Visceral e tributário.
O que quer que seja tocado por ela,
Quenquer que a ouça, que a sinta,
Que a veja no meio da procela,
Invulnerável e distinta,
Que a conheça nos vislumbres bem fadados,
- Todos serão por ela alimentados.
Descortinar a ideia, a imagem,
A palavra criadora de alguém
Preenche-nos, inspira nossa própria viagem
Criativa também.
Um único acto criativo somente
Tem o virtual
Potencial
De alimentar todo um continente.
Um acto de criação sozinho
Pode levar a corrente
A abrir caminho
Pela perda além indefinidamente.
Estagnada
Quando a criatividade finda estagnada,
O efeito
É uma fome desesperada
Pelo novo a que se não ande afeito.
Há um enfraquecimento da fecundidade,
Uma falta de espaço
Para as formas menores da vida que se evade,
Para localizá-las no abraço
Dos interstícios das formas maiores,
Uma impossibilidade
De que uma ideia fertilize outra com seus humores.
Nenhuma ninhada,
Nenhuma vida nova anunciada.
Sentimo-nos doentes
E queremos fugir adiante.
Vagueamos sem destino em todas as frentes,
Fingindo poder sobreviver a cada instante
Sem a exuberante
Vida criativa que não temos.
- Todavia, não podemos nem devemos.
Para trazê-la de volta,
As águas têm de ficar límpidas e claras
De novo, na correnteza solta.
Precisamos de entrar na lama,
Purificá-la de contaminadoras aparas,
Reabrir passagens na enredada trama,
Proteger a corrente de mais apuros
E de danos futuros.
Lágrimas
As lágrimas são o rio
Que nos leva a algum lugar.
O choro forma a maré, em arrepio,
Ao redor do barco que nos carregar
A funda e calma
Vida de alma.
As lágrimas erguem o barco das pedras,
Libertam-no do chão seco,
Carregam-no para um lugar novo
Onde medras,
Não mais peco,
Antes a reflorir em cada renovo.
Num lugar melhor
Te irão depor.
Há mares de lágrimas jamais choradas
Por as almas terem sido ensinadas
A levar para o túmulo os segredos
De pais e mães, de todos, da comunidade,
Os degredos
Delas próprias na própria soledade.
O choro sempre foi tido por muito perigoso,
Pois abre os trincos e ferrolhos
De cada segredo brumoso
Que as almas carregam pejado de abrolhos.
Para bem da silvestre alma
O melhor é chorar.
As lágrimas são da iniciação a palma
Para no clã das cicatrizes ingressar,
Na tribo de todas as cores,
Todas as nacionalidades,
Idiomas e pendores,
Verticalidades
Que os séculos cruzaram
Com um toque de grandioso
Orgulho luminoso.
Aqui, nas cicatrizes partilhadas, é que se apura
Toda a cura.
História
Uma história é uma semente
E nós, dela o solo.
Ouvir uma história permite-nos vivenciá-la
Dentro da gente,
Somos o polo
Em que o herói cede
Ou supera e se regala.
Se ouvimos como o lobo procede,
Desatamos a perambular
Conhecendo como um lobo o lugar.
Se ouvimos duma pomba
Que encontra os filhotes,
Voamos, por um tempo, sobre a lomba,
De nosso peito emplumado com os dotes.
Se é o resgate da pérola sagrada
Das garras do vigésimo dragão,
Sentimo-nos depois exaustos da estrada
E satisfeitos do repouso em nosso torrão.
Ficamos impregnados de conhecimento
Apurado no ponto
Só por termos dado ouvidos, um momento,
Ao conto.
Infinito
O amor é infinito.
Pode o desgosto levar ao amor
E o amor, ao desgosto.
Cada grito
De horror
É o sol-posto
Que noite fora amadurece a manhã.
Duma história de amor o frenesi,
Quando ela é boa e sã,
Tem muitos amores dentro de si.
Natureza
A natureza
É um amontoado sem grande rigor,
A beleza
Mora no olhar do observador:
- Dela o centro, o íntimo centro
Bate fundo cá dentro.
Luto
O luto é um lugar
Cheio de nós
Que cada um tem de visitar
A sós.
É um quarto sem portas nem janelas
E o que ocorre lá dentro,
Da revolta e dor as procelas,
Deve permanecer onde me adentro,
Aqui no peito,
Bem no centro,
E apenas a cada um diz respeito.
Tômbola
Cada um tem de vir buscar
Por ele próprio a tômbola da vida dele.
Os eventos de cada um vão chegando
E tomando lugar
A seu tempo, na brisa que os impele
Devagar
Em devaneio brando.
Como quando apanhaamos um comboio,
Às vezes é fácil,
É apenas subir à carruagem,
Nela trepar do monte ao verdejante poio,
Que é luxuosa, confortável e grácil
E todos nos sorriem na viagem.
É difícil outras vezes, porém.
Podem desabar com violência
As malhas da vida sobre alguém
Com inabarcável premência
E, de qualquer maneira, ele tem
De as agarrar
Também
E de nunca as deixar escapar.
A vida antiga de cada um termina
E termina a prova
Quando o comboio o leva e o destina
A uma vida nova.
E é sempre assim, sempre assim, sempre assim,
Até a viagem chegar ao fim.
Oposição
Levar a oposição
A fazer parte do governo
Não a cala
Nem é nenhum apelo terno:
Desempenha, discreta, a função
De desarmá-la.
Nem
Nem amigo nem amor
Quem o não for
É que fica em todo o lado
E em lugar nenhum.
Então é que incomodado
Fica demais qualquer um.
...Ao menos quando isto for
Depois dum grande, grande amor.
Tradição
A tradição
É uma espada de dois gumes.
Dá-nos raízes, esperança e fé nos alvinitentes cumes
Do que somos
Por mor do que fomos,
Mas também traz destruição,
Pois, no que alcança,
Nega a mudança.
Ora, o mundo é inconstante,
Nunca estático.
Se a tradição se mantém pelas eras adiante
No mesmo posto firme e fanático,
Então tudo o que é vivo,
Em todo o lado,
Caiu sob o dogma destrutivo,
Está condenado.
Este é, dos cumes
Onde me desintegro,
O cume negro
Daquela espada de dois gumes.
QUARTA RÉSTIA
AO GOSTO DO MEU POVO
Hoje
Não há nada mais valioso,
Entre quanto em mim se aloje
Em tristeza como em gozo,
Do que é sempre o dia de hoje.
Cheque
Ontem, cheque descontado;
Amanhã, só promissória;
Hoje é dinheiro contado...
- Gasta-o bem: rumas à glória.
Sentido
Muitos perdem a evidência
Do que é que nos persuade:
- O sentido da existência
É a maior felicidade.
Melhor
Grava-o bem no coração,
Que não colha mais engano:
- Todos os dias serão
O melhor dia do ano.
Gémeos
O amor e a alegria
Dois gémeos serão
Ou um doutro, um dia,
Nasceram então.
Trilho
Trilho da felicidade:
Nunca me preocupar
Com tudo o que ultrapassar
O meu poder da vontade.
Prazer
Dos males, mal superior,
Dos bens, superior também,
Sempre o prazer é o maior,
Para o mal e para o bem.
Presa
Horas de felicidade
Apanham-nos de surpresa:
Ninguém agarrá-las há-de,
Somos nós delas a presa.
Prenda
A felicidade raro
Há-de ser a recompensa,
Antes é, quando reparo,
Prenda donde ninguém pensa.
Alegria
Busca da felicidade
Não existe, é fantasia.
O que há sempre e nos persuade
É descobrir a alegria.
Sorrateira
A felicidade entrou
Sorrateira, pela certa,
Numa porta que calhou
Eu deixar, sem ver, aberta.
Perfume
Felicidade é um perfume
Que não logro noutrem pôr
Sem que dele algum chorume
Caia, enfim, em meu odor.
Alcançam
Os que alcançam a alegria
Têm de a compartilhar
E a felicidade o avia,
Dela sempre gémea a par.
Arco-íris
Nenhum bem que me ocorrer
Me há-de assentar como luva:
O arco-íris se eu quiser,
Terei de aguentar a chuva.
Acredita
Acredita muito fundo
Que vale a pena viver:
A convicção neste mundo
Logo o ajuda a acontecer.
Dinheiro
Dinheiro nunca impediu
Ninguém de ser infeliz,
Nem impediu, se o colheu,
De ser feliz o feliz.
Apenas
Que é que há de felicidade
Se apenas for possuir?
Tudo ser feliz invade,
De tudo então vai fruir.
Indispensável
Só na busca o sonho é viável:
Não ter algo que queremos
É uma parte indispensável
Do ser feliz que visemos.
Corre
Seja o que for que te tente,
Seja qual for o lugar,
Joga o coração à frente,
Corre logo a o apanhar.
Confiança
Da vida vigia o tom,
Não espantes o cantor.
Se dar confiança é bom,
Reservá-la é bem melhor.
Rir
Rir não serão fantasias
Mas talhar na vida arrimos.
O mais mal gasto dos dias
É aquele em que não nos rimos.
Orvalho
O prazer é frágil,
Tal gota de orvalho,
Morre ao se rir, ágil
Tombando do galho.
Secreta
Da felicidade
Secreta magia
É de quem se agrade
Noutrem da alegria.
Frustração
A frustração da esperança
Faz que o desejo pareça
Bem mais forte quando o alcança
Dele em mim memória impressa.
Prendas
Regra jamais desmentida,
Sempre se acompanharão
As prendas boas da vida,
Sempre, dum qualquer senão.
Asas
Fogo já de extintas brasas,
De asas as saudades trago-as.
O homem é um pardal sem asas
E um pardal, homem sem mágoas.
Belo
Mesmo se não para quem
O não amara, singelo,
Quando alguém amar alguém
Este alguém torna-se belo.
Ramo
Por ave que não voar
Em apreciável altura
Arranjou Deus, no lugar,
Ramo baixo que a segura.
Mudança
Para alcançar o que alcança
Teve esta regra de ter:
Quem quiser ver a mudança,
Tem a mudança de ser.
Sonho
O sonho que tudo entrança
Só deste jeito é fecundo:
Tenho de ser a mudança
Que desejo ver no mundo.
Igual
Ninguém resolve um problema
A usar pensamento igual
Ao que gerou por sistema
O problema que assinale.
Aconselhar
Para aconselhar um filho
É ver bem o que ele quer
E nisto atar o cadilho
Do conselho a lhe fazer.
Gentis
Termos gentis, breves, fáceis
Poderão ser de dizer,
Mas, mais que eco de almas gráceis,
É o infinito em quenquer.
Negócio
O negócio será um meio
Para se realizar sonhos.
A missão é um sonho cheio:
Mundos mil tornar risonhos.
Quotidiano
Vivemos o quotidiano
A corrermos sem chegar
A lado algum (e sem dano)
Que dê sentido ao lugar.
Quietude
Na quietude podemos
Ouvir o canto do amor.
É a nascente onde veremos
De toda a cura o pendor.
Sonho
O meu sonho é o vosso sonho
E os vossos são também meus.
Sonhando andamos, suponho,
O eterno sonho de Deus.
Ver-me-ão
Não é de me perguntarem
Afinal o que é que quero,
É o que querem questionarem,
Ver-me-ão com mais esmero.
Brotam
Haveis de ter inimigos
Que brotam com o sucesso.
É bom sinal. Mas abrigos
Tendes no vosso recesso?
Tempestade
Na vida como no mar,
Quando advém a tempestade,
É de rápido aportar
Ao cais que ela não invade.
Acender
Se manténs uma parcela
De bom senso no serão,
Melhor é acender a vela
Que inculpar a escuridão.
Plano
O que te vem a seguir
Sempre há-de ter desengano:
Se queres ver Deus a rir,
Elabora um qualquer plano.
Fogueira
Uma pequena fogueira
Mesmo com pés é apagada.
Mas, se cresce, um rio à beira
Dela pouco extingue ou nada.
Martelo
Não há caminho singelo
Para ao real termos apego:
Quando só tenho um martelo,
Tudo é similar a um prego.
Holocausto
Todo e qualquer holocausto
Principia numa brasa.
Tu só tens, antes de exausto,
De apagá-la ainda em casa.
Outra
Sempre uma parte de nós
Já quis ser outra pessoa.
Se um instante tal se impôs,
Que milagre a vida ecoa!
Ultrapassam
Muito mais rapidamente
Nos ultrapassam os filhos
Que, trôpegos andarilhos,
Nós logramos ir em frente.
Atraído
De embalagem nunca ido
Atrás que fora o contém,
Deves tratar de atraído
Ser do que outrem dentro tem.
Fonte
Quando nos preocupamos
Mais com que outrem sobreviva
Do que connosco, lidamos
Do amor com a fonte esquiva.
Atolada
A vida por vezes fica
Atolada em pormenores
E então já ninguém se aplica
A viver-lhe os esplendores.
Quero
Para ter o que mais quero
Tenho às vezes de fazer
O que, para ser sincero,
Menos quero ante quenquer.
Doença
O que aprendo na doença
É que nunca adivinhar
Posso o termo, por sentença,
Derradeiro a me chegar.
Riso
É o riso, como na infância,
Desprendido, em tudo às loas,
A mais pequena distância
Que anda entre duas pessoas.
Sentado
Se quer chegar a algum lado,
O lugar onde acorrer
Nunca deve depender
De onde você está sentado.
Tempestade
Ocorre uma tempestade
E é pessoal como as mais:
Sua morada lhe invade,
Tem chave de seus quintais.
Real
Na vida real não há,
Pois no concreto repoisa,
Álgebra alguma acolá,
Nem outra similar coisa.
Memórias
Sou memórias desde a infância,
São o mundo que me exorta.
Mantêm da insignificância
O lobo fora da porta.
Aprender
Aprender é abrir-se à estrada
Sem nenhum portão que entrava.
Nunca mesmo aprendi nada
Enquanto apenas falava.
Recurso
Quando a força de vontade
Ficar perdida algum dia,
Sempre em troca possuir há-de
O recurso à teimosia.
Hábito
Entender a nova ideia
Requer, em particular,
Derrubar a antiga ameia:
- Um velho hábito quebrar.
Cabeça
A cabeça da mulher
É o poço escuro do mundo,
Não é de enxergar sequer
Bordas, quanto mais o fundo!
Empilhas
Empilhas um ror,
Um ror de sestércios?
- Onde vinga o amor
Não vingam comércios.
Livros
Livros velhos, livros velhos,
Poucos cá terão lugar,
Mas dão gratuitos conselhos,
De sábios mortos lugar.
Der
É de vigiar a lei,
Dê na figura que der:
- Quanto mais se der a um rei,
Mais a seguir vai querer.
Muralha
A quanto é que um homem orça
É o primeiro dos que entendem:
A muralha tem a força
Só dos homens que a defendem.
Fossam
Se todos fossam na terra
À procura de comida,
Que olhar por cima da serra
Olha além a estrela erguida?
Arma-te
Arma-te por dentro bem,
Que teus bens bem pouco rendem.
Uma muralha só tem
A força dos que a defendem.
Ler
Um homem que nunca ler
Vive apenas uma vida,
Mas mil, antes de morrer,
Vive o que as ler de seguida.
Corajoso
Se cada passo é teu gozo,
Na boca não tens mais credo.
Alguém só ser corajoso
Pode quando tiver medo.
Passado
O nosso fado histórico é um confim,
O passado há-de ser sempre passado:
Podemos aprender com ele, sim,
Alterá-lo, porém, não nos é dado.
Encurraladas
Os homens vivem as vidas
No presente encurraladas
Entre memórias delidas
E horas do porvir veladas.
Montanha
A tesoura nos apanha
Entre os dois dentes que enrista:
Conquistamos a montanha
E a montanha nos conquista.
Atalho
Por mais que tu busques,
Não existe atalho
Em que não te ofusques
Com dele o trabalho.
Turistas
Dos casais, turistas
Faz sempre o amor:
Mesmo as gastas vistas
Brilham de esplendor.
Mula
Não sonhes com quem não age
Do fundo de teu abalo.
Por mais que a mula viaje
Nunca mais chega a cavalo.
Fuga
Não, não vás tentar sair,
Não há fuga além do centro.
Fora não se irá fugir,
Toda a fuga é para dentro.
Competir
Competir, só competindo
Contra mim, só eu comigo:
É o desafio benvindo,
O mais justo que consigo.
Portas
Se as portas do Paraíso
Se abrirem de par em par,
És tão vazio de siso
Que só vês correntes de ar?
Derradeiro
Se viveras cada dia
Como o derradeiro, então,
Um dia aconteceria
Que terás mesmo razão.
Quero
Sei lá bem o que é que quero!
Seja qual for seu desenho,
Não o atingirei, pondero,
Apenas porque o já tenho.
Saber
Num planeta de chacais,
Verse a verdade o que verse,
Sobretudo, antes de mais,
Saber é já defender-se.
Pobreza
Sob a canga que a despreza,
À ciência e à saúde
Asfixia-as a pobreza
E com elas a virtude.
Indignação
Respeitável sentimento
Da indignação é a presença,
Da esperança o perdimento
É que fatal é doença.
Sós
Se um homem e uma mulher
Estiverem sós um dia,
O diabo, podes crer,
Faz-lhes então companhia.
Tio
Na vida há muito juiz
Com matriz de corrupção:
Dizem feliz o feliz
Cujo tio é o capitão.
Serradura
O doutor em serradura
Nunca me irá dar apoio,
Que o que importa é o que depura
O carpinteiro do joio.
Intuição
Quando a intuição nós usamos,
Somos a noite estrelada:
Com mil olhos reparamos
No mundo, aberta a portada.
Desértica
Vida desértica vivo,
Apagado, enfim, o facho:
Ínfima à face que arquivo,
Porém imensa por baixo.
Medicinal
Pode ter medicinal
Propriedade ter cultura.
A família, por igual,
Dali pode aprender cura.
Lixo
Como evitar o circuito
Não há, que é sina de bicho:
Qualquer um que viva muito
Acumula muito lixo.
Herda
Entre os herdeiros quem herda
A vida leva um fanal:
Em tudo o que é vivo a perda
Gera sempre um ganho real.
Não
Bem e mal, boa e má-fé,
Não são joio frente ao trigo:
O mal o inimigo vê
Onde ao bem vê meu amigo.
Poderoso
Poderoso não é quem
Faz que um inocente morra
Mas o que vivos mantém
Culpados, mesmo em masmorra.
Censura
Não censures tanto a infância,
Antes da infância tem dó.
Censura é mãe de ignorância
E dela é o poder o avô.
Velhice
Velhice é mero passado
Transplantado no presente,
De presente ataviado
E onde, nado, este assente.
Criança
Por muito velho que sejas,
Não deixes de ser criança:
Quando esta em ti já não vejas,
É a morte então que te alcança.
Loucos
Aqueles que são tão loucos
Que mudar o mundo a esmo
Crêem, são os que, ao fim poucos,
Vão mudar o mundo mesmo.
Voz
Logra cada qual obter
Uma resposta que vença:
- De sua voz basta crer
Que faz mesmo a diferença.
Mover
Se tentar mover o mundo,
Primeiro passo há-de ser,
Para ser passo fecundo,
A si próprio se mover.
Ano Novo
Ano Novo jamais há
Se a copiar pelos quelhos
Continuar, por cá, por lá,
Os erros dos anos velhos.
Invisível
Invisível para os olhos,
O essencial não se vê, não,
Por trás de nossos antolhos,
Senão com o coração.
Sábio
Nunca diz tudo o que pensa
Do sábio o sábio cariz,
Seja qual for a sentença,
- Mas pensa tudo o que diz.
Esperança
A esperança é um alimento
Mais que de alma nossa o credo,
Tendo à mistura, cruento,
Sempre o veneno do medo.
Ventania
Ouço a ventania às vezes.
Tendo a ventania ouvido,
Só por nadas tão corteses
Vale a pena ter nascido.
Favorável
Para aqueles que não sabem
A que cais ir desejável,
Mesmo quando a rota acabem,
Nenhum vento é favorável.
Caminhada
Por longa que a caminhada
Seja em nosso tempo escasso,
O que importa, na jornada,
É dar primeiro passo.
Árvore
Desejo, árvore com folhas,
Na esperança deita flor.
O prazer que dali colhas
É dos frutos o sabor.
Grande
Ser grande, o que mais comande,
Além de labor sem pausa
Rumo à estrela que demande,
É abraçar a grande causa.
Lembranças
Teus dias de ti requerem
Aquilo que nunca alcanças.
Faz os teus dias valerem
O que valem as lembranças.
Felicidade
Viver é sempre visar
Felicidade exequível,
O que, para principiar,
Visa sempre um impossível.
Ausência
Paralisamos de dor
Duma ausência, a vida, um fio,
Mas a saudade é melhor
Do que caminhar vazio.
Vida
A vida é alegre e raivosa,
Trepa da lama a uma estrela
E devém maravilhosa
A quem não tem medo dela.
Pessimista
Pode o pessimista, cales
Embora seus passos bambos,
Escolher entre dois males
Mas prefere escolher ambos.
Alegro
Ao ter péssima memória
Me alegro, às duas por três,
Com o mesmo com tal glória
Tal fora a primeira vez.
Riem-se
Riem-se todos de mim
Só por eu ser diferente.
Rio de todos, enfim,
Por iguais a toda a gente.
Sucesso
O lugar onde o sucesso
Antes do trabbalho vário
Há-de vir é só no impresso
Das folhas do dicionário.
Rosto
O rosto dum velho amigo
É um raio de sol nos dias
Em que fico sem abrigo
Por entre nuvens sombrias.
Feliz
Ser feliz sem um motivo
É, para qualquer idade,
A mais vera, enquanto vivo,
Forma de felicidade.
Corrigir
Não corrigir nossas faltas
É o mesmo, visando os cerros
Ao ponderar fazer altas,
Que cometer novos erros.
Silêncio
No final não lembraremos
Chufas de nosso inimigo
Mas silêncio (onde morremos)
De quem era nosso amigo.
Medida
Este é o estupor
Que encanta na vida:
Medida do amor
É amar sem medida.
Fama
Por estranho que pareça,
O custo a pagar da fama
É que o que o topo atravessa
Só de solidão o acama.
Mortais
Somos mortais. Excepções
Furando a fatalidade,
Os netos são foguetões
Nossos rumo à eternidade.
Resoluções
Que tenham tão curta vida
Teus problemas e lesões
Como curta é a medida
Das tuas resoluções.
Hábitos
Embora tenhas transportes
Muito fortes de intenções,
Os hábitos são mais fortes
Que as boas resoluções.
Cheque
Resoluções boas são
Mero cheque feito à tonta
Sobre um banco onde se não
Terá nunca, por fim, conta.
Direita
Que a mão direita se estenda
Sempre, sempre em amizade.
E jamais, jamais tal tenda
A ser por necessidade.
Presentes
É a gentileza, o amor
O que inspira a dar presentes.
A meu gosto ou dele ausentes,
Importa é disto o valor.
Invejoso
Um coração invejoso
Torna o ouvido traiçoeiro:
Ouve só o que lhe dá o gozo
De afogar-nos no atoleiro.
Lama
Muitos poderão olhar
Da poça de lama os frios
E ali ver inteiro o mar
A marulhar de navios.
Difícil
Desiste de lograr dias pacatos
Ao desistir de passos teus se ouvirem.
Difícil é seguir nossos sapatos
Em lugar de os sapatos nos seguirem.
Mentira
Não interessa o tamanho
Da mentira que se conta,
Há sempre alguém cujo amanho
Acredita nela à tonta.
Apoio
Se estiver forte e feliz
Vou ser um melhor apoio
Para o cônjuge que eu quis
E os filhos em nosso arroio.
Medo
Terei algum medo à morte,
Mas do que não terei medo
É de clamar, com transporte,
A ideia, - a Luz a que acedo!
Vive
Não há caminho que esquive
A rota perdida a esmo:
- Quem para os outros não vive
Não vive para si mesmo.
Questão
Porque é que nunca pondero
A questão que ninguém quer:
- Que é que ser deveras quero,
Além de ter e fazer?
Ocupado
Isto de andar ocupado
É a desculpa dos instantes
De andarmos por todo o lado
Sem os lados importantes.
Boas
É tão simples coisas boas
Ter sempre do dia ao fim!
- Se eu tratar bem as pessoas,
Tratam-me elas bem a mim.
Problemas
Os problemas se resolvem,
Os nossos como os do mundo.
Chorar? Não! Que sempre envolvem
Saída tentada a fundo.
Oportunidade
As coisas como elas são
Nunca as irei aceitar
Se oportunidade dão
De as podermos melhorar.
Família
Uma família que fala
De fazer coisas a esmo?
Quero a família que escala
A vida a fazê-las mesmo.
Escolhe
Se não sabes onde vais,
Qualquer via vai lá ter...
Repara bem nos sinais,
Escolhe o que é de escolher.
Maior
Se ao mundo tratas da pena,
Ficas pobre ao tal te impor,
Fica a casa mais pequena,
- Mas o teu mundo é maior.
Mistério
Anda sempre um mistério atrás do tecto
De luz que o mundo inteiro nos encapa:
Mesmo quando fazemos o correcto,
O sucesso por vezes nos escapa.
Muitos
Muitos, ao fazer-se ouvir,
Tornam viáveis e vivas,
Mui brevemente, a seguir,
Mudas significativas.
Avança
O sonho nunca se alcança,
Há mil trancos e barrancos,
Mas a humanidade avança,
Lenta embora e aos solavancos.
Rédea
É preciso acreditar
Que eras mais bem sucedido
Se foras na mão tomar
A rédea ao rumo e sentido.
Ajuda
Uma verdadeira muda,
Ao ajudar, muda a pose
Ao ajudado e ao que ajuda.
- A ajuda é metamorfose.
Doutras
O dinheiro e o poder
Andam sempre de mãos dadas.
Apenas o amor pode ser
O trilho doutras estradas.
Mudança
Como agentes de mudança
Será difícil nos vermos
Se não temos liderança
E são doutrem sempre os termos.
Instrução
É importância da instrução
Gerar oportunidades.
Não ignores, pois, então:
Consegues. Mas te persuades?
Ajudar
Ajudar não se traduz
No labor de quem o tente,
Tem de aprender o lapuz
A ser auto-suficiente.
Transformação
A transformação opera,
Não com passo largo a pé
Nem corridas de galera,
- Com gatinhar de bebé.
União
Que família, se quer lava
A ferver no coração,
Que família não trocava
Bens, recursos por união?
Falhanço
Falhanço é oportunidade
De recomeçar à frente
Ainda com mais vontade,
Mais inteligentemente.
Tamanho
O tamanho dos problemas
Jamais é o tamanho deles:
Nós lho emprestamos aos temas
Vestindo-os de nossas peles.
Alhear
Não é de Deus objectivo
O homem do mundo alhear,
Mas, a partir do Deus vivo,
A vida ao mundo levar.
Retribui
Retribui o mal com bem:
Ganhas o bem prestimoso
De o inimigo de além
Devir amigo e com gozo.
Padrão
Jamais o padrão de vida
Poderá substituído
Haver nalguma medida
O que é da vida o sentido.
Positivas
Quem faz coisas positivas
Nos mais difíceis momentos
É que tem entranhas vivas,
Tem bons ossos contra os ventos.
Saborear
Viver a vida a correr
Padece de falta de ar:
Não se trata de viver
Mas também de saborear.
Escrevermos
Escrevermos sobre o amor
Jamais é viável, pois
É mais, seja como for,
Ele a escrever-nos a nós.
Sofrimento
Sofrimento repetido
Transmuda o porvir a haver
Num lugar muito sumido,
Acanhado de viver.
Viver
O tempo é sempre um viver
Passageiro. Porém, terno,
Basta um namoro que houver
E o tempo devém eterno.
Prioridades
Dá por si, a maioria,
Depois dos anos de excesso,
Com toda uma hierarquia
De prioridades do avesso.
Compreendida
A vida nunca precisa
De gestão sofisticada.
Ser compreendida é o que visa
E após vai a sós na estrada.
Descuidos
Descuidos acumulados
Geram após desamparos.
Desamparos são cuidados,
Em depressões nunca avaros.
Poupamos
Quando poupamos nos gestos
De ternura e de carinho,
É o divórcio, nos aprestos,
Devagar, devagarinho.
Arrastado
Quase, mas quase ninguém
Gere, afinal, sua vida:
Flutuando ondas além,
É arrastado, eis a medida.
Entalado
Entalado em compromissos,
Vivo tal fora morrendo
Da vida para os chamiços
Todo o dia em que me vendo.
Tarde
Sem namorar com a vida,
Cedo e para nunca mais
Se me tornou, de seguida,
A vida tarde demais.
Decepciona
Quando alguém nos decepciona,
Morre um bocadinho em nós.
Um bocado morto à tona,
Morro para a vida após.
Casos
Casos de fim de semana,
Nem só mel, nem só medronhos,
Rasgam da falha a pragana,
Não quem interpele os sonhos.
Desencontrados
Desencontrados do amor,
Uns com outros coabitam,
Não convivem com fulgor,
São sem-abrigo e os imitam.
Animais
Os homens são animais,
Porém, que pensam também,
Embora uns tantos que tais
O disfarcem muito bem!
Perdi
Se perdi muita pessoa,
Muitas oportunidades
De as nunca perder à toa
É o que me perde em meu Hades.
Enxerga
Que é que importa um esconjuro,
Em que bem se te traduz?
Por se esconjurar o escuro
Não é que se enxerga a luz.
Humilde
Por orgulho sou amável
E por esperança, amante,
Mas só o amor, confiável,
Humilde me torna adiante.
Devegarinho
Se deixam de namorar,
Todos vão devagarinho
Então se divorciar.
Que é que resta do caminho?
Nunca
Nós nunca estamos casados,
Vistos por dentro, à medida:
Jamais há muros fechados
Nem tarefa concluída.
Casando
Vamos casando: casar
Será sempre união de facto
Vista por dentro, um lugar
Construído pacto a pacto.
Meta
Troco por bem nele o mal,
Trepo cumes, mão na mão:
O casamento é real
Como meta em construção.
Dói
Numa dor o que mais dói
É o que põe a descoberto:
O desamparo que mói
Mais que a dor dum corpo aberto.
Mais
Não há como namorar
Sem nos casar mais e mais,
Nem como casado estar
Sem se namorar jamais.
Estrelas
- Mamã, pai, o Sol fechou-se!
Vamos abrir as janelas
A ver já se a Lua alçou-se
No céu a fazer estrelas.
Adormecendo-me
Adormecendo-me, fingem
Que o mal não é mal, no centro.
A maldade que me impingem
Empanturra-me por dentro.
Sapo
É quando do avesso vou
Que de vazio encho o papo.
Se me afasto do que sou
Por dentro torno-me sapo.
Resgata
Quando me resguarda e trata
E transmuda dia a dia,
Apenas o amor resgata
Do mal com mãos de magia.
Preso
A melhor forma de ficar
Preso à pessoa de meus sonhos
É fugir dela sem parar:
- Então me atou com nós medonhos.
Entra-nos
Um grande amor, se se revela,
Entra-nos casa dentro então,
Nunca, porém, bate à janela,
Nem bate à porta da intrusão.
Hostilizando
Não se aprende nunca a amar
Hostilizando a confiança
No amor de acolher e dar
No infindo rumo que entrança.
Acredita
A maioria acredita
Porventura, acaso, em Deus.
Mas onde a fé que concita
Os outros, a vida, os seus?
Substitui
Num mundo que substitui
A fé por qualquer ciência
Falar no imo até o dilui,
Mata o apreço da evidência.
Brincadeira
Brincadeira de crianças
É da sorte a protecção
Quando a protecção que alcanças,
Afinal, é a da paixão.
Apaixonamos
Quando nos apaixonamos
Não é para sempre nunca:
No mínimo, serão ramos
Que só eternidade junca.
Sai
Depois de entrar-nos na vida
Nunca mais ninguém sai dela,
Nem despejado em seguida:
- Despejado é quem mais vela.
Praça
Nosso coração é praça,
Tem lá dentro a multidão,
Gare de gente que traça
Um natal meu sempre à mão.
Atulhado
Arrumados lado a lado,
Entre nós há mil e um tramos:
De coração atulhado
É que todos nós amamos.
Desamparo
Não queiras desamparar
Quem de te amar dá sinais.
Pela mão de quem se amar
Desamparo dói demais.
Presta
Sempre a vida desembesta
Por trilhas que não são lisas.
Guarda, pois, o que não presta,
Saberás do que precisas.
Bruma
Resignado ou contrafeito,
Um amor de mãe em prol
Dum amor, não o é de jeito,
É bruma em busca de sol.
Crescer
Pode ser ou não cadilho
Vida fora a nos prender,
Não há nada mais que um filho
Que nos ajude a crescer.
Movera
O mundo não se movera
Para a esperança que tem,
Sem término, de era em era,
Se não fora o amor de mãe.
Interpelados
Quão mais bem interpelados,
Mais deviremos amáveis,
Para o amor educáveis
Nos tornando em quaisquer fados.
Casa
Jamais a paixão se casa
De modo algum com preguiça.
O encantamento que abrasa,
Desapontado, se enguiça.
Bonitos
Na verdade nunca somos
Bonitos, mas nos tornamos
Bonitos quando nos pomos
Rumando aos fitos que amamos.
Próximo
O amorr ao próximo é lindo,
Não por amar quem é perto,
Porque por ele vou indo
Mais perto, no amor, do acerto.
Primeiro
Primeiro amor é saudade...
Amor do próximo ensina
Que o melhor de minha idade
É o que o futuro combina.
Conflito
A nossa mente acarinha
O conflito: ele começa
A rasgar, onde amarinha,
Ruas novas na cabeça.
Inovar
Precisamos de momentos
De inovar o amor da vida:
Sem eles os poeirentos
Dias crescem sem medida.
Abraça-me
Amor para ser amor
É “abraça-me sem porquê”,
Senão nem de amor tem cor,
Nem sequer à falsa fé.
Triunfar
Triunfar sobre a memória
É desistir de aprender
Dos erros com toda a escória,
Um a um a os esquecer.
Retorno
No retorno a tanto lado
No passado onde me apuro,
O amor é sempre um passado,
Mas passado com futuro.
Roubam
São muitos pequenos nadas
Que, de mansinho ao se impor,
Nos roubam, pelas estradas
Desta vida, a fé no amor.
Dentro
Há quantos que vão deixando
De ser bonitos por fora,
Gesto a gesto se tornando
Mais por dentro, de hora a hora!
Divorciam-se
Divorciam-se por dentro
Em suaves prestações
E o outro já não é o centro
Do lar entre as divisões.
Separam
Se as vidas se abalroaram
Da correnteza ao sabor,
As pessoas se separam
Só porque crêem no amor.
Solidão
É solidão assistida
Aquela de acompanhante
Sem companheiro vivida...
E há quem lhe chame de amante!
Escolhe
Duas famílias de aumento
Numa união com requinte,
Sempre qualquer casamento
Escolhe um e leva vinte.
Complexo
O amor é muito complexo
E bem mais simples, contudo,
Quando é vivido no amplexo,
Do que imagina o sortudo.
Desejo
O desejo é natural,
Tão natural como a sede.
Nunca nos deixa, afinal,
Mentir em nenhuma sede.
Olhando
Quando me sentir a amar
Alguém deveras bonito,
Olhando mais, ao olhar,
Amo melhor quem eu fito.
Preço
O prazer tem um tropeço:
Busca algures comunhão.
O prazer a qualquer preço
Apenas é solidão.
Namoro
Ao namoro o que convém
É medir nesta medida:
Ninguém namora ninguém
Se antes não namora a vida.
Pecado
Só errando se chega ao céu
Na procura de caminhos.
Se isto for pecado meu,
Benditos meus descaminhos!
Singular
Quando se toca na pele
Num qualquer jeito de amar,
Toca-se por dentro aquele
Que o amor fez singular.
Rima
Isto de morrer de amor
É mal com que acaso lida,
Que o amor rima melhor,
Rima melhor com a vida.
Morremos
Nós morremos para a vida
Sempre que o amor nos faz
Para ela, de seguida,
Morrer quando bem lhe apraz.
Morre
Sempre que nos morre alguém
Mui precioso, o cadinho
É que morremos também
Nós com ele um bocadinho.
Prioritário
Morto alguém que é precioso,
O que era prioritário
Desconcerta de enganoso,
É supérfluo no inventário.
Desertificado
Amor desertificado
De quanto lhe andar à beira
Não é amor, tudo pesado,
É bem mais uma trincheira.
Remorso
Muitas vezes o remorso
Pode ser bem corrosivo,
De irreparável escorço
A matar tudo o que é vivo.
Verdade
A verdade é opacidade
Na fronteira do esquecido.
Toda a verdade, em verdade,
É sempre um mal-entendido.
Horas
Horas há de comunhão
Em que, posto à transparência,
Me transformo e tenho à mão,
Mais eu que eu na minha essência.
Estado
O estado de comunhão,
Quando gera encantamento,
É simples amor então,
Mesmo em paixão de momento.
Esperança
A esperança é uma vivência
Dum amor que, se aqui mora,
Não tem aqui prevalência,
Projectado tempo fora.
Humildade
Escutar é tolerância
E a humildade todo o dia
É o que é semente da infância
De toda a sabedoria.
Linda
Ficamos de cara linda
Quando escutamos também,
Acabaremos ainda
O melhor mundo de alguém.
Ignora
Quem me ignora bem se engana,
Embora de intenções puras.
Quando me abre a persiana,
Fico então mesmo às escuras.
Escapando
Buscam na escola o teor
Dum amor que anda escapando,
Como se o amor, o amor,
Não o aprendessem amando.
Primeiro
Esperamos receber
Primeiro, só depois dar?
Sem ser amante pioneiro
Não há nunca como amar.
Conluio
Família mais em conluio
Com sofrimento que festa
E assim deprimido fui-o
Desde o calcanhar à testa.
Eu
O eu sobre todas as coisas
Não é viável ao fado,
Não por ver que em ti repoisas,
Mas por te ver mal amado.
Digo
Se não digo em forma clara,
O gesto se desencontra
Do intuito de quem declara:
Fechei aos mais minha montra.
Segunda
O amor, porque todos temos
Dentro em nós a multidão,
É amor, quando bem o vemos,
Amor em segunda mão.
Ponta
É a família mais o irmão,
Mais amigos mil na conta...
Para o nosso coração
É sempre a hora de ponta.
Acolhi
Quantos acolhi um dia
Em mim, sábio me irão pôr.
Fora da sabedoria
Jamais amar era amor.
Derradeira
Nunca a vida tanto importa
Como quando um homem crê
Que hoje é a derradeira porta
Da vida que no fim vê.
Votar
Votar é o mais importante,
Na democracia, em suma.
Mas é (quem nos cumpre adiante?...)
Sem importância nenhuma.
Eterno
Lonjuras não há
Para quem amar
E o tempo acolá
É eterno a pulsar.
Atado
Tudo levo atado à perna
Desde a mais pequena infância:
A cidade fica eterna
Ao perder-se na distância.
Aperfeiçoa
Mesmo se o riso não sobra
Quando o suor bate o malho,
Sempre é o prazer no trabalho
O que aperfeiçoa a obra.
Opera
Opera como convém,
Quanto aos mais, sacode o pó.
Grande séquito os maus têm,
Vive o sábio, porém, só.
Sentidos
Os sentidos, se medidos,
Livram-nos da confusão?
Creio pouco nos sentidos
Se me escapa o coração.
Inimigo
O inimigo inteligente
Põe de lado a diferença
Quando outro inimigo, em frente,
Maior, lhe impõe a presença.
Porte
Que teu porte e tua fala,
Teus actos, projectos teus
Digam a quem isto abala:
“Este em tudo anda a ler Deus!”
Reflicta
Seja lá por onde for
Que vida fora te vás,
Que teu traçado exterior
Do íntimo reflicta a paz.
Carácter
Não te desculpes dizendo:
“São de meu carácter falhas...”
Falta de carácter lendo
Ando eu sempre em tuas gralhas.
Engano
Vira costas ao engano
De quem dengoso convida,
Simulando evitar dano:
“Porquê complicar a vida?”
Águia
Não trilhes a curta esteira
Quando o mundo e o céu te quer.
Ave, tu, da capoeira
Quando águia poderás ser?!
Sereno
Sereno, que, se te zangas,
Incomodas tudo assim,
Ficas curto em tuas mangas,
...E vais-te acalmar, no fim!
Tom
Aquilo que tu disseste
Noutro tom dito, o declínio
Do argumento tolhes neste,
Força dás ao raciocínio.
Afectuoso
Um qualquer termo afectuoso
Consegue mais na disputa
Do que consegue o teimoso
Com várias horas de luta.
Preciso
É preciso ter vontade
E a força que a satisfaz.
E o que é preciso, em verdade,
Fazer, sem hesitar, faz!
Inúteis
Os inúteis pensamentos
Afasta, que é bom de ver
Que, te não trazendo aumentos,
Fazem teu tempo perder.
Cães
Se teu rumo certo tens,
Segue, embora vás sozinho.
Não percas tempo com cães
Que te ladrem no caminho.
Informe
No informe da multidão
Não caias, feito burguês.
O tíbio não tem torrão
Para o lume dentro que és.
Frivolidade
A frivolidade os planos
Põe tão cheios de vazio
Que és um boneco de danos
Nos trapos de teu fastio.
Cobarde
És mundano, irreflectido,
Porque és um cobarde a esmo:
Não te enfrentas, travestido,
Não te enfrentas a ti mesmo.
Gestos
Que não podes fazer mais
Dirão teus gestos pequenos.
Não dirão gestos que tais
Que não podes fazer menos?
Discussão
Da discussão não costuma
Provir a luz pregoada.
A paixão cobre-a de bruma,
Finda a luz logo apagada.
Medo
Medo nenhum da verdade
Tenhas nem de seu transporte
Com que os píncaros invade,
Nem que ela te traga a morte.
Poucos
Poucos homens haverá,
Tanto agora como dantes.
Que é que mais vemos por cá?
- Estômagos ambulantes.
Fácil
É bom que te não detenhas
Pelo que apenas é fácil.
Resta ver é se te empenhas
Fielmente alegre e grácil.
Optimismo
Alegre fé e optimismo,
Mas nunca na opacidade
Da estupidez deste abismo
De quem nega a realidade.
Igualdade
É muito estranha a igualdade.
Quando encaro bem na liça,
Diversa a oportunidade,
Finda sempre na injustiça.
Jeira
O desejo de saber
Dos outros a vida inteira
Troca-o por compreender
De ti próprio cada jeira.
Julgar
Por que razão ao julgar
Outrem lhe medes os passos
Com o amargor que purgar
Do meio dos teus fracassos?
Ingénuo
Sê menos ingénuo, homem,
E não ponhas na berlinda
Teus irmãos que se consomem
Perante estranhos ainda.
Chama
Ouve aquele que souber
O que Deus quer e obedece
Se o teu coração colher
Nele a chama que o aquece.
Ordem
Quando a vida te convida
Às mil vidas que nos mordem,
Se não tens plano de vida,
Nunca em vida terás ordem.
Sementes
Não há sementes que acordem
No caos que nada grude.
Uma virtude sem ordem?
Mas que estranha esta virtude!
Horário
Com ordem se multiplica
O tempo de teu horário.
Logo ali se centuplica
Das obras o teu rosário.
Querias
Querias orar e então dizes:
“Ai, meu Deus, eu não sei como...”
E a orar já, desde as matrizes,
Estás: é o primeiro assomo.
Entorpecida
Tens a mente entorpecida,
Inactiva na função?
Não te esforces, não há esquiva:
- É hora do coração.
Feriu
A intuição que te feriu
Em plena meditação
É uma porta que se abriu
Grava-a bem no coração.
Euxuga
Se intimidade não buscas
Contigo, Deus ou os santos,
Como é que um dia te ofuscas
Com a luz que enxuga os prantos?
União
O valor da tua vida
Vale o que vale a união
Com o Infindo que a convida,
Eterno e tempo em fusão.
Prólogo
Oração que oração é
Não é senão mero prólogo:
Põe-me o Infinito ao pé
Não é, pois, nunca um monólogo.
Leitura
Na leitura o meu depósito
Encho ali de combustível,
Com ele inflamo o propósito
De trepar da serra ao nível.
QUINTA RÉSTIA
O LABOR DO SEXTO DIA
Paixão
Hoje nasce um novo sol,
Tudo é vivo e animado:
De minha paixão no rol
Fala tudo em todo o lado...
Tudo convida e faz gala
De eu estar a acalentá-la.
Cura
De males, de injustiças toda a cura,
De crimes e desgostos e cuidados
Da humanidade na valeira impura,
- Provém do amor apenas em seus fados.
É a divina energia transfundida
Em toda a parte a renovar a vida.
Alegria
O desgosto, bem medido,
Dele próprio toma conta.
Mas, para tirar partido
Da alegria que desponta,
Só se conseguir, a par,
Alguém com que a partilhar.
Glória
Nossa maior glória
Não é não cair,
Antes é a vitória
Lograr a seguir:
- É me levantar
Se cair calhar.
Transborde
Quem perpetuamente
Transborde bondade,
Compreensão integre,
Permanentemente,
Em qualquer idade,
Será mesmo alegre.
Crescidas
Nunca as pessoas crescidas
Entendem nada sozinhas
E as crianças exauridas
Ficam, suando as estopinhas,
De tanto tentando andarem
Sempre a lhes tudo explicarem.
Inimigo
O inimigo quer-se perto,
Debaixo de olho mantido.
Pior inimigo, decerto,
Sempre é o que é desconhecido,
Cujo acto ninguém prevê,
Pois ninguém sabe quem é.
Constrói
Um pequeno agricultor
Na pequena propriedade
Constrói um país melhor,
De melhor modalidade,
Do que um cortesão qualquer
Lutando pelo poder.
Fardos
A capacidade humana
Para fardos carregar
É tal qual de bambu cana:
Muito mais do que pensar
Alguma vez poderia
É flexível todo o dia.
Miúdos
Os miúdos pensam, leves,
Com a mente inteira aberta.
São os adultos que, breves,
Cosem a costura à certa
Para os fechar lentamente
A par da idade que aumente.
Mudança
Nem sempre para pior,
Afinal, é uma mudança:
A concha cresce em redor
Dum grão de areia. O que alcança
Para uns é irritação
- E outros pérolas verão!
Deficiência
Quando Deus deficiência
Nos dá, logo se assegura
De que haja, por excelência,
Doses extras de finura
De humor, em todas as frestas,
Para limar as arestas.
Medo
Envolve o medo com teus braços,
Luta com ele, a submetê-lo,
Reorienta-o aos escassos
Pontos mais fortes do castelo,
Sujeito à tua decisão,
Abraça-o preso no teu chão.
Fé
A fé bem melhor que a crença
Assenta em meu fundamento.
Crer será mal de quem pensa:
- Só divide o pensamento,
De raiz, sujeito-objecto.
- Ora, não sou chão mais tecto.
Temer
Não é tanto de temer
O que à frente te maldiz
Quanto alguém a quem sorris
Quando à frente te estiver
E que afia o que não gostas
Mal tu lhe vires as costas.
Tempestade
A fúria da tempestade
Menos temível sentença
É que dela a faculdade
De cegueira e indiferença:
Na natureza ou no homem
Estas bem mais nos consomem.
Músculo
Se um músculo não é usado
Ele finda definhando.
A intuição tem igual fado:
Se não for se alimentando,
Sem actividade em dia
Ela ao final se atrofia.
Fáceis
Fáceis de compreender
São-nos todas as verdades,
Mal descobertas. De ver
É a questão que entrança idades
De, por entre as malhas ralas,
Descobrir como encontrá-las.
Encaramos
Encaramos o futuro
Todos nós, tendencialmente,
Na segurança que apuro
Como o cómodo presente:
- Os bons tempos que se augurem
Espero que eternos durem.
Dádiva
Darás, não por ser culpado
De ter dinheiro, ser rico,
Mas por ser feliz o lado
Da dádiva a que me aplico:
É ter por prioridade
Senso de comunidade.
Mudança
Mudança de sentimentos
Como de mentalidades
São do porvir outros ventos.
Traz bem mais dificuldades
(Pois dentro é cavar um fosso)
Que escavar lá fora um poço.
Biliões
Sete biliões de pessoas
Andam a correr no mundo:
Que importam as coisas boas
Que eu possa fazer, no fundo?...
Esta é a verdade gratuita:
- Qualquer diferença é muita.
Mais
Qualquer vida é muito mais
Que coisas acumular:
Felizes como jamais
Somos ao decidir dar,
Dar tudo o que a vida avoca,
- Pois bem mais nos volta em troca.
Girar
Pode não fazer girar
O amor a roda do mundo
Mas pode sempre, jucundo,
No perene ir e voltar,
Fazer que, grande ou pequena,
A viagem valha a pena.
Deprimida
Com a vida é deprimida
A mantida relação
Quando o melhor, de seguida,
Já não é o futuro, não:
- Em vez dele, o que lá pomos
É a saudade do que fomos.
Sombra
Quando um sonho em nós morrer,
É uma sombra que ele espalha.
Se um infeliz me tolher,
É meu sonho que atrapalha:
Onde o infeliz toca e mexe
É uma sombra o que lá cresce.
Liberdade
À liberdade não chego
Ao suspirar por fugir,
Mas ao fugir do aconchego
Dum sonho para então ir,
Não por dentro, sonho além,
Mas para dentro de alguém.
Família
A nossa família são
Todos aqueles que vivem
Dentro em nosso coração,
Por mais que muitos se arquivem,
Estranhos a nós colados
Quando os crêramos amados.
Iniciáticas
Iniciáticas vivências
Do amor se multiplicando
Umas noutras são valências
Para amar habilitando.
Desde que, não indo à toa,
Seja uma
experiência boa.
Rostos
Vários rostos nos compõem
Nossa atenção amorosa
E que crescemos supõem.
São a imprescindível glosa,
Do alvor da vida ao sol-pôr,
Ao crescermos para o amor.
Primeiro
Um amor sempre é o primeiro,
Caminho do encantamento
Até o enamoramento,
De galanteios pioneiro,
De estranhas cumplicidades,
Veste em mim eternidades.
Mútuo
O mútuo consentimento
É das grandes ilusões
E das mais elogiosas.
Vem de longe este momento...
Todas as separações
São sempre litigiosas.
Pequeninos
Todos temos pequeninos
Episódios clandestinos
Que autênticos, espontâneos
Nos não deixam. Sucedâneos
De nós próprios mais um pouco,
Põem meu canto mais rouco.
Discutem
Os que discutem colocam
Um ao outro mil problemas.
Não discutem? O que evocam
É que já nem têm temas,
Estão talvez a morrer
Para o amor sem o ver.
Família
A nossa família são
Todos os que têm lugar
Dentro em nosso coração,
Mesmo quem se divorciar:
Um mero divórcio nunca
Tira do íntimo o que o junca.
Espera
Por entre um amor perdido
E um que quero conquistar,
O amor aos bocados tido
Devolve-me, se calhar,
O direito à espera chã
De ter um novo amanhã.
Patetas
Quando nos apaixonamos
Ficamos tão mais patetas
Quanto mais inteligentes.
Pouco importa que entendamos.
É das coisas mais secretas
A melhor que um dia sentes.
Controlo
Sou melhor se nada bole,
Controlo o desejo a pulso?
Educar para o controle
É só estimular o impulso.
Ninguém nunca tem o ensejo
De controlar o desejo.
Vista
O desejo é sempre amor,
Amor à primeira vista
E paixão que paixão for
A vista segunda alista.
À terceira, eis o momento
De atingir o encantamento.
Entra
Se alguém entra numa vida,
Nunca mais sairá dela,
Mas o acerto, de seguida,
À primeira, é uma esparrela.
Há que aprender com o erro
O trilho ao próximo cerro.
Leva
O erotismo é que nos leva
De outrem ao encontro a ir
E a ternura abre na treva
Do imo dele algo a luzir.
Porém, só o amor faria
Nascer o sol cada dia.
Saiba
A amorosa relação
É que permite esperar
Que quem nos amar, então
Saberá mais, se calhar,
Acerca do que seremos
Do que nós próprios sabemos.
Vivências
Vivências de comunhão,
Se hoje não nos alimentem,
Delapidam-nos então,
No desamparo que sentem,
As que foram já vividas
Ao longo de nossas vidas.
Impasse
A uma relação de impasse
Vandaliza-a a indiferença,
É quase casa de passe,
Mala à porta, da sentença.
É um amor que é competente
Sem ninguém que o alimente.
Confim
Seja o que for que se verse
Ao tentar qualquer confim,
O segredo eis singular:
Não há como não perder-se
Em alguém para, no fim,
A si próprio se encontrar.
Alguém
O que nós desafiamos
Todo o dia, com fervor,
Buscando alguém no caminho!
Por mais que nunca estejamos
Preparados para o amor,
Ninguém é feliz sozinho.
Matavam
Matavam outrora o rei,
Matavam nele o país.
Se é democracia a lei,
Têm de matar a raiz,
Têm de matar no ovo:
- Vêm então matar o povo.
Perpetua-se
Perpetua-se a memória
Pelas obras que nos vão
Daqui à posteridade
Peneirando ao trilho a escória
Nas leivas do coração
Que pela terra além grade.
Mola
Pouco importa, de momento,
Restringir a actividade,
Se a mola, no comprimento
Comprimida, após se evade
E além salta, alegre, ao grito
De quem visa o Infinito.
Negar
A vontade, ao te negar
O teu ego sempre inútil,
Fortalece-te, em lugar,
Dono de ti, sem o fútil,
Senhor de ti por inteiro
E após do mundo pioneiro.
Sê
Sê rijo, forte, viril,
Sê homem! E sê mulher
Resistente, feminil!
E depois de tudo ser,
Muito além do que eu abranjo,
Sê deveras então anjo!
Cantiga
Tens o encanto da cantiga
Mas com toda a verborreia
Nunca lograrás que eu diga
Justo o que com justo briga
E termina em maldição:
- Não tem justificação!
Patetice
Que modo tão transcendente
A patetice vazia
De a vida trepar, demente,
Subindo pela magia
De pouco pesar ou nada
No amor, de mente esvaziada!
Saltas
De canto saltas em canto,
Nunca te fixas de vez,
A primeira pedra o encanto
Tem de espicaçar-te os pés.
Ao menos assenta os tectos
Nalgum já de teus projectos!
Desculpa-te
Desculpa-te sempre, amável,
Como o bom trato requer.
Segue em frente, infatigável,
Cumpre em termos teu dever,
Não trepes só meia encosta
Em que teu dever aposta.
Contemporizar
Contemporizar é o termo
De quem nunca quer lutar,
O comodista, o estafermo,
Manhoso e cobarde a par:
Sabem todos, mal fingidos,
Que são de antemão vencidos.
Templo
És sempre o templo de Deus:
Teu espírito pequeno
Se entrosa então ao dos Céus,
E, se O ouve, é Infindo, pleno.
Resta seguir docilmente
A inspiração que se sente.
Espírito
O Espírito não estorves,
Funde-te nele e te apura.
Sente quanta paixão sorves,
Quanta dor, quanta tortura...
Bem como o refúgio alegre
Do Infindo que assim te integre.
Leigo
Quando um leigo analfabeto,
Ignorante e presunçoso
Se arvora em mestre indiscreto,
Erra, preconceituoso,
Como erra o mestre que, a par,
Se orgulha em ser luminar.
Manto
Com manto de caridade
Cobre da cabeça ao chão
A miséria quando invade
Vizinho, pai ou irmão...
É sempre no fundo deles
Que o lume tens a que apeles.
Plano
Sujeitar-te a um plano certo,
A um horário de trabalho,
Que monótono deserto,
De árvore que seco galho!
Contudo, é monotonia
Só porque amor faltaria.
Latas
Este chocalhar de latas
Sem lugar a reflexão
Não é fala, que a maltratas,
Muito menos oração.
A Deus e aos homens os lábios
Que assim mexem não são sábios.
Inteiro
Orar é falar com Deus,
Conhecê-Lo e conhecer-te,
Abrir-te inteiro ao pés seus,
Acolher o que em ti verte.
É o jogo da intimidade
Jogado na eternidade.
Miserável
Às vezes, tão miserável
Me sinto, indigno de Deus...
Deus, porém, é mesmo estável
E do tamanho dos céus.
Que importa como eu me sinto?
Ele não liga ao que eu pinto...
Pequeno
Deus, grande, feito pequeno
Em qualquer seu porta-voz,
Requer que me achegue em pleno,
Que eu e tu sejamos nós.
E que os nós desta aliança
Se nutram de confiança.
Funda
Sem o gesto que comunga
Com a intimidade funda
Que projecta infindo além
Não há mais grandiosidade
De herói nem de santidade,
Preso estou daqui refém.
Procura
Tudo quanto procuramos
Também a nós nos procura.
Se bem quietos nós ficamos,
Encontra-nos, se afigura:
Anda à espera, é bem capaz,
Desde há muito tempo atrás...
Batalhar
É preciso batalhar
De novo por liberdade
Cada vinte anos, a par.
A impressão que nos invade
É que, a ter dela os produtos,
É a cada cinco minutos.
Provar-lhe
A provar-lhe infindo amor
Ele trepa ao Evereste,
Corre mundo de este a oeste,
Corre aos polos com fervor...
Ela foge, extinta a brasa:
- Ele nunca pára em casa...
Engane
Há quem se engane de céu
No tropel que em vida ilude
Do rebanho o trote vário:
Melhor não existe ateu
Que o que perde a juventude
Perdido num seminário.
SEXTA RÉSTIA
OITAVA FESTIVA
Receio
É só quando já não temos
Receio que começamos
A viver o que queremos,
De alegre ou triste os mil ramos.
Por cada momento então
Vivemos, disto em virtude,
Finalmente em gratidão,
Finalmente em plenitude.
Festa
No deserto há pastagens abundantes,
Colinas reverdecem de alegria
E rebanhos germinam murmurantes
Nos campos onde enflora a melodia,
Nos vales há trigais mil bailarinos
Inflando a festa de espigarem hinos.
No deserto da vida, se vir bem,
Há um outro lado onde o mistério advém.
Estranho
Quando tens no coração
O estranho que é sempre o amor
E a fundura do fundão
Lhe sentes na alegre dor,
No êxtase de guerra e paz,
Então tu descobrirás
Que para ti, neste voo,
O mundo inteiro mudou.
Feliz
Vida sem finalidade
Nem rumo, nem objectivo,
Nem sequer significado...
- Mas sou feliz de verdade!
Não descubro o que é que, esquivo,
Faço bem sem ter notado,
Aqui entregue, no berço,
Ao abraço do Universo.
Discreta
A vera felicidade
Por natureza é discreta,
Tem à pompa inimizade
E ao barulho que a acometa.
Primeiro é satisfação
Consigo próprio. Depois,
De amigos conversação,
Do casal encontro a dois.
Enquanto
Enquanto o homem viver,
For livre, há-de procurar
Aquilo que der prazer.
Não significa encontrar.
Da felicidade a base
É a plenitude da vida.
Ora, a plenitude é um quase,
Sempre uma essência escondida.
Natureza
Há uma lei da natureza
Mística e maravilhosa:
Os três bens que alguém mais preza
Na vida e que raro goza,
A felicidade, a paz,
Liberdade que lhe apraz,
São, enfim, sempre alcançados
Se a outrem por nós são dados.
Porta
Quando uma porta se fecha,
Logo outra se lhe abre ao lado.
Mas nós, apagada a mecha,
Ficamos de olhar parado,
Ante a que assim nos traiu,
Por tanto tempo, por tanto,
Que nem vemos que se abriu
A que é melhor entretanto.
Eventos
Fala de eventos felizes,
O mundo basta de triste.
Teus lamentos são deslizes,
Monda-os de tuas matrizes.
Escolhos, dentre o que existe,
Não é tudo o que adivinho,
Seja qual for o caminho.
Parte
O que realmente vivemos
É meramente uma parte
E bem pequena da vida.
O resto por que passemos
Não será vida, destarte:
Mero tempo é de fugida.
Já nem falando, entretanto,
Da vida eterna que planto.
Contra
Quando tudo é contra ti
Na inviável conjuntura,
Se mal aguentas ali
A hora a mais que te apura,
Não, não desistas então:
Tal é a hora e o lugar
Em que, a meio do cachão,
Toda a maré vai mudar.
Entusiasmar-me
Agimos tal se o conforto
E o luxo são principais
Requisitos para a vida,
Quando o que quer o meu horto,
Para feliz eu ser mais,
É de entusiasmar-me à ida.
A euforia do pasmo
É o tamanho do entusiasmo.
Estranho
A vida é um contrato estranho,
Já que ela deve-nos pouco,
Nós, tudo, pois tudo é ganho.
E ser feliz é de louco:
A vera felicidade
Vem de esbanjar a energia
Visando a fatalidade
Duma qualquer utopia.
Consumir
Consumir felicidade
Sem jamais a produzir
Não é direito, é vaidade
Que vai pagar-se a seguir,
Como paga o que despreza
Quem no trabalho fremir,
Se lhe consome a riqueza
Sem também a produzir.
Imediato
Porque não hei-de agarrar
Logo o prazer de imediato?
Quantas vezes, se calhar,
Da felicidade o trato
Fica de vez destruído,
Não por ter rumos esquivos,
Mas por de nós ser banido
Em tolos preparativos!
Contentamento
É sempre o contentamento
A pedra filosofal,
Transmuda em oiro o tormento,
A seca, em água lustral.
Qualquer pobre que o tiver,
Afinal rico é que sobre
E o rico que o não colher
Em definitivo é pobre.
Fado
Se meu fado é rastejar,
Rastejarei satisfeito;
Se, ao contrário, for voar,
Alegre voo a preceito.
E, se a possibilidade
De evitá-lo por um triz
Tiver em qualquer idade,
Não serei nunca infeliz.
Tinta
Mesmo quando mangue
De quem é instruído,
A tinta de escrita
Vale e tem sentido
Tanto quanto o sangue
Dum mártir que imita.
Ainda perde o coração
Quem nela não tenha mão.
Grupo
Não duvides de que um grupo
Pequeno de cidadãos
Conscientes e empenhados
O mundo de que me ocupo
Pode, pelas próprias mãos,
Mudar por todos os lados.
- Tem sido, aliás, sempre assim
Que o mundo muda por fim.
Janelas
Os indivíduos tais quais
Janelas são com vitrais.
Elas brilham e cintilam
Quando o sol nelas bater.
Se no escuro se perfilam,
Apenas se lhes vai ver
A beleza se uma luz
Dentro delas as traduz.
Solitário
Se encontrar um solitário,
Seja o que for que ele diga,
A solidão, temerário,
Não ama, vê se o abriga:
Já se tentou integrar
No mundo sempre intranquilo
Mas este há-de continuar
Perene a desiludi-lo.
Casa
Cuidamos que a casa dura
Para sempre e, na verdade,
O que a ventania apura,
Se em demolição a invade,
É que um mero instante basta
Para o que ao fim a devasta.
E a família lá existente
Não é muito diferente.
Recebemos
Nós nunca temos os filhos,
Apenas os recebemos.
E às vezes estes cadilhos
Bem menos tempo os colhemos
Do que esperávamos nós.
Mas é de longe melhor
Do que nunca ouvir a voz
Dum novo mundo a se impor.
Pensamento
O pensamento da infância
Será o pai do pensamento
Da adultez: ou paz ou ânsia.
Ora, pode um pai enfermo,
Doente a todo o momento,
Saudável ter filho ao termo?
Daí, pois, a relevância
Dos alicerces da infância.
Mapa
Qualquer arte não é só
Para um qualquer indivíduo,
Não é um marco em meio ao pó
Do que ele houver intuído.
De mistério sob a capa
Leva a rede de cipós:
Para aqueles será mapa
Que virão depois de nós.
Dilema
É mui simples o dilema:
O homem silvestre sem mim
Morre e, sem ele, por fim,
Morro eu, morto meu tema.
Para a vida em mim advir
Com ambos hei-de existir,
A epiderme da consciência
No corpo da minha essência.
Abismo
Todos à beira do abismo?
Pois bem, toca então de voar!
Ninguém mexe, o cataclismo
Tem o condão de aterrar?
Pouco importa repetir,
É de empurrar para a frente:
- Veremos como, a seguir,
Tudo voa, minha gente!
Isola
Ser eu mesmo é o que me isola
De muitos outros além.
Ceder-lhes a mim me imola,
De mim me isolo também.
É tensão angustiante
Que importa ser suportada
Mas a escolha é clara, instante,
Ou nem sou nem tenho estrada.
Persistência
Muito estranha é a persistência!
Requer tremenda energia
Mas pode-se abastecer
Para um mês de subsistência
Nuns minutos, qualquer dia,
A contemplar, ao correr,
Um ribeiro de águas calmas,
Mergulhando nele as palmas.
Encarquilhada
Não só o acto singular
Reformula a encarquilhada
Comunidade a secar,
Também a continuada
Repetição com que medra:
Água contínua a tombar
Logrará furar a pedra,
Por dura que se antolhar.
Povo
Falo do povo e os impulsos
Arcaicos do popular
Existem, prendem-nos pulsos
Em nós, em todo o lugar.
Não basta a religião
A reprimi-los, segura.
Só ciência, educação,
Um livre ideal nos depura.
Criatividade
Toda a criatividade,
Na intimidade do homem,
É um revérbero de Deus:
É o Poder que alguém invade.
Do fiat ecos que o tomem
Soerguem do Infinito os véus.
Daí vem o alumbramento
Que sempre acompanha o invento.
Ninguém
Ninguém pode compreender
Um evento novo e jovem
Se não ombrear sequer
Com as tradições que o movem.
Tal como o amor ao antigo
Estéril mantém-se e falso
Se ao novo fecho o postigo:
O antigo vem-lhe no encalço.
Carro
Se um qualquer tivera um carro
Menos bom, aquele, ali,
Sem-abrigo com que esbarro,
Tinha almoço para si.
Se nós um carro tivermos
Menos bom, aquele então,
O sem-abrigo, o sem-termos,
Pode ter a refeição.
Usa
Usa as tuas energias.
Se és tu quem usará delas,
Não és escravo, confias,
Abres em ti mais janelas.
Se, porém, és preguiçoso
E aguardas quem te alimente,
Que é do dia em que, maldoso,
Ninguém já se te apresente?
Falhanço
Quando os africanos pedem
E os ocidentais o fazem,
Naquilo que lhes concedem,
Em tudo o que lhes aprazem
Vai a nota do falhanço:
- Não é deles nenhum lanço.
África ficou de fora:
É estranho se não melhora?
Apenas
Apenas a confiança
Como a fé do coração
Farão ambas o que entrança
Ídolo e Deus cá no chão.
Onde tu te dedicares
De alma e coração, aí
Mora o deus de teus altares:
Vero ou falso, é ele em si.
Tudo
Se quero chorar por tudo
Então digo: “não é nada...”
E é por tudo, sobretudo,
Ao mesmo tempo, a enxurrada.
Se me sinto magoado
Mas mesmo muito, deveras,
É que sinto que hei chorado
Por nada em todas as eras.
Perder
Às vezes de me perder
Preciso em alguém no mundo
Para encontrar-me em meu ser.
Dantes via-me infecundo
Ao espelho, pelo escuro.
Agora vejo, seguro,
Sem mais perda de sentido,
Como é que sou conhecido.
Empanturrado
É de tão empanturrado
Do pó dos dias que então
O varro de todo o lado
Para sob o coração.
E acabo ali desolado
E com colo mesmo ao lado...
E não me chego a ninguém
Para deixar-me estar... bem!
Grande
Eu creio que um grande amor,
Bem cuidado cada dia,
Pode eterno se propor.
Não cuidado, morreria.
As relações preciosas
São frágeis, frágeis deveras.
Se decepcionam teimosas,
Matam para o amor quem eras.
Dispamos
Num amor é obrigatório
Que nos dispamos por dentro,
Que desçamos o escadório
Que nos leva até ao centro.
Há quem se dispa por fora
E abotoe o coração:
Nenhum amor ali mora
Até o último botão.
Consigo
Se o que dizer não consigo
Te conseguira dizer,
Em mim vias, ao postigo,
O que eu nem consigo ver.
Sei lá bem qual é a semente
Que me germina do fundo!
Só tu, vivo espelho em frente,
Me desvendas o outro mundo.
Letal
Mais do que um rico letal
É um homem pobre, que menos
Valor à vida, afinal,
Dá, que a tem com dons pequenos.
Até o mais fraco animal
Luta bravamente ao ver-
-Se encurralado: afinal,
Já nada tem a perder.
Egoísta
Do egoísta a felicidade,
Cela em torre de marfim,
Na carcassa soledade,
Mal chegou, chegou ao fim.
De tão pouco duradoira,
Quem quer o que não perdura
Em troca do que se agoira
Que uma eternidade apura?
Baptizas
Baptizas como prudência
O que é mera cobardia
E os vazios de ciência,
De empáfia a sujar o dia,
Findam em lugar cimeiro,
Calcam quanto é pioneiro.
Como podes desculpar-te
Quando és mesmo tu, destarte?
Abuso
Abuso irremediável,
Um caso desesperado,
De rectificar inviável?
Não creias tanto no fado.
Teu dever em toda a linha
Cumpre, mesmo se os demais
Não cumprirem. E adivinha
O que advém de gestos tais!
Susceptível
Não sejaas tão susceptível,
Qualquer coisa te magoa.
Medir termos é exigível
Se te fala uma pessoa.
Tornaste-te insuportável
E, se te não corrigires,
És o inútil dispensável,
Sintas tu quanto sentires.
Emproado
Esse teu ar emproado
E a ênfase caem mal,
São postiços de enganado
Que quer valer e não vale.
Tens uma barreira a menos
Se ao menos os não empregas
Em teus íntimos acenos,
Que com os mais te congregas.
Confrange
Teu íntimo se confrange
Com enredos, mexericos
Que não entende ou abrange
E onde perde os dons mais ricos.
Sofre, pois, a humilhação
De na boca alheia andar.
Que a crueza dê lugar
A teres mais discrição.
Carácter
O carácter das pessoas
É sempre o trabalho duro
Que o fará sobressair:
Uns buscam as coisas boas
As mangas, pelo seguro,
Arregaçando ao sair;
Outros torcem o nariz
E uns nem vêm, de raiz.
Ocultes
Não ocultes do que ouvir
Quaisquer tentações perversas.
É vitória conseguir
Denunciá-lo em conversas.
E mais ganhas a seguir
Com o conselho, as mãos tersas,
O apoio que conseguir
Teu mediador ao que versas.
Filhos
Os filhos são o que são,
Hoje esvaziam, hoje enchem,
Partem-nos o coração,
Também, porém, o preenchem.
Não há lida como a lida
Com que neles se tropeça,
São o tesoiro da vida
E a maior dor de cabeça.
Funerais
Às vezes um casamento
Traz nele três funerais:
O da família do evento
E as duas originais.
Quando as três se barricarem
Numa guerra de trincheiras,
Andam os vergéis a ararem
Apenas com mãos coveiras.
SÉTIMA RÉSTIA
À DÉCIMA AURORA
Vida
A vida de agonia e desespero,
De tanta perda e culpa e destempero,
É bela e excitante e divertida,
Astuta e cativante, preenchida
De afectos mil, de amor, feita poema,
Às vezes aventura onde o céu trema,
Sublime porventura, acaso alegre,
Venha o que vier após onde se integre
- E, seja lá o que for este entremez,
Mais não tenho esta vida uma outra vez.
Conselhos
O mais útil dos conselhos
Para toda a humanidade:
Conta com a adversidade,
É inevitável nos quelhos.
Porém, quando ela chegar,
Ergue a cabeça bem alto,
Olha-a de frente ao falar:
- “Maior, nem que seja a salto,
Do que tu hei-de ao fim ser,
Não me poderás vencer!”
Utopias
Muito ao longe, à luz do sol,
Moram minhas utopias.
Não lhes atingir o rol
Posso, mas todos os dias
Vou, fiel, olhar ao alto,
A lhes fruir da beleza,
E de nelas crer não falto
Porque, sendo quem as preza,
Tento correr (tanto contam!)
Para onde elas apontam.
Labor
Se um labor tenho importante
E tempo livre bastante
E rendimentos que dão
Para executá-lo chão
Tal qual como deve ser,
Não tal distracção qualquer,
A felicidade então
Tenho que melhor convém
A qualquer filho de Adão:
- Prezo então quem me sustém.
Demanda
Felicidade em demanda,
Meio mundo erra o caminho:
Cuidam que ela em deter anda,
Em adquirir para o ninho,
Em ser por outrem servido...
Mas feliciddade real
Vem de dar, nalgum sentido,
De outrem servir, afinal.
Anda, pois, tudo ao invés
Daquilo que sou e és.
Valor
Sobretudo dá valor
A todo o amor que recebes.
Ele sobrevive um ror,
Muito além do que concebes,
Muito depois de teu oiro,
Depois de tua saúde
Morrerem, fátuo tesoiro
Que a vida inteira te ilude.
Sobretudo dá valor
Ao que recebes de amor.
Borboleta
A felicidade,
Como a borboleta,
Seguida, se evade,
À justa sem meta.
Porém pousar pode
Desde que eu me sente
Num canto que acode
Sossegadamente.
Se não procurada,
Ei-la de chegada.
Cativar
Quem tente a alegria
Cativar alada
Destrui-la-ia
Logo feita em nada.
Mas o que a beijar
Pelo ar volitando
Há-de madrugar
Pelo Eterno quando,
Sem dar conta ao ir,
O Além pressentir.
Trajecto
O trajecto habitual
Do bom revolucionário
Começa em libertador
Para acabar muito igual
Ou pior o itinerário
Que o do inimigo a depor.
Tudo em nome liberal
Do que é o seu puro ideal.
- E é sempre uma ditadura
O que no final apura.
Lutar
Aquele que precisar
De lutar pelo poder
É que em sua vida, a par,
Poder nenhum sente ter.
Que faz quem é consciente?
Busca formas de fazer
Que aquele vá, de repente,
Sentir-se, como quenquer,
Um pouco mais poderoso.
- E o dia devém gostoso!
Paradoxo
O paradoxo dum pai
É de inútil se ir tornando.
O dum filho é que só vai
Ver que precisa dum pai
Após dispensá-lo, quando
Cuida que já não precisa.
Vai, filho, por tua conta!
Quando o passo te não visa
Escutar-me é que divisa,
No que digo, o que é que aponta.
Fluído
É o amor sempre fluído,
Não é firme, uma escritura,
Vai prestar-se a ser traído,
Oscila, assume a figura
Daquilo em que for vertido.
Pode ser utilizado
Em todo o tipo de fins.
Antes fora limitado!
Assusta, de tão ruins
Feitos que lhe andam ao lado.
Excesso
Não invocar em excesso
Qualquer força numinosa
É o corrigido processo
De quem dos numes se goza.
Embora visite o além,
Não ficar extasiado
É o que a nós sempre convém,
Senão é-se aprisionado,
Perdido o lado de cá
E sem poder andar lá.
Coração
A mente é que pensa e cria?
A história diz o contrário.
Do coração a magia
É que pensa: o temerário
Convoca afectos e anseios,
Átomos e sentimentos
E os mais requeridos meios
Ao único entre os eventos
Que ara a matéria no chão
Que realiza a criação.
Ganho
Um ganho inesperado o isolamento
Em dádivas inúmeras nos traz.
A fraqueza elimina do tormento
Dos golpes com que a vida em nós se apraz.
Erradica os lamentos, proporciona
Uma penetração acutilante,
Aguça a intuição, trazendo-a à tona,
Apura a observação insinuante,
Oferta uma visão em perspectiva
Que em qualquer que é mundano é sempre esquiva.
Feridos
Se instintos andam feridos,
Os humanos trivializam,
Uma após outra, a agressão,
Actos iníquos vividos,
As destruições que visam
Que a todos atingirão,
À prole e seres amados,
Terra e deuses adorados...
- Protege a luz de teu imo
Das prioridades ao cimo.
Liberdade
A liberdade conduz
Ao que for reverso dela.
Muito cedo vê-se à luz
Da limitação, sequela
De subordinar-se à lei
Ou à coacção ou sistema...
Nisto se converte a grei
Que livre se quer por lema.
Será sempre liberdade
E é mais quando o inverso invade.
Doenças
Há doenças transmissíveis
Que o são amorosamente.
Nas relações, transferíveis,
Atam coração e mente.
São as feridas pequenas
Que entortam nossas empenas:
Já não há segura casa
Onde um amor nos abrasa,
Já, num coração desperto,
Não há mais portal aberto.
Comunhão
A comunhão é o contrário
Do estado de confusão
Ou de indiferenciação
Entre dois, cujo sumário
É serem um algum dia.
Jamais há qualquer amor
Se nunca precisaria
De alimentar o fervor
Para sempre, eternamente,
O sangue a inovar urgente.
Rasto
Que a tua vida não seja
Uma vida estéril, não.
Deixa rasto que se veja
Nas pegadas de teu chão.
Apaga o rasto viscoso
Dos que com ódio semeiam
No caminho pedregoso
Que teus lumes incendeiam.
E que seja coração
Que germina em teu torrão.
Teu
Egoísta, vais sempre ao teu,
Não vês a fraternidade
Dos mais sob o comum céu,
Mas degraus que o pé te invade.
Vais ser fracasso rotundo.
Quando de vez te afundares,
Buscas caridade ao fundo,
A que hoje não partilhares.
Pouca encontras ou nenhuma
Que é a que semeaste, em suma.
Crítico
O teu espírito crítico,
Mesmo sem murmuração,
Tem um fatal fado mítico:
Destrói sempre o teu irmão.
De qualquer empresa estorvo,
Enquanto tudo examinas
Teu olhar ficará torvo,
Já nada mais iluminas.
Aplica-o somente às coisas,
Não àquele em quem repoisas.
Príncipe
Para um príncipe, chamar
Às armas é fácil feito.
Mas no fim quem vai pagar
São as crianças o preito.
Se sábio for, por bem delas
Só com muito bons motivos
Trava guerras e as sequelas
Mede sem gestos esquivos.
Sem uma esperança a par
Quem é que irá guerrear?
Nariz
Se tens o nariz enfiado
Todo o tempo no trabalho
E não tiveres cuidado,
De mão sempre aí no malho,
Não vais um dia encontrar
Nem ribeiros marulhantes
Nem as aves a cantar
Por campinas verdejantes...
Então teu mundo é deste cariz:
És tu, teu trabalho e teu nariz.
Salafrário
O mais extraordinário
Do detentor do poder
É o crime mais salafrário
Poder vir a cometer
Sem sequer se preocupar
Com o passo em falso a dar:
Num abrir e fechar de olhos
Torneia logo os escolhos.
A solução foi que alguém
Se vende ao que dele vem.
OITAVA RÉSTIA
LANTERNAS À DESPEDIDA
Cobertor
Vida é cobertor
Pequeno demais.
Puxais para cima:
Do frio ao rigor
Os pés me gelais.
Troco então de clima:
Mas, se abaixo empurro,
Os ombros me gelam...
Porém, bem dispostos
Eis-nos em sussurro
Se os joelhos velam
Dobrados nos postos:
Dormimos fiável
Noite confortável.
Beleza
A beleza é preciosa
E, quão mais belo algo for,
Mais precioso é seu fulgor,
E quanto mais dolorosa
For a beleza, no fundo,
Mais nós amamos o mundo.
Ora, quanto mais o amamos,
Mais então nos entristece
Que ele seja pó refece
Que escapa quando o agarramos,
Quando do vento é soprado
Ou é da chuva arrastado.
Vento ou chuva da monção,
Ou, pior, de nossa mão...
Maldição
Uma grande maldição
Que vem da religião
(E seja ela qual for,
Não é melhor nem pior)
É que é só um pequeno toque
Com a faca indo a reboque
Da bainha da camisa
E muda aquele que visa,
Dantes um vizinho afável,
Num inimigo implacável.
Podes ter vivido em paz,
Que hoje só a vingança apraz.
E é sempre em nome de Deus,
Por mais que o neguem os céus.
Ópio
A beleza, como o ópio,
É um vício, quer-se mais, mais...
Olhando ao caleidoscópio,
Dá um calor no coração
Que cresce dela aos sinais
E enche inteira a bela então.
É tal qual um sol lá dentro,
Quer devir mais e mais bela,
Sempre a irradiar do centro,
E quer que tudo em redor
Mais belo em cada parcela
Acabe por se propor.
Seja alegria ou tristeza,
É uma escrava da beleza.
Piloto
Nosso imo é mau conselheiro
Quando andar à rédea solta,
Mau piloto do saveiro,
Naufraga, volta não volta,
Na borrasca e tempestade
Quando a vida interior grade.
Pois, se a direcção da nau
É tua, serão os mais
Que, para cruzar o vau,
Do rumo darão sinais,
Com luz e conhecimento
De feição nos trarão vento.
Medianeiros num apuro,
Levam a porto seguro.
Meditação
Em minha meditação
É que o fogo se me ateia.
Vou, portanto, à oração,
Que a fogueira se incendeia,
Lume vivo a me ofuscar,
Calor, luz a arder no lar.
Quando sinto que me apago,
Não logro atirar ao fogo
Tronco oloroso, que é vago
O meu colo desde logo,
Jogo ramos e folhagem
À fogueira na viagem.
São meus mergulhos de nada
Na fundura que há na estrada.
Fardos
Lograremos facilmente
Aguentar os nossos fardos
Se, em cada dia presente,
Entre as silveiras e os cardos,
Alombarmos meramente
Com o fardo deste dia.
Mas a carga, de repente,
Vai pesar em demasia
Se outra vez nós transportamos
Hoje o fardo que foi de ontem
E, pior, se lhe juntarmos
O que amanhã nos apontem,
Antes de, na nossa pele,
Ser forçoso arcar com ele.
Êxitos
Quem neste mundo alcançar
Grandes êxitos programa
O porvir que antecipar,
Cria dele inteira a trama
Na própria imagem mental,
Depois joga-se ao trabalho
Materializando-a tal qual,
Cada pendor, cada galho,
Ora preenchendo aqui,
Ora ali acrescentando,
Alterando um nada em si,
Pondo além algo mais brando,
Porém, sempre a construir,
Com mão de mestre, o porvir.
Compartilhar
A educação há-de ser
Compartilhar o futuro.
Vem do imo o vero saber,
Não do intelecto que apuro.
As crianças hão-de ser
Primeiras participantes
De experiências de aprender
E os adultos, ajudantes
Que apenas as guiarão
Nos trilhos de aprendizagem.
Instrutores, pois, não são
Que no correr da viagem
Lhes dizem o que fazer,
- Apoiam só quem crescer.
Realização
Pode a realização
Ser sentida quando perda,
Tão funda raiz no chão
Que só já plenitude herda?
Um amor vai residir
Entre o desejo e a função,
Na carência que o sentir
E não na satisfação.
O amor é uma expectativa,
A lonjura, o afastamento,
Toda em volta a ambiência esquiva
E não da emoção o assento.
É uma busca do infinito
Que longe, ao presente, fito.
Repetição
Aguardou por nós
A repetição,
Da maldição pós
A marcar o chão.
E tais gestos feitos
Desde tempo infindo
Geraram-nos jeitos,
Somos nós cá vindo.
Geraram-nos todos,
Eu, tu, mais os povos
Em seus mil e um modos...
Parcos, só os renovos!
Acena-me o Além
E eu do chão refém!
Idade
Não importa a idade havida
Nem quantos anos decorram,
Outra idade há de seguida
Que os pés logo nos percorram,
Outros estágios advêm
Como outras primeiras vezes,
À espera por nós também.
Tudo iniciações corteses:
Criam sempre uma abertura
Através da qual passar
Pretendemos, na postura
De podermos alcançar
Algo novo, ao conhecer,
E um novo mundo a nascer.
Loba
Sabe uma loba a beleza
Que tem no campo ao saltar?
Do felino a fêmea preza
O belo de se sentar?
Espantam-se aves ao som
Do canto ao abrir as asas?
Delas aprendendo o tom,
Agimos em nossas casas
À nossa própria maneira,
Com beleza natural,
Sem lhe fugirmos da beira,
Sem lhe esconder o sinal.
Tal qual como os animais,
Só somos. E é bom demais.
Importam
Que é que importam sofrimentos,
Mesmo humilhantes perigos,
Temor, ante os pagamentos
Do doce, único entre abrigos,
Fértil triunfo do amor,
Sem que ninguém quer viver?
Uma vida sem sabor,
Frívola para quenquer
E fugidia, mundana,
Que as almas nos atormenta
Com gentileza que engana,
Em que confiar ninguém tenta,
- Eis o que sem ele fica
A vida: é vinagre, pica.
Sedução
Sempre, sempre, a sedução
É um jogo das escondidas.
Aos bocadinhos, então,
Me escondo, tomo medidas,
Esperando um engenhoso
Lado doutrem que o descubra.
Acaso esconder-me é o gozo
Da janela que me encubra.
Quando deixa de ser jogo,
Transmudado em compulsão,
Não traz outrem, que o afogo
No jeito de minha mão.
É um jeito de usá-lo a sós
Para fugirmos de nós.
Descuido
Nós, de descuido em descuido,
Findamos no desamparo.
Desamparado, não cuido
Em mim dum aspecto raro,
Depois doutro e doutro mais...
Um dia, quando dou conta,
Jão não sou eu que vejais,
Só a saudade então me aponta,
A saudade do que fomos.
Descuidos dão desamparos,
Desamparos são os tomos
Que carrego nos mais caros
Recantos do coração
E acabo na depressão.
Chocas
Chocas com este ou aquele
E sempre há-de ser assim,
Não é de oiro a tua pele
Que a todos agrade ao fim.
Sem estes choques, contudo,
Como havias de perder
As arestas, sobretudo,
De que és feito sem querer?
E como adquirir a forma
Bem cinzelada e polida
Que a caridade conforma,
Da perfeição sempre à ida?
Quando tudo é adocicado
Não há da mestria o brado.
Paixão
A paixão costuma ser
Por demais cheia de si
Para imaginar sequer
Que alguém queira ao frenesi,
Àquilo ali no lugar,
Seriamente contrariar.
É o que advém quanto ao amor,
Em prol de que o sentimento
Reivindica sempre um ror
De direitos, seja o vento
Ilícito, escandaloso
Embora, dele no gozo.
E tem sempre a compreensão
Dos mais, mesmo sem tenção.
Antinomia
A ideia de antinomia
Que gera a frivolidade
Que em festas sociais havia
E em triste inquietude invade
A vida de cada dia
Nunca pode eliminada
Ser pelo amplexo amoroso
Que, em suma doçura dada,
Vingaria saboroso
A dor dacolá causada.
Nunca uma transposição
Desata o nó da lesão.
Tem de este ser extirpado,
Ou jamais lhe fujo ao fado.